sexta-feira, 10 de setembro de 2021

Traços de literatura comparada do século XIX

Tobias Barreto


Texto de 1887, editado pela primeira vez por Sílvio Romero, em 1892, três anos após a morte de Tobias Barreto; disponível em: https://books.google.com.br/books?hl=pt-BR&lr=&id=wC8sAAAAYAAJ&oi=fnd&pg=PA103&dq=Estudos+Allemães&ots=pWXyCSxxU8&sig=XtZSpgLEIExGR6QNIS-qHYv2OZQ#v=onepage&q=Estudos%20Allemães&f=false.

Tendo como referência a instituição histórica e gradativa da cultura em sua gênese literária, com destaque para autores europeus, sobretudo os de língua alemã, Tobias Barreto se propõe assinalar as condições em virtude das quais se concebe a consciência de si como povo.




"O estudo das línguas e literaturas estrangeiras é um traço característico do nosso tempo. Nenhum outro período histórico nos apresenta sinais tão vivos de unificação mental, pelo menos no domínio das letras e das ciências." (Tobias Barreto)




I



1. Segundo o plano da história, que muitos chamariam a economia providencial do universo, todo o povo que progride e se desenvolve tem uma dupla missão: uma interna e outra externa; uma volvida para si mesmo e outra para os demais povos.


2. Cada nação, mais ou menos impelida de uma lei inelutável e superior às tendências exclusivas, sente uma contínua necessidade de completar-se material e moralmente, mutuando com as suas irmãs os benefícios da cultura, considerada principalmente em seus resultados práticos.


3. Todos os dias o liame dos espíritos torna-se mais íntimo e se dilata até aos mais longínquos pontos do globo. A indústria e o comércio ajudam não somente a promover a sociabilidade internacional e a harmonia dos interesses, mas também a aumentar o depósito ideal dos princípios, sobre que se fundam a conservação e o bem-estar do gênero humano.


4. A literatura, expressão e manifestação desses princípios, tende em nossos dias, mais que em outra qualquer época, à universalidade, à assimilação daquela parte do patrimônio intelectual dos diversos povos, que é suscetível de ser transmitida, como tributo, ao erário comum da civilização.


5. Pela rápida e constante troca de ideias, de costumes, de riquezas, as nações cultas, como que transvasadas umas nas outras, fazem presentemente da Europa e de uma boa porção da América um povo único e enormemente grande. O estudo das línguas e literaturas estrangeiras é um traço característico do nosso tempo. Nenhum outro período histórico nos apresenta sinais tão vivos de unificação mental, pelo menos no domínio das letras e das ciências.


6. Mas importa observar que essa unificação não se dá em proporções iguais. Nem todas as nações cultas da atualidade, ou como tais reputadas, mantêm-se entre si num perfeito estado de reciprocidade intelectual. Há umas que falam mais alto e outras que se limitam a escutar. O pão espiritual, que serve de alimento a todas elas, não é produto da cooperação de todas.


7. Ainda nesta esfera, quero dizer, na esfera científica e literária, apresenta-se verdadeira e notável divisão da espécie humana, que fez Henrique Klenke, nos três seguintes grupos, delimitados pela natureza e pela história: 1º - povos solares, ou o lado diurno da humanidade; 2º - povos planetários, ou o seu lado noturno; 3º - povos de transição, ou o seu lado crepuscular, grupo este que por sua vez se subdivide em povos que se levantam e povos que decaem. [1]


Nota 1: Não há dúvida de que os brasileiros pertencem ao terceiro grupo: somos um povo de transição. Se, porém, caminhamos para cima, ou para baixo; se subimos, ou descemos, é questão que aqui não interessa, nem sequer agitar, e muito menos tratar de resolver.*


* Nota do Editor: Quanto à ideia de literatura comparada no Brasil, tal consideração de Tobias Barreto pressupõe, historicamente falando, ressalte-se, as considerações iniciais de Gonçalves de Magalhães em seu Ensaio sobre a história da literatura do Brasil, §1-§8; texto disponível em: http://textosdefilosofiabrasileira.blogspot.com/2012/05/discurso-sobre-historia-da-literatura.html.


8. Somente aos povos solares é que pertence o trabalho cultural do espírito humano, encarado sobretudo pelo seu lado íntimo, no puro domínio das ideias e dos sentimentos. Só eles, por conseguinte, possuem uma literatura, no rigoroso sentido da palavra, um imenso capital circulante de riquezas ideais, que fecundam e vivificam o trabalho de outros povos.


9. Daí vem por certo que nos tempos atuais, em que os cidadãos dos diversos países, atormentados todos igualmente da necessidade de independência, de liberdade honesta, e da insaciável sede da verdade, vão por vias diferentes em busca desse alto escopo, afastados entre si, estranhos pela língua e desconhecidos uns dos outros, o melhor meio de aproximação espiritual, o meio mais eficaz para inspirar-lhes o sentimento de vizinhos e de irmãos, é justamente o estudo das literaturas estrangeiras.


10. E se talvez aqui ou ali se dividem as opiniões, os interesses, as tradições nacionais, no cultivo único das letras tudo isso desaparece, as diferenças se atenuam, as antíteses se harmonizam, por uma ideia mais alta do bem comum, por uma nobre inspiração à felicidade geral.


11. Não se entenda porém que esse estudo das letras estrangeiras, como aí fica delineado, seja uma simples questão de memória, um trabalho de mera nomenclatura de livros e de autores. Não, decerto. Ele tem o seu lado científico e bem assim o seu método adequado, que é o método comparativo.


12. O que este último tem sido para as línguas e para as religiões, que só a ele devem os mais surpreendentes achados, pode sê-lo igualmente para as literaturas.


13. Ouçamos a tal respeito um homem competente. Diz Georg Brandes:


A literatura comparada tem a dupla vantagem de aproximar-nos tanto do alheio, que podemos apropriar-nos dele, e de afastar-nos também do próprio por tal modo, que chegamos a poder encará-lo de cima para baixo. Não se vê perfeitamente nem o que está muito perto, nem o que está muito longe dos olhos. O estudo científico da literatura fornece-nos, por assim dizer, um binóculo, do qual um dos lados aumenta, e o outro diminui o objeto observado. Importa pois empregá-lo de maneira que possamos corrigir as ilusões da visão a olhos nus. [2]


Nota 2: Brandes, Die Hauptströmungen der Literatur des neunzehnten Jahrhunderts (Berlin, 1872), p. 1-2. [Nota do Editor: disponível em: https://archive.org/details/diehauptstrmunge01bran/page/1/mode/1up]


14. Este mesmo escritor é de opinião que até bem pouco tempo, do ponto de vista literário, as diversas nações realizaram praticamente a fábula A raposa e a cegonha. O que uma sabia da outra era tão abundante, como a parte da iguaria que o bico da cegonha podia tirar de cima da pedra, ou o focinho da raposa de dentro da garrafa, conforme o modo particular a cada uma de obsequiar a sua hóspeda.


15. Entretanto, esse tempo, já não pode chamar-se nosso. Não é que a literatura comparada tenha feito grandes progressos, nem mesmo que os seus cultores já se mostrem em número considerável. Mas ao menos é certo que a crítica de Brandes perdeu a razão de ser. Não só as histórias literárias multiplicam-se de dia em dia, como até sucede que, por exemplo, a literatura francesa, nas mãos de um Juliano Schmidt [Heinrich Julian Schmidt, 1818-1886], ou a inglesa, nas mãos de um Taine, ou mesmo a alemã, nas mãos de um Tommaso Gar, nada têm a desejar de mais analítico e mais profundo, que pudessem porventura produzir escritores nacionais.


16. No vigente século, somente quatro nações, a Alemanha, a França, a Inglaterra e a Itália, têm estado à frente do movimento literário, e só as suas literaturas merecem o título de Weltliteraturen, como dizem os alemães, ou literaturas universais. Tudo o que de bom e aproveitável se há pensado, escrito e falado em outro qualquer lugar, neste ou naquele país epígono, tem sido sempre uma repercussão do pensamento original de um dos quatro países prógonos.


17. Bem pode, à primeira vista, semelhante asserto parecer exagerado, e mesmo não faltará quem o qualifique de tal, tomando como verdade a singular ilusão de que a Itália não entra com igual direito na categoria aberta para as outra três nações, atento que a sua influência tem sido e continua a ser muito inferior, e em mais de um ponto quase nula.


18. Porém o erro é manifesto. Para mostrá-lo, basta lembrar que não há literatura de povo algum da atualidade, onde ao espírito católico não se tenha feito uma larga parte; e falar do espírito católico é falar da influência de Roma e reconhecer, por conseguinte, ao menos em uma das direções da atividade pensante, a preponderância da Itália.


19. Tendo-me proposto no presente escrito um pequeno estudo de literatura comparada, era natural que buscasse o meu assunto entre as nações mais cultas: e assim o fiz. O meu trabalho abrange pois uma apreciação comparativa das letras alemãs, francesas e italianas, não em todo o decurso do seu desenvolvimento, mas em um período determinado da história literária deste século. Por que motivo excluí a Inglaterra do meu campo de observação, para dizê-lo com franqueza, devo confessar que não foi somente com o fim de não aumentar as dificuldades da empresa, mas também porque tratava-se de um terreno em que sentir-me-ia menos seguro e desembaraçado. [3]


Nota 3: Convém notar que este escrito não se apresenta de todo como uma novidade. Ele é uma espécie de recompilação de preleções feitas  pelo autor no ano passado em um curso particular de literatura.


20. Estudando a evolução literária dos três países, limitada principalmente à época decorrida desde 1830 até aos nossos dias, como outra coisa não se podia esperar de mim, eu faço da Alemanha o centro das minhas observações. A França e a Itália girarão em torno dela. Uma questão de simpatia, sem dúvida; mas também uma questão de método; e é lícito a cada um seguir e aplicar o que melhor lhe parece.


21. Muita gente ainda supõe, ao ouvir falar de literatura comparada, que aí só se trata de um processo de confrontação e medida dos diversos autores para determinar, quais sejam os mais meritórios. Assim um estudo comparativo das letras francesas e alemãs teria obrigação indeclinável de mostrar, por exemplo, qual dos dois é mais forte na munheca, se Strauss ou E. Renan, se Thierry ou L. Ranke, se George Sand ou a condessa von Hahn-Hahn, etc.


22. Mas isto é um conceito errôneo. A literatura comparada é simplesmente uma pesquisa histórica das recíprocas influências, das ações e reações metaquímicas, que abalam os espíritos, em um dos vastos domínios da vida internacional. E só assim é que ela podia assumir feição científica e tornar-se realmente digna de ser cultivada.



II



23. Convém, entretanto, acentuar mais vivamente o verdadeiro sentido da palavra literatura ou pelo menos aquele que me parece mais exato e aceitável.


24. Por literatura entendem alguns o conjunto das produções intelectuais de um povo, quaisquer que elas sejam, sem atenção à substância e à forma dessas mesmas produções; outros porém tão somente aquelas obras cuja forma e substância são reguladas pelo padrão da arte; outros enfim os produtos da inteligência, artisticamente elaborados, mas formal e substancialmente impressos de um caráter especial, que os distingue, por si mesmos e independente da consideração da língua, dos trabalhos similares dos outros povos.


25. Qualquer destes três conceitos, que aliás não são exclusivos e antitéticos entre si, tem a sua parte de verdade e a sua parte de erro. O primeiro ressente-se do defeito de uma demasiada extensão. Tomado como princípio regulador, far-nos-ia incluir no quadro da história literária de um país, até as suas leis, os relatórios dos seus ministros, a correspondência oficial das suas autoridades, as peças processuais da sua vida forense, etc. Não é mister melhor refutação.


26. Mas também o segundo não se mostra menos defeituoso pela sua demasiada estreiteza de âmbito. Porquanto, admitido o característico da arte, aplicada esta medida como única determinadora da matéria literária, ver-se-ia desaparecer dos olhos do historiador um sem-número de obras, que entretanto pertencem de direito ao domínio da literatura.


27. As produções intelectuais, reguladas pelo padrão artístico, são somente aquelas, onde prepondera o momento estético, onde o único problema a resolver é a expressão do belo de qualquer forma, do belo de qualquer gênero, tudo por meio a palavra que é a primeira veste do pensamento, a veste mais transparente e espiritual.


28. Já se vê que deste modos obras científicas ou aquelas em que se dá a preponderância do momento lógico, a exposição e demonstração do verdadeiro, ficariam fora de questão.Um trabalho, por exemplo, que se ocupasse da literatura francesa do nosso tempo, deveria dar-nos conta dos romances de Zola, mas passaria em silêncio a Vida de JesusS. Paulo e O Anticristo de [Ernest] Renan, e muitas outras obras de sábios autores.


29. Eu creio que ninguém seriamente sentirá dificuldade em rejeitar, como lacunoso, semelhante modo de ver. É certo que ele é em geral o mais seguido; mas nada importa. Quando se trata de firmar uma verdade, as opiniões não são votos que se contam, porém votos que se pesam. Não quero com isto dizer que os sectários de uma tal ideia sejam espíritos de ordem inferior, cujo número legionário não esteja no caso de contrapor-se ao pequeno troço de espíritos de primeira ordem, que professam opinião diversa. Mil vezes não.


30. A razão é outra. É que todos esses que vazam a literatura em tão acanhado molde não são sempre fiéis à sua doutrina, nem sempre coerentes consigo mesmos; o que prova pelo menos um estado de vacilação e de dúvida, consciente ou inconsciente, pouco favorável à verdade dessa doutrina.


31. Assim, entre outros, basta lembrar o exemplo do célebre professor e venerando patriota italiano Luigi Settembrini. Com efeito ele define a literatura como l’arte nella parola a arte na palavra; conceito este que está de perfeito acordo com o que acabo de refutar. Entretanto o ilustre mestre, esquecendo-se do compromisso contraído pela sua definição, não duvidou dar entrada em suas Lições de literatura a sábios, como Galileu, a filósofos, como Giordano Bruno, e até, o que mais admira, a escultores, como Canova [4].


Nota 4: Luigi Settembrini, Lezioni di letteratura italiana, III, p. 302. [Nota do Editor: Na edição de 1872, a passagem referida encontra-se na p. 301, disponível em:

https://books.google.com.br/books?id=C4YZAAAAYAAJ&printsec=frontcover&source=gbs_ge_summary_r&cad=0#v=onepage&q&f=false]


32. A incoerência é manifesta. Realmente, se a literatura é a arte na palavra, a que propósito o nosso autor veio tratar da Psyché, do Teseu, do Hércules e outras belíssimas criações do hipergenial estatuário? O cinzel não é a pena, nem a língua; com ele não se escreve, nem se fala; por que motivo, pois, fazer menção dos seus produtos entre os produtos artísticos da palavra escrita ou falada?


33. Não é difícil mostrar a origem de semelhante contradição. O professor italiano — e ainda hoje a maioria dos escritores —, em cujo conceito da literatura transparece a influência da intuição francesa, segundo a qual o que pertence propriamente à esfera literária se determina sobretudo pela consideração da palavra como arte, no mais estrito sentido da expressão, isto é, como arte manifestada na poesia e na chamada prosa poética, o professor italiano, repito, deixou-se também influenciar pela intuição alemã, para a qual a história da literatura envolve todos os grandes fenômenos da vida espiritual, uma vez que sejam provocados, não por um interesse prático, como são em geral os artefatos técnicos, mas por uma aspiração de caráter especulativo, sem visar diretamente à utilidade, individual ou social, ainda que essa utilidade possa depois advir por si mesma.


34. O defeito da velha intuição francesa provém principalmente de um modo errôneo de apreciar as relações da poesia com a prosa. Estabelecendo entre elas uma antítese quase inconciliável, pouco mais ou menos de acordo com um dos cômicos tipos de Molière, para o qual "tout ce qui n’est point prose, est vers; et tout ce qui n’est point vers, est prose" *, os literatos chegaram a formar a pobre lei, que só admite em seus domínios a poesia, que não é prosa, expelindo deles sem piedade a prosa, que não é poesia…


* Molière, Le bourgeois gentilhomme, Acte II, Scène VI; disponível em (p. 27):

https://archive.org/details/lebourgeoisgenti00moli_3/page/20/mode/2up.


35. Como, porém, era impossível recusar o título de literários a certos produtos da linguagem solta, ou da que os latinos chamavam ratio pedestris, entenderam resolver a dificuldade, criando o esdrúxulo conceito de prosa poética.


36. E esta frivolidade, seja dito de passagem, chegou a tornar-se realmente uma praga. Entre nós, sobretudo, houve um tempo em que a mania se apoderou de todos os espíritos, e quem quer que ainda ousasse exprimir na sua linguagem as circunvoluções naturais do seu pensamento, quem quer que o não fracionasse em frases rápidas, incompletas, disparatadas, era repelido como um bárbaro, não tinha estilo. A metáfora permanente, a metáfora em tudo e por tudo, tornara-se o distintivo dos grandes escritores. V. Hugo, [Edgar] Quinet e [Eugène] Pelletan eram os profetas da época. A malfadada prosa poética, que, no dizer de Scherer*, tem tanto senso, como poesia prosaica, fazia as delícias da mocidade que lia e escrevia.


* Edmond Scherer, Études critiques sur la littérature contemporaine (1863-1889); disponível em: https://books.google.to/books?id=8uwFAAAAQAAJ&printsec=frontcover#v=onepage&q&f=false.


37. Não deixa de causar uma certa admiração ver como os mortos andam depressa. Apenas um quarto de século há decorrido de então para cá e já parece que ninguém mais se lembre dos momentos de prosa poética daquele tempo.


38. É verdade que a doença ainda não desapareceu de todo; o gosto da frase cortada, do período semita ou pretendido estilo bíblico, não cessou inteiramente de importunar-nos. Mas afinal as coisas sempre mudaram; a direção é diversa.


39. Não se julgue que exagero, quando qualifico de patológico o fenômeno mencionado. Estou de acordo com o célebre psiquiatra, Cesare Lombroso, para quem todas essas extravagâncias literárias podem bem servir de indicação mórbida. E merecem ser transcritas a suas seguintes palavras:


Confesso que, observando como muitos dentre os órgãos que dirigem a opinião pública, estão besuntados deste pez, e como até os moços se arrojam a discutir os graves problemas políticos e sociais com os trocadilhos dos loucos e com os períodos fragmentários dos tempos bíblicos, como se nosso robusto pulmão não pudesse sustentar as fortes e viris inspirações do periodar latino, eu sinto receio pela geração que surge.[5]


Nota 5: Lombroso, Genio e follia.


40. Eis aí a pura verdade. É a psiquiatria que começa a prestar serviços à crítica literária. Tempo virá em que, melhor assentadas as bases desse novo ramo de conhecimento, muito escritor, com qualquer artigo de gazeta, fará tanto jus a uma cela do hospital, como porventura poderia fazê-lo, quebrando a pedradas, e sem motivo, as vidraças da casa do vizinho.


41. Mas ia eu dizendo que a ideia de uma prosa poética viera como resolvente do embaraço que oferecia a total exclusão de muitos escritos do quadro da literatura. Não se concebia a existência de uma prosa como arte figurando por si só, independente dos adornos da poesia e da retórica. Em tal conjuntura, se não havia lugar, nos estudos literários, para essa forma particular da linguagem em ação, ainda menos, muito menos para as demais revelações da atividade artística.


42. Felizmente os horizontes se alargaram, a velha intuição modificou-se; e quem quer que hoje toma a si a tarefa de estudar a gênese, o caráter, a influência social do Fausto de um Goethe é obrigado, por uma lei de afinidade histórica, a fazer o mesmo estudo sobre a crítica da razão de um Kant; mais do que isso, a fazê-lo mesmo sobre as óperas de um Mozart, ou as sinfonias de um Beethoven. Não fica somente aí. Assim como a história propriamente dita engrandeceu o seu campo de observação, incluindo nele, em harmonia com a marcha evolucionai dos fatos, a apreciação do movimento das ideias, assim também a história literária não se dedigna, é pouco, sente-se mesmo obrigada a olhar por cima dos muros e apreciar as relações recíprocas, não simplesmente sincrônicas, mas genéticas e causais, entre o bulício das ideias e a erupção dos acontecimentos.


43. O terceiro modo de compreender a literatura, que é tão incompleto como o segundo, tem todavia um mérito incontestável: é o reconhecimento de um caráter especial, que distingue as obras literárias de um país das produções análogas de outros, sem dependência da língua em que são escritas.


44. Esse caráter, que não é facilmente definível, pode provir da raça, da educação política, dos costumes, ou de outra qualquer fonte; mas, provenha de onde provier, o certo é que ele realmente existe. Leibniz, escrevendo livros franceses ou latinos, é sempre o sábio tedesco do século XVII. Ivan Turgueniev, que escreveu novelas em alemão e em francês, nunca deixou de ser o mesmo russo; sempre o mesmo pessimismo, sempre a mesma intuição eslava.


45. Destarte, e finalmente, diferenciando e integrando todas essas observações, pois que a função de pensar e escrever não é mais, em última análise, do que um constante processo de diferenciação e integração de ideias, podemos chegar a este resultado: a literatura, como ciência, é a história da vida espiritual de uma nação, total ou parcialmente considerada, no que essa vida encerra de mais nobre e elevado, acima dos interesses materiais, pela inspiração dos gênios, pelo esforço dos talentos.


46. Apreciemos agora uma nova face do assunto. Costuma-se dizer, e eu sinto algum pesar em repetir palavra tão cediça, que toda a vida intelectual e sentimental de um povo se deixa aperceber na sua literatura.


47. Georg Brandes, o distinto escritor dinamarquês, já por mim citado, tendo ocasião de reportar-se também a esta verdade vulgar, julgou dever, entretanto, fazer-lhe um corretivo, que não é sem importância, e me parece digno de atenção. Assim afirma ele, no tom de voz comum, que a literatura de qualquer povo expõe a história inteira das suas instituições e dos seus sentimentos; mas acrescenta: quando essa literatura é completa. Este único aditivo, penso eu, abala, por um lado, a validade do velho dito, geralmente admitido como regra, ou princípio incontroverso, e envolve, por outro lado, uma questão fecunda, na qual, ao certo, não cogitou o grande crítico escandinavo.


48. Realmente, a pergunta é natural: que se entende por uma literatura completa? Aquela em que se acham desenhadas todas as feições e atitudes do espírito pensante? Nunca houve nem há nação alguma onde se encontre satisfeita essa exigência. A vida espiritual de um povo, em sua totalidade e em sua variedade, é sempre mais larga e compreensiva do que o seu patrimônio literário, ainda que este seja vasto e riquíssimo.


49. Porém vejamos qual é, no fundo, a ideia de nosso autor. Eis aqui o que ele diz:


Grandes literaturas, como a inglesa e a francesa, encerram um número suficiente de documentos, para poder-se, por eles, determinar de que modo os ingleses e franceses pensaram e sentiram, em qualquer época da sua história. Outras porém como a alemã, no seu segundo período de florescência, que começou pelo meado do século passado, não são tão interessantes, sob esse ponto de vista, por serem incompletas…


50. Não faço ao escritor citado a injustiça de julgar que lhe sirva de bitola para o apreço das literaturas somente a categoria seca e estéril da quantidade. Dado porém que assim seja, a sua opinião ainda implica um desacerto notável.


51. Completa ou incompleta, no melhor sentido da expressão, a literatura de qualquer país dá sempre a conhecer o seu estado subjetivo.


52. A falta mesma de agitação literária é ainda um manifesto psicológico do torpor e inanidade desta, ou daquela gente. Cada forma do desenvolvimento e atividade espiritual tem o seu tempo. Ora é a poesia, ora a filosofia, ora o direito, ora a política, ora a religião, que toma o ascendente, e prejudica as outras formas, ou diminui respectivamente a elas o interesse do povo, bem como a influência que devam ter sobre este.


53. Pode mesmo acontecer que uma vez começado o predomínio de um desses momentos, nunca mais ceda o terreno a qualquer outro, de maneira que a literatura dos países, onde isto se observa, tem lacunas e vazios, pouco em harmonia com o progresso incessante da cultura universal. Estes vazios, porém, que quase sempre são originados pela preponderância temporária de uma das formas de atividade do espírito, também podem provir da índole das nações, da sua incapacidade natural para o cultivo de algum dos ramos literários.


54. O estudo comparativo das literaturas nos dá conhecimento de mais ou menos riqueza, de mais ou menos fecundidade em umas do que em outras. Porém a distinção de completas e incompletas é quase balda de senso, sobretudo, pretendendo-se conferir exclusivamente àquelas o caráter de informantes da vida interior, da vida social e política das nações. Não é preciso dizer que aqui somente falo em relação aos povos, que entraram a mover-se no plano da história.


55. Muitas vezes um único escritor, e numa só das suas produções, nos deixa a impressão total do mundo em que ele viveu. Basta uma sátira, uma epístola de Horácio, por exemplo, para dar a entrever o que era a sociedade romana de então. Já houve mesmo quem dissesse, e é exato, que quando nos faltassem os demais autores latinos, esse poeta sozinho far-nos-ia experimentar a temperatura do século de Augusto.


56. Ainda me parece digno de nota que não são sempre os melhores escritores de um país, que podem fornecer a justa medida do modo de sentir e de pensar comum, em uma época dada. Nem são também os gêneros literários mais sérios e elevados que prestam-se a guardar maior número de provas e sinais do tempo. Aquilo que é difícil no mármore torna-se fácil no gesso. A literatura do século XVIII, em França, considerada pelo lado estético, pela grandeza e perfeição das formas, apresenta poucas obras que se elevam acima do medíocre. E, todavia, é certo que nunca foi tão forte, como nesta quadra, a influência das letras sobre a vida, precisamente porque elas, no seu conjunto, refletiam quase a vida inteira de uma sociedade, abalada e corroída até às raízes.



III



57. Já o declarei com toda a franqueza: no presente escrito, a Alemanha é o centro das minhas operações, é o meu ponto de partida, o meu terminus comparationis.


58. Não é isto somente, já o disse também, uma questão de entusiasmo, mas ainda e sobretudo uma questão de método.


59. A quadra histórico-literária, que faz o objeto do meu trabalho, se caracteriza, além do mais, por um tal ou qual ascendente que o espírito alemão, no que respeita ao mundo do pensamento, começa a tomar sobre as outras nações; e tanto basta para justificar a posição que lhe confiro, posição que aliás não lhe caberia, com igual direito, em qualquer das épocas anteriores.


60. Goethe comparou uma vez a história da ciência a uma grande fuga musical: as vozes dos povos vão-se erguendo pouco a pouco e cada uma por seu turno. Esta comparação, diz Hermann Hettner, é altamente significativa, sendo aplicada à literatura dos últimos séculos. Aí com efeito se observa uma espécie de fuga literária. Os grandes povos cultos fazem-se ouvir um após outro. Este pega o tema, onde aquele o acaba; mas através da voz de todos há um tom fundamental, um como fio vermelho do tecido, tão comum entre eles, que não surge em parte alguma um pensamento forte e original, que não se torne imediatamente propriedade do mundo civilizado [6].


Nota 6: Hermann Hettner, Literaturgeschichte des achtzehnten Jahrhunderts, I, p. 3. [disponível em: https://books.google.gl/books?id=ODQTAAAAQAAJ&printsec=frontcover&hl=pt-BR&source=gbs_ge_summary_r&cad=0#v=onepage&q&f=false]


61. Quem primeiro apareceu foi a Inglaterra. Pelas descobertas de Newton e pela filosofia experimental de Locke, ela deu à nova vida uma firme atitude e uma expansão jovial. Pela queda dos Stuarts conquistou a liberdade civil e eclesiástica; a sua constituição política e aquela simples religião racional, que sob o nome de deísmo penetrou em todos os círculos, tornaram-se modelo para todos os povos.


62. Em seguida veio a França. Por mais imponentes que fossem os movimentos da Inglaterra, dificilmente teriam tido a força invasora, que na verdade tiveram, sem o papel mediador da França.


63. Com razão já houve quem lamentasse como uma vergonha o haver, no tempo de Luís XIV, a Europa inteira se curvado à onipotência da língua e dos costumes franceses. Agora, porém, tornara-se um fato da mais alta significação que a língua e a cultura francesa fossem a cultura e a língua de todo o mundo.


64. É da França que partem as novas ideias para ganharem o mundo. Em seu belo ensaio sobre Walpole, diz Macaulay:


A literatura francesa foi para a inglesa o que foi Arão para Moisés. As grandes descobertas na física, na metafísica e na política pertencem aos ingleses; nenhum povo, porém, exceto a França, recebeu-os diretamente da Inglaterra; para isso esta era muito isolada pela sua posição e pelos seus costumes. A França tornou-se pois o intérprete entre a Inglaterra e a humanidade.


Isto é bem dito e aceitável ainda que cum grano salis*.


* Nota do Editor: Traduz-se: “com alguma ressalva”. Cf. MACAULAY, Thomas B. Horace Walpole (October, 1833). In: Critical and Historical Essays, Vol. 2, 1848 (citação no §13: “His love of the french language (…) The literature of France has been to ours what Aaron was to Moses”; disponível em: https://oll.libertyfund.org/title/macaulay-critical-and-historical-essays-vol-2#lf1227-02_head_005.


A propósito do alcance da literatura francesa nessa função histórica, considere-se o testemunho do padre-mestre Francisco do Monte Alverne (1785-1858) sobre as estreitas limitações culturais a que estavam submetidos os brasileiros pela instrução pública instituída no Brasil colonial, razão pela qual só restava “um meio fácil de promover o nosso adiantamento, o estudo da da língua francesa”. Cf. Fr. Francisco do Monte Alverne, Obras oratórias, Discurso Preliminar, §8; disponível em:

http://textosdefilosofiabrasileira.blogspot.com/2010/12/discurso-preliminar-obras-oratorias.html.


Considere-se também Domingos José Gonçalves de Magalhães, que tornara-se discípulo de Monte Alverne como ouvinte de Filosofia no Seminário de São José, no Rio de Janeiro, e que orientado por seu mestre foi ao encontro do espiritualismo de Maine de Biran/Royer-Collard/Cousin então predominante no meio acadêmico e político de Paris (cf. L. A. Cerqueira, Gonçalves de Magalhães como Fundador da Filosofia Brasileira, disponível em: http://textosdefilosofiabrasileira.blogspot.com/2009/04/goncalves-de-magalhaes-como-fundador-da.html). Além das cartas a Monte Alverne durante seu estágio em Paris (1833-1837; disponíveis em: http://textosdefilosofiabrasileira.blogspot.com/2012/07/cartas-monte-alverne.html), e do seu Ensaio sobre a História da Literatura do Brasil (Niterói, Revista Brasiliense, Paris, 1836; texto disponível em: http://textosdefilosofiabrasileira.blogspot.com/2012/05/discurso-sobre-historia-da-literatura.html), ver o prólogo ‘Lede’ aos seus Suspiros Poéticos e Saudades (Paris, 1836). Nesse prólogo, assim como Monte Alverne, Magalhães ressalta a vantagem de se fazer uso da língua francesa para promover a modernização do espírito brasileiro recém-emancipado da tutela cultural exercida ao longo de séculos pela metrópole portuguesa: “Algumas palavras acharão neste livro, que nos Dicionários portugueses se não deparam; mas a Língua se enriquece com o progresso da civilização, e das ciências, e uma nova ideia pede um novo termo”; texto disponível em: https://digital.bbm.usp.br/view/?45000017244&bbm/4165#page/17/mode/1up.


65. Mas é certo que Voltaire e Montesquieu foram mesmo à pátria de Milton e lá se apoderaram, com o mais vivo entusiasmo, das ideias e instituições dominantes. Voltaire instrui-se e enriquece-se nos escritos de Newton e de Locke; Montesquieu pinta e elogia o espírito do governo inglês. Eis que ergue-se Rousseau, e mais Diderot, e com ele e por meio dele o grupo dos enciclopedistas. O gênio da renovação agita-se por toda a parte, não só no cidadão, no homem do povo, porém quase igualmente na nobreza e no sacerdócio.


66. Entretanto, é digno de nota que as magnas mudanças e abalos produzidos no Estado e na Igreja, que fazem da segunda metade do século XVIII uma das mais importantes fases do desenvolvimento humano, dividem-se em duas épocas, perfeitamente separadas e distintas entre si. A primeira mostra-nos melhoramentos e transformações, que são concebidos e e realizados pelos governos mesmos. A segunda porém parte de baixo para cima: não é monárquica, mas democrática; não é reforma, porém revolução.


67. Pelo que toca os ímpetos pacíficos da primeira época, Frederico II foi o primeiro a dar o sublime exemplo daquilo que o historiador Schlosser dignamente qualificou de revolução monárquica. A ele seguiu-se uma série de príncipes magnânimos e de estadistas geniais: José II e Pedro Leopoldo, da Toscana; Catarina II, da Rússia; Gustavo III, da Suécia; e bem assim Pombal, em Portugal; Aranda e Campomanes, na Espanha; Tanucci, Squillace e Caraccioli, em Nápoles; Pascal Paoli, na Córsega; Guillaume du Tillot, em Parma; Bernstorff e Struensee, na Dinamarca, sem falar em Choiseul, Turgot e Malesherbes, na própria França, onde se deu com toda a força a irrupção da segunda época, belamente iniciada, mas tristemente acabada.


68. Este conjunto de ideias novas e aspirações grandiosas, que tiveram origem na Inglaterra, e espalharam-se no mundo, por intermédio da França, é o que se costuma designar por espírito do século XVIII. E desse espírito, essencialmente penetrado de elementos líricos, como diz Ferdinando Gregorovius, foi que brotaram os mais famosos fenômenos da paz e da guerra: heróis e legisladores, sábios e poetas, músicos e escultores, homens todos sublimes e brilhantes.


69. Este tempo foi um belo ditirambo à humanidade.


70. Ainda hoje é uma questão indecisa se os príncipes generosos e os estadistas elevados, que puseram-se à frente do movimento reformador, teriam conseguido a realização dos seus planos, por si sós, placidamente, sem o rebuliço das camadas inferiores. Quanto a mim, confesso que não tenho sobre a questão uma opinião assentada; mas uma coisa ao menos me parece incontestável: é que os frutos da primeira época, a da chamada revolução monárquica, não apodreceram tão depressa, e hoje mesmo não se mostram tão amargos ao paladar do historiador como os frutos da revolução propriamente dita.


71. Não me cumpre entrar, sobre este ponto, em mais largas considerações.


72. Como quer que seja, o certo é que a França chamou a si a tarefa penosíssima de abrir caminho àquela segunda quadra de destruição e aniquilamento, de vertigem e comoção popular. Mas também perdeu logo e logo a sua alta missão mediatriz. As nações que até então haviam-na escutado, como o seu oráculo, recuaram espavoridas.


73. A mesma Inglaterra, que lhe fornecera o fermento da nova vida espiritual, tomou-se de tédio e ódio à liberdade feroce do parisiense ataviado, que é o velho gaulês selvagem. Mais de uma esperança, que a revolução suscitara, esvaeceu-se de todo, e mais de uma ilusão desapareceu para sempre.


74. Entretanto, há um ponto fora de questão: foram os franceses que, nos últimos decênios do século passado, revolucionaram as condições políticas e morais da sociedade. Mas é igualmente inquestionável que foram os alemães que reformaram as ideias literárias.


75. A França sempre apresentou a singular antítese de um país que, ao passo que gosta da mudança em todas as relações externas, e, quando obedece a este pendor, raras vezes sabe conter-se e limitar-se, ao mesmo tempo, no ponto de vista literário, é extremamente estável, reconhece autoridades, sustenta uma academia, e coloca sobretudo o limite e a medida.


76. Assim ali se tinha derrubado o governo, guilhotinado ou banido os aristocratas incômodos, instituído a república, feito a guerra com a Europa, abolido o cristianismo e decretado o culto de um Ser Supremo, bem antes que se pensasse em combater o verso alexandrino, bem antes que se ousasse tocar na autoridade de Corneille e Boileau, ou pôr em dúvida que a observação das três unidades no drama seja absolutamente necessária para a salvação do bom gosto.


77. Voltaire mesmo, aquele Voltaire que guarda respeito a bem poucas coisas entre a terra e o céu, respeita os alexandrinos. Não lhe custa o mínimo esforço arrancar o cetro da mão dos reis e a máscara da cara dos bonzos, mas ele acata o punhal tradicional na mão de Melpômene e a máscara tradicional que lhe cobre o rosto [7].


Nota 7: Vide Georg Brandes, obra citada.


78. Foi outro povo, que não o francês, o povo para quem o próprio Voltaire desdenhosamente desejara mais espírito e menos consoantes, que reformou a literatura e a poesia [8].


Nota 8: “Quant aux allemands, je leur souhaite à l’avenir un peu plus d’esprit et un peu moins de consonnes.”* [tradução livre: “Quanto aos alemães, desejo-lhes no futuro um pouco mais de espírito e um pouco menos de consoantes.”] Esta frase resume toda a ciência francesa de então sobre os vizinhos de além do Reno**. E ainda anos depois, não se tinha dado alteração alguma. É um traço assaz característico o seguinte fato. Em 1792, os homens da revolução não sabiam de Schiller, nem sequer o nome, posto que o poeta já se achasse no segundo período do seu desenvolvimento. Na lei de 26 de agosto daquele ano, assinada por Clavière e Danton, lei que deferiu o título de cidadãos franceses a estrangeiros, como Bentham, Wilberforce, Washington e outros, estão escritas estas palavras: “Un membre demande que le sieur Gille, publiciste allemande, soit compris dans la liste de ceux à qui l’Assemblée vient d’accorder le titre de citoyen français; cette demande est adoptée”. Eis aí: Frederico Schiller, o poeta de D. Carlos era então apensa conhecido por le sieur Gille


* Nota do Editor: Voltaire assinala uma certa equivalência de sentido no uso dos termos de gosto e de espírito. Ao rejeitar o academicismo enquanto perversão do talento e sujeição a cânones ou programas, ele exalta o caráter livre de artistas, indivíduos de que quem tanto se poderia dizer que são “gens d’esprit”, como também que são “gens de goût”. Cf. Voltaire, Le siècle de Louis XIV (Artistes célèbres/Peintres), disponível em:

https://fr.wikisource.org/wiki/Le_Siècle_de_Louis_XIV/Édition_Garnier/Artistes_célèbres.


A propósito da recepção desse problema na cultura de língua portuguesa, ver Bom senso e bom gosto (1865), de Antero de Quental; disponível em: https://www.literaturabrasileira.ufsc.br/documentos/?action=download&id=130209; ver também, de Machado de Assis, A nova geração (1879), disponível em: https://periodicos.ufes.br/machadiana/article/view/21931.


** Nota do Editor: Esta citação referida a Voltaire certamente foi encontrada por Tobias Barreto na obra Histoire critique de la littérature française depuis les origines jusqu'a nos jours (1872, p. 374) de J. N. Marque, segundo o qual (em tradução livre), “em 1808, a ciência dos franceses sobre a Alemanha continuava sendo a de Voltaire, que em um livro de história analisa os costumes e a literatura de todos os povos, e quando chega aos alemães ele diz com desdém: …”; disponível em:

https://books.google.com.br/books?id=8iboAAAAMAAJ&printsec=frontcover&hl=pt-BR&source=gbs_ge_summary_r&cad=0#v=onepage&q&f=false.



79. Foram os alemães desse tempo, aquelas boas criaturas, das quais, na França, a notícia mais comum era que bebiam a sua cerveja, fumavam o seu cachimbo e comiam a sua batata; que tranquilamente se deixavam atormentar por umas duas dúzias de tiranetes estúpidos, que não sentiam a mínima aspiração de igualdade, e com todo o acatamento conferiam aos seus superiores o título de Rath, Graff, etc.; e quanto ao mais, viviam patriarcalmente com as suas caras-metades, que, como verdadeiras máquinas de parir, davam à luz filhos sobre filhos, em constante adoração do seu procriador; sim, foram os alemães que no mundo das ideias fizeram maiores conquistas do que os franceses sobre a terra.


80. Eles produziram uma nova metafísica, tão rica e tão profunda, como não mais aparecera desde os dias de Aristóteles e dos neoplatônicos; uma nova poesia, a mais bela que surgiu desde o tempo de Shakespeare; e foram eles, enfim, que fundaram um novo modo de tratar a história, a mitologia e a poética; porque nada mais era livre, senão só e unicamente o pensamento. [9]


Nota 9: Georg Brandes, Die Hauptströmungen der Literatur des neunzehnten Jahrhunderts (Berlin, 1872), p. 26-27. [Nota do Editor: texto disponível em: https://archive.org/details/diehauptstrmunge01bran/page/26/mode/1up]


81. Não deixa, pois, de parecer uma aberração, uma espécie de disparate histórico, ver como a literatura, que se desenvolveu na França entre o fechar do passado e o abrir do presente século, foi quase toda influenciada pela Alemanha. Mas o fato é explicável.


82. As grandes comoções políticas, as guerras da república e do império, que impeliram, através uns dos outros todos os povos da Europa, também deram-lhes azo para se conhecerem reciprocamente; sendo que quem mais profunda impressão recebeu do ambiente estrangeiro foi justamente aquela classe de homens que pela força dos acontecimentos viu-se obrigada a procurar fora da pátria um refúgio seguro e permanente.


83. O influxo de um gênio nacional estranho, que no soldado era fugitivo e passageiro, tornou-se para o imigrante duradouro e significativo.


84. Foi assim que por meio de franceses inteligentes, que se acharam em tais condições, espalhou-se então sobre a França um novo espírito; e daí vem que a literatura do século XIX, neste país, começa como literatura de imigrantes. Da Alemanha principalmente é que eles receberam os impulsos da nova direção intelectual.


85. Encaremos agora mais de perto a feição literária desse povo extraordinário, que ainda há poucos decênios era quase realmente despercebido, mas eis que de repente engrandece-se, agiganta-se, e toma para si, somente para si, a hegemonia pensante entre os povos da atualidade.


86. A história da literatura alemã divide-se em duas grandes épocas, antiga e moderna, das quais a primeira se subdivide em quatro, e a segunda em cinco períodos. Aquela se estende até 1500, e esta de 1500 até aos nossos dias.


87. Antiga época. Primeiro período. Desde o bruxulear histórico da nação até 800. Este período é caracterizado pelo desenvolvimento das velhas tradições heroicas.


88. A primeira vez que romanos e germanos se encontraram foi nos anos de 113 e 105, antes de Cristo, nas batalhas de Noreia e Arausio, em que aos bárbaros vitoriosos se abriram as portas de Itália; e bem assim nos anos 102 e 101, quando os Cimbros foram derrotados por Caio Mário. [10]


Nota 10: Th. Mommsen, Roemische Geschichte, II, p.169-185.


89. Posteriormente César teve de combater o domínio alemão de Ariovisto na Gália; e ainda por duas vezes levou as suas armas contra os Usipetas e Tenctéres, Sicambros e Suevos, todos eles ramos do tronco alemão.


90. Em rigor porém estes fatos são notas marginais, por assim dizer, da história literária propriamente dita. O que há de literariamente apreciável, no primeiro período, limita-se à tradução da Bíblia por Úlfilas, bispo godo (310-380), tradução que ainda hoje se conserva na biblioteca de Upsala, como também a um ciclo de traduções ou de contos épicos, cujos centros e figuras mais importantes são os dois heróis Siegfried e Dietrich.


91. De Úlfilas há ainda a mencionar a invenção da escritura gótica. Ele fez com o alemão, pouco mais ou menos, o mesmo que depois, no século IX, fizeram com o russo os monges gregos Cirilo e Metódio, criando-lhe o alfabeto.


92. Segundo período. Aceitação do espírito cristão (800-1150). Começa a aparecer a influência do sacerdócio. O monge Otfried, de Weissenburg, escreve uma Harmonia dos evangelhos [Liber evangeliorum], à qual sucedem poucas outras obras de igual forma e conteúdo. A este período pertence o poema Walter de Aquitânia [Waltharius] do frade Ekkehard, escrito em hexâmetros latinos.


93. Terceiro período. Florescência da Epos artística e cortesã (1150-1250).


94. É quando principia a formar-se a antítese da poesia popular e da poesia culta. Por esse tempo é que aparece o Nibelungenlied, como também o Reinhart Fuchs, do alsaciano Glïchezäre (1180).


95. Os mais antigos poetas, artistas e cortesãos foram: Heinrich von Veldeke (1184), Hartmann von Aue e Wirnt von Gravenberg [ou Grafenberg ou Gräfenberg]. Porém mais importante que os mencionados foi Wolfram von Eschenbach, incontestavelmente o primeiro poeta culto de seu tempo (1220). A sua principal obra foi Parzival, poema penetrado de um sério profundo, que pinta, não as ações bélicas de um povo, mas os efeitos do espírito, a luta do espírito com o mundo, a luta do orgulho com a humildade. É o que serviu de assunto à última ópera de Wagner. [11]


Nota 11: As expressões antitéticas de poesia popular e poesia culta, ou poeta culto, não são minhas: achei-as em Thalès Bernard — poésie populaire et poésie cultivée; e me parecem justas.


96. Quarto período. Desenvolvimento da poesia burguesa e popular (1250-1500). Durante esta quadra, em que a atividade piedosa dos místicos é o único dique oposto à irreligiosidade do povo, prosperam ainda a poesia satírica e didática; os outros gêneros decaem. É o tempo dos Minnesänger e Meistersänger.


97. Mas é também o tempo em que as ciências começaram a tomar um certo impulso pela criação das universidades de Praga (1348), Viena (1356), Heidelberg (1386), Colônia (1388), Erfurt (1392) e Leipzig (1409), posto que as cadeias teológicas ainda lhes vedassem caminhar com mais desembaraço.


98. Importa aqui lembrar, ainda que de passagem, que neste mesmo período foi que brilharam na Itália os grandes vultos de Dante, Boccaccio, Petrarca e Ariosto.


99. Época moderna. Quinto período. Influência dos estudos clássicos, saídos da Renascença, e logo depois — influência da Reforma (1500-1600). É a quadra em que floresceram Ulrich von Hutten, o jurista Johann Fischart e Hans Sachs, um sapateiro de Nürnberg, autor de Fábulas e Narrativas [Eulenspiegel (prosa e verso)]. É a quadra também dos Lieder sacros ou cânticos religiosos, como o famoso Ein feste Burg ist unser Gott, e muitos outros.


100. Sexto período. Domínio do cientificismo (1600-1720).


101. No começo deste período deu-se a guerra dos trinta anos, que influiu maleficamente sobre as letras. Mas foi também durante ele que apareceram homens como Thomasius, Leibniz, Christian Wolf, Martin Opitz, etc.


102. E ainda por esse tempo foi que se fizeram os primeiros tentames da ópera alemã, não muito posteriores ao despontar da ópera na Itália, com La Dafne de Rinuccini, música de Peri, em 1597.


103. Sétimo período. Preparativos da maior florescência das letras tedescas (1720-1770). Entre os fatos históricos que durante este curto espaço de tempo foram de grande importância para o grande desenvolvimento espiritual da Alemanha podem ser mencionadas as Guerras da Silésia, bem como a Guerra dos Sete Anos.


104. Entretanto, o que exerceu maior influência foi a fundação da Universidade de Göttingen (1734-1737), cujos serviços e esforços, no terreno histórico e filológico, incorporam-se dignamente aos trabalhos científicos iniciados no fim do século anterior.


105. Releva, porém, assinalar, como ponto central deste período, a luta, suscitada entre Gottsched e Bodmer, que acabou pela completa repulsa do gosto francês e plena aceitação dos modelos ingleses. Gottsched, o representante do francesismo, era pouco mais que um gramático estéril, um formalista frio e calculado, ao passo que Bodmer merece ser classificado como um digno antecessor dos grandes espíritos que vieram imediatamente depois.


106. Não deve passar sem menção que por esse tempo foi que lançaram o seu maior brilho as figuras geniais de Sebastião Bach e Frederico Händel, os quais, com Gluck, Haydn, Mozart, Beethoven e Schubert, ainda hoje formam, na opinião de Naumann, a plêiade musical da Alemanha; um singular agrupamento de gênios, como igual não tem a mostrar nenhum outro país.


107. Oitavo período. Aquela mesma florescência, no seu mais elevado grau, pelo reconhecimento da humanidade, como princípio ideal de ação prática e de educação poética (1770-1830).


108. É o tempo de Klopstock, Lessing, Wieland; é o tempo de Kant e Herder; é o tempo de Goethe e Schiller, que afinal concentram em si todas as forças acumuladas nos períodos anteriores e acabam por formar o maior adorno de todos eles.


109. Durante esta quadra florescem também alguns espíritos de transição, como Johann Paul Friedrich Richter, e surge a escola romântica sob a direção dos irmãos Schlegel, Novalis (Georg Philipp Friedrich von Hardenberg) e Ludwig Tieck.


110. Nono período. Aproveitamento do existente e preferência dada às ciências naturais (1830-1870). É o que faz propriamente o objeto das minhas apreciações, que ficam assim encerradas entre dois grandes acontecimentos, de suma importância literária: a Revolução de Julho [Paris, 27-29/07/1830] e a Guerra Franco-Alemã [Franco-Prussiana, 1870-1871].


111. O que tenho dito até aqui e o mais que ainda cumpre-me dizer, antes de entrar na matéria indicada, podem valer como uma espécie de pré-história, muito útil e quase indispensável para formar-se um juízo exato da literatura desse tempo.


112. Sobretudo, o que diz respeito aos dois períodos precedentes. Realmente, sem conhecer, por exemplo, os quatro evangelistas do humanicismo* — Klopstock, Wieland, Herder e Lessing —, como compreender, já não digo a escola romântica e seus apêndices, mas até mesmo Goethe e Schiller?


* Nota do Editor: No contexto da emancipação e modernização cultural brasileira no século XIX, e em conformidade ao princípio “uma nova ideia pede um novo termo”, então justificado por Monte Alverne e Gonçalves de Magalhães (ver nota do editor no §64 acima), o termo ‘humanicismo’ expressaria em Tobias Barreto o caráter humanístico da literatura alemã que deriva dos referidos autores, o que fora ressaltado por Adolphe Bossert: “Mas como definir o espírito alemão, senão por esta mesma inclinação para a universalidade que parece ser o seu traço essencial? (…) traduzindo os mesmos princípios para todas as línguas e trabalhando para o avanço geral da humanidade”. Cf. A. Bossert, Goethe, ses précurseurs et ses contemporains — Cours de littérature allemande fait à la Sorbonne, 1872, p. XXII; disponível em: https://gallica.bnf.fr/ark:/12148/bpt6k9758196m/f9.item.texteImage.


113. É verdade que o desenvolvimento dos gênios tem alguma coisa de superior à lei geral do desenvolvimento dos seres; não se explica pelo simples nexo de causalidade entre um fenômeno que passa e outro que se levanta. Mas isto não impede que eles hajam mister de antecedentes. O modo por que fazem render, à semelhança do servo da parábola evangélica (os talentos que lhes foram confiados), é que vem determinar o maior ou menor grau de sua genialidade.


114. Apreciemos os fatos. O Estado da Alemanha, logo depois da Guerra dos Sete Anos, foi favorável à expansão da literatura nacional, enquanto avivava nos ânimos a consciência do antigo valor, representado pelo rei da Prússia, Frederico II, e insinuava nos patriotas uma tal ou qual esperança de reconstituição política e unidade do império.


115. Porém, esta esperança, depositada até então na supremacia da Prússia, pouco a pouco foi-se dissipando, por causa do constante e irrequieto ciúme dos estados inferiores, que não olhavam com bons olhos para o engrandecimento dessa potência, e ainda por causa do ressentimento dos patriotas mesmos contra a decidida e humilhante predileção que Frederico II e sua corte mostravam pela cultura e costumes franceses.


116. Semelhante preferência, que feria de frente a vaidade nacional, teve logo de produzir o útil efeito de uma vigorosa e perseverante oposição política e literária. A liberdade do pensamento e da palavra, que reinava nos estados prussianos, se estendeu a uma grande parte da Alemanha setentrional, e excitou o engenho dos escritores a combater a improvida admiração do gênio francês e aperfeiçoar com tanto maior empenho o próprio idioma.


117. Os príncipes mesmos e a alta aristocracia, que até ao meado do século XVIII estavam adstritos ao uso quase exclusivo da língua e à imitação dos hábitos franceses, foram também se deixando curar dessa mania. Alguns dentre eles, particularmente os duques de Weimar, começaram a favorecer em grande escala a literatura do seu país, honrando e recompensando devidamente os talentos superiores, dos quais se cercavam, sem exigir, como sucedia e talvez ainda suceda na maior parte da outras cortes, o sacrifício das opiniões e da dignidade pessoal.


118. A regeneração da literatura germânica procedeu da mesma fonte, a que é devida, por intermédio da Itália, a civilização da Europa: o estudo da Antiguidade clássica. O iniciador da nova era foi Winckelmann (1717-1768), que conseguiu apaixonar pela arte grega a mente dos seus compatriotas. Diz Hermann Hettner:


Porque Winckelmann não viveu tão intimamente ligado às questões do dia, como o seu grande contemporâneo Efraim Lessing, o seu mérito não é tão imediata e geralmente compreendido, mas nem por isso a sua coroa é menos brilhante, nem por isso menos imarcescível.


119. Tirando dos Anais de Tácito a figura heroica de Arminius, e tomando do Velho Testamento o tema de uma epopeia, Klopstock pretendeu reacender o amor da pátria e da religião. Mas nem o assunto nem os tempos correspondiam ao seu magnânimo intento. A batalha de Arminius (Hermanns Schlacht, 1769)* e as suas outras composições, com exceção somente de algumas Odes [Oden und Elegien, 1771], estão hoje esquecidas. A Messiada*mesma, pela vaporosidade das imagens, pela exageração dos sentimentos, pela monotonia enfim de todo o seu conteúdo, parece aos próprios críticos alemães de melhor nota uma das maiores aberrações poéticas de que a história dá testemunho. 


*  Nota do Editor: A partir da versão germânica do nome latino ‘Arminius’ para ‘Hermann’, o qual em sua origem significa Heer Man (tradução livre: o líder do exército), a obra de Klopstock representa essencialmente a concepção mítica de um fato histórico: a vitória dos germanos sobre Roma na batalha da Floresta de Teutoburg. Tal concepção literária, envolvendo o amor da pátria e da religião, tornou-se no âmbito do romantismo a fonte de inspiração política para a formação dos Estados nacionais modernos. Neste sentido, ver o Ensaio sobre a História da Literatura do Brasil de Gonçalves de Magalhães, especialmente §38, disponível em: http://textosdefilosofiabrasileira.blogspot.com/2012/05/discurso-sobre-historia-da-literatura.html; ver também a nota do §64 acima.


** Nota do Editor: A obra trata do caráter universal do messiado enquanto missão ou função d’O Messias. Tobias Barreto certamente fez menção à obra induzido pela tradução francesa “La Messiade” do título original “Der Messias”. A tradução francesa remonta às primeiras décadas do século XIX (disponível em: https://gallica.bnf.fr/ark:/12148/bpt6k5461140s.texteImage); no momento de Tobias Barreto havia uma versão mais elaborada, disponível em: https://archive.org/details/lemessiade00klop/page/n7/mode/2up.


120. Todavia permanece-lhe indisputável o grande merecimento de ter arrancado a sua nação da pedantesca rigidez, que a enfezava, apresentando-lhe ante os olhos em vestuário poético os eternos ideais da humanidade, não sei se verdadeiros ou falsos, porém sempre ideais, a pátria, a liberdade e a ; e dando à língua alemã uma maravilhosa flexibilidade de formas.


121. Antípoda de Klopstock, pela qualidade do talento, assim como pela individualidade do caráter, é Wieland, intérprete eloquente e sacerdote de uma filosofia sensual, temperada de máximas de moralidade prática. Narrador ameno e fácil em verso e prosa, mestre de fina ironia, com o prestígio admirável da linguagem e a espontaneidade da rima, reanimou o sentimento da beleza e da graça da exposição; mas não conseguiu exercer uma influência imediata nas relações literárias do século subsequente.


122. E se é certo que as obras do gênio têm de comum com as obras de Deus a perpétua novidade e sempiterna frescura, não seria muito arrojo pôr em dúvida a genialidade de Wieland, que foi, como a de Klopstock, ocasional, e passageira. Quem se lembra atualmente do Oberon ou do Musarion? Bem poucos estão no caso de repetir-lhes os nomes, tão rápida é a força que os tem arrastado para o completo olvido. [12]


Nota 12: O leitor não se espante desta cruel franqueza, que aliás é uma das formas da seriedade científica. A lei do esquecimento, que separa o verdadeiro gênio do simples talento, ainda mesmo verdadeiro, não se aplica somente a Wieland, a Klopstock, e alguns outros representantes das letras alemãs. Mais de uma notabilidade francesa obedece também ao seu império. Eu pergunto, por exemplo: para onde foram os versos de Lamartine? quem os lê mais? quem os saboreia? quem os admira? Para onde foram Os mártires e O gênio do cristianismo de Chateaubriand? O fenômeno, que é o mesmo, tem a mesma explicação.


123. Uma índole severamente moral, uma alma franca e resoluta, um coração férvido, sitibundo da verdade e amoroso do bem, foram os dotes proeminentes de Lessing. A independência do seu espírito lhe vedava admitir regras e hábitos que não tivessem uma razão suficiente na natureza e na verdade. Foi o primeiro a ditar aos seus conterrâneos os mais justos preceitos da arte e da poesia dramática, reforçando-os com exemplares de própria lavra e de singular perfeição. fê-los também conhecer as mais recônditas belezas de Shakespeare, em quem Wieland tinha apenas tocado de leve; e, armado de variadíssima e sólida erudição, nobilitou sumamente a crítica, imprimindo-lhe um novo vigor e argúcia, e tornando-a mais eficaz com a mestria insuperável do estilo.


124. Mas a sorte de Lessing não foi igual à daqueles dois velhos prógonos da literatura do século passado. Tanto quanto os de Herder, e há quem pense que até em maior escala, os seus trabalhos perduram e continuam a perdurar.


125. Não há alemão que não sinta um certo entusiasmo ao pronunciar o nome de Lessing. É o caráter mais viril da história literária da Alemanha. A sua vida foi um incessante batalhar e vencer. Muitas vezes, é certo, ele fez a guerra por amor da própria guerra; mas era sempre criador e progressivo, onde mesmo só tratava de aniquilar e destruir.


126. Em todas aquelas grandiosas lutas por meio das quais o século XVIII, com espantosa rapidez, elevou os alemães do vergonhoso estado da mais lastimável humilhação à altura do povo mais culto e espiritualmente o mais livre da Terra, sempre Lessing esteve na vanguarda. Ele desfraldou a todos os ventos o estandarte dos novos tempos; tão firme e inabalável, que, tendo em vista os desvarios das gerações posteriores, [Ferdinand] Gustav kühne, um dos membros da jovem Alemanha, pôde dizer com acerto: voltar a Lessing é progredir.


127. No terreno do drama, e como crítico artístico sobretudo, foi que Lessing assinalou gloriosamente a sua passagem. Para mostrar quanto ele produziu neste domínio, basta lembrar o fato de que entre o pobre Catão Moribundo [Sterbender Cato, ein Trauerspiel, 1732] de Gottsched e os imortais primores dramáticos de Goethe e Schiller, medeia apenas uma geração. Como foi possível tão maravilhosa mudança? Há somente uma resposta: é que essa geração compreende a vida e a atividade de Lessing.


128. Foi ele que, contrapondo à altivez francesa o sentimento alemão, pronunciou esta orgulhosa palavra: “mostrem-me a peça do grande Corneille que eu não pudesse fazer melhor” e provou por atos que tinha razão de assim exprimir-se.


129. Já em 1755, na idade de 26 anos, ele opusera às declamações do drama francês a verdade da vida burguesa no seu drama Miss Sara Sampson; deu depois em 1763 à literatura do país a sua melhor comédia, Minna von Barhelm, um verdadeiro poema, cheio de suco nacional; e criou em 1772 a primeira tragédia alemã digna deste nome, Emilia Galotti.


130. Mas o trabalho que talvez melhor o caracteriza é Nathan der Weise, drama didático, em cinco atos, escrito em versos jâmbicos. Neste poema ele se propôs, sob a base de uma narrativa do Decameron de Boccaccio, sustentar a ideia de que não é a religião de um credo dogmático, mas somente a do coração forte pelo amor, que decide do valor do homem.


131. Lessing, que nascera em 1729, era apenas cinco anos mais moço que Klopstock, quatro anos mais velho que Wieland, e quinze anos mais velho que Herder.


132. Não obstante, porém, os sábios esforços de Lessing, o contraste poderoso e vivíssimo entre os princípios da arte pagã e cristã, que naquele tempo dividia em partidos a sociedade literária da Alemanha, não tinha ainda cessado. A Herder coube a tarefa de descobrir um termo conciliatório, um ponto de contato e de afinidade positiva, limitando a escolha das matérias, e aceitando do gentilismo somente a poesia grega, e do cristianismo a história bíblica.


133. Não satisfeito com isto, investigou também o bom metal poético em as minas dos outros povos, quer bárbaros, quer civilizados. Colecionou alguns antigos rimances espanhóis e compôs um poema heroico, Der Cid, que ainda hoje é interessante; e com as relíquias da poesia popular de quase todas as nações, formou o seu belo livro intitulado Vozes dos povos [em canções] (Stimmen der Völker in Liedern), que alargou as vistas literárias dos coevos, e foi útil como ensinamento à escola romântica dos tempos que sucederam.


134. Contudo a sua melhor obra é a das Ideias para a filosofia da história da humanidade [Ideen zur Philosophie der Geschichte der Menschheit, em 4 volumes, 1784-1791]*, onde se acham profundamente perscrutadas as relações do homem com a natureza. Não é só isto: nela já se encontra, como diz Otto Liebmann, alguma coisa de análogo ao pensamento capital da teoria darwínica, isto é, a ideia do gênero humano destinado a atravessar diversos graus de cultura por meio de inúmeras transformações e mudanças**.


* Nota do Editor — Ver reed. de 1914, acrescida com a recensão de Kant, disponível em: https://archive.org/details/ideenzurphilosop00herduoft. A intervenção de Kant, que fora professor de Herder em Königsberg, desencadeou entre os dois uma polêmica, a respeito da qual recomendamos “Sobre as Resenhas de Kant às Ideias para uma filosofia da história da humanidade, de Herder”, de Isabel Fragelli, disponível em: https://www.revistas.usp.br/filosofiaalema/article/view/64739/67356.


** Nota do Editor — Cf. Otto Liebmann, Zur Analysis der Wirklichkeit: Eine Erörterung der Grundprobleme der Philosophie, de 1876 (tradução livre: O estudo acerca da realidade: uma discussão dos problemas fundamentais da filosofia); Tobias Barreto refere-se a “Platonismus und Darwinismus”, na Segunda Parte, p. 323. Disponível em: https://archive.org/details/zuranalysisderw02liebgoog/page/n336/mode/1up).


135. Como se vê, Herder só escreveu e legou à posteridade uma série de fragmentos, disjecta membra poetae, esplêndidos e admiráveis. O fragmentismo é sempre um defeito; mas importa fazer uma distinção entre aquele que resulta de uma lacuna da inteligência, e o que tem a sua origem em uma lacuna do caráter. O primeiro, decerto, não honra a ninguém; mas também o segundo não é desonroso a quem quer que seja.


136. É difícil compreender como um homem capaz de escrever quarenta volumes de trabalhos diversos, todos faiscantes de talento e ciência, não teria a capacidade precisa para compor uns oito ou dez volumaços sobre uma só matéria, dentro de uma só ordem de ideias.


137. É simplesmente uma questão de paciência e perseverança, que a todos não é dada em proporções iguais.


138. E convém não esquecer que a pretendida virtude do que se poderia chamar integralismo literário não fala sempre em favor de quem a possui. Diz muito bem Heinrich Landsmann:


Quanto maior é o gênio, tanto mais sensível se lhe torna o que há de fragmentário na natureza humana, que muitas vezes não chega à consciência de uma criatura vulgar; motivo por que semelhantes entes não podem propriamente chamar-se naturezas incompletas.


A inteligência comum sabe arranjar comodamente o mundo por todos os lados, até onde sente o prazer ou a necessidade de ter uma compreensão do mundo, mas sem dúvida só — até onde!… Quando pois esta inteligência doméstica e cotidiana mete-se a fazer obras de arte, a mediocridade mostra-se então expedita, e a mediocridade é sempre larga e inteira, nunca fragmentária. [13]


Nota 13: Philosophisch-Kritische Streifzüge, p. 61. [Nota do Editor — tradução livre: Incursões crítico-filosóficas, de 1873, p. 61-62; original disponível em: https://books.google.com.br/books?id=q-IjlaSycv4C&printsec=frontcover&hl=pt-BR&source=gbs_ge_summary_r&cad=0#v=onepage&q&f=false.


139. Raro, bem raro é o verdadeiro produto científico, literário ou artístico, de qualquer gênero, que não seja, por assim dizer, o segmento de um grande círculo, semelhante àquele, de que falava Pascal, cujo centro está em tudo, e a circunferência em parte nenhuma.


140. Fora do domínio da lírica, onde cada poesia, cada estrofe mesma já é por si só uma obra de arte acabada, tanto mais perfeita, quanto menor ela é, e onde por conseguinte qualquer laivo, qualquer coisinha feia, qualquer palavra supérflua constitui um germe de morte para o todo; fora desse domínio, há razão para duvidar do legítimo valor das produções intelectuais, a que nada falta, onde tudo vem concluído, definitivamente concluído, como uma casaca, ou um bonito par de botinas.


141. Acresce que em geral as obras de tal quilate não visam a outro fim senão ao da utilidade.


142. Mas o gênio, para servir-me aqui de uma bela imagem de Schopenhauer, que eu me permito inverter, é semelhante a uma terra montanhosa e sublime, como a Suíça, e por isso mesmo pouco apropriada a produzir nutritivos frutos. Os homens úteis, porém, os sensatos e medíocres, assemelham-se a uma baixa de massapês, a um terreno chato, lamoso, repugnante, mas apto a fazer brotar a cana mais viçosa, ou a mais grossa mandioca.


143. Voltemos a Herder. Ele foi um fragmentista, mas um fragmentista de gênio. Obedecendo ao pendor do seu temperamento, que não lhe permitia levar anos e anos a tecer uma tela, deixou-nos todavia em magníficos pedaços outras tantas provas e medidas da elevação do seu espírito.



IV



144. Ao lado de todos estes egrégios representantes do heroísmo intelectual da Alemanha levanta-se também a não menos esplêndida e singular figura de Immanuel Kant. [14]


Nota 14: Para que eu não me julgue exagerado, por causa desse heroísmo intelectual que confiro à pátria de Kant, seja-me lícito observar que o grande romancista inglês Eduardo Bulwer-Lytton, dedicando aos alemães uma das suas obras, chamou-os um povo de pensadores e de críticos. Ainda mais: o notabilíssimo escritor americano Ralph Waldo Emerson, agradecendo a Augusto Auerbach a lembrança que tivera de traduzir em alemão os seus Ensaios, disse que muito se honrava de ver as suas ideias exposta na língua da mais inteligente das nações (the most intellectual of nations). Já se vê que estou em boa companhia.


145. Parece à primeira vista que a apreciação de um sistema filosófico, ainda limitada aos seus princípios, aos seus pontos capitais, não entra de pleno direito no quadro de um ensaio de história literária. Mas dado mesmo que assim fosse, o que não é aceitável, haveria mister de abrir aqui uma exceção a respeito do filósofo genial de Königsberg, cuja doutrina foi uma espécie de roble viçoso, com o qual abraçou-se e confundiu-se a hera do pensar e do poetar alemão, desde o fim do passado até muito além do primeiro quartel do século vigente.


146. Diz Johannes Scherr: 


Um dos mais maravilhosos paralelos, que a história pôde mostrar-nos, é o que se dá entre os dois seguintes fatos.


Ao passo que além do Reno começava a pôr-se em cena a tragédia revolucionária, cá bem longe, em uma velha cidade da Alemanha, no gabinete de estudo do mais pacífico dos professores, executava-se também a mais ousada revolução do pensamento.


Um homenzinho, de aparência vulgar, tímido e cauteloso, sempre lépido e bem penteado, com uma regularidade de vida que tocava à monotonia do relógio, tão embebido nas suas meditações, que nunca avançou um passo fora dos subúrbios da sua terra natal, este homem fez surgirem ideias, que escalaram o céu e organizadas no sistema do idealismo crítico transtornaram a concepção teológica do mundo. [15]


Nota 15: Schiller und seine Zeit, p. 397. [Nota do Editor: ed. cit., 1859, Livro III, p. 397; disponível em: https://archive.org/details/schillerundseine00sche/page/397/mode/1up]


147. Entre todos os sistemas de filosofia nenhum tem tão pouco de comum com os precedentes como o sistema kantesco. Nunca a linha de separação entre o antigo e o moderno foi tão clara e vivamente acentuada. Quaisquer que sejam as comparações que se façam, as afinidades que se descubram, a antítese é sempre maior do que a analogia.


148. É certo que também Bacon e Descartes, os dois fundadores da filosofia moderna, mantêm-se com o passado em decidido antagonismo, ambos querem reformar a obra da ciência, recomeçando-a, fazendo-a voltar sobre seus passos, mas afinal o que eles produzem encontra nos velhos tempos uma espécie de parentesco.


149. A explicação mecânica de Bacon, Descartes e Spinoza, em oposição à que se funda sobre o conceito de causas finais, acha exemplos na antiguidade. A antinomia entre a intuição mecânica e a intuição teológica não é nova.


150. Basta lembrar que Bacon mesmo, tão inimigo da antiga filosofia, torna-se entretanto defensor da doutrina atomística de Demócrito; e Leibniz, que sustenta o princípio da finalidade, não faz mais do que continuar Platão e Aristóteles.


151. É isto, porém, o que não se dá com Kant. Ele não é reformador, nem aperfeiçoador de nenhum sistema precedente. Para ele não se trata de saber se a verdade está no mecanismo, ou no finalismo do universo. A sua questão é muito diferente, quer no modo de propô-la, quer no modo de resolvê-la. O que importa, principalmente, é compreender com exatidão este caráter novo e diferente da revolução kantesca.


152. Antes de tudo, é inegável que a filosofia só pode ter uma feição definida, como ciência, se ela se distingue claramente de todas as outras, se ocupa-se de assuntos de que as outras se não ocupam, que as outras lhe não disputam. Só assim o seu domínio está seguro e fundada a sua posição. Esta firme posição ela não chegou a assumir, senão por intermédio de Kant.


153. A filosofia antiga e a filosofia medieval podiam falar de boca cheia. As ciências ainda eram menores e se achavam sob tutela. Mas desde a Reforma e as grandes descobertas, que a precederam, elas emanciparam-se depressa, e a filosofia ficou colocada na dura alternativa de entregar-se-lhes de corpo e alma, ou de morrer exauriente, inanida, à falta de alimentação.


154. Kant achou o meio de salvá-la: foi dar-lhe um novo objeto, um objeto próprio, um objeto seu. Esse objeto é o conhecimento mesmo, estudado em sua fonte; é a faculdade de conhecer sua extensão e seus limites.


155. Eis aqui, pouco mais ou menos, os traços gerais do kantismo. Todo e qualquer conhecimento compõe-se de matéria empírica e de forma intelectual, aplicada a essa matéria; não há pois conhecimento algum tirado do puro pensamento; conhecer o que está acima dos sentidos entra no reino da impossibilidade. Não passa portanto de um tatear nas trevas, quando deixamos a esfera dos fenômenos, para elevarmo-nos ao mundo hipersensível.


156. As nossas ideias desse mundo são quimeras; são afirmações caprichosas sobre coisas, que tanto se podem provar que existem como que não existem. [16]


Nota 16: É a bela teoria, que o filósofo qualificou de tética e antitética da razão pura. Infelizmente não foi para nós que Kant operou tal revolução. A respeito de filosofia ainda estamos em plena Idade Média, o atqui e o ergo da escolástica fazem todas as nossas despesas de argumentação. Ainda hoje, até ilustres professores do ensino superior oferecem como teses, seriamente discutíveis, verdadeiros motes ou bouts-rimés filosóficos, para estudantes, para os doutores mesmos glosarem e discorrerem, quer neste, quer na quele sentido, ora no pró, ora no contra com o mesmo senso de verdade e profunda observação dos fatos com que, por exemplo, um exímio poeta dos nossos dias, o vate de Jaboatão, sobre o mote, emblema da simpatia, construiu aquela mimosa décima, em que vem mencionada a espada da sua bola. É triste, mas é verdade.


157. O alvo e o resultado da Crítica da razão pura foram expressos pelo próprio Kant em uma carta a seu amigo Tieftrunk:


Objetos sensíveis, nós só os conhecemos como eles nos aparecem, e não como eles são em si mesmos, objetos suprassensíveis não constituem para nós matéria de conhecimento.*


É uma formal condenação da metafísica, mas da metafísica como ciência, e não como disposição natural (Naturanlage) e indestrutível do espírito.


* Cf. texto original da carta a Johann Heinrich Tieftrunk, de 11/12/1797: Kant, Briefwechsel, p. 222 (citação de Tobias Barreto, p. 224); disponível em: https://gallica.bnf.fr/ark:/12148/bpt6k25557x/f240.item.


158. De tudo isto se depreende que Kant foi realmente o Copérnico da filosofia; não o Copérnico do erro, segundo a tola expressão de um Sr. Édouard Manec, tradutor francês da Filosofía fundamental de [Jaime] Balmes, mas o descobridor da verdade arquitetônica do pensamento humano. Há somente a lastimar que o filósofo tenha sido muitas vezes combatido por gente que nunca o leu.


159. Os teólogos sobretudo, os fideístas de grande e de pequeno estilo, ainda continuam a fundibular contra ele, na errônea persuasão de apedrejarem assim o maior, o mais perigoso racionalista, quando aliás é certo que foi justamente Kant, quem matou por uma vez o racionalismo de todos os tempos e de todos os tamanhos.


160. A proposição é nova e arriscada; mas basta refletir um pouco para compreender a sua exatidão. Com efeito, nada mais simples: se a pura razão, sem base experimental, não é capaz de produzir senão quimeras, com que direito se fala de um conhecimento racional de Deus e das coisas que lhe dizem respeito, desde que Deus não é objeto sensível, e como tal, tanto pode ser afirmado, como pode ser negado, com argumentos igualmente lógicos, igualmente vigorosos? Quem quer pois que sinta a necessidade de um Deus pessoal, de uma vida ulterior, e todos nós sentimo-la, não tem de apelar para sua razão, que no caso é nula, mas somente de atirar-se nos braços da fé que vivifica, nos braços de uma religião, de uma igreja, cujos credo melhor corresponda a essa necessidade.


161. A emenda que o filósofo, no seu livro posterior, segundo a opinião corrente, parece ter feito em sua primitiva doutrina, não é uma tal. Entre as visões quiméricas da razão pura e os postulados da razão prática não vai uma longa distância: e afinal, tudo bem examinado, o resultado é que há tão pouco direito de afirmar-se, só em nome da razão, um Deus remunerador, condição e garantia de eterna felicidade, como há de admitir-se, pelo mesmo processo, um criador, uma causa suprema do universo. Para chegar a esta altura e nela permanecer tranquilo, sem correr o risco de entontecer e cair, o homem necessita tomar outro caminho.


162. Já se vê que o sistema de Kant, conforme se deduz de um estudo mais sério das suas bases, não prestou, nem podia prestar apoio algum às chamadas teorias racionalísticas. Certamente as suas ideias, como disse Johannes Scherr, desbarataram a intuição teológica do mundo; mas isso só é exato, e só deve compreender-se no sentido da teologia como ciência, não menos fantasmagórica e impossível do que a metafísica, que é a teologia da razão, como a teologia é a metafísica da fé.


163. A Crítica da razão pura, o primeiro manifesto revolucionário do filósofo, saiu à luz em 1781, um mês depois da morte de Lessing (15 de fevereiro), e dois meses depois da primeira representação do Idomeneu, de Mozart, ópera com que o jovem componista (25 anos) rompera com as tradições recebidas. Coincidência notável: nesse ano também surgiu Le Mariage de Figaro, de Beaumarchais, la révolution déjà en action, como mais tarde exprimiu-se Napoleão a respeito da célebre comédia, que entretanto só começou a ser representada em 1784.


164. Era o tempo do maior fulgor do classicismo alemão. Winckelmann, que morrera em 1768, estava na ordem do dia.


165. Em 1787 apareceu o Ardinghello, de Heinse; em 1788, os Deuses da Grécia, de Schiller, e a Crítica da razão prática, de Kant; em 1789, Os Artistas, de Schiller; em 1790, as Elegias Romanas, de Goethe, e a Crítica do juízo, de Kant, bem como a Educação estética*, de Schiller; e assim por diante até Hermann e Doroteia, de Goethe (1797), e outras citações do gênero. A seriação diz tudo. Era uma bela embriaguez; as melhores esperanças da humanidade tinham acordado vívidas e impetuosas.


* Cf. J. C. Friedrich von Schiller, Ueber die ästhetische Erziehung des Menschen, in einer Reihe von Briefen (1795), disponível em: https://www.projekt-gutenberg.org/schiller/aesterz/aesterz.html; em inglês, Letters upon the aesthetics education of man, disponível em: https://sourcebooks.fordham.edu/mod/schiller-education.asp.


166. Convém agora apreciar o modo por que os contemporâneos receberam a filosofia de Kant.


167. Escrevia Stäudlin* em 1784:


Esta nova filosofia exerceu uma encantadora influência sobre todas as ciências e ganhou amigos e sectários entre aqueles mesmos que não se consagram a estudos filosóficos. Ela é de tal natureza, que ainda em um remoto futuro novos germes de conhecimento daí se podem desenvolver.


* Importa observar que se trata de um teólogo alemão contemporâneo de Kant e profundamente influenciado pela filosofia moral kantiana enquanto um acontecimento na história da filosofia ocidental. Da vasta bibliografia de Carl Friedrich Stäudlin (1761-1826) constam obras como: Geschichte und Geist des Skepticismus vorzüglich in Rücksicht auf Moral und Religion, 1794; Philosophische und biblische Moral: ein akademisches Lehrbuch, 1805; Geschichte der philosophischen, ebräischen und christlichen Moral im Grundrisse, 1806; Geschichte der Moralphilosophie, 1822; Briefen von Kant / Karl Friedrich Stäudlin, 1826. A propósito da citação de Tobias Barreto, cf. a obra de 1806 (trad. livre: Esboço de uma história da moralidade filosófica hebraica e cristã, p. 87-91), disponível em: https://books.google.com.ag/books?id=I_RkAAAAcAAJ&printsec=frontcover&hl=de#v=onepage&q&f=false.



168. No mesmo ano dizia também Fichte: “A filosofia de Kant é por ora ainda uma pequena semente; porém esta semente há de e deve tornar-se uma árvore capaz de cobrir com a sua sombra a humanidade inteira”. O vaticínio cumpriu-se.


169. “As ideias fundamentais da filosofia ideal”, é Schiller quem fala, em 1805, “são um eterno tesouro; e só por causa delas devemos julgar-nos felizes de ter vivido nesta época”.


170. Disse então W. von Humboldt, comentando as palavras de Schiller: “a grandeza e a força da fantasia existem em Kant, ao lado da profundidade e rigor do pensamento”.


171. Da harmonia de todos esses nomes espíritos, só um destoou, com desvantagem para o seu nome: foi Herder. Entretanto Kant teve a singular fortuna de que depois, logo depois de su alto feito filosófico, não houve, em geral, pensador notável que não quisesse pôr-se de acordo com ele, subordinar-se, filiar-se a ele.


172. [K. L.] Reinhold, o velho, foi quem tomou a frente. A teoria da ciência (Wissenschaftslehre), de Fichte, veio e completou o que Reinhold começara. Da teoria da ciência saiu imediatamente a filosofia da natureza de Schelling, e desta desenvolveu-se o sistema de Hegel.


173. Jena foi o ponto de partida da revolução kantesca. Ali se acharam numa mesma quadra, como professores universitários, e professores de filosofia, primeiramente: Schiller, Fichte, Schelling; depois: Schelling, Hegel, [J. Friedrich] Fries; depois: Hegel, Fries, [Lorenz] Oken.


174. Os filósofos que seguiram-se a Kant podem dividir-se em quatro classes:


  é a dos kantistas pur sang, que agarram-se à letra do mestre e tomaram a crítica da razão por um sistema completo da mesma razão;

é a dos que procuraram tirar todas as consequências do kantismo; a esta pertencem Fichte, Schelling e Hegel;

é a dos que tratam de acomodar essa filosofia às necessidades da vida, como K. L. Reinhold e Jacobi;

finalmente estão compreendidos os semikantistas, que buscaram abrir novos caminhos, um pouco desviados da direção do chefe; foram eles: Fries, Herbart, Schopenhauer, [F. Eduard] Beneke, [E. C. Gottlieb] Reinhold filho, [F. Adolf] Trendelenburg e outros modernos.


175. Destas quatro classes, só a 2ª e 4ª mostraram-se fecundas, e foram além da época do seu aparecimento.


176. Os kantistas pur sang não tiveram descendência filosófica. Os da 3ª classe, K. L. Reinhold e Jacobi na frente, posto que se entregassem à popularização do sistema, não puderam todavia levar muito longe os resultados dos seus esforços.


177. A razão disto está em que Reinhold havia recebido uma educação jesuítica. Ele compreendeu e procurou desenvolver a filosofia do mestre, no sentido de uma teoria religiosa, ou uma espécie de religião racional.


178. Jacobi porém fez-se entre o seu tempo e as ideias kantescas. O seu mérito consiste em ter promovido o reconhecimento dessas ideias e a sua propaganda em mais largos círculos. Mas teve medo de chegar até aos extremos que a lógica exigia.


179. Todavia estes dois popularizadores prepararam o terreno, em que os kantistas sistemáticos e consequentes deviam lançar a semente frutífera. Destarte, quando Kant morreu (1804), já a sua filosofia, encarada sobretudo pelo lado prático, a sua teoria da virtude, o imperativo categórico do dever, tinham ganho a maior influência. A prova é que três anos depois da morte do grande pensador, o seu discípulo Fichte, nos famosos Discursos à nação alemã (1807), já encontrava um povo predisposto para entusiasmar-se e transformar-se por força de tais ideias.


180. E aqui releva tomar nota de um fenômeno excepcional. Fichte, que foi e ainda hoje é considerado o mais difícil, o mais obscuro dos filósofos alemães, foi também ao mesmo tempo o mais claro, o mais convincente, o mais popular dos oradores dessa nação.


181. A antítese é singular, mas não deixa de ser explicável. Como filósofo, Fichte teve a pretensão de dar mais largas dimensões ao kantismo; o resultado foi torná-lo menos puro e menos acessível à inteligência geral. Como orador, porém, ele não fazia mais do que tirar, diante da miséria nacional, os corolários práticos do imperativo categórico de Kant, que já era então bem comum entre as classes cultas do país.


182. Além disso, é bom não esquecer que a eloquência está sujeita a condições cronológicas em muito maior grau do que a poesia e a música.


183. Demóstenes, S. Paulo, Savonarola, Lutero, Bernardino Ochino da Siena, Mirabeau, etc., foram todos produtos da sua época, dos sucessos que nela influíram, dos fatores que a determinaram. Fora daí, tais homens teriam sido impossíveis. Mas esses sucessos e esses fatores não se evocam à vontade. Eis a razão por que, em geral, a oratória da atualidade não tem mais o sério e a força de outrora. O orador hodierno, o grande orador mesmo, e eu só me refiro aos grandes, assemelha-se a um genial tocador de viola: admirável, estupendo, sublime, mas sempre, anacrônico, sempre fora de seu tempo, e como tal um pouco ridículo.


184. A Fichte não faltaram as condições necessárias para o desenvolvimento da verdadeira eloquência. Era o estado excepcional da sua nação. E é por isso que os Discursos constituem um feito heroico: levantaram-na do abatimento e humilhação em que se achava. A palavra do orador contribuiu para que em 1813* se vingassem as afrontas dos anos anteriores.


* Derrotado em 1807 pelas tropas napoleônicas, com a perda de metade do seu território, Frederico Guilherme III da Prússia declarou guerra à França de Napoleão em 16/03/1813. No mesmo ano, as forças comandadas pelo prussiano Blücher (“Batalha dos Povos”, Leipzig) deram fim ao domínio francês em todo o território alemão.


185. Os Discursos foram proferidos em Berlim, onde Fichte morreu em 1814, passando logo depois (1818) a sua cadeira de professor da universidade a ser ocupada por Hegel. Desde então o hegelianismo começa a ganhar uma certa preponderância, e torna-se filosofia oficial.


186. Quanto a Kant, resta-me observar que posteriormente à sua obra capital ele não foi sempre fiel a si mesmo, sobretudo nos pequenos escritos, como Zum ewigen Frieden: Ein pilosophischer Entwurf (1796), Metaphysiche Anfangsgründe der Rechtslehre (1796), Streit der Fakultäten (1798), etc., etc., nos quais a razão às vezes um papel que não está muito de acordo com os princípios da Crítica.


187. Mas isto se explica, não só como um efeito da velhice, mas também como resultado do fanático entusiasmo de que o filósofo se deixou possuir pela revolução francesa, a ponto de pretender pôr a sua filosofia a serviço das chamadas ideias de 89, que aliás são outras tantas afirmações gratuitas, em frente de outras tantas gratuitas negações.


188. Por exemplo: o domínio dos pretendidos direitos eternos, absolutos, inalienáveis, imprescritíveis, e como quer que mais se qualifiquem, entra no reino do hipersensível, não pode ser matéria de conhecimento. Como foi pois que Kant caiu na contradição de querer dar uma aparência filosófica a esses e quejandos produtos abortivos do espírito revolucionário? São fraquezas humanas.


189. Felizmente para ele, a posteridade já não lê semelhantes desvarios de um septuagenário cansado e aborrecido da brutal reação que o sucessor de Frederico Guilherme II fizera praticar-se contra as luzes e as generosas tendências de período anterior, e continua a ligar o seu nome e a sua glória quase exclusivamente à Crítica da razão.


190. Em todo caso é certo o que disse Hermann Hettner, que a palavra de Kühne sobre Lessing* aplica-se a Kant com igual direito: voltar a ele é um progresso.


* Nota do Editor: Gustav Kühne, Deutsche Charaktere (vol. 1). Aus dem Zeitalter der Aufklärung: Friedrich der Große, Lessing, Moses Mendelssohn, Kant; disponível em: https://archive.org/details/bub_gb_zQoTAAAAYAAJ/page/n4/mode/1up.


191. Agora volvamos de novo as vistas para o ponto em que se encontraram e começaram a confluir as duas literaturas, germânica e francesa, no fim da época do rococó.



V



192. Quando se fala do espírito do século XVIII, com o gosto particular que o caracteriza, em todas as direções da vida pública, quer no domínio moral propriamente dito, quer no domínio científico e literário, o nome de Voltaire é o primeiro que vem aos lábios. Ele abrange, resume e representa, como em um espelho ardente, toda aquela época de íntimas contradições e galantes paradoxismos.


193. Por isso mesmo a literatura, que começou então a surgir, a nova literatura dos emigrantes, tomou-o de preferência como alvo de seus ataques; e neste ponto, ela foi reacionária, porque, reagindo contra Voltaire, iniciou também a reação contra o gênio escarninho e cético do século passado.


194. Mas não ficou aí. Ao lado de Voltaire erguera-se Rousseau, que o igualava em tamanho e foi quem inspirou a nova literatura francesa, que a ele se deixa remontar, a despeito de todas as influências estrangeiras; razão pela qual, no tanto quanto procede de Rousseau e continua Rousseau, pode-se também dizer que o século XVIII e a revolução. E o duplo caráter, que se lhe nota, de reacionária e progressiva ao mesmo tempo.


195. A Rousseau com efeito é que se prendem os grandes movimentos literários do fim do passado e princípio do presente século, que se protraíram até aos nossos dias. Dele se inspiram, cada um a seu modo e na cota que lhe é cabível, na Alemanha, Kant, Herder, Goethe, Schiller, João Paulo [Jean Paul, pseudônimo de Johann Paul Friedrich Richter], Ludwig Tieck; em França, Diderot, Saint Pierre, Chateaubriand, Madame de Staël, George Sand; e na Inglaterra um , porém um que vale cem: Byron.


196. Ao passo que Voltaire influi sobre os espíritos em geral, a influência de Rousseau dirige-se aos espíritos, aos talentos de primeira ordem. Estes dois grandes homens, depois de sua morte, dominaram alternadamente a posteridade.


197. No começo do século, Voltaire entregou o cetro a Rousseau; veio porém um período, depois de 48, em que ele readquiriu o domínio perdido, pelo menos em França; e nos mais salientes escritores modernos deste país, como por exemplo Ernesto Renan, encontram-se as duas tendências finalmente reunidas e amalgamadas. Isto é, o espírito de Rousseau multiplicado pelo espírito de Voltaire. [17]


Nota 17: Georg Brandes, op. cit.


198. Pondo de parte o que Rousseau escreveu como filósofo, encaremos a sua principal obra como poeta, que é A Nova Heloísa*.


* Nota do Editor: edição brasileira recomendável: Jean-Jacques Rousseau, Júlia ou A nova Heloísa; tradução de Fulvia M. L. Moretto. São Paulo-Campinas: Hucitec/Unicamp, 1994.


199. Este livro, que tem precursor longínquo na Manon Lescaut, do abade Prévost, e pressupostos menos remotos nos romances de Richardson, desenvolveu ideias que como grãos sacudidos pelo vento transplantaram-se à Alemanha, e lá produziram Werther.


200. A figura de Werther cresce, passa por uma transformação e torna-se Fausto; por sua vez essas ideias e sentimentos refluem para a França, e sobre o solo francês a onda chama-se René, Oberman, como mais tarde chamar-se-á Delphine, Corinne, Adolphe, Manfredo, Lara, Hernâni, Ruy Blas, Lélia, e como quer que mais se denomine toda a raça de melancólicos e descontentes de que se povoou a literatura deste século.


201. Que havia de novo na Heloísa de Rousseau?


202. Natureza e paixão, natureza e virtude são os seus estribilhos. Porém nisto não há novidade alguma. O livro encerra uma história de amor; mas destas já se haviam escrito muitas em França.


203. O que ele contém de novo, consiste primeiramente em ter posto fim à galanteria, e com ela ao modo de conceber os sentimentos em todo o período clássico-oratório. Esta concepção era de que todas as nobres e ternas emoções, principalmente o amor, são produtos da civilização.


204. É indubitável que se faz preciso um certo grau de cultura, para poder surgir um sentimento como o amor.


205. Antes de haver vestidos femininos, não havia mulheres, porém somente seres femini generis, e antes de haver mulheres, o amor não existia.


206. Não é só isso. Pode-se mesmo afirmar que a longa viagem que a humanidade tem feito desde os seus primórdios até hoje, ou seja, de milhares de anos, ou de milhares de séculos, está toda compreendida no espaço que medeia entre a mordedura e o beijo, entre a dentada feroce e animal da paixão selvagem e o ósculo mal percebido da paixão disciplinada e culta; devendo-se, porém, não esquecer que de todos os sentimentos modificados, enobrecidos, divinizados pela cultura, é talvez o amor aquele que mais obedece à lei do atavismo. [18]


Nota 18: Com efeito, basta imaginar o comércio sexual em estado de primitiva nudez, que lembra o estado de primitiva selvageria. O tirar das roupas equivale a sacudir dos ombros o peso de oitenta séculos de civilização: et dentes inlidunt saepe labellis [tradução livre: “e com frequência mordem os lábios”; cf. Lucrécio, De rerum natura, 4.1080; disponível em: http://www.perseus.tufts.edu/hopper/text?doc=Perseus%3Atext%3A1999.02.0130%3Abook%3D4%3Acard%3D1073].


O leitor não me considere demasiado livre nas minhas apreciações. Já houve quem dissesse que quase todos os meus escritos se ressentiam da voluptuosidade do meu temperamento. Mas não há tal. A este respeito, eu posso dizer com o Figaro de Beaumarchais: il n’est pas nécessaire de tenir les choses pour en raisonner; n’ayant pas un sou, j’écrie sur la valeur de l’argent…[tradução livre: “não é necessário dispor das coisas para discorrer sobre elas; não tendo um centavo, estou a escrever sobre o valor do dinheiro”.]


Além disto, o espírito científico não tem outro escrúpulo senão o de faltar à verdade, ou de dizê-la só pela metade. É a razão por que sempre tive uma profunda antipatia aos velhos tratados de psicologia espiritualista, em que o homem não é o que nós somos, mas um ser etéreo, hiperterreno, que não come, nem bebe, não increta [ver nota do §112 acima] nem excreta. Eu cá não penso assim. Se escrevesse alguma obra do gênero, havia de dar conta de tudo, correndo mesmo o perigo de ferir ouvidos castos.


Ainda hoje, quando me lembro do meu velho Barbe, e do modo por que ele discorria sobre as diversas formas de sensibilidade, sobrevém-me a abjeção, que então me sobrevinha: o prazer que ordinariamente acompanha o exercício das funções excretícias é de natureza física, intelectual ou moral? Se a filosofia, se a ciência em geral tem pejo destas coisas, é o caso de dizer, como Romeu a frei Lourenço: ora bolas para a filosofia: ela é inútil e sem valor algum.


207. Partindo deste pensamento, em si exato, o espírito do tempo que se designa por época de Luís XIV tinha afinal chegado ao resultado de que tudo o que esconde a nua paixão concorre para nobilitá-la e dar-lhe valor. Quanto mais encoberta e parafraseada, quanto mais cuidadosamente predisposta, quanto mais sorrateiramente indicada, tanto menos brutal ela se mostra.


208. Era esta a intuição vigente na época do rococó, isto é, no reinado de Luís XV e princípio do de seu infeliz sucessor.


209. Contra isto foi que Rousseau reagiu. Excesso contra excesso, a reação tinha sua vantagem, ainda que somente provisória e temporária.


210. O segundo traço de novidade na Heloísa é que aí os dois amantes, ao invés do que até então se observa, são de classe diferente e diferente posição social, de onde se origina o conflito psicológico, ou o momento trágico da vida do inditoso par.


211. Tudo isto entretanto ainda era um produto da época, e só relativo e adequado a ela. Porém hoje não tem mais senso. Eu já disse uma vez, e é exato: com o nivelamento das classes sociais, realizado ou mesmo só pretendido, a democracia matou a primitiva poesia do amor. Nada, portanto, de mais esdrúxulo do que certos romances eróticos do nosso tempo e da nossa terra, em que os dois amantes se debatem contra uma fantástica impossibilidade de se unirem. A um leitor menos preocupado, acode de pronto esta pergunta: por que não se casam? É simplesmente uma questão de vigário, advogado e juiz, para que pois tanto barulho?!


212.Mas não era assim antes da Revolução. A mulher de classe elevada, que não tinha o direito de casar-se com quem quisesse, podia entretanto entregar-se a quem bem lhe parecesse; e a galanteria social não tolerava que se forjassem cadeias ideais, para dificultar a poesia do gozo.


213. O que o livro de Rousseau trazia de estranho e hostil aos costumes e à literatura do dia foi bem caracterizado pela Pompadour, quando disse da heroína do poema: “Quelle maussade créature que cette Julie! Combien de raisonnements et de babil vertueux pour coucher enfin avec un homme!”* É o ponto de vista de uma favorita régia, mas também, para a sociedade de então, o único verdadeiro.


* Tradução livre: “Que criatura melancólica essa Júlia! Quanta justificativa e hesitação em nome da virtude para finalmente ir dormir com um homem!”


214. A Nova Heloísa saiu à luz em 1761. Treze anos mais tarde (1774), ano da ascensão de Luís XVI ao trono, apareceu o Werther, com todos os bons predicados da Heloísa, ao lado de muitos outros, que lhe eram próprios, e sem um sequer dos seus defeitos. Saint-Preux mudara de costume e metera-se no célebre trajo wertheriano, o casaco azul e o colete amarelo; a belle âme de Rousseau transportara-se para a literatura alemã, convertida em schöne Seele.


215. As grandes individualidades científicas e literárias da Alemanha, que brilharam na segunda metade do século passado, podem-se considerar como profetas e precursores do gênio que se esperava. E efetivamente o gênio apareceu. Todos os desejos, todos os vagos pressentimentos, que agitavam a geração moderna, acharam em Goethe a sua satisfação, a sua expressão perfeita, o seu perfeito complemento.


216. Não somente Werther, mas também Clavigo, publicado igualmente em 1774, como ainda Götz von Berlichingen, do ano antecedente, foram ensaios maravilhosos, podia dizer titânicos, que atraíram sobre o poeta os olhares de toda a plêiade literária do seu país; e lhe valeram o convite para a corte e depois a amizade do duque de Weimar, que tanto influíram sobre o seu desenvolvimento posterior.


217. Mas se Goethe, com as suas primeiras criações, se havia tão altamente colocado acima dos escritores coetâneos, a ponto de fazer pressagiar à atônita Alemanha a irrupção de uma nova era, o nexo lógico e a harmonia no conjunto dos seus produtos só teve lugar quando ele pôde medir e completar a própria individualidade intelectual com outra não menos sublime.


218. Um jovem médico militar, a serviço do duque de Württemberg, publicava em 1781, no mesmo ano da Crítica da razão pura, o drama trágico Os Salteadores, que provocou o entusiasmo público e as perseguições da autoridade. O autor Frederico Schiller, que vira-se obrigado a fugir e asilar-se por algum tempo em Mannheim, depois em Mogúncia, Dresden, Leipzig, abrigou-se finalmente na corte hospitaleira de Weimar, também a convite do duque, que o nomeou seu conselheiro.


219. N’Os Salteadores, abstraindo-se da exorbitância da expressão e do conceito, há uma força de ação dramática que mantém suspensa a atenção dos espectadores e torna menos duro a chocante o monstruoso conúbio da civilização com a barbaria, da pura elevação do sentimento com a feroz dialética do materialismo.


220. O encontro de Goethe com Schiller, cuja primeira impressão não foi agradável a nenhum deles, veio depois a tornar-se fecundíssimo para ambos. E quando mais tarde os tolos e importunos, que não podem ver dois grandes gênios sem tratar logo de decidir qual seria superior, lançaram entre Goethe e Schiller a fútil questão do primado, foi Goethe mesmo quem disse: “Não se deve questionar, nem procurar saber quem é maior, mas somente regozijar-se de que existam ao mesmo tempo estes dois brejeiros”. [19]


Nota 19: Não se julgue por isso que os espíritos superiores daquela época se assinalavam pelo mútuo respeito e reconhecimento do mérito de cada um. Como os deuses do Olimpo, eles tinham também suas lutas, suas chicanas, suas bandalheiras. O próprio Schiller, que se confessa tão entusiasta de Kant, não duvidou depois dizer que o filósofo, a despeito de tudo, mostrava uns visos de monge; que abrira-se o claustro, é verdade, mas ainda conservavam-se os vestígios da clausura.


Da mesma forma, Augusto Schlegel, quando Schiller publicou A Canção do Sino, disse que o poeta havia-se esquecido do badalo. Um belo espírito do tempo, o humorista Wiesel, ouvindo uma vez alguém falar de Klopstock, lisonjeando-se da sua amizade, exclamou espantado, com o terrível sério da ironia: “Como assim?! Isto é possível? E vive realmente entre nós o autor d’A Messiada, quando eu pensava que o Sr. Klopstock era um contemporâneo do Cristo!?” E como estas, muitas outras.


221. Em torno desse nobre par de dioscuros agruparam-se então todas as grandezas intelectuais da Alemanha.


222. No último decênio do século, foi que surgiu ali a chamada escola romântica, filiada no movimento filosófico provocado pelos kantistas Fichte e Schelling. Como Tieck e Novalis foram os poetas, os irmãos Schlegel, Augusto e Frederico, foram os legisladores da nova escola.


223. Para caracterizá-la, basta mencionar o seu primeiro manifesto, datado de maio de 1798 e inserto no Athenäum, jornal fundado especialmente para a defesa e propagação das novas ideias. São palavras de Frederico Schlegel:


A poesia romântica é uma poesia universal e progressiva. Seu destino não é somente reunir todas as espécies poéticas separadas, e pôr a poesia em contato com a filosofia; ela quer e deve ainda misturar e confundir uma com a outra, poesia e prosa, genialidade e crítica, poesia da arte e poesia da natureza; fazer a poesia, viva e social, bem como a vida e a sociedade poética.


224. É quase o mesmo programa dos reformadores da poesia de hoje, para quem o fiasco da escola romântica, que aliás dispunha de talentos incomparavelmente superiores, bem pudera ser uma lição proveitosa.


225. Frederico Schlegel não limitou-se a dar o preceito, adicionou-lhe o exemplo. Foi Lucinde, o primeiro romance da escola, e uma espécie de antecipação, até certo ponto, das heroínas de Staël, bem como da Lélia de Sand. A obra apareceu em 1799, coetaneamente com os Discursos sobre a religião [Über die Religion], de Schleirmacher, que são também a seu modo um produto romântico.


226. A romântica alemã foi menos fecunda dentro dos seus próprios limites do que fora deles. É assim que aos seus esforços se deve a criação da mitologia científica e da filologia. Frederico Schlegel foi o fundador da linguística comparada; Guilherme von Humboldt, Bopp e Lassen descendem da sua escola. A simbólica de Creuser também é filha do romantismo. [20]


Nota 20: O gosto e o cultivo da poesia popular, ainda que possam remontar à autoridade de Herder, descendem todavia mais diretamente da escola romântica; os efeitos mediatos desta escola, que não foram poucos, dividem-se em permanentes e transitórios. Aos permanentes pertencem, por exemplo, a linguística, a filologia, a mitologia comparada; aos transitórios, porém, não precisa especializar, pertencem todas aquelas extravagâncias, que há 50 ou 60 anos valiam por maravilhas, e hoje felizmente estão esquecidas. Pergunto agora: o gosto da poesia popular, a que classe deve pertencer?


De mim para mim, tenho-o por um dos efeitos transitórios. Esse entusiasmo forçado (erzwungene Begeisterung), como dizia o próprio Uhland, pelas pretendidas produções poéticas do povo, é sem interesse estético, porque nelas em geral a beleza brilha pela ausência; sem interesse histórico, porque o povo poetizante nada tem que ver com o processo evolutivo da história; sem interesse psicológico nacional, porque as canções populares, a despeito de todas as tentativas feitas neste sentido, ainda não servem nem servirão jamais como traço característico desta ou daquela nacionalidade; esse resto de vertigem há de também acabar. Se ainda não desapareceu de todo, é porque começou mais cedo.


Só compreendo o valor da poesia popular, como matéria assimilável às formas e conceitos da poesia culta, por intermédio de espíritos superiores. Foi o que fez Goethe, cuja musa lírica, em muitos dos seus mais brilhantes produtos, é uma ressonância do Lied popular alemão. foi o que fez Heine, que por vezes recorreu também a essa fonte; foi ainda o que fez Weber no domínio da música, pondo a seu serviço e colorindo com seu gênio as cantigas populares. Deixemo-nos pois de ilusões. A poesia popular é uma digna irmã da soberania popular. O epíteto adicionado a uma outra palavra amesquinha e transtorna o conceito de ambas. Muito sinto achar-me neste ponto em desacordo com o meu ilustrado amigo Sílvio Romero, cujo talento é de uma força organizadora estupenda; e como em geral os talentos orgânicos são também harmônicos, é estranhável que ele, que foi o primeiro entre nós a irromper contra o romantismo, tenha cedido por sua vez a uma das mais estranhas preocupações românticas*.


* Nota do Editor: Rejeitando a recepção do nacionalismo romântico francês, assimilado por Gonçalves de Magalhães em Paris (ver suas Cartas a Monte Alverne, bem como seu Ensaio sobre a História da Literatura do Brasil, sobretudo §13-§14, §32 e §37-§38; cf. nota do §64 acima), Sílvio Romero considerou o romantismo no Brasil como sendo “um cadáver e pouco respeitado”, pois desprovido de fonte própria, sem o recurso às próprias tradições nacionais, aos usos e costumes populares, esse romantismo — como bem observou Tobias Barreto (ver §302-§304 adiante) —, não teria futuro (cf. seu texto A poesia de hoje, de 1878, disponível em: http://textosdefilosofiabrasileira.blogspot.com/2010/04/poesia-de-hoje.html). Posteriormente, em sua Introdução à história da literatura brasileira, de 1882, Sílvio Romero se propôs “encontrar as leis que presidiram e continuam a determinar a formação do gênio, do espírito, do caráter do povo brasileiro [o que só seria possível com] os nascidos no Brasil (…) que no Brasil viveram longamente, lutaram e morreram por nós (…) como políticos nos tempos modernos, Clemente Pereira e Limpo de Abreu…” (ver Preliminares, p. 8-9, disponível em: https://digital.bbm.usp.br/view/?45000008921&bbm/4484#page/9/mode/1up).


227. Igual se mostrou a sua influência no domínio da música. Beethoven foi o último grande clássico. Entre Mozart e ele há alguma coisa de análogo ao que se dá entre Goethe e Schiller. Mas Schubert e Weber foram românticos. De Weber diz Hermann Hettner, que ele quis e pôde, o que os românticos quiseram, porém, não puderam.


228. Até sábios, como Savigny, pagaram o seu tributo à jovem escola. O seu escrito Sobre a Vocação do Nosso Tempo [título original completo:Vom Beruf unserer Zeit für Gesetzgebung und Rechtswissenschaft, 1814] ressente-se da influência dela. Os estudos germanísticos em geral foram frutos positivos da escola romântica.


229. Entretanto, abre-se a porta do século XIX. Logo em seu princípio, morrem alguns imponentes vultos da literatura alemã; Herder e Klopstock, em 1803; Kant, em 1804; Schiller, em 1805; Wieland, em 1813.


230. Os tempos assumem uma nova face; e manifesta-se então a chamada doença do século, a melancolia, que não tem caráter pessoal, nem mesmo nacional; é uma epidemia cosmopolítica, aparentada em seu fundo com as formas mórbidas religiosas, que na Idade Média tantas vezes se espalharam sobre a Europa.


231. O mais afetado deste mal era justamente a primeira figura da época, Bonaparte. A coincidência é notável: no mesmo ano em que ele celebrou a concordata com o papa e introduziu de novo em França o culto católico (1802), saiu à luz o Gênio do cristianismo, no qual o célebre episódio de Renê constituiu o primeiro fomento da moderna literatura francesa*.


* Nota do Editor: Na esteira da repercussão desses acontecimentos (ver a nota do §64 acima), o padre-mestre Monte Alverne inspirou-se em Chateaubriand, Génie du christianisme, ou Beautés de la religion chrétienne (https://gallica.bnf.fr/ark:/12148/bpt6k1054578g.image), para ressaltar em suas pregações, e em sua docência de Filosofia, a ideia do cristianismo como fundamento da moderna civilização ocidental. Cf. Monte Alverne, Discurso Preliminar, §11, nota 10, disponível em: http://textosdefilosofiabrasileira.blogspot.com/2010/12/discurso-preliminar-obras-oratorias.html.


232. Dois anos depois (1804) surgia igualmente Oberman, de Senancour, outra variação do tipo wertheriano, que produziu em França a mesma peste do suicídio que o livro de Goethe produzira na Alemanha. Ainda mais tarde (1807) levantou-se Corinne, que não é uma doente como Delphine, mas tem os mesmos ímpetos, as mesmas inclinações*. E assim por diante até Adolphe, de Benjamin Constant, que é menos brilhante do que René, menos resignado do que Oberman, mas pinta a mesma geração inquieta e irresoluta. [21]


* Importa observar o caráter feminista avant l’heure da Corinne concebida por Germaine de Staël. Texto disponível em: https://gallica.bnf.fr/essentiels/stael/corinne. Acesso: 01/08/2021.


Nota 21: Coisa notável, se não antes digna de riso: o autor do Adolphe é o mesmo autor da Politique constitutionnelle [Cours de Politique Constitutionnelle, 1872], isto é, Benjamin Constant, ou L’Inconstant como o chamavam as mulheres. Uma e outra obra têm o cunho da mania do tempo, bem como a volubilidade do espírito que as produziu. Um homem que, tendo dirigido a Luís XVIII uma petição, na qual se justificava de haver durante os cem dias abraçado a causa de Napoleão, e assegurava a sua lealdade para com os Bourbons, ao saber que o rei lhe perdoara, que a sua petição o fizera convencer-se da lealdade prometida, respondeu todo sério: “Eu creio, pois, que ela seria até capaz de convencer a mim mesmo”; este homem não podia ter escrito a sua Política, sincera e convictamente. Mas ainda hoje, entre nós, há quem a considere a última palavra em matéria governamental; e a nossa constituição, que é um dos melhores transuntos, posto que tão romântica e doentia, como um capítulo do Adolphe, continua a passar por uma obra providencial! O nome de Benjamin Constant não é somente o nome de um autor; no Brasil tornou-se até, como também sucede com alguns outros escritores, o nome de uma ciência! Havia na minha terra um professor de primeiras letras, uma dessas naturezas puramente gramaticais, que, fazendo alarde dos seus conhecimentos, da sua inexcedível mestria na regência do Português, costumava dizer altivo e garboso — “Eu sei o Camões!”. Em igual posição se acham muitos dos nossos doutores, lentes de academia, senadores, deputados e ministros, que podem repetir com o mesmo orgulho — “Eu sei o Benjamin!”, “Eu sei o Ahrens!”, “Eu sei o Macarel!”. E daí não passam!


233. Incidentemente, foi também por esse tempo que Byron começou a despertar, como um prodígio, a atenção do mundo culto. A Peregrinação de Childe Harold veio a lume em 1812; Giaour, de que tiraram-se onze edições em seis meses, e bem assim A Noiva de Abydos, em 1813; O Corsário e Lara, em 1814; O Cerco de Corinto e Parisina, em 1816.


234. Era como se, depois da queda de Napoleão, uma nova força dominasse os espíritos. O entusiasmo chegara a tal ponto que só d’O Corsário venderam-se em um dia treze mil exemplares. [22]


Nota 22: Byron lembrava-se sempre deste fato com um certo desvanecimento. Quando uma vez, na sua viagem pelo Reno, acompanhado de um médico italiano, Polidori, este teve a ousadia de perguntar-lhe “Que podeis vós fazer, que eu também não possa?”, o poeta respondeu-lhe “Já que me obrigais a dizê-lo, dir-vos-ei: há três coisas, pelo menos, que eu faço e que vós não fazeis, isto é, atravesso a nado este rio, a vinte passos de distância apago uma luz com um tiro de pistola, e já escrevi um poema do qual em um só dia foram vendidos treze mil exemplares!”.


235. A ideia de Byron [23] traz à mente a ideia de Guiccioli, e esta, por sua vez, suscita-me a lembrança da Itália. Passemos, pois, a apreciar o seu movimento literário.


Nota 23: Aproveito a ocasião para observar que próximo está o dia 22 de janeiro de 1888, em que faz um século que Byron nasceu. Não será o grande inglês, entre nós, realmente digno de um centenário solene?



VI



236. Pelo meado do século passado, no tempo em que também na Alemanha começava uma espécie de renascimento espiritual, o gênio da poesia italiana despertou de um longo sono, em que o havia mergulhado o monótono badalar dos sonetistas e das idílicas academias de pastores.


237. O movimento político e social que então se operava teve uma larga parte nesse despertar. Do abatimento e obscurantismo medieval o país elevou-se a novas esperanças de vida.


238. E quando o espírito revolucionário que soprava da França impelia para a reforma de todas as instituições, no Estado e na Igreja, a nobre sátira de Giuseppe Parini opôs um dique à corrupção moral, que ao lado da cultura francesa ameaçava a sociedade europeia, e tinha achado facílima entrada na italiana, que se agrupava em torno de pequenas cortes principescas.


239. Diante do fresco ar matutino que aspiravam todos os espíritos superiores, deveriam dissipar-se em pouco tempo as fantasmagorias que infestavam as associações poéticas, bem como a mórbida sentimentalidade dos imitadores de Petrarca, os frívolos gracejos de um Frugoni, a vacuidade bombástica de um Marini.


240. Surgiu então uma temperança, uma reação didático-satírica contra o velho estado de coisas, estragado e corroído; temperança e reação, que sem dúvida teve um mérito mais negativo que positivo, e cujo rigor e força preponderante ainda hoje constitui o tom fundamental nas obras dos dois mais ilustres filhos dessa época: Parini e Alfieri.


241. Foi uma felicidade para a expansão ulterior do espírito nacional o fato de haver-se voltado, logo no princípio desse período, a repetir um grande nome, ao qual se prende toda a glória da literatura clássica italiana. Com efeito fez-se preciso o nome de Dante para quebrar vitoriosamente o encanto efeminador de Petrarca.


242. E também ali, como na Alemanha, foi a crítica que abriu de novo a fonte entulhada. Mas Gasparo Gozzi, a quem a Itália tem a dever o mesmo que a Alemanha deve ao seu Lessing, tinha em seu favor, mais do que este, a circunstância de apelar para um compatriota, para um velho clássico da literatura nacional, ao passo que o aliado de Lessing na luta contra o domínio dos modelos estrangeiros, havia escrito em uma língua, que só pelas raízes é aparentada com o alemão. Decorreu ainda longo tempo, como aos ingleses, de chamar Shakespeare um dos seus. [24]


Nota 24: É singular que o professor Settembrini, nas suas Lezioni, havendo consagrado páginas e páginas à apreciação das fábulas de Carlos Gozzi, tivesse esquecido quase de todo o seu irmão Gasparo, muito mais notável do que ele.


243. Não era porém unicamente no domínio da poesia; pode-se dizer que em quase todos os outros, novos dias felizes haviam-se levantado sobre a Itália. Na Lombardia governava o nobre conde Firmiano [Karl Joseph von Firmian]; na Toscana, o excelente Leopoldo; em Nápoles, o habilíssimo Tanucci. No seio da própria Igreja, sob os papas Benedito XIV, Clemente XIII e Clemente XIV, agitavam-se grandiosos planos de reforma, que não tinham a sabedoria do governo mundano por inconciliável com os deveres da supremacia eclesiástica.


244. Por toda parte ergueram-se homens esclarecidos e animados do respeitável anelo de fazer das grandes conquistas do pensar moderno a base e o fio diretor da vida política e social.


245. Ao princípio, o que predominou foi a influência de Voltaire; dão disso testemunho Il newtonianismo per le dame ovvero dialoghi sopra la luce e i colori, do conde Algarotti (1737), e a tradução de La Henriade [de Voltaire] em versos latinos, do cardeal Querini [Angelo Maria Querini, 1680-1755]. Mas logo depois Montesquieu e os economistas tomaram o ascendente.


246. Levanta-se então uma série de escritores, incitados e protegidos por governos bem-intencionados, nos quais flameja o alto pensamento de tornarem-se os mestres e benfeitores do povo, no mais elevado sentido da expressão. Com a luz da ciência eles pretendem iluminar os princípios de uma legislação e administração livre e humana, assim como vivem da confiança de que aquilo que a ciência reconhece ser exato acha eco entusiástico perante o governo, e por este é logo transformado em vida e atividade política.


247. A Milão cabe a glória de ter sido a primeira sede deste novo movimento científico em Itália. A maneira por que se dera com o Club de l’Entresol em França, alguns jovens esforçados associaram-se entre si, para se instruírem mutuamente em constantes reuniões e conversações, sobre os graves problemas da humanidade.


248. Os membros mais notáveis deste círculo eram [Cesare] Beccaria, Pietro e Alessandro Verri, [Alfonso] Longo, [Giuseppe] Visconti, [Luigi Porro] Lambertenghi, [Pietro] Secchi; todos eles, como se vê de suas cartas e das suas biografias, eram inspirados por escritores franceses do dia. Tomando por modelo The Spectator, de Steele e Addison, como disse Beccaria mesmo em uma carta ao abade Morellet, eles fundaram um jornal com o título Il Caffè, o qual, posto que de curta duração (1764-1766), exerceu todavia uma notável influência pelo seu excelente conteúdo, não menos do que pelo atrativo da novidade.


249. Particularmente Pietro Verri e Cesare Beccaria se assinalaram por suas ideias reformadoras em matéria de legislação criminal e de economia política. O livro Dei delitti e delle pene de Beccaria (1764) fez o giro do mundo, ainda que hoje ninguém mais o leia, com o intuito de instruir-se sobre o assunto.


250. O ponto de vista do autor, que naquele tempo era fecundo e novíssimo, atualmente é estéril e atrasado.


251. Com efeito, a ideia capital da obra de Beccaria é que o legislador, em vez de multiplicar os crimes pela inútil acumulação de proibições e de penas, trate antes de preveni-los, não por meio de policiais, mas por meios morais, promovendo e difundindo a geral instrução do povo.


252. Esta ideia porém não tem mais valor. E o que há de singular é que um dos seus maiores combatentes atuais, um dos que têm fornecido maior número de dados para desacreditá-la, é justamente um compatriota de Beccaria, o psiquiatra Lombroso. Grandes criminosos, talentosos e instruídos, não são corvos brancos; são fenômenos ordinários, que aliás vão aumentando com o progresso da cultura.


253. Os trabalhos de Pietro Verri não foram tão passageiros. Ainda hoje as suas Meditazioni sulla economia politica (1771) merecem atenção, até da parte de espíritos como Karl Marx, o terrível crítico d’O capital, e o mais valente pensador do século XIX, no domínio da ciência econômica.


254. Ao lado de Milão distingue-se Nápoles com igual brilho. Um dos seus vultos superiores foi Gaetano Filangieri (1752-1788), o autor de La scienza della legislazione, que também fez época.


255. Willemain [François-Jean Willemain d’Abancourt] comparou Filangieri ao marquês Posa de Schiller. A comparação assenta perfeitamente; mas importa observar que o moço nobre napolitano, com as suas ideias humanitárias, não se achava isolado. Outros tantos Posas eram todos aqueles jovens magnânimos que reclamaram dos tronos os direitos da humanidade, e que afinal, como Mario Pagano, cujos Saggi politici não têm decerto a mesma extensão e detalhes, mas têm o mesmo rigor e profundeza que a grande obra de Filangieri, pagaram com honrosa morte o seu generoso entusiasmo.


256. Como se vê, a Itália de então reverberava em quase tudo o espírito francês. Houve um somente que bem pouco deveu a essa influência.


257. Foi Parini (1729-1799) — podendo-se-lhe associar neste ponto, ainda que em menor escala, Gasparo Gozzi, Baretti e Cesarotti —, que recebeu mais diretamente a influência da Inglaterra.


258. Alfieri mesmo (1749-1803), posto que pretendesse só bem tarde ter conhecido os trágicos franceses, cedeu muito e muito ao seu influxo; Voltaire transparece por toda a parte, tanto na forma, como no fundo, com a única diferença que a direção preponderante de Alfieri não é contra a Igreja, porém contra o Estado.


259. Entretanto, é incontestável que o célebre trágico exerceu sobre o seu país uma influência poderosa, que presentemente ainda perdura.


260. Ele lançou no meio da massa grandes pensamentos, lançou a paixão política. Não somente uma escola poética que se estende de Ugo Foscolo a Silvio Pellico, mas também toda a jovem Itália cresceu e reforçou-se nele.


261. Com esta admirável expansão e florescência do novo espírito coincide a época dos grandes rabequistas e sonatistas, bem como da hegemonia musical dos italianos, que tomaram então a frente aos seus dois únicos rivais, os franceses e os alemães.


262. É uma coisa digna de nota: ao passo que todos os povos civilizados são mais ou menos poéticos, se caracterizam mais ou menos por uma poesia, que lhes é própria, o mesmo fenômeno não se dá com relação à música, pois somente três merecem o nome de povos musicais, no sentido de só eles terem concorrido para o progresso da arte — alemães, franceses e italianos.


263. Como se vê, um germânico e dois românticos; um belo tema, portanto, para ser desenvolvido pelos Liais* e consortes na importante demonstração da superioridade intelectual da raça latina. Mas eu não me ocupo disto.


* Nota do Editor: Referência a Emmanuel Liais (1826-1900), que então publicara, em 1867, a obra Explorations scientifiques au Brésil. Traité d’Astronomie Appliquée et de Géodesie Pratique comprenant l’exposé des méthodes suivies dans l’exploration du Rio de S. Francisco et précédé d’un rapport au Gouvernement Impérial du Brésil; disponível em:

https://gallica.bnf.fr/ark:/12148/bpt6k8860778.texteImage.


264. É de esperar que no futuro entrem também na corrente os húngaros, russos e polacos.


265. Quanto aos outros, é de crer que não façam mais nada. Os ingleses, por exemplo, estão agora no seu zênite; os espanhóis já passaram além.


266. Não se trata de música popular; esta é comum a todas as nações; mas somente de música artística, e aí é que só aos três povos mencionados cabe o título que lhes confiro.


267. Seja, porém, como for, o certo é que no período em questão o predomínio musical dos italianos estende-se ao mundo inteiro. É então que a ópera começa a mostrar-se em todo o seu esplendor; para o que concorreu não pouco a circunstância de haver entrado na música o elemento feminino. Até aí as mulheres, com raríssimas exceções, não tinham representado papel algum, ou pelo menos, importante, no desenvolvimento da arte dos sons.


268. Na Igreja, onde a arte dos sopranos, dos chamados tiples*, ainda era executada por meninos, vigorava, como regra, a velha palavra do apóstolo: mulieres vestris inconventibus sileant**; e isto tanto mais quanto ainda existia o prejuízo procedente de ideias medievais, de que vozes femininas soam profanamente e suscitam na alma do ouvinte, em vez dos sentimentos de pura adoração, o prazer do mundo, o gozo material dos sentidos.


* Nota do Editor: Na Península Ibérica, o termo tiple designava, desde o século XVI, a voz mais aguda de uma peça vocal polifônica; posteriormente, passou a designar também os cantores castrati.


** Tradução livre: “Inconvenientes, as mulheres devem ficar em silêncio”. Cf. 1 Cor. 14: 34-35 “As mulheres estejam caladas nas igrejas; porque lhes não é permitido falar (…) porque é indecente que as mulheres falem nas igrejas”.


269. No século XVIII, porém, a coisa torna-se outra; pode-se mesmo dizer que as cantoras italianas de então ajudaram muito a conquistar para o seu país o primado musical.


270. Do ímpeto que se apoderara de todos os espíritos, a música também se ressentiu. A inquietação era geral: havia uma ânsia, uma sede de novidade que se fazia valer por toda a parte e que dava ao século XVIII o caráter de continuador do século XVI. Qual era naquele tempo o modo de ver e de sentir em geral, depreende-se perfeitamente de uma carta de Winckelmann a seu amigo Stosch [Heinrich Wilhelm Muzell-Stosch, 1723-1782], datada de fevereiro de 1768, na qual se lê o singular vaticínio de que talvez dentro de cinquenta anos não houvesse mais em Roma nem um papa, nem um padre.


271. Pertence à história política propriamente dita demonstrar como esses germes da vida foram oprimidos e sufocados. Pelo que diz respeito a Nápoles, este triste dever foi sabiamente cumprido por Pietro Colleta, em sua Storia del reame di Napoli.


272. Mas fica sempre um problema, de solução dificílima, e que é pena não ter sido apreciado por Settembrini, o terrível inimigo dos jesuítas, o saber como foi que, tendo sido extinta em 1773, logo depois da profecia de Winckelmann, a Companhia de Loyola, a quem se atribuía uma força retardatária e paralisadora de todo o progresso, essa medida deu apenas resultado negativo, de modo que, por ocasião do restabelecimento da Ordem (1815), a Itália jazia exangue e cadavérica, não só pelo lado político, o que aliás achava seu fundamento nas guerras napoleônicas, mas também pelo lado literário, o que não tinha, como ainda hoje não tem explicação razoável.


273. O que há de superior a qualquer dúvida é que na entrada do novo século, quando deu-se a morte de Alfieri (1803), a poesia italiana contava bem raros representantes, que não fossem outros tantos casos cenogenéticos do seu glorioso passado. 


274. Apenas Ugo Foscolo (1779-1828), com as suas Ultime lettere di Jacopo Ortis, livro publicado em 1802 no mesmo ano que René, e que é também uma glosa do mote wertheriano, parecia destinado a conservar um resto da antiga grandeza.


275. E não só o Ortis, também o Discurso a Bonaparte contribuiu bastante para engrandecer o renome literário de Foscolo. O Discurso aparecera pouco antes daquele, e fora ditado pelo entusiasmo da república itálica, que Napoleão prometia constituir. Mas logo em seguida Foscolo perdeu as esperanças e a primeira expressão das suas desilusões foi justamente o Ortis.


276. Este livro teve a honra de ser traduzido em alemão (1807) pelo professor Luden, da Universidade de Jena; e mereceu até que um homem como Niebuhr dissesse dele (1808): “Das sage ich getrost, dass ein Buch nicht unbedeutend ist, bei dem ich wie ein Kind geschluchzt habe*.


* Tradução livre: “Com certeza, digo eu: um livro que me fez chorar como criança não pode ser insignificante”.


277. Depois das Ultime lettere veio o carme Dos sepulcros (1807), por meio do qual Ugo Foscolo ergueu ao seu venerado amigo Parini um monumento mais indelével do que teria sido um outro de pedra ou de bronze, que aliás as autoridades proibiram se levantasse por ocasião da morte deste poeta. [25]


Nota 25: Por que razão em 1879 os italianos não fizeram a festa secular do nascimento de Foscolo, e até muitos jornais julgaram o dia 26 de janeiro daquele ano apenas digno de uma rápida menção?


É que Foscolo foi um republicano, e a república na Itália não vai muito além dos Passannantes e companhia, objeto das indagações psiquiátricas dos estudos craniométricos de um Lombroso. Com o seu alto senso prático, os italianos compreendem todo o alcance da grande palavra de Alfieri: “Sol osi i Re disfare un popol fatto” [“Somente os reis ousam desfazer um fato popular”. Cf. ALFIERI, Vittorio (1806). Satire, Satira Prima, p. 14; disponível em: https://archive.org/details/satire01alfigoog/page/n19/mode/1up]. E é de crer que Massimo d’Azeglio continue a ter razão: os italianos ainda não estão feitos, como não está povo nenhum da atualidade, para desfazer o seu rei.


278. Naquele tempo a Itália parecia exausta; mas não se exaure facilmente a alma de um povo magnânimo e forte. Entretanto, depois que os italianos adquiriram a liberdade e a unidade, objeto dos seus mais belos sonhos e dos seus mais heroicos sacrifícios, só a eles cabe mostrar, como já o têm mostrado, que possuem força de vida bastante, para de novo se tornarem um grande povo culto.


279. Já o têm mostrado decerto, e continuam a mostrá-lo. A ciência italiana é hoje uma viva realidade, uma digna companheira da ciência alemã. Companheira, e não rival, note-se bem, como sucede em grande parte com a ciência francesa, cujo maior empenho de honra é por-se em antagonismo com tudo que se pensa e escreve na Alemanha.


280. A Itália é animada de outro espírito.


281. E quando vemos que ali um sábio, como Angelo De Gubernatis, não tem medo de dizer, em muito bom alemão: “Ist Italien meine Mutter, so ist Deutschland meine beste Amme” [“Se a Itália é minha mãe, a Alemanha é a minha melhor ama de leite”], é mais uma razão de regozijarmo-nos com os que por cá também padecem de germanomania. [26]


Nota 26: Nesta aliança intelectual dos dois países, é a Alemanha mesma quem nos ensina a venerar a Itália, como esta nos ensina a adorar a Alemanha. Eu, por exemplo, não hesito em declará-lo: se posso hoje hoje formar uma justa ideia do valor científico e literário dos italianos, aprendi com os alemães; e isto não é de ontem, mas de data já um pouco atrasada. É natural portanto que sinta uma certa estranheza, ao ver a sem cerimônia com que se pretende agora abrir uma corrente de italianismo entre nós, como uma espécie de pendant equilibrante do germanismo…


Em um trabalho publicado na nova revista intitulada Arquivo Brasileiro, o meu colega, o Dr. João Vieira, em quem eu sempre tinha reconhecido um espírito modesto e resignado, num acesso de vaidade injustificável, reclama para si a honra de estar “continuando a italianizar o estudo do direito no norte do Brasil, como outros estão germanizando este mesmo estudo”.


É uma tese esta realmente provocadora. O autor diz em próprios termos: “Parecerá mesmo assombroso que continue a italianizar, etc., etc.” Não contesto o assombro, por outro qualquer motivo, menos pelo fato da continuação, pois em geral não se sabia, eu mesmo ignorava, que o colega já tivesse começado


Além disto, as suas palavras dão claramente a entender que para o meu ilustre colega esses outros, que estão germanizando, não italianizam, não querem ou não podem italianizar — sem o que não teria senso o assombro de que fala. Mas valha-nos Deus; tudo isso é horrivelmente falso. Os germanizados, se é que já existem em número plural, são outros tantos italianizadores.


Foi a propósito de Vidari [Ercole Vidari (1836-1916); verbete disponível em: https://www.treccani.it/enciclopedia/ercole-vidari_%28Dizionario-Biografico%29/] que o Dr. João Vieira apresentou-se com a singular pretensão de italianizador. Mas o colega reflita e diga-me: quem foi que primeiro desenvolveu na Faculdade teorias de Vidari? Fui eu em 1884; não me atribuía por isso glória alguma, porém esta é a verdade. Até então o colega não o conhecia. Quem primeiro falou em Lombroso, quem primeiro falou em Guido Padelletti e outros autores italianos? Fui eu (Menores e loucos e Estudos alemães). Entretanto, nunca me dei por italianizador do nosso estudo jurídico.


O que sei de mais notável a tal respeito é que, em novembro de 1883, um moço do 4º ano pediu-me para desenvolver alguns pontos do programa de direito civil, entre estes o que tratava das coisas e suas espécies. Eu, que conheço o mundo em que vivo, satisfiz o pedido, mas nada tirando de mim; recorri ao Serafini [Filippo Serafini (1831-1897); verbete: https://www.treccani.it/enciclopedia/filippo-serafini]tradutor italiano das obras de Arndts e jurista notabilíssimo, donde extraí a matéria dos pontos, principalmente o de coisas, que copiei de uma instrutiva nota de Serafini. Foi este que coube por sorte ao inteligente moço, que por sua vez repetiu o que eu havia escrito. Que aconteceu? A prova do rapaz foi qualificada de — pouco sofrível! Eis aí o italianismo em ação.


282. A ressurreição política da Itália parece ter trazido até um certo ponto, como consequência imediata, a sua ressurreição literária. Até um certo ponto, digo eu, porque de algum modo a literatura também concorreu para aquela ressurreição e como tal foi um antecedente, não um consequente.


283. Mas essa que precedeu e prestou o seu serviço à causa da renovação política seria hoje bem pouco digna de menção, se não fosse a necessidade histórica de prender o grandioso ao pequenino, de tomar muitas vezes o arbusto por medida do tamanho da árvore.


284. Não devo passar em silêncio que ao lado de Ugo Foscolo figuraram também naquela época Vincenzo Monti (1754-1828) e Ippolito Pindemonte (1753-1828), ambos mais velhos que o poeta dos Sepulcros, e falecidos ambos no mesmo ano que ele.


285. Mas nem um nem outro tem direito a igual consideração da parte do historiador literário. Pindemonte, de quem diz o próprio Settembrini que “non fu uno dei grandi ingegni nostri”, foi um poeta elegíaco de segunda ordem.


286. Monti porém foi mais fecundo e variado, mas nem por isso digno de considerar-se um gênio superior.


287. Em sua longa vida, Monti serviu a muitos senhores. Espírito hábil e sem convicções, ele passou-se de Pio VI para a Revolução, desta para Bonaparte, e ainda deste para a Restauração. Mas infelizmente o que há aí de censurável, não é a inconstância, a mobilidade em si mesma, porém o fato de que em toda essa série de melodias diversas, com as quais ele acompanha o drama de seu tempo, só raras vezes se ouve a voz do coração, que repara e indeniza os erros da inteligência. As produções de Monti ressentem-se de uma certa falta de calor moral, e destarte, como diz Paulo Heyse*, a sua poesia é a sua própria condenação.


* Nota do Editor: A propósito do germanismo de Tobias Barreto, por ele mesmo ressaltado acima, na nota 25, vale lembrar que esse ‘Paulo’ Heyse [Paul Johann Ludwig von Heyse, 1830-1914], então revelado aos letrados brasileiros, e hoje talvez esquecido no mundo literário de língua portuguesa, foi o primeiro escritor de língua alemã a ser distinguido pelo Nobel de Literatura, em 1910.


288. Se no estrito domínio poético a Itália se achava em tais condições, o mesmo não sucedia no domínio científico. Em 1º de janeiro de 1801 Giuseppe Piazzi, do observatório de Palermo, descobriu o planetoide Ceres, que foi o precursor de todos os que posteriormente, sobretudo depois de 1845, foram observados pelos astrônomos, dentre os quais só De Gasparis chegou a descobrir nove.


289. Nesse mesmo ano Alessandro Volta apresentava à Europa a sua pilha, que transformou a física e a química. Já em 1798 Giovanni Galvani tinha achado a eletricidade, que ele acreditava ser somente animal.


290. A par destes, ainda alguns alguns outros sábios de nomeada europeia. A feição da época apresentava-se quase toda científica. Era o tempo de Berzelius, Werner, Lavoisier, Berthollet, Bichat, etc.


291. Mas também, pelo lado filosófico, a esterilidade não podia ser mais completa. Vale a pena, a tal respeito, ouvir o velho Settembrini. Diz ele:


Uma filosofia nascida na Inglaterra, por meio de Locke, e nascida grave e viril, foi acolhida em França, onde tornou-se fácil, gárrula, feminina, presunçosa explicadora dos mais árduos problemas, e com as ideias revolucionárias e as armas francesas penetrou também na Itália.


Questa volgarità, chiamata filosofia, foi propagada por Francesco Soave, que escreveu gramáticas, retóricas, novelas, instituições filosóficas e uma inteira enciclopédia, infestando com seus livros todas as escolas do país…


292. Deste fundo sombrio destaca-se entretanto uma única figura respeitável: é Pasquale Galluppi, calabrês de Tropea [1770-1846], que foi o primeiro a fazer sentir na Itália a necessidade de uma filosofia mais ampla e mais nobre, para se opor às escassas investigações de Condillac, como foi também o primeiro em combater o sensualismo francês com argumentos bebidos em Locke, mostrando assim que os franceses o haviam mutilado.


293. Da mesma forma cabe-lhe a primazia em tornar conhecidos dos italianos o nome e o sistema de Kant, a cujo estudo dedicou-se seriamente. “É este o verdadeiro mérito de Galluppi”, dizia Settembrini; “destruiu entre nós o sensualismo; porém edificou? Nada conseguiu, nem podia edificar coisa alguma!”*


* Cf. Luigi Settembrini, Lezione di letteratura italiana, vol. 3, p. 405; disponível em: https://books.google.bj/books?id=DJwKAAAAQAAJ&printsec=frontcover&hl=fr&source=gbs_vpt_reviews#v=onepage&q&f=false.


Nota do Editor: Do ponto de vista do combate ao sensualismo francês, vale assinalar que assim como Galluppi, para Settembrini, também Gonçalves de Magalhães, para Tobias Barreto, nada de novo teria edificado com seus Fatos do espírito humano, muito embora se possa considerar esta obra como sendo o marco zero da história da filosofia no Brasil. Cf. de Tobias Barreto a crítica dos Fatos do espírito humano, disponível em: http://textosdefilosofiabrasileira.blogspot.com/2013/02/fatos-do-espirito-humano.html.


294. Estas palavras de Settembrini, para quem não havia uma filosofia italiana, nem se podia falar de uma tal, estão de acordo com o que escreveu em 1874 um colaborador do Magazin für die Literatur des Auslandes. Diz ele:


O povo italiano nunca chegou, na esfera filosófica, a uma posição dianteira, posto que, no correr dos séculos, não lhe tenha faltado profundos pensadores. Espíritos abridores de caminho, como Spinoza, Descartes, Leibniz, etc., etc., procuram-se em vão sob o céu azul da Itália, como em geral o indagar e o sondar dos princípios diretores do mundo parece mais ser um privilégio do frio norte… [27]*


Nota 27: Magazin, etc., 85, p. 174. [Texto do periódico alemão disponível em: https://archive.org/details/dasmagazinfurdie8586unse/page/174/mode/1up]


* Nota do Editor: Cabe observar aqui a repercussão dessa opinião, desencadeada em língua alemã, sobre um suposto determinismo natural quanto ao caráter refratário à cultura filosófica determinado por condições climáticas, como seria, por exemplo, o caso extremo dos povos estabelecidos em regiões tropicais. Neste sentido, ver o texto de João Ribeiro, A Filosofia no Brasil, de 1917, disponível em: https://textosdefilosofiabrasileira.blogspot.com/2014/10/a-filosofia-no-brasil-1917.html.


295. Mas seja como for, o certo é que naquele tempo a Itália não estava isolada na sua esterilidade filosófica. Ao passo que a filosofia de Kant fazia na Alemanha a revolução, de que já nos ocupamos, a filosofia francesa apresentava então, como seus melhores produtos, As relações do físico e do moral [Rapports du physique et du moral de l’homme, 1802], de Cabanis, a que se associaram os trabalhos de Destutt de Tracy, Degérando [Joseph-Marie de Gérando, 1772-1842], Laromiguière e outros, que vão fechar uma espécie de ciclo de evolução materialística no livro de Broussais, Da irritação e da loucura [De l'irritation et de la folie: ouvrage dans lequel les rapports du physique et du moral sont établis sur les bases de la médecine physiologique], publicado em 1828.


296. Particularmente os Elementos de ideologia (1801-1815), de Tracy, formam a signatura temporis, no que diz respeito à França. Mas já começam por essa mesma época a aparecer também os primeiros sintomas de reação espiritualista, provocada por Maine de Biran e Royer-Collard (1811), e logo depois (1815) por V. Cousin*, como professor de Filosofia no Liceu Bourbon [Lycée Louis-le-Grand, na Primeira Restauração].


* Nota do Editor: ver nota do §64 acima.



VII



297. Breve, mas esplêndido e cheio de vida, foi na Alemanha o período do idealismo artístico inaugurado pelos dois grandes poetas, que não obstante possuírem uma índole oposta, se coligaram em frutuosa amizade, dirigindo o espírito à procura do belo e do verdadeiro, e arrastando os mais irresolutos à adoração de suas obras.


298. Acabada a ilógica distinção entre o fim supremo das letras e o das ciências, estas últimas abriram um espiráculo à aura vivificante da poesia. Para nobilitar o pensamento, rejuvenescer o afeto, estender o reino da natureza, o mundo real tinha sido posto em relação com as mais sublimes ideias.


299. A filosofia mesma, apertada até então de formas muito rígidas, tentou com Lessing, Herder, e Kant, fazer-se mais acessível à inteligência e à fantasia, abrindo novas perspectivas no campo da história e da natureza, e irradiando de luz poética as planícies esquálidas do empirismo.


300. Entretanto a morte de Schiller (1805) e a infausta batalha de Jena (1807) no mesmo ano em que completou Goethe a primeira parte do Fausto, iniciada em 1790, puseram fim ao período clássico da literatura germânica, para dar lugar a outro de experimentos, de incertezas, de exagerações.


301. E assim devia acontecer como legítima consequência da falta de vitalidade indígena que se notava na arte alemã. O elemento grego, de que ela se nutria, mal se adaptava ao frio céu setentrional, às condições, aos usos e costumes dos pronepotes de Armínio.


302. Aos conceitos e sentimentos dos poetas clássicos das outras nações serviu sempre de guia a consciência do povo espiritualizada. Os poetas alemães, pelo contrário, forjaram de si mesmos uma consciência estética, andando à cata de ideias no meio dos gregos e dos índios, dos pagãos e dos católicos, nos mitos dos bárbaros, nos tratados de física e de química, por toda parte enfim, exceto na própria nação.


303. Faltando-lhe a base do terreno nativo, a arte perdeu, como Anteu, a sua força; e, por querer ser tudo, sacrificou-se a si mesma.


304. A escola romântica ainda tornou mais sensível esta viciosa tendência, posto que tivesse tido a pretensão de corrigi-la.


305. A literatura clássica tinha sobretudo o colorido de uma poesia douta, e só deveu a sua popularidade à força poderosa dos gênios que a criaram. A romântica procurou, em oposição a ele, um conteúdo popular, mas pisou em falso, julgando encontrá-lo nas criações da poesia da Idade Média ou animada do espírito medieval, pois essa popularidade mesma era uma popularidade sábia, e o caráter germanístico de tal sabedoria não podia podia poupar à consciência do povo as mediações científicas. [28]


Nota 28: A par dos seus estudos germanísticos, os românticos também se dedicaram com entusiasmo ao cultivo das literaturas neolatinas. Foram eles os primeiros a traduzir e apreciar devidamente os grandes poetas clássicos da Itália, da Espanha, e bem assim Camões, que era até então desconhecido na Alemanha.


306. Já vimos quais eram as teses capitais do programa romântico, programa que por efeito mesmo da sua vastidão, sem falar do que encerrava de antinômico e inconciliável, nunca poderia ser realizado.


307. A [escola] romântica teve três fases: a poesia da metafísica; a poesia da ética; a poesia da poesia. A filosofia da natureza de Schelling pertence à primeira fase; a segunda é caracterizada pela Lucinda de Schlegel; a terceira finalmente é constituída pela teorização do romantismo no Athenäum.


308. Aos dois Schlegel, a Tieck e Novalis, porta-bandeiras da escola, seguiram a passos mais ou menos regulares o barão prussiano [Friedrich Heinrich Karl] de la Motte Fouqué, filho de um célebre general de Frederico II, que, com romances e poemas inspirados pelos fatos cavalheirescos da Idade Média, tentou reanimar o sentimento nacional; Ludwig Achim von Arnim que, dotado de rica fantasia e de agudo talento de observação, escreveu dramas e romances, nos quais prepondera o misticismo; Clemens Brentano, que na poesia lírica e dramática levou o arbítrio romântico aos seus extremos limites; e o barão Joseph von Eichendorff, o qual, ainda que mais temperado, nas suas canções e novelas se deixou conduzir algumas vezes à vaporosidade e à inchação.


309. A maior hipérbole da tendência romântica neste período manifestou-se nos caprichosos contos fantásticos em prosa de Ernesto Teodoro Hoffmann. Outra face não menos singular se revela nas chamadas tragédias do destino (Schicksalstragödien), que tiraram talvez o seu primeiro motivo d’A Noiva de Messina, de Schiller.


310. O mais extravagante destes comediógrafos, tanto na vida social como na literária, foi Zacarias Werner, que com o seu Vinte e Quatro de Fevereiro pôs o selo nos maníacos despropósitos do romantismo, nas supersticiosas teorias da predestinação. Pertencem ao mesmo grupo Adolf Müllner, Franz Grillparzer e Ernst von Houwald; destinando-se um lugar à parte para Heinrich von Kleist com o seu Prinz Friedrich von Homburg.


311. Tudo isto se dava nos primeiros decênios do nosso século. Uma consideração especial merecem entretanto os líricos alemães, que militaram por esse tempo nas guerras da independência.


312. Derribado para sempre o velho império germânico, e abatido com a Prússia, pela mão de Bonaparte, o último sustentáculo das esperanças nacionais, toda a Alemanha corria perigo de ficar sujeita ao arbítrio do vencedor. A alguns jovens poetas de generosa têmpera pareceu aquele o momento de reerguer o sentimento nacional adormecido contra o terrível corso.


313. A energia da liberdade do espírito, que formava até então a essência do Estado Prussiano, encontrou precisamente no período de compressão, quando eram mais necessários, ministros que renovaram a legislação agrária e municipal, emancipando do privilégio e dos pretendidos direitos feudais a burguesia e os camponeses, e reorganizaram a milícia, introduzindo o elemento vivificante do povo; filósofos que empregavam a alavanca poderosa da inteligência para repor a nação no caminho do progresso; poetas e guerreiros ao mesmo tempo, como Teodoro Körner, [Ernst Moritz] Arndt, [Friedrich August von] Stägemann, [Gottlob Ferdinand Maximilian Gottfried von] Schenkendorf, [Friedrich] Rückert.


314. Körner morreu com vinte e dois anos (1813), combatendo pela independência da sua pátria. Escreveu alguns dramas, imitando Schiller, e não foi infeliz nessa imitação. Mas o que o recomenda à memória dos pósteros são as suas canções de guerra, que respiram todo o ardor do sacrifício à liberdade nacional. Elas foram publicadas em 1814, sob o título de Leier und Schwert, e logo depois postas em música por Weber. [29]


Nota 29: Como se vê das suas cartas, Teodoro Körner, antes de precipitar-se na luta pela liberdade da pátria, cantou em coro a Alexanderfest [Das Alexanderfest oder Die Macht der Musik], de Händel, obra penetrada de grande heroísmo, e ele mesmo não tem palavras bastantes para significar quanto esta música o comovia e extasiava. É um traço característico do seu elevado espírito.


315. Moritz Arndt (Vater Arndt), na lírica e na prosa patriótica, revela uma natureza dos tempos de Armínio, cruel e implacável com os invasores estrangeiros. Um ódio excessivo aos franceses foi uma paixão predominante em sua longa vida. Ele morreu nonagenário em 1860.


316. Os versos patrióticos de Schenkendorf são mais brandos e adornados; os de Stägemann, vestidos à grega; encouraçados (geharnischte), como o autor mesmo os qualificou, os sonetos de Rückert.


317. Para predispor os ânimos a realizar o grande feito de 1813, também contribuiu não pouco a elegante sociedade de Berlim, que tornou-se de repente o assento e o veículo principal das novas doutrinas.


318. Um elemento homogêneo para a divulgação dos seus princípios e o progresso das suas tendências acharam os românticos nas mulheres das classes elevadas, sobretudo nas ricas e cultíssimas judias, Henriqueta Herz [Henriette Julie Herz], Doroteia Mendelssohn [Dorothea Veit, depois Dorothea Schlegel], Teresa Heyne [Therese Forster, finalmente Therese Huber], Mariana Meyer [Marianne Meyer], e outras em cujos círculos se tratavam os assuntos mais graves da ciência, da arte, da política.


319. A rainha destes cenáculos espirituais era Rahel Levin [Rahel Antonie Friederike Levin, depois Rahel Antonie Friederike Varnhagen]*, mulher de Varnhagen von Ense [Karl August Varnhagen von Ense], da qual ocupar-me-ei mais a propósito, quando tratar das suas ideias e doutrinas, que seu marido publicou pela primeira vez em 1834.


* A propósito do interesse de Tobias Barreto, ainda no século XIX, no movimento de emancipação emocional e mental da mulher no âmbito do romantismo, vale observar que somente a partir da obra Rahel Varnhagen, the life of a jewish woman, de Hanna Arendt, 1957 (ed. bras., Rahel Varnhagen, a vida de uma judia alemã na época do Romantismo, Relume Dumará, 1994), a vida dessa letrada passou a despertar a atenção de muitos.


320. Foi também por aquele tempo que começou uma certa reação contra o idealismo vaporoso dos anos anteriores. A poesia deixou de satisfazer-se com o ideal grego. Ela perscrutou todas as épocas e todos os povos, para assim, de posse da totalidade dos tipos, aproximar-se cada vez mais da verdadeira imagem do homem, até que enfim não achou outro corretivo para a confusão de ideias contraditórias, senão a mesma realidade, deste modo, por um longo desvio, teve de voltar à vida propriamente alemã.


321. A filosofia, cansada dos seus pressupostos subjetivos, chegou finalmente naquela escola, que mais se deixara penetrar do espírito helênico, ao surpreendente resultado de que o real é o racional, com o que, sem refletir bastante, ela abdicou a sua supremacia e entregou-a de bom grado às ciências históricas.


322. Até a filologia apropriou-se do método destas últimas, e a pesquisa sobre a vida jurídica e política dos povos atirou para a retaguarda a ocupação com os poetas, artistas e filósofos.


323. Ainda antes da conclusão da paz de 1815 começara Savigny e Eichhorn a publicação do Zeitschrift für geschichtliche Rechtswissenschaft, aquele com trinta e seis, e este com trinta e quatro anos. Foi o primeiro passo para a fundação da chamada escola histórica do direito. Os juristas de Göttingen, Pütter [Johann Stephan Pütter], Hugo [Gustav von Hugo], tinham preparado o caminho de Savigny; e porventura ainda mais importante foi a influência de Justus Möser.


324. A escola histórica é em sua essência uma escola crítica. O esforço de seus chefes se dirigia contra o domínio da abstração e da frase. Como as mais perniciosas ideias do tempo ela designa a liberdade e a igualdade, o contrato social e a soberania do povo, bem como a aplicação de tais ideias nas constituições representativas e nas codificações.


325. Julian Schmidt [Heinrich Julian Schmidt, 1818-1886] é de parecer que essa escola exagerou-se um pouco na sua crítica. É indiferente, diz ele, que a liberdade, a igualdade e outros direitos sejam ou não qualificados de inatos; em todo caso são necessidades inatas do homem…


326. Mas eu creio que o ilustre historiador literário não andou bem avisado. O inatismo das necessidades é tão obscuro e contestável como o inatismo dos direitos. Se a história nos demonstra que só tarde e muito tarde é que o homem reclama a liberdade, ou um maior espaço para o seu desenvolvimento, é que também só tarde e muito tarde começa ele a sentir a necessidade de ser livre. O direito por si só já é uma necessidade; é a necessidade pensada, como esta por sua vez é o direito sentido. Bem entendido: não toda e qualquer necessidade, mas aquelas que são infundidas e provocadas pelas relações da vida social.


327. É verdade que, do ponto de vista ontogenético ou da evolução individual, há certos direitos que podem chamar-se inatos. Assim, por exemplo, os que hoje gozamos da liberdade de exprimir os nossos pensamentos mal compreendemos que houve um tempo em que isto não se dava. É pois um direito que subjetivamente nasceu conosco, e objetivamente já existia antes de nós um direito inato por conseguinte, mas somente com relação a indivíduos de uma época determinada.


328. Não assim porém do ponto de vista filogenético ou da evolução humana em geral. Aí então não há direito que não seja o resultado de uma conquista; um fato produzido pelo homem, e não nascido com ele, ou anterior a ele. Mais de uma garantia, de que atualmente nos lisonjeamos como um fruto do nosso pomar, como uma graça do céu, ou um presente do destino, custou aos nossos antepassados muita luta e muito sacrifício.


329. Sucede com o homem pensante, no domínio de certas ideias, alguma coisa de análogo ao que se dá, por exemplo, com o pianista. Assim como este, depois de longos e fatigantes exercícios, depois de atravessar todas as fases do tirocínio, empregando sempre os olhos para ver onde põe os dedos, vai pouco a pouco se desenvolvendo e progredindo, até que enfim chega ao ponto de poder executar, em plena escuridão da noite, as mais difíceis peças, com o mesmo grau de perfeição e segurança com que as executa na claridade diurna, e então bem pode parecer-lhe que nunca precisou da vista para tocar o seu instrumento, assim também procede o espírito humano em suas pretensões racionalistas.


330. Depois de muito lidar e trabalhar na vagarosa aquisição e acumulação de ideias, por meio da observação e da experiência, também chega finalmente ao estado de poder dispensar estes dois olhos do pensamento e acreditar, por sua vez, que nunca deles careceu. Eis a origem do pretendido inatismo de grande número de conceitos, que aliás derivam da fonte comum a todos os conhecimentos.


331. O engano da escola histórica consiste em ter pressuposto um desenvolvimento plácido e pausado dos institutos jurídicos. Neste ponto sou cuvierista, abraço de convicção a teoria das catástrofes. Porquanto sem elas, quero dizer, sem abalos e comoções de qualquer ordem, não se dá, não se pode dar a produção do direito.


332. Não obstante, resta indisputável o mérito de Savigny, Eichhorn e os demais que se lhe associaram, o grande mérito de haverem procurado arredar das ciências jurídicas os maus efeitos do sonambulismo filosófico.


333. Era no tempo em que a filosofia de Kant já tinha sido mais ou menos desfigurada pelos seus discípulos; a Fenomenologia e a Lógica de Hegel (1807-1816) como que haviam pronunciado para o século a preponderância metafísica, e os primeiros trabalhos de Herbart e Krause (1808-1811) não inspiravam muita confiança no futuro da filosofia alemã. Não era pois em vão que a escola histórica se insurgia contra a mania especulativa então dominante.


334. Há somente a lastimar que a salutar tendência positiva dessa escola fosse posteriormente neutralizada por novas invasões de fantasia filosofante; para o que concorreram alguma coisa as doutrinas dos dois últimos mencionados, não falando de Schopenhauer, cujas primeiras obras, Ueber die vierfache Wurzel [Ueber die vierfache Wurzel des Satzes vom zureichenden Grunde. Eine philosophische Abhandlung, 1813]* e Die Welt als Wille und Vorstellung [O mundo como vontade e representação, 1819], posto que proclamadoras do maior pensador alemão depois de Kant, todavia ficaram longo tempo represadas pela corrente oposta de hegelianismo, e só bem tarde, de 1850 em diante, foi que começaram, como os demais produtos do mesmo autor, a merecer a atenção do público.


* Nota do Editor: edição brasileira recomendável: Schopenhauer, A. Sobre a quadrúplice raiz do princípio de razão suficiente. Uma dissertação filosófica. Edição bilíngue. Tradução e Prefácio: Oswaldo Giacoia Junior, Gabriel Valladão Silva. Campinas, SP: Editora da Unicamp, 2019 (https://editoraunicamp.com.br/DynamicItems/Catalog/fcfd0636-1312-4541-8232-cc35bd095e7f20pp_Sobre_a_quadruplice_raiz_W65.pdf).


335. Herbart e Krause, que por algumas de suas obras figuram no período sucedente ao de que nos ocupamos, foram dois espíritos aparentemente profundos, que tiveram a ventura de conseguir também no seu país uma pequena influência e um pequeno número de discípulos.


336. Herbart me parece o mais notável. A sua Filosofia prática [Allgemeine Praktische Philosophie, 1808] baseada na ideia platonizante de subordinar a ética à estética e fazer do juízo moral uma questão de gosto, ainda hoje é digna de ler-se. Mas em rigor, é só pelo lado da forma que ele assinala.


337. As legenda religiosas referem de certos santos, que muitos anos depois de mortos, ao abrirem-se-lhes as sepulturas, encontrou-se todo o corpo reduzido a poeira, exceto, de uns, a mão que sempre estenderam para fazer bem ao próximo; de outros, a língua com que pregaram a palavra divina; de outros, o coração, com que tanto amaram a humanidade… etc.


338. A história literária apresenta um fenômeno semelhante. Assim, ao desenterrarem da jazida do esquecimento os restos mortais do filósofo Herbart, acham-se todos pulverizados, reduzidos a nada, exceto porém a língua, que anda está fresca e vívida, a língua magistral, que ele sabia escrever, o estilo gracioso, que ele sabia manejar.


339. O mesmo não se pode afirmar de Krause, que era no fundo um mistagogo e um bárbaro na forma. Ele pôs a filosofia a serviço da loja maçônica; e em todos os seus sonhos de Rechtsbund, Religionsbund, Volksverein, Familienverein, Wissenshaftsbündnisse, etc., é sempre o grão-mestre que se faz ouvir. Nada resta portanto que se possa aproveitar. [30]


Nota 30: É um fato bem significativo que o Krausismo só tenha feito fortuna na Espanha, onde conta ainda hoje os mais decididos sectários. Segundo a informação de Canalejas (Estudios críticos de filosofía, política y literatura), Krause é para os espanhóis o absoluto representante da filosofia alemã!… A prova disso é que andam constantemente a pôr em relevo as maravilhas do Krausismo, que aliás são hoje conhecidas e apreciadas somente por eles. Entre outros o professor Sanz del Rio julgou prestar um grande serviço aos seus compatriotas, com o seu El ideal de la humanidad para la vida, tradução e comento do Urbild der Menschheit [Das Urbild der Menschheit: Ein Versuch, 1811] de Krause. Não admira por conseguinte que os espanhóis não representem atualmente nenhum papel importante no domínio filosófico.


340. Coetaneamente com o Zeitschrift de Eichhorn e Savigny, apareceu deste último a História do direito romano da Idade Média [Geschichte des Römischen Rechts im Mittelalter, 1815). E logo no ano seguinte Georg Niebuhr descobriu o verdadeiro Gaius. Já cinco anos antes (1811) tinha ele, em sua História romana, destruído as tradições assentadas sobre a autoridade de Tito Lívio a respeito dos sete primeiros reis, e por meio de uma crítica inexorável transformado a obra do historiador romano em uma grande epopeia popular.


341. Apareceram também naquele tempo A antiga Edda (1815) e As tradições alemãs (1816-1818) de Jacob Grimm, que com o seu irmão Guilherme se havia estabelecido na Biblioteca de Kassel.


342. Três anos mais tarde (1819) publicou ele a sua Deutsche Grammatik, obra maravilhosa, que causou espanto no mundo sábio, e por meio da qual o conceito da gramática adquiriu uma significação toda nova.


343. Até então, segundo o método francês, sobrecarregava-se a língua de exigências, que não saíam do seu próprio espírito, mas da necessidade do momento; agora porém reconhecia-se nela uma força misteriosa, incomensurável à razão, que se devia escutar com respeito e não tratar de conduzir pelo cabresto gramatical.


344. A língua não deve ser exposta como uma coisa feita e acabada, porém como uma coisa em constante fieri, e a gramática deve ser historicamente analisada; tal ficou sendo desde Jacob Grimm o problema permanente de todos os filólogos.


345. A ciência alemã, de 1815 em diante, assume um caráter eminentemente histórico. A crítica, que até se havia mantido em atitude mais interpretativa, apresenta-se agora como uma força autônoma, revolucionária e destruidora, lançando por terra velhos prejuízos e tradições mal seguras.


346. A mais significativa aplicação dessa crítica foi feita por Niebuhr à história romana. Depois dele, além de outros, Otfried Müller [Karl Otfried Müller, 1797-1840] aplicou-a também à história helênica em sua Geschichten hellenischer Stämme und Städte (1820-1824).


347. Na mesma direção e com o mesmo espírito escreveram Raumer e Schlosser, aquele a História dos Hohenstaufen [Geschichte der Hohenstaufen und ihrer Zeit], e este a História do século XVIII [Geschichte des achtzehnten Jahrhunderts und des neunzehnten bis zum Sturz des französischen Kaiserreichs], ambas do mesmo ano (1823). O trabalho de Schlosser foi a primeira tentativa notável de pôr os movimentos literários em relação com os movimentos políticos; método este que mais tarde foi seguido em França por Villemain.


348. Igualmente Leopoldo Ranke com a História das populações românicas e germânicas [Geschichten der romanischen und germanischen Völker von 1494 bis 1535, 1824], e pouco depois com os Príncipes e povos do sul da Europa nos séculos XVI e XVII [Fürsten und Völker von Süd-Europa im sechszehnten und siebzehnten Jahrhundert, 1827], alargou magistralmente o campo da crítica histórica. As suas obras posteriores de mais importância já ficam fora do período em que nos achamos.


349. Ranke passa pelo primeiro historiador alemão que elevou a arte do agrupamento e da exposição objetiva a uma altura desconhecida no seu país. Ele nunca refere o que não é essencial; tem o senso de nexo causal da história em grande e em pequena escala. Nunca toca no que é indiferente, mas toca em tudo com igual indiferença. É esta indiferença que aparece como completa objetividade.


350. Mas tal objetividade, no pensar de Gottschall, importa uma lacuna subjetiva, isto é, a falta de íntimas e sinceras convicções, a falta de um certo pathos moral, sem o qual não há Tácito nem Tucídides.


351. Este defeito de Ranke, se realmente é um defeito, veremos mais tarde ser suprido por Teodoro Mommsen que, dotado de uma viva intuição histórica, não menos lúcida e fecunda do que a intuição poética, tem a faculdade de apaixonar-se, antipática ou simpaticamente, por qualquer dos grandes vultos da antiga Roma com o mesmo grau de entusiasmo, com que pudera interessar-se por um contemporâneo.



VIII



352. Para dar às nações uma luminosa demonstração do poder e universalidade do gênio tedesco, surgia neste período o vulto majestoso de Alexandre von Humboldt (1769-1859).


353. Este herói do saber e da investigação não é admirado tão somente pelas longas e difíceis viagens empreendidas e realizadas nas regiões da América e da Ásia, com uma provisão de variadíssimos conhecimentos que lhe permitiu considerar e descrever magistralmente a natureza no seu complexo, nas suas mais grandiosas aparências externas, tanto quanto nas suas recônditas vísceras, podendo até criar novas disciplinas, como a Geografia das Plantas, por meio da qual a Botânica adquiriu uma importância telúrica; mas também admirado pela sua sabedoria política, pela sua singular humanidade, pelo estilo enérgico e ao mesmo tempo vivace, perspícuo e harmonioso, com que ele tratava das matérias mais áridas e trabalhosas.


354. Isto é evidente para quem tenha lido no original o seu livro dos Aspectos da natureza [Ansichten der Natur mit wissenschaftlichen Erläuterungen], dado à luz pela primeira vez em 1808; porém ainda mais característico foi o Kosmos [Kosmos: Entwurf einer physischen Weltbeschreibung, 1845-1862], quadro completo do mundo físico, no qual se acham condensadas todas as verdades descobertas até ao meado do século, no campo das ciências naturais.


355. É uma obra colossal na substância e na forma, que serviu de modelo aos outros naturalistas para tornarem populares, em sentido elevado, os resultados das suas indagações, e que influi seriamente sobre a literatura nacional.


356. A vastidão e abundância dos aspectos e fenômenos naturais, por ele descritos, oferecem à poesia matéria inesgotável. As suas novas descobertas científicas alargaram o círculo da vida universal; a fisiologia conseguiu resolver por meio delas mais de um problema psicológico; o homem e a natureza, em íntimo nexo, foram tirados da antiga nebulosidade e postos em plena luz.


357. A mágica beleza do mundo real, compreendida e exposta por sãs e robustas inteligências, desde então tomou o lugar das inspirações vagas e confusas. A ciência da natureza esclareceu o horizonte do pensamento humano, dissipando as nuvens do misticismo.


358. Destarte o incitamento produzido pelo Kosmos veio a ser útil à poesia mesma, e a propagação na cultura das ciências naturais, esplêndida e solidamente inaugurada por ele, contribuiu bastante para infundir novo vigor em toda a literatura moderna.


359. Mas note-se que as produções de Humboldt não se limitaram às duas obras mencionadas. Desde 1790, ano em que ele primeiro publicou o seu trabalho sobre os basaltos do Reno, até 1859, no qual se deu a sua morte, não passou quase ano nenhum que não se assinalasse por um ou mais escritos seus, ou fossem artigos de jornais ou obras propriamente ditas. Ele mesmo traçou de seu próprio punho, para algum fim não conhecido, a seguinte nota: “43 escritos, em dez anos apenas”.


360. Porém bem poucos são os que conhecem todos os trabalhos de Humboldt. O conhecimento da maioria dos leitores, inclusive os cultos mesmos, há de sempre circunscrever-se aos Aspectos e ao Kosmos.


361. Desta última obra vendeu-se o primeiro volume (1845) em número de 20.000 exemplares, já o terceiro (1852), somente em número de 3.000; uma evidente prova de quão pouco se havia compreendido o grande feito científico do genial investigador.


362. A propósito de tais anomalias do mundo literário, costuma-se citar uma sentença de Terenciano Mauro: Habent sua fata libelli [Tradução do Editor: “Os livros têm seu próprio destino”]. Mas isto é um hemistíquio, é a metade de um verso, que sendo partido, como aí sucede, reduz um belo pensamento a uma chata trivialidade. O verso inteiro é assim: Pro captu lectoris habent sua fata libelli (“A compreensão dos leitores é que determina o destino dos livros”). Perfeitamente aplicável às obras de Humboldt.


363. Em geral ele não foi muito lido. A razão é simples: não se leem livros de tal quilate com a mesma facilidade com que se lê um romance. E todavia esses livros tiveram o mais poderoso efeito. Compreende-se a verdade desta asserção, lançando-se um olhar retrospectivo sobre a literatura imediatamente posterior à volta de Humboldt da América.


364. Porquanto surgiram milhares de livros, nos quais as observações, experiências e ideias do grande naturalista foram oferecidas ao público em formas menos severas ou, por assim dizer, diluídas e temperadas, mas também por isso mesmo mais agradáveis ao paladar comum.


365. “Wenn die Könige bauen, haben die Kärrner zu tun" (“Quando os reis edificam, os carreteiros têm o que fazer”). Até os sábios, em inúmeras obras, se aproveitaram dos pensamentos de Humboldt, e muitas vezes, o que é admirável, sem que se dignassem de indicar a fonte de sua sabedoria.


366. Depois de dezenove anos de residência em Paris (1808-1827), voltou o sábio alemão a Berlim, sua pátria natal. O ímpeto que em geral arrastava os espíritos para os estudos históricos também apoderou-se dele; os preparativos da sua pomposa história das grandes descobertas são oriundos dessa época. Os dois irmãos, Alexandre e Guilherme, viveram desde então em estreita comunhão intelectual. Renovou-se também a antiga aliança com o círculo de Weimar.


367. “Que homem!”, disse Goethe, falando de Alexandre, “eu o conheço há tanto tempo, e todavia ele me faz de novo pasmar! Não lhe descubro um igual na riqueza dos conhecimentos, na ciência viva; onde quer que o procuremos, ele acode ao nosso apelo, e franqueia-nos sem reservas os tesouros do seu espírito”.


368. Não menos significativa que a do grande naturalista foi a atividade de seu irmão Guilherme von Humboldt (1767-1835), cujo nome não só se acha ligado ao movimento científico do princípio deste século, como ainda preso às mais nobres tradições da história prussiana.


369. Com efeito: a saída de Guilherme von Humboldt do ministério em 1819 assinala a vitória da [escola] romântica reacionária sobre o liberalismo clarividente, a cuja força criadora deve a Prússia a sua excelente organização e os benefícios das guerras da independência.


370. Da sua convivência com os clássicos da época genial de Weimar e Jena, nasceu a Correspondência com Schiller, publicada pela primeira vez em 1830, e que é um monumento imperecível. Os seus Ensaios estéticos (1799), que explicam Der Spaziergang de Schiller e Hermann und Dorothea de Goethe, dão testemunho da mais profunda compreensão do que há de legítimo e duradouro nos clássicos alemães.


371. Assim também nas Ideias para uma determinação dos limites da eficácia do Estado [Ideen zu einem Versuch, die Gränzen der Wirksamkeit des Staates zu bestimmen*], trabalho da mocidade que só saiu à luz muito tarde (1851), manifesta-se um liberalismo sólido, uma disposição de espírito adversa a toda e qualquer invasão despótica. [31]


* Wilhelm Von Humboldt, Os limites da acção do estado. Prefácio de Rui Conceição Nunes. Tradução de Fernando Couto. Porto: Rés-editora, 1990; Os Limites da Ação do Estado. Editor: José Mário Pereira, reed. 2014.


Nota 31: Este escrito juvenil de W. Humboldt foi utilizado por Stuart Mill (On liberty) e Eduardo Laboulay (L’État et ses limites) como uma mina de sabedoria política, para remediar os males da atualidade.


372. Os méritos de Humboldt, no que pertence ao estudo científico das línguas, são salientíssimos. Foi ele quem deu o mais forte impulso à linguística comparada, igualmente familiarizado com o índico e helênico, ferindo o tom diretor neste domínio por meio das suas indagações sobre o cântabro e o basco, e particularmente pela sua principal obra: Über die Kawi-sprache auf der Insel Java (1836-1840).


373. Acentuando a diversidade de estrutura da língua humana, bem como a sua influência sobre o desenvolvimento espiritual dos povos, Guilherme von Humboldt não só prestou à filologia uma significação filosófica, mas também fê-la descortinar um imenso horizonte; e neste ponto a sua atividade coincide com a de seu irmão, pois que ambos insuflaram na ciência um vigoroso estímulo, abrindo-lhe as mais belas e imponentes perspectivas.


374. Foi em 1812, no Museu Alemão de Frederico Schlegel, que ele primeiro desenvolveu a ideia de um estudo comparativo das línguas, que na sua opinião não pode ser executado por um só indivíduo, mas deve ser empreendido por todos os sábios, segundo um plano de antemão determinado.


375. Na análise de qualquer língua, pensava ele, duas coisas sobretudo devem ser tomadas em consideração, isto é, a lei imanente, que se manifesta em constantes analogias, e em sucessivo desenvolvimento assimila todos os elementos estranhos; depois então as matérias elementares restantes, que não foram sobrepujadas por este processo de formação, e dão a medida do parentesco com outras línguas:


Deve-se de todo abandonar a ideia de que a língua seja um produto da reflexão e do acordo, ou em geral a obra dos homens, ou mesmo do indivíduo. Como um verdadeiro milagre, sem explicação possível, ela brota da boca de uma nação, e como coisa não menos pasmosa, nasce também do balbuciar da criança.*


* Nota do Editor: As considerações de W. von Humboldt sobre a linguagem humana, de caráter universal em nível científico e filosófico, encontram-se sobretudo em sua obra de 1836: Über die Verschiedenheit des menschlichen Sprachbaues und ihren Einfluss auf die geistige Entwicklung des Menschengeschlechts (tradução livre: Sobre a diversidade na construção da linguagem humana e sua influência no desenvolvimento mental da espécie humana), disponível em: https://archive.org/details/berdieverschied00humbgoog/page/n10/mode/1up. Excertos da mesma obra, em inglês, disponíveis em:

https://www.marxists.org/reference/subject/philosophy/works/ge/vhumboldt-wilhelm.htm.


376. Há muito mais de meio século que estas palavras foram escritas. De então para cá a ciência tem progredido; mas pode-se afirmar que a verdadeira intuição linguística ainda é hoje, pouco mais ou menos, essa mesma, que o ilustre sábio deixou aí consignada. Depois dos seus trabalhos, uma série de investigadores tem feito do agrupamento e classificação das famílias de línguas, sobretudo indogermânicas, o problema capital da sua vida; porém Humboldt fica sempre no centro.


377. O espírito do tempo continua a soprar na mesma direção, infiltrando nova seiva em todos os ramos do saber. A geografia mesma cedeu ao seu influxo. Até então esta ciência tinha sido preponderantemente política e estatística. Mas vieram as grandes descobertas naturalísticas de A. von Humboldt, Forster, Blumenbach, que forneceram ao colecionador animado de uma grande ideia orgânica um tesouro de material empírico; e deste modo pôde-se de novo admitir a teoria de Herder, que representa a terra como um vivo ser individual, e analisa o filho da terra, o homem, como produto do torrão, a que ele pertence.


378. Coube a Ritter em sua vergleichende Erdkunde [Geografia comparada]* a missão de pôr a geografia ao nível das outras ciências. Ele trata de mostrar uma lei necessária na ligação da vida humana com a natureza que está a seu serviço; trata de compreender a terra como razão e base essencial do desenvolvimento das relações entre os povos. Diz ele:


Qualquer lugar tem a sua história, qualquer ato da vontade humana tem a sua geografia. O historiador só compreende perfeitamente um povo quando chega a compreender do mesmo modo as influências da natureza sobre a história desse povo.


* Ritter, C. Die Erdkunde im Verhältniss zur Natur und zur Geschichte des Menschen: oder allgemeine, vergleichende Geographie, als sichere Grundlage des Studiums und Unterrichts in physikalischen und historischen Wissenschaften, 21 vols., publicados a partir de1817; 1º vol. disponível em:

https://books.google.com.cu/books?id=3VQ6AQAAIAAJ&printsec=frontcover&hl=es&source=gbs_ge_summary_r&cad=0#v=onepage&q&f=false.


379. A obra de Ritter acosta-se ao trabalho de um maior do que ele. Na sua Geografia das plantas, A. von Humboldt exprime as mesmas ideias do autor da Geografia comparada.


380. Entre outras coisa, ele diz o seguinte:


Por meio de tais indagações derrama-se luz sobre a origem da agricultura (…) No domínio desta ciência entram de pleno direito considerações a respeito da influência de uma alimentação mais ou menos atrativa sobre a energia do caráter. Deste modo as plantas penetram, por assim dizer, na significação moral e política do homem, e os fenômenos da natureza assumem uma feição verdadeiramente histórica, desde que influem sobre acontecimentos humanos (…) Ao mesmo tempo acha-se aí a solução de muitos problemas morais e estéticos, por exemplo, que efeito tem produzido a distribuição das plantas pela terra e a presença delas na fantasia e no senso artístico dos povos, etc. [32]


Nota 32: Ainda hoje se repetem as palavras de Cousin: “Dai-me a carta de um país, sua configuração, seu clima, suas águas, etc., e eu me comprometo dizer-vos a priori qual será o homem deste país”. Como o leitor acaba de ver, isto é uma ideia de legítima procedência alemã. Há somente a lamentar que de então para cá a Geografia comparada não tenha sido cultivada com o mesmo afinco, pois que hoje talvez estivéssemos no caso de saber, por exemplo, até que ponto o feijão e a feijoada têm influído sobre o caráter nacional brasileiro. Pelo menos, é certo que no Brasil, bem como na China, há muita gente gorda; e o predomínio do sebo, o excessivo desenvolvimento das glândulas sebáceas, não é bom sinal. Quando falo de grande número de obesos é só em comparação ao pequeno número de organizações regulares, e não proporcionalmente aos raquíticos e enfezados, pois estes na realidade constituem a maioria.


381. Sem embargo do predomínio das ciências naturais e históricas, a filosofia continua a edificar no velho terreno. Simultaneamente com a Psicologia de Herbart (1816), apareceu o último volume da Lógica de Hegel, que dominou a cultura alemã durante uma geração inteira, ao passo que aquela outra obra só muito mais tarde começou a ser apreciada.


382. Em 1817 publicou o mesmo Hegel a sua Enciclopédia das ciências filosóficas, na qual a lógica é acompanhada de duas outras disciplinas, a filosofia da natureza e do espírito. No prólogo ele se volve tanto contra o genialismo aventuroso que em suas especulações deixa-se arrebatar até à extravagância, como contra a resignação do criticismo, que concorda em nada poder saber das coisas supremas, e acaba pelas vaidosas pretensões do sentir subjetivo, completamente destituído de ideias.


383. O objeto da filosofia de Hegel era o espírito humano representado como uma individualidade que tira organicamente de si própria a sua lógica e a sua história, com a mesma necessidade íntima com que a planta tira de si a sua germinação e a sua florescência.


384. Para ele o espírito humano era um todo, a sua história uma evolução constante, cujo último produto encerra sempre em si os germes primitivos [33]. Todos os seus escritos apresentam evoluções, ou ele acompanhe a atividade do espírito no domínio do conceito puro (lógica), ou no reino do ideal (religião e arte), ou na esfera da vida prática (moral e direito).


Nota 33: Neste ponto, bem parece que Hegel antecipou a intuição naturalística hodierna, no que diz respeito à herança e adaptação das qualidades espirituais. Também Haeckel e Darwin consideram a humanidade como um todo, e a sua história como uma evolução permanente, cujo último produto encerra sempre em si os germes primordiais e pré-históricos, sem o que não se explicaria a possibilidade do atavismo.


385.Deus é para Hegel o espírito do mundo, eternamente criador e ao mesmo tempo destruidor, que todos os dias se despe de suas velhas formas, para se desenvolver em outras, cada vez mais nobres e mais significativas. Em seu criar incessante, ele não deixa espaço para a benignidade; mas tudo que produz é grande e bom; e só refuta a si mesmo, produzindo ainda maiores e melhores coisas.


386. A entrada de Hegel na Universidade de Berlim, como professor de Filosofia (1818), coincide, por um lado, com o movimento reacionário iniciado pela Prússia, e por outro, com a grande empresa do Barão von Stein [Heinrich Friedrich Karl, Reichsfreiherr vom und zum Stein, 1757-1831], feita no intuito de animar o gosto pela história alemã, facilitar o seu estudo e contribuir assim para a conservação do amor à pátria comum e à memória dos antepassados.


387. O plano desta empresa foi apresentado ao público alemão em maio de 1818, e em janeiro do ano seguinte teve lugar em Berlim a primeira reunião de sábios.


388. Entre os que deviam tomar parte no grande cometimento contavam-se: Büsching [Johann Gustav Gottlieb Büsching, 1783-1829] e Raumer, de Breslau; Dahlmann [Friedrich Christoph Dahlmann, 1785-1860], de Kiel; Docen [Bernhard Joseph Docen, 1782-1828], de Munique; Eichhorn e Heeren [Arnold Hermann Ludwig Heeren, 1760-1842], de Göttingen; Görres [Johann Joseph von Görres, 1776-1848], de Koblenz; os dois Grimm, de Kassel; Hormayr [Joseph Freiherr von Hormayr, 1782-1842] e F. Schlegel, de Viena; Hülsemann [Heinrich Christoph Friedrich Hülsemann, 1771-1835] e A. Schlegel, de Bonn; Niebuhr, que nesse tempo reside em Roma; Pertz [Georg Heinrich Pertz, 1795-1876], de Hannover; Pfister [Johann Christian von Pfister, 1772-1835], de Türkheim; Rudhart [Georg Thomas Ritter von Rudhart, 1792-1860], de Würzburg; Rühs [Friedrich Rühs, 1781-1820] e Savigny, de Berlim; Schlosser, de Heidelberg; J. Voigt [Johannes Voigt, 1786-1863], de Königsberg.


389. Todos estes homens foram logo imbuídos do espírito patriótico e da probidade científica do seu chefe. Ainda decorreram alguns anos, antes de meterem-se mãos à obra; com ela porém começou um novo e fecundo período da ciência alemã.


390. Tudo o que mais tarde, entrando mesmo pelos dias atuais, apareceu de notável no terreno da história, tem a dever à ideia de Stein, quase sem excessão, o primeiro incitamento.


391. Como vemos, eram estas as condições da ciência; quais eram as da poesia? A escola romântica tinha chegado aos seus extremos. Os ramos bélicos, os Tirteus da luta pela liberdade, haviam emudecido. A poesia parecia condenada, ou a abrir novos caminhos, ou a dar-se enfim por exausta e acabada.


392. Foi então que a região meridional da Alemanha, onde nasceram Schiller, Schelling e Hegel, a Suábia, contrapôs ao romantismo ainda vigente na parte setentrional uma falange cerrada de poetas líricos, que acostando-se a Goethe e Schiller e às tradições genuínas da Idade Média tedesca, se distinguiam dos outros cantores da época pela seriedade do sentimento, pelo calor da convicção e perfeição da forma.


393. O chefe desta falange foi Ludwig Uhland (1787-1862), que tornou-se um dos poetas favoritos da sua nação. Ele é o mais puro representante da poesia natural e popular, oposta à poesia doutrinária, às fórmulas e regras das autoridades estéticas. Ainda jovem, lamentou os males da pátria sotoposta ao jugo estrangeiro, e excitou-a também a sacudi-lo virilmente. Obtido este desideratum, volveu o seu canto para os diretores da nação, exortando-os a merecerem de novo a fidelidade e os sacrifícios do povo com a reintegração dos seus direitos.


394. Porém ele se assinalou sobretudo pelas baladas e romances, tirados das legendas e tradições populares da Idade Média, nas quais há muita profundeza e ternura de sentimento. Os seus dramas Ernesto, Duque de Suábia e Luís o Bávaro, ainda que corretos e regulares, carecem todavia de colorido e de frescura, e mostram reminiscências das tragédias de Schiller.


395. Ao lado de Uhland coloca-se Gustavo Schwabe (1792-1850), pároco protestante, autor de uma biografia de Schiller e tradutor de Lamartine [Alphonse de Lamartine, 1790-1869], pelas suas poesias, editadas em 1828, que consistem igualmente em romances, baladas, legendas, imitações épicas, relativas aos tempos medievais, e acabando quase todas por uma sentença moral, destinada a edificar e melhorar os homens.


396. Uma índole branda e amorosa, as muito vaga e fantástica, teve Justino Kerner (1786-1862), médico e apóstolo do espiritismo na Alemanha desde 1828, a cujo respeito divulgou as suas ideias n'A vidente de Prevorst (1829) e na História dos possessos modernos [Geschichten Besessener neuerer Zeit, 1834]. As poesias líricas deste jovial encantador têm um doce atrativo de naturalidade, porém pouca energia. [34]


Nota 34: A mais bela característica de Justino Kerner é a que foi traçada pelo seu grande comprovinciano Davi Strauss (Kleine Schriften). O poeta deixou um filho herdeiro do seu talento, Teobaldo Kerner, cujas poesias (Die Dichtungen, 1879) ocupam lugar distinto na literatura poética alemã dos nossos dias.


397. Do círculo poético da escola da Suábia saíram em várias direções: Gustavo Pfizer, poeta de larga veia, que trata de assuntos antigos no estilo pomposo de Schiller; Eduardo Mörike, que se distingue por uma fina anatomia dos sentimentos, e Guilherme Müller, cantor elevado na poesia política, sutil e agudo na epigramática.


398. Posto que Uhland seja o chefe reconhecido da escola, todavia há dois outros poetas suábios, que se podem considerar seus precursores; os quais decerto, mais ou menos eivados da doença romântica, não correspondem perfeitamente ao caráter distintivo do grupo, mas entretanto conservam a mesma feição geral.


399. Esses poetas são Johann Peter Hebel (1760-1826) e Frederico Hölderlin [Johann Christian Friedrich Hölderlin], nascido em 1770 e morto depois de um estado de loucura de quarenta e um anos (1802-1843).


400. É impossível pintar em poucas palavras as variadas excitações que partiram desta escola, a quem poderia dar-se o nome de naturalística, em face da poesia clássica de Goethe e Schiller, da popular de Bürger, da romântica de Tieck e Novalis, da oriental de Rückert e Schefer, e até da patriótica de Körner e Arndt. [35]


Nota 35: Justino Kerner, em uma de suas muitas e belas produções, fazendo a descrição das qualidades peculiares do seu grupo termina dizendo: “Das ist schwabacher Dichter Schule und ihr Meister heisst Natur” (Eis aí a escola dos poetas da Suábia, e o seu mestre chama-se Natureza).


401. Ela não se contentou de fazer o povo alemão apreciar o seu passado, o mundo maravilhoso das suas tradições e beleza do seu país; começou também a fazê-lo compreender o elemento popular na índole de todas as nações. A ela devem os alemães um imenso alargamento do seu horizonte.


402. Os poetas suábios são em geral verdadeiros harmônicos, fenômeno quase inobservado entre os heróis da [escola] romântica, excetuando somente os homens da ciência, como Savigny, os Grimm e alguns outros. Dos poetas românticos só bem poucos se contam, cuja alma não tenha sido perturbada por alguma coisa de obscuro, licencioso e irrequieto. Os suábios entretanto, principalmente Uhland, souberam evitar este escolho.


403. Também o poeta dos Naturlieder und Bilder olhava para o hiperterreno com a ânsia profunda do homem medieval. Mas havia uma diferença notável; ao passo que Frederico Schlegel, por exemplo, buscava na Idade Média o fantástico atrativo do antigo e do estranho, Uhland amava essa época, porque nela admirava a força indômita de uma vida popular originária, e sobretudo o esplendor da sua pátria.


404. Pela sua inclinação estética, Schlegel afastou-se da vida atual e, posto que tivesse clamado bem alto em favor da poesia popular, acabou finalmente por tomar uma direção católica e antialemã. Uhland, porém, tratou de haurir da dedicada investigação das antiguidades pátrias a coragem e forças precisas para as lutas da atualidade.



IX



405. Olhemos para a França. Os primeiros tentames de reação espiritualista, no domínio filosófico, empreendidos por Maine de Biran, Royer-Collard e Cousin, estava de acordo com as disposições do tempo.


406. A época decorrida de 1796 a 1813, que foi a da maior elevação do poder da França na Europa, a época da florescência de sua glória militar, da qual brotaram todas as loucuras, todas as vaidades e pretensões guerreiras do povo francês, essa época de fogo e sangue tinha sido bastante para exaurir em grande parte a vitalidade da nação.


407. Com a queda do império, porém, desenrugou-se um pouco a feição das coisas, e o espírito nacional pareceu enfim reerguer-se, para tomar uma nova direção, para chamar à ordem o processo da sua história.


408. A palavra restauração, com que se costuma designar o período compreensivo dos anos de 1815 a 1830, é mais característica do que supuseram aqueles mesmos que a criaram. Porquanto esses anos não foram somente consagrados ao restabelecimento do governo legítimo dos Bourbons, mas ainda e sobretudo ao restabelecimento, à restauração das forças do país esgotadas por Napoleão.


409. A literatura continuava a contar com seus maiores representantes: Chateaubriand e Mme. de Staël. É verdade que, ao lado destas duas, muitas outras vozes se faziam ouvir. Os versos de Béranger, por exemplo, ocupam lugar de honra entre os melhores produtos do tempo. Mas o fio condutor estava nas mãos daqueles dois corifeus.


410. E o valente gênio feminino era quem mais havia contribuído para abrir novos caminhos à literatura nacional. O seu livro De l’Allemagne, publicado em 1810, e que é a sua melhor obra de crítica e de filosofia, foi uma espécie de guarda avançada do romantismo francês.


411. Diz J. N. Marque:


As conquistas de Napoleão se esvaeceram todas; delas restam apenas lembranças sanguinolentas; a conquista da Alemanha por Mme. de Staël ainda é e será sempre uma das páginas mais gloriosas da nossa história (…) Sim, foi realmente uma conquista esse livro esplêndido, em que a autora revelou à França ignorante e desdenhosa o gênio, a filosofia, a poesia dos alemães.*


* Nota do Editor: Cf. J. N. Marque. Histoire critique de la littérature française depuis les origines jusqu’a nos jours, 1872, p. 374, disponível em:

https://books.google.com.br/books?id=8iboAAAAMAAJ&printsec=frontcover&hl=pt-BR&source=gbs_ge_summary_r&cad=0#v=onepage&q&f=false.


412. Estas palavras de Marque são tanto mais notáveis, quanto é certo que foram escritas depois da guerra de 1870, depois da derrota e humilhação da França pelas armas tedescas, fato que levou Taine, Renan, Taillandier [René Gaspard Ernest Taillandier ou Saint-René Taillandier, 1817-1879] e outros germanófilos franceses a arrependerem-se do seu antigo entusiasmo e tratarem então de vilipendiar o que outrora haviam adorado.


413. O autor da Histoire critique de la littérature française não caiu em semelhante desatino. É um francês em que o amor da verdade sobrepuja o amor da pátria. O fenômeno é raro, e por isso mesmo ainda mais digno de louvor.


414. Mme. de Staël parecia ter sido predestinada para a sua missão histórica. Segundo Georg Brandes [obra citada, notas 2 e 9 acima], os espíritos reformadores podem dividir-se em duas grandes classes. À primeira pertencem os descobridores ou inovadores, que produzem uma única obra de importância, e entregam-na tranquilamente a si mesma, até que, talvez somente depois de sua morte, seja compreendida e admirada. À segunda pertencem os espíritos dotados da faculdade de eletrizar, aquele cujo talento de falar é muito maior que o talento de escrever, e que não só produzem impressão sobre os outros, como tornam os outros produtivos.


415. A Staël estava neste número. A sua principal força consistia na conversação. E a esta capacidade de eletrizar pela palavra ela juntava outra, não menos característica: a faculdade de dominar. Era uma natureza de soberania. Não foi sem alguma razão que ela tornou-se rival de Bonaparte.


416. Mas esta genial dominadora, depois de manter por anos em Coppet uma espécie de corte literária, reunindo em torno de si os espíritos seletos de todos os países cultos; depois de percorrer diversas cidades da Europa, como Viena, São Petersburgo, Moscou, Estocolmo, voltando enfim a Paris, não sobreviveu muito tempo à queda do seu grande inimigo e perseguidor. Aí mesmo morreu a 14 de julho de 1817.


417. Chateaubriand, por sua vez, emudecera como poeta, para fazer-se ouvir como político. Em sua De la monarchie selon la Charte, ele dá expressão aos seus sentimentos legitimistas, dizendo:


Qu’on ne mette plus les honnêtes gens dans la dépendance des hommes qui les ont opprimés, mais qu’on donne les bons pour guides aux méchans. C’est l’ordre de la morale et de la justice. Confiez donc les premières places de l’Etat aux véritables amis de la monarchie légitime.*


* Nota do Editor: Cf. CHATEAUBRIAND, François-René, vicomte de. De la monarchie selon la Charte, cap. XCII. Paris,1816, p. 97.

Disponível em: https://archive.org/details/delamonarchiesel00chat/page/97/mode/1up.


Tradução livre: “Não mais se deixa pessoas honestas serem dependentes daqueles que as oprimem, mas se deixa que as de boa vontade sejam guiadas pelas que têm mau caráter: eis a ordem da moral e da justiça. Confiai portanto os cargos mais importantes no Estado aos verdadeiros amigos da monarquia legítima.” 


418. Era em 1816. A 19 de agosto desse ano, em uma festa universitária, por ocasião de conferirem-se prêmios, Royer-Collard exprimiu-se também desse modo: “Hoje que está enfim acabado o reinado da mentira, e a legitimidade de poder, que é a verdade do governo, franqueia um mais livre voo a todas as doutrinas generosas, a instrução pública vê seus destinos elevados e engrandecidos”.


419. Já daqui se depreende qual era então a ideia dominante e a aspiração geral em matéria de governo. O velho autor d’O espírito das leis, que fora o primeiro a estabelecer o conceito da monarquia constitucional, obteve um brilhante triunfo. Agora que a Constituição Francesa parecia ainda uma vez querer seguir o modelo da Inglaterra, esse publicista tornou-se o guia da nova escola de história e de direito.


420. Conferindo a Villemain na Academia o prêmio ganho pelo seu Éloge de Montesquieu, dizia Suard:


L’instabilité des gouvernements tient d’ordinaire à l’indécision dans les principes qui doivent régler l’exercice des pouvoirs; ce qui arrive toujours lorsque la législation n’a pas suivi dans sa marche celle des mœurs et de l’opinion. Un bienfait inappréciable de la Charte sera de fixer, d’une manière certaine, l’action et les bornes des pouvoirs, et de prévenir par là ces luttes d’autorité qui ont inquiété le gouvernement pendant presque toute la durée du dix-huitième siècle (…) Rallions-nous à ce signe d’alliance entre le peuple et son Roi (…) Que la Charte soit pour nous ce qu’était pour les Hébreux l’Arche Sainte qui contenait les tables de la loi.*


* Nota do Editor: Cf. SUARD, Jean-Baptiste-Antoine. Rapport sur le concours d’éloquence de l’année 1816; disponível em: https://www.academie-francaise.fr/rapport-sur-le-concours-deloquence-de-lannee-1816.


Tradução livre: “A instabilidade dos governos geralmente resulta da indecisão quanto aos princípios que devem regular o exercício dos poderes, o que sempre acontece quando a legislação não segue em seu curso o da moral e da opinião. Um benefício inestimável da Carta será fixar, de certa maneira, a ação e os limites dos poderes, e assim prevenir aquelas lutas de autoridade que preocuparam o governo durante quase todo o século XVIII (…) Unamo-nos em torno a este símbolo de aliança entre o povo e seu Rei (...) Que a Carta seja para nós o que foi para os hebreus a Arca Sagrada, que continha as tábuas da lei.”


421. Como se vê, eram os primeiros rebentos do constitucionalismo francês; era o domínio da frase, da pura ideologia política, naquele tempo muito desculpável, porém hoje felizmente já descambando para a jazida das antigualhas ridículas.


422. Mas a isto não se limitavam os ímpetos e tendências da época. Em todas as direções da atividade pensante multiplicavam-se os indícios de um renascimento literário, intimamente ligado com o renascimento político.


423. O governo dos Bourbons, que tinham trazido consigo a nobreza, os padres e a liberdade da imprensa, posto que o artigo 8º da Carta usasse de uma reserva sofística, pressupondo a necessidade de leis que deviam reprimir os abusos dessa liberdade, o que podia levar, como de fato levou, até à conservação da censura, o governo dos Bourbons parecia favorável à manifestação e desenvolvimento de todas as ideias, à aceitação ou repulsa de todas as opiniões.


424. Uma série de tradições correntes, que até então se tinham cegamente seguido, colocaram-se em atitude hostil umas às outras e travaram o combate; a tradição de Boileau, de Voltaire, de Condillac; a tradição dos Jacobinos, de Napoleão; a tradição da Igreja e do Ancien Régime. Todas elas, cada uma a seu modo, contribuíram para tornar mais rápido e impetuoso o movimento geral dos espíritos.


425. Quando se alarga o conceito da literatura a ponto de fazê-lo compreender um grande número de fenômenos, que à primeira vista parecem estranhos ao círculo das letras, corre-se o risco de cair em uma confusão caótica, se não se opõe àquele alargamento o contrapeso de uma certa restrição e temperança, que consiste em apelar somente para nomes de primeira ordem, e ainda dentre estes para os mais significativos.


426. A matéria literária de um povo ou de uma época determinada é sempre maior do que a sua forma. Quero dizer que, na esfera das letras, não se classifica tudo que se enumera, assim como não se julga tudo que se classifica. O historiador literário não é obrigado a dar conta, peça por peça, produto por produto, de todos os fenômenos que aparecem no campo de sua observação.


427. Eu bem sei que a estatística, máxime depois de Buckle, não é de todo incabível no terreno da literatura. O número de livros publicados neste ou naquele período pode até um certo ponto determinar, nesse mesmo período, o desenvolvimento intelectual de um povo.


428. Mas somente até um certo ponto, pois que a quantidade deve sempre ser temperada pela qualidade. Mormente quando se trata de literatura comparada. O que aqui importa não é saber quanto esta ou aquela nação pensou e escreveu, quanto papel consumiu em relação a outras, ma saber o que escreveu, o que pensou de grande e aproveitável, que mereça incorporar-se ao patrimônio ideal da humanidade.


429. Daí resulta que não há mister de fazer desfilar, um por um, aos olhos do leitor, todo o exército d’écrivailleurs, de que nenhuma nação está isenta. Bastam os generais, e mesmo assim, só alguns dos mais valentes. A literatura também tem as suas curiosidades anatômicas, que podem ser muito atraentes para quem maneja o escalpelo e o microscópio; mas o meu trabalho não é de anatomia, porém de fisiologia literária. Considerando a literatura como um organismo, o que me interessa não é o estudo detalhado, minucioso e, por assim dizer, celular, da sua estrutura interna, mas tão somente o estudo sintético das suas funções executadas por alguns dos seus mais nobres órgãos.


430. Além disto, convém ter sempre em mira que ainda estamos em preliminares; e seria violar flagrantemente o plano do meu trabalho, se tratasse dos precedentes da literatura de 1830 em diante com a plenitude que só me cumpre observar, quando entrar propriamente na matéria. [36]


Nota 36: O leitor não se admire de ouvir-me falar em preliminares. Um escrito a que pretendo dar as proporções de um livro, e que casulo em mais de 50 artigos, não é muito que ainda a esta hora esteja na fase da preliminaridade. Desconfio que esta declaração pode ser-me prejudicial, diminuindo-me o número de leitores, e fazendo incluir os meus artigos na vasta categoria do cacete.


A propósito, uma pequena história. Quando eu era advogado, isto é, quando morava na Escada, tive um cliente que narrou-me uma vez o seguinte fato. Tendo sido iniciado contra ele um processo policial, quando o subdelegado processante lhe deu deu a palavra para defender-se, a defesa foi tão longa que absorveu todo o resto do dia, e ficou para ser continuada no dia seguinte. Neste ainda não houve tempo bastante, e ficou muita coisa para o terceiro dia. Já cansado ao começar o trabalho, o subdelegado disse ao réu:

“O senhor acabe hoje a sua história, pois já lá vão três dias e isto é demais!”

Ao que ele respondeu:

“Saberá V. Sª. que ainda tenho história para um mês!”

Tanto bastou para o subdelegado não querer saber do tal processo. A minha promessa de 50 artigos não será também suficiente para desanimar um grande número de leitores? É bem possível.


431. Prossigamos pois. O ano em que morreu Mme. de Staël (1817) assinalou-se por várias criações intelectuais de legítimo valor e duradoura influência. Sem falar nos escritos de Beyle (Stendhal), que quase fez sobre a Itália o mesmo que a Staël fizera sobre a Alemanha, foi nesse ano que Lamennais [Félicité Robert de La Mennais, 1782-1854] publicou o primeiro volume do seu Essai sur l’indifférence en matière de religion, aparecendo o segundo no ano posterior e os dois últimos em 1823. Assim também o livro de J. de Maistre [ Joseph-Marie de Maistre, 1753-1821] Sobre o Papa [Du Pape, 1819], dedicado ao mesmo Lamennais.


432. Foi igualmente em 1817 que Agostinho Thierry [Jacques Nicolas Augustin Thierry, 1795-1856], ainda muito moço (22 anos), escreveu para o [Jornal] Le Censeur uma série de artigos sobre a história da Inglaterra, que já revelam uma extraordinária liberdade e profundeza de vistas; espécie de ouverture, brilhante, com que ele prenunciou a sua história da conquista normanda, publicada em 1825. Ou como ele mesmo disse: “Tatonnement d’un jeune homme, qui cherche à se frayer des voies nouvelles”.


433. Nesse mesmo ano Cousin visitou a Alemanha, onde estudou a Crítica da razão pura, por não saber bem a língua do original, em uma tradução latina. Aí achou ele o fundamento do que primeiro havia bebido em Hutcheson [Francis Hutcheson, 1694-1746], Ferguson [Adam Ferguson, 1723-1816] e Reid [Thomas Reid, 1710-1796]. Voltando a Paris, as suas preleções de 1818 e 1819 trataram exclusivamente de verter em retórica a profunda metafísica do idealismo transcendental, e conseguir torná-la acessível à inteligência comum. Se com vantagem ou desvantagem para o filósofo alemão, isso é questão à parte.


434. Em 1818, sem falar de outras obras, pois que não sou obrigado à exatidão estatística em assuntos de livros e autores, publicou Ballanche o seu Essai sur les institutions sociales*, e De Bonald as suas Recherches sur les premiers objets des connaissances morales** .


* Pierre-Simon Ballanche, Essai sur les institutions sociales dans leur rapport avec les idées nouvelles.


** Louis-Gabriel-Ambroise vicomte de Bonald, Recherches philosophiques sur les premiers objets des connaissances morales.


435. Apareceu também a primeira edição do Cours de politique constitutionnelle de Benjamin Constant, livro que teve o mais estranho, o mais singular dos destinos. Com efeito, a pena que escrevera Adolphe (1816), um dos melhores tipos da família wertheriana, ou o Werther das mulheres, como o chamaram, essa mesma pena traçou, por desenfado, em alguma hora de mau humor, um programa ideal de política romântica, e esse programa, no qual o próprio autor era o primeiro em não acreditar, apoderou-se de todos os espíritos, fez a conquista do mundo!…


436. Espécie de romance histórico, onde a parte da história é contribuída pela Inglaterra, e a parte da ficção pela fantasia de cada publicista, o sistema de política engendrado por Benjamin Constant era incapaz de desenvolvimento, incapaz de produzir resultados satisfatórios. Posto em contato com a vida prática, não podia pois evitar que degenerasse nessa palhaçada, a que a doutrina dá o nome de governo parlamentar. [37]


Nota 37: Na conhecida cena cômica Um Matuto Aparvalhado, há uma passagem em que o pobre campônio fala em vestir-se à moda, pôr-se lépido e bonito, como um inglesinho de França… O disparate é intuitivo, é o riso inevitável. Entretanto o nosso governo parlamentar não passa de uma coisa, que tem casca inglesa e miolo francês, um verdadeiro inglesinho de França, e contudo bem poucos são os que possuem o talento de rir-se dele…


437. Em 1820 publicou Guizot o seu primeiro escrito oposicionista, Do governo da França depois da Restauração, e reabriu as suas preleções na Sorbonne, onde adquirira uma Cadeira, por intermédio de Fontanes, desde 1812. Mas o grande efeito que tiveram essas preleções incomodou o governo, a quem aprouve proibi-las em 1824.


438. Guizot porém aproveitou o tempo da desocupação involuntária em uma série de trabalhos doutos do mais alto merecimento; e pela sua História da revolução inglesa (1826) colocou-se na primeira ordem dos escritores franceses.


439. Até então excetuando apenas Béranger, a poesia tinha representado na literatura francesa um papel subordinado. Isto mudou completamente com o aparecimento das Méditations Poétiques de Lamartine (1820), das quais esgotaram-se em poucos anos 47.000 exemplares.


440. No ano seguinte apareceram as Odes de V. Hugo, a que sucederam as Ballades em 1822. Abrira-se uma nova era para a poesia francesa.


441. Aqui faz-se preciso chamar a atenção do leitor para um ponto digno de nota. No princípio deste século o espírito francês tomou três novas direções, que influíram grandemente na marcha da sua história: a direção política, a direção filosófica e a direção poética. Mas em nenhuma delas existe o mínimo sinal de originalidade.


442. Pelo que toca à política, foi a Inglaterra que prestou à França o modelo a seguir e imitar. Na filosofia, foi a Alemanha, com o seu Kant e o seu Hegel, quem revelou a Cousin tesouros inexauríveis, tesouros sem os quais, ainda mesmo mal aproveitados, o filósofo francês não atingiria a altura que conseguiu atingir. A prova é que entre os seus primeiros ensaios filosóficos e os brilhantes cursos da Sorbonne, dos anos de 28 e 29, há uma diferença espantosa; e só uma coisa explica essa diferença: o feliz encontro com a filosofia alemã.


443. No que diz respeito à poesia, os fatos dão o mesmo testemunho. A [escola] romântica francesa foi um impulso imenso para a literatura nacional. Porém ela seria impossível sem a romântica alemã, pois que uma descende da outra.


444. Nem há possibilidade de negá-lo desde que a ambas era comum a reação contra o espírito do século XVIII, contra a regra acadêmica e as luzes da Enciclopédia, como era comum a ambas o remontar da poesia à Idade Média, à Renascença, aos espanhóis e aos ingleses, como era comum a ambas o recíproco incenso, a tática do elogio mútuo.


445. O principal momento do parentesco está porém no fato de que uma e outra formavam da arte e dos artistas um conceito muito diverso e aparentemente superior ao que até então se tinha formado. A arte devia ser o alvo de si mesma e o mais alto fenômeno da vida. De acordo com este princípio, os românticos franceses, é certo, extravagaram muito mais do que os alemães; mas nem por isso é menos verdade que até nos exageros foram estes os seus mestres.


446. A nova direção literária precisava de um órgão, e encontrou no [jornal literário] Le Globe (1825), que ao mesmo tempo representava a causa liberal; mais tarde porém (1831) foi adquirido por Pierre Leroux para a escola de Saint-Simon.


447. Goethe, que lia Le Globe com sumo interesse, não experimentou pequena surpresa, ao saber de um dos seus colaboradores, Jean-Jacques Ampère, que o visitou em Weimar, que o jornal era redigido principalmente por moços. Eram os filhos do século, que pouco depois formaram o grosso da escola romântica.


448. O redator em chefe era [Paul-François] Dubois, o apaixonado campeão de ecletismo. A ele associaram-se Jouffroy e Damiron, com mais discrição, sem dúvida, mas também com todo o ardor da mocidade. De um outro círculo vieram Trognon, Patin, Farcy; e bem assim Ampère, Lerminier, Magnin, como mais tarde Sainte-Beuve.


449. Afinal os políticos Duvergier de Hauranne, [Tanneguy] Duchâtel e [Louis ou Ludovic] Vitet deram ao jornal maior variedade. Um dos mais ativos colaboradores era Charles de Rémusat, neto de La Fayette e sobrinho de Casimir Pierre Périer.


450. Não havia mês que não surgisse um novo poeta. Não era então a música, mas a poesia, que despertava a curiosidade dos salões. Homens como Guiraud, Soumet e outros foram celebrados, como mais tarde Franz Liszt e Berlioz.


451. Do mesmo modo que na Alemanha, foi aqui também a crítica que abriu caminho à jovem escola de poetas. Quando A. W. Schlegel ousou atacar, mesmo em França, o velho classicismo (1807), levantou-se então contra o bárbaro uma geral tempestade. Vinte anos ainda não eram passados, e já ele tinha para os franceses mais autoridade do que para os alemães, entre os quais seu renome começava a decair. [38]


Nota 38: Augusto Schlegel escreveu uma dissertação em francês sobre a Phèdre de Racine, na qual buscou provar que o poeta havia desfigurado o modelo grego. Nas suas preleções de literatura dramática, o principal objeto do seu combate foram as chamadas três unidades. Os românticos franceses, V. Hugo na frente, não fizeram neste ponto, como em muitos outros, mais do que repetir o romântico alemão.


452. As poesias vieram também engrossar a falange dos moços combatentes. Entre eles, Delphine Gay (20 anos), que depois tornou-se Mme. de Girardin, fez um papel saliente. Já havia composto um poema heroico em seis cantos sobre Maria Madalena; e pela festa da coroação de Carlos X (29 de maio de 1825), escreveu uma Vision* de Joana d’Arc.


* Trata-se de La Vision, disponível em: https://gallica.bnf.fr/ark:/12148/bpt6k30436970/f11.item. A propósito desse romantismo religioso assinalado por Tobias Barreto, vale destacar a sua significação no âmbito do espiritismo kardecista; referências a Delphine Gay de Girardin (1804-1855) estão registradas no Índice Geral da Revista Espírita (Revue Spirite – Journal d’Études Psychologiques, que circulou de janeiro de 1858 até abril de 1869, sob a égide de Allan Kardec) editado pela Federação Espírita Brasileira, 2009, p. 98 e 274, disponível em: https://www.febnet.org.br/ba/file/Pesquisa/indiceGeraldaRevistaEspirita.pdf.


453. As mulheres da Restauração, educadas por Lamartine, têm sentimentos e ideias românticas: suspiram e trazem no coração a imagem de um poeta desconhecido. Não lhes pode faltar alguma coisa de místico e nevrótico, uma íntima e indizível aflição.


454. Tal era Delphine Gay. O seu natural deveria dirigi-la por outro caminho. E mais que o seu natural, a sua beleza, le bonheur d’être belle, que lhe serviu de assunto para uma elegia, teria podido dispensá-la do trabalho de escrever versos. É melhor inspirá-los que fazê-los, ainda que sejam como os dela, femininamente perfumados, o que não livra de serem femininamente fracos.


455. Não gosto da poesia de Delphine Gay. Mas longe de mim a ideia de fazer-lhe uma crítica. Nem isto está no meu plano; e quando estivesse, criticar uma mulher, se morta ou viva pouco importa, é sempre uma grosseria. Eu tenho a tal respeito uma doutrina assentada. Pode-se ser delicado com a mulher, até na função de carrasco: no modo, por exemplo, de endireitar-lhe os cabelos, para melhor decepá-la. Na função de crítico porém só há para com ela uma forma de delicadeza: é não criticá-la.


456. De ordinário, quando se fala da [escola] romântica francesa, costuma-se pensar unicamente no movimento poético. Mas é um erro. Ao lado dos poetas, ergueram-se outros espíritos, pensadores e filósofos, levados do mesmo ímpeto, feridos da mesma doença. Por exemplo: o célebre artigo de Jouffroy, Comment les dogmes finissent*, publicado no Le Globe (1825), é tanto, se não mais revolucionário do que o Prefácio** de Cromwell (1827).


* Reeditado, texto disponível em: http://athena.unige.ch/athena/jouffroy/jouffroy-comment-les-dogmes-finissent.pdf.


** Préface, de Victor Hugo, disponível em: https://gallica.bnf.fr/essentiels/hugo/cromwell-preface.


457. Quando o filósofo se compraz em abrir-nos o abismo do seu mundo interior e descrever a morte das suas crenças, é uma espécie de Werther, um suicida psicológico.


458. O movimento poético era sem dúvida o mais visível, o mais esplêndido e ruidoso; mas nem por isso outras direções deixavam de obedecer à tendência geral da época. Simples questão de grau; aqui mais, e ali menos; porém no fundo a mesma ânsia, a mesma inquietude.


459. Já houve quem dissesse que [o que se denomina] Weltschmerz, ou melancolia dos românticos, proviera de uma tal ou qual aflição produzida pelos problemas do tempo. A explicação é inaceitável. Nós hoje estamos livres dessa morbidez; mas de então para cá, que foi que se resolveu? Nem o problema político, nem o problema religioso acharam ainda a sua solução. O problema científico mesmo desembrulhou-se um pouco mais; porém, bem apreciado, continua irresoluto. Maior número de Édipos acercou-se da Esfinge; mas ainda não puderam arrancar-lhe palavra do enigma.


460. O romantismo é um fato histórico e, como tal, subordinado aos seus antecedentes; não é porém remontável a causas, principalmente a causas psicológicas, a motivos íntimos, que escapam à observação.



X



461. Os últimos anos da Restauração em França foram os mais ricos desse período, e, até podia dizer, os mais ricos de toda a história da literatura francesa neste século.


462. Com efeito: além do movimento romântico que descortinava aos olhos da poesia novos e larguíssimos horizontes, além dos estudos históricos, nos quais se empenhavam os maiores talentos da nação, e que eram feitos com uma profundeza de análise e um rigor de método até então desconhecidos, havia nos espíritos em geral uma sede insaciável, um ímpeto irresistível para toda sorte de melhoramento e de progresso.


463. No terreno da história, sobretudo, é que mais claros se mostram os sinais do tempo. Ao lado de Guizot e Agostinho Thierry, de quem já nos ocupamos, colocam-se, entre outros, Amédée Thierry, irmão deste último, com a História dos Gauleses (1826), Mignet com a História da Revolução [Histoire de la Révolution, de 1789 à 1814],de 1824; e Thiers com a obra de igual título (1823-1827), obra que não só serviu de preparo à sua futura carreira política, mas também foi uma espécie de prelúdio do grande hino ao chauvinismo nacional: a História do Consulado e do Império (1845-1862). [39]


Nota 39: No meio desses outros, que também se entregaram a estudos históricos, contava-se Daru [Pierre Antoine Noël Bruno, comte Daru, 1767-1829], o célebre tradutor de Horácio, e ainda mais célebre pelo seguinte fato. Em 1813, quando tropas francesas ocuparam a Alemanha, que viu-se então obrigada a sustentar 23.000 soldados de Napoleão, a escassez tornou-se assustadora, de modo que o chanceler Müller foi ter com Daru, para ponderar-lhe a exorbitância de uma contribuição de carne, que se exigia da cidade de Jena, e acrescentou que até os professores já estavam sentindo a falta desse gênero; ao que o grande homem respondeu: “Mais je ne vois pas du tout la nécessité que ces messieurs mangent de la viande”. Que tal? E ainda há quem pense que a Alemanha foi cruel com a França na guerra de 1870!


464. Todos estes historiadores davam às suas indagações um alvo de liberalismo político. E realmente a política não se deixava amortecer no meio dos mais sérios estudos científicos. Foi assim que toda a França liberal pôs-se em agitação, quando a 29 de novembro de 1825 morreu o general Foy [Maximilien Sébastien Foy, 1775-1825]. Paris inteira assistiu às suas exéquias. O banqueiro Casimir Pierre Périer, que falou junto ao túmulo, exprimiu violentas queixas contra os ministros. Em favor dos órfãos assinaram grandes somas o duque de Orléans, Périer e Jacques Laffitte.


465. Não despertou menor interesse a morte do pintor Davi [Jacques-Louis David, 1748-1825], que sucumbiu na Bélgica, onde se achava desterrado, um mês depois do general Foy, com 77 anos de idade.


466. A História da Revolução de Thiers incorporou-se ao movimento geral. A obra pareceu ao princípio destituída de brilho. Os primeiros volumes foram lidos, como se faz a leitura de um trabalho de simples entretenimento. Ao autor pouco importam a lógica dos fatos e a característica dos personagens; mas ele sabe pintar as grandes cenas da Revolução com tais detalhes que o leitor crê se achar no meio delas.


467. A prosa de Thiers, como diz Edmond Schérer [Edmond Henri Adolphe Schérer, 1815-1889], é uma água límpida; porém dela também se pode afirmar, como da água, que a ausência de todo sabor constitui ao mesmo tempo o seu mérito e o seu defeito. Ele tem aquele gosto supremo, que sabe evitar os excessos; e se não revela jamais o esforço, também não chega jamais à perfeição. [40]


Nota 40: Thiers e Mignet eram provençais; emigraram juntos para Paris em 1821. Começaram a fazer-se conhecidos como jornalistas. Thiers no Constitutionnel e Mignet no Courrier français. No ano seguinte (1822) dois outros seus compatriotas, Barthélemy [Auguste Marseille Barthélemy, 1796-1867] e Méry [Joseph Méry, 1797-1866], fizeram a mesma viagem e tornaram-se depois igualmente notáveis.


468. O destino ulterior de Thiers e Guizot, na política do seu país, fez que estes dois nomes ficassem sujeitos a uma lei de associação necessária, de modo que é impossível pensar e falar de um sem ter imediatamente ideia do outro. Entretanto, o princípio que os associa não é o da semelhança, mas o do contraste. Não há antítese mais acentuada do que aquela que se manifesta entre esses dois notáveis espíritos.


469. Ambos escritores, historiadores ambos, como ambos estadistas, ambos propagadores da monarquia constitucional, e, todavia, é imensa a distância que os separa. O que qualquer deles possa ter de comum com outro é simplesmente exterior: não atinge o fundo do pensamento e muito menos o fundo do caráter.


470. Sainte-Beuve exprimiu-se sobre os dois do seguinte modo: “On a dit d’un autre esprit bien éminent (Guizot) que ce qui’il avait appris ce matin, il avait l’air de le savoir de toute éternité; tant sa haute reflexion donnait vite à chaque connaissance une teinte profonde et comme reculée. C’est justement le contraire chez M. Thiers. Tout ce qu’il voit pour la première fois, il le decouvre, il le reconte avec la vivacité, de la découvert, avec une nettelé comme matinale, qu’on ne sache plus comment la definir”.


471. Como se vê, a característica de Thiers está um pouco idealizada, mas não deixa de ser verdadeira. A de Guizot é feita com um só traço, porém um desses traços que ficam impressos no espírito do leitor, e, como tal, é mais completa, justamente por ser menos exagerada.


472. Mas importa advertir que a crítica de Sainte-Beuve se refere preponderante, senão exclusivamente, aos dois vultos encarados como oradores; as suas outras qualidades, já como escritores, já como sábios, não são aí tomadas em consideração.


473. Apreciados em sua totalidade literária, Thiers e Guizot não admitem paralelo. O meu juízo destoa da opinião geral, mas não hesito em descrevê-lo: o renome de Thiers foi mais uma obra da ocasião e do sucesso do que um efeito regular do merecimento. Não assim Guizot, que, realmente grande, tinha o dom particular de transmitir os tons da própria grandeza a tudo que entrava no círculo do seu pensamento; mas a sua reputação foi sempre um pouco inferior ao que ele com justiça  merecia.


474. Raras vezes um homem de caráter se distingue pela amabilidade. Era o que se dava com Guizot, faltando-lhe portanto a melhor metade do talento, que é a simpatia.


475. Por isso mesmo, que segundo o próprio testemunho de Sainte-Beuve, o traço mais característico de Thiers é la fraîcheur de curiosité*: as obras deste autor são simplesmente curiosas; todas elas começam a envelhecer e decais precocemente. Mais vinte anos de evolução crítica, e já ninguém as lerá.


* Nota do Editor: traduz-se: “O frescor da curiosidade”. Ainda segundo Sainte-Beuve, “Thiers dit de M. Guizot: ‘Guizot est un grand orateur, un grand home de tribune… mais n’allez pas vous étonner! En politique, Guizot est bête’. Cela veut dire que comme homme d’état, comme ministre, Guizot manque d’idées, et c’est juste. En revanche, Guizot dit de Thiers, qui voit de loin et qui de prè s’engoue et n’y voit goutte: ‘Mon cher, vous devinez et vous ne voyez pas’ ”. (“De Guizot, Thiers diz o seguinte: ‘Guizot é um grande orador, um grande tribuno… Mas não se surpreenda! Em política, Guizot é burro’. Ele quer dizer que, como estadista, como ministro, Guizot carece de ideias, e dizer isso não é injusto. Em resposta, Guizot diz que Thiers olha de longe, e logo se apaixona, mas não vê coisa alguma: ‘Meu caro, você advinha, mas não vê’.”)

Disponível em Les Cahiers de Sainte-Beuve: https://fr.wikisource.org/wiki/Les_Cahiers_de_Sainte-Beuve


476. Os trabalhos de Guizot, pelo contrário, sobretudo os trabalhos históricos, são dotados de uma juvenilidade eterna.


477. Não há mister de negar os seus defeitos; e é possível que com o andar dos tempos, ainda novas lacunas se façam nele notar; mas também, a cada defeito que se lhes descobre, apresentam-se em compensação dez brilhantes qualidades.


478. Dois grandes acontecimentos, aparentemente estranhos ao radicalismo literário, que abria caminhos por toda parte, contribuíram bastante, ainda que de um modo indireto, para reforçar a audácia dos novos escaladores do céu. Foram eles a morte de Byron, em 1824, e de Talma [François-Joseph Talma], em 1826.


479. A glória do poeta inglês era um sol, diante do qual desmaiavam todas as estrelas que surgiam no firmamento da poesia do século. Com o seu desaparecimento veio a noite; e então os pequenos astros puderam mais facilmente mostrar o seu esplendor. Para prová-lo, bata lembrar que, depois da morte do poeta, Lamartine julgou-se logo autorizado a tratá-lo como seu igual, completando o Child Harold por meio de um último canto, que aliás é semelhante a um pedaço de grosseiro estofo cosido em um manto de púrpura.


480. Assim também V. Hugo, cujos primeiros ensaios líricos, posto que de súbito mérito, estavam todavia muito longe de rivalizar com as poesias de Byron, sentiu crescerem-lhe as asas, ao ver-se livre deste invencível dominador. E ele que nos últimos anos da sua vida, sem a menor cerimônia tinha-se na conta de irmão mais moço de Homero, Ésquilo, Isaías, Ezequiel e Dante, não é muito que, quando moço, já se julgasse capaz de ocupar, no templo das musas, o lugar que deixara vago o autor de Don Juan.


481. A mesma ordem de ideias a respeito de Talma [François-Joseph Talma, 1763-1826]. Este trágico genial, que animava os antigos heróis de Corneille e de Racine; este rei do palco moderno com quem o próprio Bonaparte aprendera o imponente e majestoso sacudir da toga romana, constituía por si só um obstáculo insuperável para as conquistas da dramaturgia romântica. A prova disto é que mais tarde, quando apareceu Rachel Félix, reabilitando os poetas do século XVIII, a nova escola foi de recuar diante das exigências da reação clássica.


482. Entretanto a onda subia, e o vento continuava a soprar na direção do futuro. O estudo de Walter Scott suscitou o gosto do romance histórico, quase ao mesmo tempo em que também na Alemanha este gênero começara a ser apreciado por meio do Walladmor [Walladmor, frei nach dem Englischen des Walter Scott, 1824] de Willibald Alexis. A primeira tentativa em França foi o Cinco de Março de Alfred de Vigny (1826).


483. Mas o romance histórico era ainda um pouco prematuro. A mocidade revolucionária tinha o seu programa; só o teatro era um campo de batalha apropriado para dar combate à velha intuição literária.


484. Neste sentido apareceu o Cromwell (1827), peça em que V. Hugo pôs em prática as teorias da jovem escola, e cujo prólogo era uma formal declaração de guerra às tradições correntes em matéria de arte.


485. Mas o drama não foi representado. Só mais tarde a nova reforma penetrou no palco. Henrique III e Cristina de Alexandre Dumas, bem como Hernâni do mesmo Hugo, aquele representado em 1829, e os dois últimos em 1830, foram outras tantas batalhas decisivas, ganhas pelo romantismo. [41]


Nota 41: O duque de Orléans, que protegia Dumas, e de quem este foi secretário particular por causa da sua excelente caligrafia, na primeira representação de Cristina encheu todos os camarotes de espectadores principescos, e o público restante mesmo era tão escolhido que a glória de Dumas ficou logo assegurada por meio desse drama.


486. Debalde os clássicos Baour-Lormian, [Étienne de] Jouy, [Joseph] Étienne, [Antoine-Vincent] Arnault e outros fizeram uma representação contra as inovações românticas do Théâtre Français (1829); o espírito do tempo, como o espírito de Deus dos profetas bíblicos, se havia deles afastado.


487. Em relação sinérgica com estes fatos do mundo literário, sobreveio um acontecimento político que repercutiu beneficamente em todos os domínios da vida intelectual. Refiro-me à organização de um novo ministério, presidido por Martignac, que foi a última tentativa dos Bourbons para se conciliarem com o espírito do povo.


488. A época desse ministério, que estendeu-se de janeiro a 28 de agosto de 1829, foi a quadra mais brilhante da Restauração. Estes poucos meses, como diz Juliano Schmidt, produzem a impressão de campos e árvores que súbito florescem por um fresco ar da primavera. Tão maravilhosa é a abundância de fenômenos significativos que de repente surgem na literatura.


489. Foi então que os três célebres professores, Guizot, Cousin e Villemain, fizeram aquelas esplêndidas preleções, a que os seus nomes ficaram para sempre ligados: o primeiro sobre a história da civilização, o segundo sobre a história da filosofia, e o terceiro sobre a literatura da Idade Média e do século XVIII.


490. Dos três, pode-se afirmar que o menos benemérito, aquele de quem hoje nada resta digno de menção, é Victor Cousin. A sua filosofia, que fazia questão de não ir de encontro ao senso comum, não só deixou de elevar-se à altura dos grandes problemas, como até tratou de inspirar a desconfiança deles.


491. Meia dúzia de velhas verdades, que se guarda na cabeça com o mesmo grau de certeza com que se tem na algibeira meia dúzia de moedas, eis aí o resultado de todo o seu sistema filosófico.


492. Quanto a Villemain, a coisa já é diversa. Ele foi em França o fundador da história literária propriamente dita, sendo o primeiro a estudar a influência da sociedade sobre os poetas e destes sobre ela. Alguns dos seus juízos e apreciações críticas ainda hoje podem valer como exemplares.


493. Porém o maior deles foi sem dúvida Guizot.


494. Era esta pelo menos a opinião de Goethe, que aliás formava dos outros dois um elevado conceito. “Mas Guizot”, dizia ele, “é para mim querido; é um homem de largas vistas e firmes convicções, o que é digno de todo apreço em face da mobilidade francesa”.


495. Como curso introdutório da História da civilização em França (1829-1830), Guizot prelecionou sobre a História da civilização na Europa (1828). São dois prodígios de síntese, que dificilmente podem ser igualados, muito menos excedidos.


496. Ele começa a sua exposição com a queda do império romano no  século IV.


497. Na antiguidade domina por toda parte uma cultura unitária; a Idade Média porém principia por uma geral confusão, não só nos fatos, mas também nas ideias. Para bem compreender a marcha da civilização medieval, devem-se distinguir os seus três elementos: os restos da velha cultura romana (o império, o direito, as municipalidades), a Igreja cristã e os germanos.


498. Os outros historiadores tinham posto exclusivamente na frente da história, conforme o seu princípio político, um desses três elementos.


499. Entretanto Guizot considera como seu principal problema colocá-los em sua verdadeira luz e mostrar como pela íntima e recíproca penetração dessas três formas culturais, que ao princípio estavam vis à vis uma da outra, surgiu a civilização moderna.


500. Nesta variedade de pontos de vista, Guizot é sem contestação o mais objetivo historiador da França.


501. A luz que ele derrama na escura noite dessas relações labirínticas é surpreendente e admirável.


502. Mas também por outro lado ele sofre de uma parcialidade nacional, que parece incrível em um espírito tão sábio. Logo na introdução apresenta a cultura francesa como foco e centro da cultura europeia em geral.


503. Segundo ele, só os franceses puderam equilibrar, do modo mais seguro possível, os dois momentos da civilização, o social e o individual, o prático e o teorético. [42]


Nota 42: É justamente o contrário. Não há povo em que o individual e o social sejam tão desproporcionais entre si como no povo francês. A comuna é uma prova disso.


504. Neste gosto há uma porção de páginas que não transpiram decerto o chauvinismo de um Thiers, mas deixam todo caso uma impressão desagradável. Guizot considera a civilização geral do ponto de vista exclusivo de um francês. Estes defeitos, porém, não diminuem o grande valor da obra. O leitor consciente, uma vez premunido contra as preocupações patrióticas do autor, só tem vantagens a tirar da leitura de seus livros preciosos.


505. Os anos de 28 e 29 foram ainda assinalados por outras produções literárias. Apareceram então de V. Hugo, além de Hernani, Marion Delorme e Os Orientais. Estas últimas representavam um novo gênero de poesia que fora iniciado na Alemanha por Goethe com o West-östlicher Divan (1819) e Frederico Rückert [Friedrich Johann Michael Rückert, 1788-1886, pseudônimo Freimund Raimar, Reimar ou Reimer] com as Rosas do Oriente (1822).


506. Não ficou aí. Por esse mesmo tempo, Lamartine publicou as Harmonias Poéticas e Religiosas. Sainte-Beuve, as Consolações, e Prosper Mérimée, a Crônica do reinado de Carlos IX, uma das obras mais interessantes saídas da escola de Walter Scott.


507. Ainda mais: a quadra esperançosa do governo de Martignac não se distinguiu somente pela rica florescência literária; assinalou-se também pela florescência musical. Ela foi aberta com um grande acontecimento no terreno da arte, e fechada com outro.


508. Um mês depois da ascensão do novo ministério (fevereiro de 28) represetou-se pela primeira vez A Muda de Portici, de Auber [Daniel-François-Esprit Auber, 1782-1871], e cinco dias antes da queda de Martignac (3 de agosto de 29) o Guilherme Tell, de Rossini. Dois produtos geniais, dos quais o primeiro abriu uma nova direção na grande ópera, que foi seguida pelo segundo e por outros importantes fenômenos do gênero.


509. Cabe aqui observar que essa época de tanto fervor e agitação intelectual foi também aquela em que Paris começou a tornar-se alvo das aspirações dos gênios estrangeiros, principalmente musicais. É digno de nota que Mozart, Weber, Beethoven, puderam ser grandes, muito grandes, sem a cumplicidade não raras vezes leviana ou caprichosa, do público parisiense.


510. Não assim Rossini, Meyerbeer, Bellini, Donizetti e alguns outros, que já pertencem aos nossos dias. Não lhes basta que sejam em outra parte batizados gênios; é ainda indispensável o crisma de Paris.


511. Com a retirada de Martignac (8 de agosto de 29) e entrada do Príncipe de Polignac, como chefe de um gabinete, composto dos mais encarniçados inimigos da Constituição, todo o mundo compreendeu que tinha chegado a crise decisiva.


512. A oposição liberal, Thiers, Mignet e Armand Carrel, fundara Le National (janeiro de 1830) contra o novo ministério. Esse jornal era destinado a derribar a dinastia, não para instituir a república, mas por amor e com vista na família Orléans.


513. A tática consistia primeiramente em tirar todas as consequências da Charte e envolver o governo em uma rede de condições restritivas, donde se trataria de sair por meio de um golpe de Estado; depois na constante repetição do paralelo entre 1648 e 1668 na Inglaterra. Dessa tática proveio o célebre bon mot: le roi regne, il ne gouverne pas, que ainda hoje constitui a quinta-essência da sabedoria política!


514. A literatura mal podia respirar, cada vez mais claro se percebia o ruído da temperatura que se aproximava. De desatino em desatino Carlos X corria atrás da sua ruína. A 16 de maio foi dissolvida a Câmara dos Deputados; a 13 de junho o rei publicou a sua proclamação; a 9 de julho chegou a Paris a notícia da conquista de Argel, que veio incorporar-se à agitação eleitoral; a consequência foi uma baixa das rendas.


515. Le National continuava a trovejar. A incerteza dominava por toda parte. A 25 de julho reuniram-se os ministros em conselhos e referendaram as ominosas Ordenações que foram publicadas no dia seguinte: dissolução da Câmara, antes mesmo de aberto o Parlamento, modificação da lei eleitoral, suspensão da liberdade de imprensa. Não havia mais salvação possível.


516. Caiu enfim a dinastia legítima e com ela os últimos restos do Ancien Régime. A 9 de agosto prestou o novo rei Luís Filipe I, perante as duas Câmaras, o juramento constitucional. “Voilà la meilleure des républiques!”, disse então La Fayette*, que como todos os outros tinha o direito de enganar-se. Estava aberta para a França uma nova era.


* Nota do Editor: “Esta é a melhor das repúblicas!”, teria sido a proclamação de La Fayette, então ao lado de Luís Filipe I na varanda do palácio real, segundo carta atribuída ao próprio rei (Lettre confidentielle de S. M. Louis-Philippe Ier, roi des Français, à son bien aimé cousin Nicolas, empereur de toutes les Russies. Edição de Joseph Beuf, 1833, p. 16). Disponível em: https://gallica.bnf.fr/ark:/12148/bpt6k5661119v/f6.item.texteImage


FIM

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