sexta-feira, 10 de setembro de 2021

Introdução ao estudo do direito

Tobias Barreto


  Reedição razoada a partir da edição póstuma dirigida por Sílvio Romero, em 1892, três anos após a morte de Tobias Barreto.




“[…] a natureza se desenvolve segundo leis determinadas e forças que lhe são imanentes; não se afeiçoa de acordo com fins humanos (…) É assim que se costuma falar de riquezas naturais e de produtos naturais, significando alguma coisa de anterior e independente do trabalho humano (…) A cultura é pois a antítese da natureza, no sentido de que ela importa uma mudança do natural, no intuito de fazê-lo belo e bom. Esta atividade nobilitante tem sobretudo aplicação ao homem.” (Tobias Barreto) 


“O direito é, pois, antes de tudo, uma disciplina social, isto é, uma disciplina que a sociedade impõe a si mesma na pessoa dos seus membros, como meio de atingir o fim supremo — e o direito só tem este — da convivência harmônica de todos os associados.” (Tobias Barreto)


“Não existe um direito natural; mas há uma lei natural do direito. Isto é tão simples, como se alguém dissesse: não existe uma linguagem natural; mas existe uma lei natural da linguagem (…) Tudo é produto [do ser humano], do seu trabalho, da sua atividade.” (Tobias Barreto)





I


Ideias propedêuticas. Posição do homem na natureza


1. A ciência do direito, bem como outro qualquer ramo do saber humano, não existe isolada. Na imensa cadeia de conhecimentos, logicamente organizados, que constituem as diversas ciências, ela figura também como um elo distinto, ocupa um lugar próprio, e tem a sua função específica.


2. Mas seja qual for esta função, e quaisquer que sejam os limites assignados à ciência do direito — ou se aumente ou se diminua o seu campo de observação e de estudo —, o que fica sempre fora de dúvida é que ela trata de uma ordem de fatos humanos, tem por objeto um dos traços característicos da humanidade, faz parte por conseguinte da ciência do homem.


3. E por mais independentes que as verdades jurídicas pareçam dos dados de tal ciência — quer se lhe mantenha o clássico nome de filosofia, quer se lhe dê o de antropologia —, basta um pouco de reflexão para convencermo-nos de que o direito, sob a forma científica, isto é, como sistema de conhecimentos, deve ter uma verdade primeira, uma primeira proposição, a que se prendam todas as proposições e verdades ulteriores.


4. Ora, dado de barato que o direito não tenha como princípio diretor senão o que se acha contido na sua própria definição, é claro que esta só pode ser bebida em fonte estranha, em um domínio científico mais largo e mais compreensivo.


5. Já se vê que o estudo do direito está subordinado ao de outra ciência que logicamente o precede. Esta subordinação, este laço de dependência é que dá lugar ao que no meu programa designei por ideias propedêuticas, e que também pode-se chamar propedêutica jurídica.


6. São ideias introdutórias, iniciais, preliminares. Não há ciência que não as tenha. O que importa é que, para expô-las, não se comece de muito longe, não se tome tamanha distância, que afinal possa perder-se de vista o objeto a estudar.


7. Se o direito, como disse, faz parte da ciência do homem, não lhe é decerto indiferente saber de antemão o que seja esse mesmo homem e qual a sua posição na natureza.


8. Mas para isso não há mister de recapitular ideias que pertencem exclusivamente ao círculo das ciências naturais. E nós outros que reclamamos para o direito, como ramo científico especial, um caráter autonômico, seríamos contraditórios,·se o quiséssemos reduzir às mesquinhas proporções de uma seção da zoologia e da botânica, fazendo depender o seu conhecimento do conhecimento da célula, da morfologia e fisiologia celular


9. Não é preciso remontar à época tão longínqua, indo além do período pré-histórico, e entrando até no período pré-humano da evolução do mundo orgânico. Uma introdução regular ao estudo do direito não quer isto, não carece disto. O seu entroncamento na antropologia não impõe a necessidade de cavar até às últimas raízes. O contrário é cair numa espécie de gnose jurídica, ou numa oca pantosofia, que aliás não está contida no pensamento do programa.


10. O que se quer, e o que importa principalmente, é fazer o direito entrar na corrente da ciência moderna, resumindo, debaixo desta rubrica, os achados mais plausíveis da antropologia darwínica. E isto não é somente uma exigência lógica, é ainda uma necessidade real para o cultivo do direito; porquanto nada há de mais pernicioso às ciências do que mantê-las inteiramente isoladas.


11. O isolamento as esteriliza. Como diz um arguto provérbio alemão: as árvores impedem de ver a floresta, ou a demasiada concentração nos detalhes de uma especialidade rouba a vista geral do todo e apaga o sentimento da unidade científica.


12. Eis porque se torna preciso animar o direito, que já tem ares de ciência morta, como a teologia ou a metafísica de antigo estilo, pelo contato com a ciência viva, com a ciência do tempo, com a última intuição de espíritos superiores. Mas é possível que se objete: a que propósito elucidar aqui a posição do homem na natureza, se o direito nada tem que ver com o homem natural, mas somente com o homem social, tal como ele se mostra aos olhos do historiador e do filósofo?


13. A resposta surge de pronto. A questão do programa não é ociosa. Conforme o lugar conferido ao homem no meio dos outros seres, conforme o papel que se lhe distribui entre as espécies animais, o direito assume também uma feição diferente.


14. Destarte, se ainda estamos em tempo de prestar ouvidos à velha filosofia dualista, que nunca passou de um comentário mal feito do símbolo dos apóstolos [1]; se ainda estamos em tempo de beber todos os nossos conhecimentos na covinha de pedra, onde bebem as aves do céu e as almas dos santos, isto é, no mito hebreu de uma criação teológica do universo; em uma palavra, se o homem continua a ser um dioscuro, filho mais moço do criador e o rei da criação, então não há dúvida que o direito deve ressentir-se dessa origem; a ciência do direito deve encolher-se até tomar as dimensões de um capítulo de teologia.


Nota 1: Bem pudera dar-lhe o nome de filosofia do passaporte. Ela ensina com todo sério que são três os seus problemas capitais: Que é o homem? Donde vem ele? Para onde vai? São justamente os pontos mais importantes de qualquer salvo-conduto policial.


15. Não há meio termo. A controvérsia só tem hoje um sentido entre estes dois extremos: ou a criação natural, conforme a ciência, ou a divina, conforme o Gênesis; e os resultados não são os mesmos para quem toma um ou outro caminho.


16. Mas o homem é realmente um ser à parte, uma obra da mão de Deus? Ainda há lugar para esta crença? Um espírito sério só pode responder que não. Sobre tão alta procedência humana, repetimos as palavras de uma francesa inteligente: on manque de renseignements. E como diz Schleiden, assim como no direito romano prevalecia o princípio: in dubio pro fisco, assim também nas ciências deve valer a áurea regra: in dubio pro lege naturali. Enquanto pois, o homem, este fidalgo de ontem, não sustentar com melhores dados as suas pretensões de celígena pur sang, há boas razões de tê-lo somente em conta de um fenômeno natural, como outro qualquer.


17. E o homem do direito não é diverso do da zoologia. O antropocentrismo é tão errôneo em um como em outro domínio. Admira mesmo que esta verdade ainda hoje precise abrir caminho a golpes de martelo. Desde que dissipou-se a ilusão geocêntrica, desde que a Terra, soberana e grande aos olhos de Ptolomeu, foi empalmada e comprimida pela mão de Copérnico, até fazer-se do tamanho de um grão de areia perdido no redemoinho dos sistemas siderais, a ilusão antropocêntrica tornou-se indesculpável. Porquanto, com que fundamento pode o homem considerar-se rei da natureza, se o planeta que ele habita é tão insignificante na vastidão do universo? Se a Terra poderia desaparecer do concerto imenso dos corpos celestes, despercebida para muitos e sem a mínima quebra da harmonia de todos, por que também não poderia o homem extinguir-se com o seu planeta, sem lançar a mínima perturbação na ordem dos seres criados? Onde está pois a sua supremacia?


18. A vaidade ou o orgulho inspirou ao homem a singular ideia de ser o mais perfeito dos entes da Terra. O certo, porém, é que ele é um animal distinto, nem mais perfeito, nem mais imperfeito do que o menor infusório. Qual é portanto a medida, segundo a qual ele gradua a escala da perfeição? Será porventura a chamada luz divina, faísca celeste, e todas as mais frases de uso?


Er nennt's Vernunft und braucht's allein,

Nur tierischer als jedes Tier zu sein.*


* Nota do Editor: tradução de Tobias Barreto: “Ele a chama razão, e contudo só a emprega para ser mais animal do que outro qualquer animal”. Citação de Goethe, Fausto I, Prólogo no Céu: fala inicial de Mefistófeles; texto original disponível em: https://www.projekt-gutenberg.org/goethe/faust1/chap003.html


19. Importa enfim atirar para o meio dos ferros-velhos estas doutrinas que cheiram a incenso… Pelo que toca pessoalmente a Deus, ao Deus de nossos pais e do povo a que pertencemos — com o devido respeito —, nós o pomos fora do templo da ciência, ainda que o admitamos como objeto de poesia e de amor no templo da religião. Dá-se com Deus, na esfera científica, pouco mais ou menos o que se dá, na esfera política e social, com os poderosos da Terra. Assim como estes fazem pender para o seu lado a balança da justiça, ele faz a lógica ser indiferente ao sacrifício da verdade. Desde que Deus é hóspede da ciência, como pode ela dizer coisa alguma que o ofenda, ou tomar atitude contrária ao Senhor dos exércitos?


20. A crença na origem divina do homem é um dos muitos resíduos, que existem dos primórdios da cultura humana; é um survival, como diria Tylor [Edward Burnett Tylor], semelhante ao do dominus tecum, ainda hoje inconscientemente repetido, no ponto de vista antiquíssimo dos que acreditavam que o espirro importava sempre a entrada de um bom ou a saída de um mau espírito no corpo do indivíduo. Sobre qual seja, porém, a sua verdadeira procedência, as pesquisas modernas não são unânimes; mas isto não embaraça a marcha das ciências, que têm base antropológica, às quais só interessa deixar estabelecido que o homem não é “um anjo decaído, que se lembra do céu”.


21. Quanto à questão ardente da origem pitecoide, não é aqui o lugar de apreciá-la. Em todo o caso, pensamos com Schleiden [Matthias Jakob Schleiden] que a indignação moral com que muitas pessoas repelem qualquer parentesco da nossa espécie com a dos macacos, é altamente cômica. Resumem tudo a tal respeito as seguintes palavras de Claparède: “Je suis de l'avis qu'il vaut mieux être un singe perfeccionné qu'un Adam degeneré*.


* Nota do Editor: tradução livre: “Sou da opinião de que é melhor ser um macaco aperfeiçoado do que um Adão degenerado”.


II


Lei geral do movimento e desenvolvimento de todos os seres*


* Nota do Editor: a propósito dessa associação movimento/desenvolvimento em Tobias Barreto — “A tese tudo se move, é verdadeira, porém de uma verdade parcial, que é preciso completar e esclarecer por esta outra: tudo se desenvolve, e do seu interesse na concepção do monismo filosófico enquanto superação do dualismo mente/corpo, ver do mesmo autor o artigo Glosas Heterodoxas a Um dos Motes do Dia, ou Variações Antissociológicas, sobretudo a Parte III, §32-§56; texto disponível em: http://textosdefilosofiabrasileira.blogspot.com/2012/07/glosas-heterodoxas-um-dos-motes-do-dia_26.html


22. O largo e fecundo estudo das ciências naturais tem exercido sobre os nossos tempos uma influência poderosa. Steffens [Henrich Steffens, Anthropologie, 1824] disse: “as ideias religiosas do homem descansam em última análise sobre as suas intuições a respeito da natureza”. Ele podia ter dito: não só as religiosas, como também as filosóficas, políticas, sociais, em uma palavra, todas as que tocam, de longe ou de perto, à direção da vida.


23. Com efeito, que favores não são devidos à geologia, à astronomia, à química e à ótica, por suas imponentes e significativas conquistas! Elas ensinaram-nos a encarar de sangue frio as mais vertiginosas alturas do pensamento, e nos habituaram às conjecturas mais ousadas. Com razão diz Emerson: “o religionário acanhado não pode impunemente estudar astronomia, pois que o credo da sua igreja se desfaz como uma folha seca ante a porta do observatório; um ar novo e sadio refresca o espírito e eleva a sua capacidade inventiva”.


24. Perguntando agora a que se devem atribuir tamanhos progressos das ciências naturais, a resposta não é duvidosa: ao rigor do seu método, à simplificação das suas leis.


25. É possível, é mais plausível, mais científico mesmo, que o universo não tenha sido, como disse Newton, feito de um jato; mas o certo é que tudo parece dominado por uma só força. A massa é como o átomo: a mesma química, a mesma gravitação, as mesmas condições. Os asteroides são fragmentos de uma velha estrela, e um meteorito o fragmento de um asteroide. Um espírito sagaz, por uma única observação, descobre a lei com seus limites e suas harmonias, como o pastor, por meio de um só rastro, conhece o seu rebanho. Explicando-se o Sol, explicam-se os planetas, e vice-versa.


26. Toda pluralidade quer resolver-se em unidade. Tudo mostra uma tendência ascensional. A forma inferior aponta para a superior, a superior para a suprema, desde os mais exíguos exportadores da vida, desde o radiolário, o molusco, o anfíbio, o vertebrado, até ao homem, como se todo o mundo animal fosse somente um museu destinado a apresentar a gênese da humanidade.


27. E neste ponto de vista, unicamente nele, é que o velho bastão do sábio, a nua realidade, o ramo seco dos fatos, reverdece e deita flores; a ciência assume um caráter poético. Quando tinha a pretensão de explicar um réptil ou um molusco isolando-o, era como se ela pretendesse achar a vida nos cemitérios. Molusco, réptil, homem, anjo mesmo, se quiserem, só existem, no sistema, no parentesco. Toda forma animal ou vegetal é um passo inevitável pelo caminho da força criadora.


28. O atrativo da química repousa principalmente na convicção de ter da matéria uma massa igual, mas sem o mínimo vestígio da forma primitiva. O mesmo sucede com as transformações animais, por exemplo, com a larva e a mosca, o ovo e a ave, o embrião e o homem. Destarte vemos que todas as coisas se desvestem, e da sua antiga forma escorregam para uma nova; que nada permanece estável, senão aqueles fios invisíveis, que chamamos leis, e a que tudo se acha ligado.


29. Como a língua se encerra no alfabeto, assim a natureza, o jogo das suas forças, encerram-se no átomo. Que significação tem tudo isto? Qual a moralidade que transluz deste imenso apólogo do universo?


30. É a questão eterna da metafísica, da poesia e da religião. Não nos incumbe resolvê-la. O único sentido superior que se nos depreende da observação do mundo, é que tudo parece penetrado de um pensamento homogêneo; e quase podíamos afirmar com o Carlyle americano, acima citado: “Há somente um animal, uma planta, uma matéria, uma força. Pesando esta monstruosa unidade, o indagador nota que todas as coisas na natureza — animais, montanhas, rios, estações, árvores, pedras, ferro, vapor — se acham em misteriosa relação com o seu próprio pensamento e com a sua própria vida”.


31. Assim é certo que tudo se transforma, exceto a transformação mesma, que tem a constância da lei; e como o processo transformístico se reduz, em última análise, à passagem de um estado a outro estado, há razão para dizer que também tudo se move. Mas o que é o movimento? É a mudança original, que repousa no fundo das demais mudanças da natureza. Todas as forças elementares são forças moventes, e o alvo supremo das ciências naturais consiste justamente em achar os movimentos ou os princípios motores, que servem de base a todas as outras mudanças.


32. Pelo caminho da análise, procurando remontar às simples causas fundamentais, pode tudo na natureza ser induzido sob o conceito do movimento. Até hoje, é verdade, só em poucos domínios científicos tem sido possível reduzir os fenômenos naturais a vibrações e abalos de um caráter determinado. Chegaram a esse ponto somente a astronomia, a acústica e a ótica. Nada obsta, porém, que a conquista vá mais longe.


33. Os fenômenos do universo, ao menos os que caem sob os nossos sentidos, por mais incongruentes que pareçam entre si, são todos redutíveis, como frações diferentes a um mesmo denominador. Este denominador é o movimento. Uma ligeira prova, e a tese será facilmente compreendida. Eis aqui: os astros brilham, as flores desabrocham, o vento silva, o mar estua, o raio fuzila, o leão ruge, as aves cantam, o sol abrasa, o sangue circula, o coração palpita; tudo isto — brilhar, desabrochar, silvar, fuzilar, rugir, cantar, abrasar, palpitar —, e o mais que não se sujeita a uma enumeração, é um complexo de fenômenos cinéticos ou formas de motilidade.


34. Que influência não exercem sobre os seres telúricos a luz e o calor solar?! Tyndall disse: “as forças inerentes ao nosso mundo, os tesouros repletos das nossas minas de carvão, nossos ventos e nossos rios, nossas frotas, exércitos e canhões são produzidos por uma pequena parte da força viva do Sol, que aliás não cobre, nem sequer 1/2.300.000.000 da força inteira”.


35. Que é, porém, essa força viva — ou seja luz, ou calor, ou magnetismo, ou electricidade —, senão unicamente força motriz?


36. O conceito do movimento, considerado assim como a expressão mais simples da imensa variedade dos fenômenos naturais, dá lugar a urna intuição científica do mundo, que é exata no seu princípio, no seu ponto de partida — a existência de uma só lei —, mas torna-se inaceitável, quando antecipa as suas conclusões e pretende sustentar que a explicação mecânica abrange a totalidade dos fatos, que não há exceção possível.


37. É a doutrina haeckeliana, é o monismo naturalístico do sábio professor de Jena. Mas não podemos conformar-nos com ela. À intuição monística de Haeckel achamos preferível a do filósofo Noiré, que nos parece dar melhor conta da realidade das coisas.


38. Com efeito, o monismo de Noiré, que pode ter o nome de monismo filosófico em oposição ao naturalístico de Haeckel, assenta em base mais larga. A sua ideia diretora é que o universo compõe-se de átomos, inteiramente iguais, que são dotados de duas propriedades: uma interna, o sentimento, e outra externa, o movimento. Bem como os átomos, o sentimento e o movimento, que lhes são inerentes, são também originariamente iguais. Destas duas propriedades originárias, inseparáveis, resulta todo o desenvolvimento, ou antes, o que se chama desenvolvimento, é a soma ou o produto de ambas; de modo que todo e qualquer desenvolvimento é redutível a uma modificação do movimento, mas também, e ao mesmo tempo, todo e qualquer desenvolvimento é redutível a uma modificação do sentimento. [2]


Nota 2: Qualquer senhor, mestre ou discípulo, que não tiver cultura ou pelo menos leitura filosófica suficiente, faria bem em abster-se de dar juízos decisivos sobre tais assuntos, com que tem tido a felicidade de não estragar o seu talento. Aceite in limine, como um crente, ou rejeite in limine, como um descrente; não lhe cabe outro direito.


39. A coisa não é fácil como a tabuada; mas nem por isso deixa de ser compreensível e digna de aceitação. O que o monismo, em falta de expressão mais apropriada, chama sentimento, não é diverso do que Schopenhauer chamou vontade, nem mesmo estaria longe de poder substituir-se pela palavra espírito, se a velha filosofia não nos tivesse habituado a formar do espírito uma ideia falsa, na qual assenta o erro do dualismo.


40. As duas propriedades referidas, posto que inseparáveis, com o andar dos tempos — isto é, dos séculos de séculos, ou milênios de milênios —, chegam ao ponto de manterem-se entre si numa razão inversa: ao maximum de movimento corresponde o minimum de sentimento, e vice-versa. É a diferença que vai do mundo anorgânico ao mundo orgânico superior.


41. O monismo filosófico é conciliável com a teleologia, não tem horror às causas finais; ao passo que o naturalístico só admite as causas eficientes, e crê poder com elas fazer todas as despesas de explicação científica.


42. É aí que nos separamos do grande mestre de Jena. O mecanismo, já o dissera Kant, não é suficiente para dar a razão dos produtos orgânicos; em relação à forma dos organismos há sempre um resto mecanicamente inexplicável. Ora, esta inexplicabilidade mecânica aumenta gradualmente, à proporção que os organismos são mais desenvolvidos e as funções mais complicadas; por conseguinte, quando se atravessa toda a série de seres organizados, e chega-se a formações superiores, como o homem, a família, o Estado, a sociedade em geral, o mecanicamente inexplicável já não é um resto, mas quase tudo. O que há de restante, exiguamente restante, é a parte do mecanismo, a parte do movimento.


43. Eis porque, tratando-se da lei geral do movimento, importa adicionar-lhe a do desenvolvimento. A tese tudo se move, é verdadeira, porém de uma verdade parcial, que é preciso completar e esclarecer por esta outra: tudo se desenvolve. E o caminho que leva ao desenvolvimento dos seres, diz Noiré, é a constante elevação do sentimento, da propriedade interna dos mesmos seres. Esse caminho nos conduz da primeira esfera de névoa do nosso sistema solar à formação da Terra; daí aos primeiros elementos de matéria animal; daí ao primeiro homem, para chegar enfim à humanidade hodierna, que é propriamente o que interessa ao nosso estudo. Um imenso caminho, sem dúvida, mas o moderno pensamento filosófico não conhece outro. [3]


Nota 3: O autor destes estudos ousa perguntar: se o novos Estatutos das Faculdades de Direito exigem como preparatório o estudo da zoologia — e a zoologia está cheia dos nomes de Darwin e Haeckel; e a filosofia, sem abdicar a sua independência, procura utilizar-se dos dados zoológicos, naturalísticos, em geral —, não é pôr-se de acordo até com o pensamento do governo, fazer preceder ao estudo do direito essa nova ordem de ideias?


III


A sociedade é a categoria do homem como o espaço é a categoria dos corpos


44. Na linguagem filosófica, a palavra categoria é empregada no sentido de uma forma, um esquema do pensamento, ou uma condição a priori, sem a qual não há conhecimento possível.


45. Em rigor, e de acordo com a filosofia kantesca, o espaço não entra propriamente na tábua das categorias; é uma das duas formas puras e originais, em que a razão molda todo o material sensível. A outra é o tempo. Mas não havemos mister desse rigor. O que serve aqui ao nosso fim, é a ideia de que, assim como os corpos não podem ser percebidos, quer em todas, quer em parte das suas propriedades, senão ocupando um espaço, do mesmo modo o homem, o homem do direito, da ciência que nos ocupa, não pode ser pensado, estudado, analisado, senão sob o esquema social, como membro de uma sociedade.


46. Não nos interessa, nem viria a propósito, agitar o problema da idealidade ou realidade do espaço, e saber quem tem razão, se Helmholtz [Hermann von Helmholtz], de um lado, ou Stuart Mill e Bain, de outro; se os nativistas ou os empiristas; porém dado que entrássemos nesse assunto, o termo de comparação não perderia o seu valor. Segundo Kant o espaço tem ao mesmo tempo uma idealidade transcendental e uma realidade empírica. Sob uma semelhante dupla face, também a sociedade se oferece à nossa apreciação: a face real, que entra no domínio da ciência, que pode ser objeto de estudo, e a face ideal, que é uma mera condição formal, apriorística de todos os fenômenos éticos e jurídicos. Isto não é indiferente para a questão da existência ou não existência de uma sociologia, que entretanto pomos de lado, por ser alheia ao ponto. [4]


Nota 4: Ainda outra analogia, que se pode tirar da definição do espaço dada por Herschel: “space in its ultimate analysis is nothing but an assemblage of distances and directions”. A sociedade será também, em última análise, outra coisa mais do que uma reunião de distâncias e direções? Que é, no fundo do seu conceito, a chamada sociedade humana, senão isto mesmo?


47. Parece, à primeira vista, que a tese do programa destoa das antecedentes, e quase que se ressente de um pouco de anacronismo. Não é somente o homem que apresenta caráter social; a sociabilidade pode tão pouco servir de diferença específica na definição do ente humano, quão pouco pode, por exemplo, a faculdade de respirar por pulmões, que é comum a todos os mamíferos, como é comum a muitos animais o viverem associados.


48. Mas a questão é outra. A sociedade, de que se trata, não é a natural, cuja observação e análise pertence à zoologia.


49. Quando ainda no estado primitivo, o homem procedia em tudo como animal, só obedecendo ao princípio da luta física pela existência. É certo que já nesse estado originário da sociedade humana, qualquer grupo social, ou fosse composto de uma família, ou de um tronco, logo que os indivíduos se reuniam a formar um todo, portava-se como um organismo, dotado de forças comuns, e buscando atingir um alvo comum.


50. Mas também o reino animal nos mostra uma igual reunião de indivíduos, que vivem uns com outros e se nutrem, sob a observação da lei da divisão do trabalho. Semelhantes aos homens associados, esses animais desenvolvem, por meio de recíprocos reflexos e simpatias nervosas, instintivos impulsos, conceitos e necessidades comuns. Em monstruosos corpos de exército eles emigram, sustentam guerras entre si e com inimigos externos, aniquilam os seus adversários com as suas habitações, ou reduzem à escravidão espécies aparentadas. As últimas observações sobre o modo de vida das abelhas, e particularmente das formigas, chegaram, neste assunto, às mais surpreendentes descobertas.


51. Entretanto não exageremos o sentido dos fatos. No reino animal, todos esses fenômenos não se elevam acima do estado primitivo. Depois que o desenvolvimento social tem atingido um certo grau, aí fica estacionado, senão é que algumas vezes toma uma marcha regressiva. Entre os vertebrados superiores mesmos o combate pela vida não passa de um combate puramente físico a um social. As simpatias permanecem instintivas; as guerras têm sempre como resultado, mediato ou imediato, a completa destruição do inimigo.


52. A sociedade do homem tem outro aspecto. Ela é ao mesmo tempo uma causa e um efeito da própria cultura humana. No reino animal, os indivíduos, quase exclusivamente, só podem reunir-se uns com outros pelo caminho das relações sexuais, e isto mesmo nos graus mais próximos de procedência congênere. Ao contrário, o homem pode unir-se com os seus iguais, sem atenção às distinções de raça ou de nacionalidade, não só por aquele caminho, mas também e sobretudo pela reciprocidade social.


53. Não raras vezes, em um mesmo lugar, convivem duas, três e mais nacionalidades, falando línguas diversas e até pertencendo a religiões diferentes, sem que por isso deixem de formar um todo político firme e compacto. Isto porém só é próprio da espécie humana.


54. O instinto do trabalho, da atividade econômica, leva algumas espécies animais a constituírem associações, que aos olhos do naturalista parecem miniaturas de monarquias ou de repúblicas. É o que se observa, por exemplo, nos formigueiros e nas colmeias. Mas é digno de nota que aí a sociedade não reage beneficamente sobre os seus membros. A abelha de hoje não sabe compor o seu mel com mais habilidade do que a abelha de Virgílio. O caráter distintivo da associação humana está justamente nessa reação do todo sobre cada uma das partes donde resultam as mudanças e melhoramentos ulteriores.


55. Goethe já tinha dito: “O olho é um produto da luz”. A verdade desta sentença a respeito de todos os órgãos vegetais e animais, tem sido plenamente demonstrada pelos progressos da biologia moderna. Com igual justeza pode-se também dizer que os órgãos nervosos superiores do homem são o produto da sociedade. Tudo que constitui o homem de hoje, o homem do direito, da moral, da religião… é um produto social.


56. Assim quando Lazarus Geiger disse “A língua criou a razão”, poder-se-ia acrescentar: e a sociedade criou a língua. Mas sem língua e sem razão não se concebe a vida humana; logo esta só é tal, só pode ser tal no seio da sociedade.


IV


Impossibilidade de uma sociologia como ciência compreensiva de todos os fenômenos da ordem social


57. Se para justificar o nome de ciência, atribuído a esta ou àquela espécie de conhecimentos, bastasse alegar que desde antigos, antiquíssimos tempos, filósofos e pensadores de primeira grandeza tentaram dar a esses conhecimentos um caráter científico, procurando organizá-los e reduzi-los a sistema, a sociologia ou a ciência da sociedade seria ao certo uma das mais autorizadas.


58. Porquanto, com a primeira reflexão que o homem fez sobre a origem das coisas, surgiu também a primeira reflexão que ele fez sobre a ordem das coisas. É o começo de toda a filosofia. Diz bem Eduardo Lasker: “uma genética e uma ética são as formas primitivas do saber humano”. A mesma necessidade que levou o homem a indagar das causas geradoras do universo, o impeliu também para a pesquisa de regras ou de princípios diretores da vida social.


59. Pode-se até afirmar que a ética precedeu a genética, no sentido de que, bem antes que os espíritos reduzissem à forma científica os seus conhecimentos sobre a natureza, já havia uns vislumbres de ciência prática. A época dos Anaxágoras e dos Demócritos veio depois da dos Cleóbulos e dos Tales. A sabedoria gnômica dos sete sábios antecedeu às especulações metafísicas das escolas gregas. As sentenças ou máximas, que se lhes atribui, são Induções baseadas na observação dos fatos e relações sociais. Assim, quando Pítaco dizia: pondera bem o tempo; ou Cleóbulo aconselhava: moderação em tudo; ou Periandro de Corinto: refletir, antes de obrar; eram os primeiros lineamentos de uma ciência futura, que sob o nome de política, ou de sociologia, ou sob outro qualquer título, havia ainda de pretender entrar no conhecimento das leis que regem a sociedade humana, e assim contribuir para a sua melhor direção. [5]


Nota 5: Não há exagero em dizer que ainda hoje a paremiologia ou ciência dos provérbios é a mais alta expressão da sociologia; em matéria de experiência da vida social, o espírito humano não pôde ir além dessas fórmulas, que encerram por assim dizer a quinta-essência da observação cotidiana de inúmeras gerações. Fora das parêmias, propriamente ditas, pode-se afirmar que toda as proposições gerais, que se referem à vida do homens em sociedade, e que não pertencem a uma ciência já organizada e reconhecida, são outras tantas teses sociológicas; de modo que, ainda atualmente, os órgãos natos, os maiores representantes da sociologia, são os jornalistas, os oradores públicos, os tribunos populares. Não é preciso mais nada, para bem caracterizar a pretendida ciência. Quando o jornalista diz, por exemplo: “os povos têm o seu dies irae, que faz os tronos e as coroas rolarem no pó”; ou o orador e tribuno popular: “a liberdade   como o Cristo, morre, mas ressuscita”; onde acham eles todos esses princípios, todas essas proposições dogmáticas? Numa ciência feita? Não: em uma ciência sempre por fazer, e que cada um vai fazendo a seu modo: a sociologia*.


* Nota do Editor: para que se compreenda melhor essa crítica da concepção de uma ciência dos fenômenos sociais, com base no determinismo de uma causalidade eficiente ou mecânica, ver do mesmo autor o artigo Glosas Heterodoxas a Um dos Motes do Dia, ou Variações Antissociológicas; texto disponível em: http://textosdefilosofiabrasileira.blogspot.com/2012/07/glosas-heterodoxas-um-dos-motes-do-dia_26.html


60. Entretanto a cultura helênica prosseguiu na sua marcha. Com a revolução operada por Sócrates, a ciência da natureza [physis] ou a física [physica], isolou-se da ciência do homem ou filosofia [philosophia] propriamente dita, que passou a ser metafísica [metaphysica]. A esta incorporou-se a ciência de Deus, bem como a da sociedade. Todos os grandes sistemas filosóficos fizeram sempre a sua parte de sociologia. Platão e Aristóteles foram também sociólogos. Mas o que há enfim de realmente assentado, depois de tantos séculos de observação e de estudo, no que toca a uma verdadeira ciência social? Coisa nenhuma.


61. Os sociólogos modernos não desconhecem esta verdade; porém buscam enfraquecê-la pela consideração da impropriedade do método, até hoje aplicado à sociologia, que eles julgam dever sujeitar-se aos mesmos processos lógicos das ciências naturais, para tornar-se então efetivamente capaz de resolver o seu problema.


62. Não deixam de ter razão os que assim acusam as velhas tentativas sociológicas de vaguidão especulativa e inanidade metafísica; mas nem por isso é menos censurável a ilusão em que laboram, quando pensam remediar o antigo maI com a simples mudança de método. A questão principal não é de método, mas de objeto. A sociologia não tem um, que possa ser regularmente observado. Se ela pretende alguma coisa séria, é sem dúvida abranger no seu círculo de observação a totalidade dos fenômenos sociais e descobrir as respectivas leis. É pelo menos o que diz Lilienfeld [Paul von Lilienfeld], um sociólogo alemão:


Estado, Igreja, ciência, arte, vida comunal, direito, força, liberdade social, não são especulações, porém realidades, como a forma e o movimento dos corpos. A sociologia não pode negar, nem deixar despercebidas essas realidades; ela deve procurar inquiri-las e explicá-las.*


* Nota do Editor: tais considerações de Lilienfeld encontram-se em sua obra Gedanken über die Socialwissenschaft der Zukunft (Reflexões sobre a ciência social do futuro, 1873); texto disponível em: https://archive.org/details/gedankenberdie00liliuoft/page/n9/mode/2up


63. Mas isto será possível? Não nos paguemos de palavras vãs. O positivismo nos fala de uma estática e de uma dinâmica social, aquela compreendendo as leis da existência, e esta as leis do desenvolvimento da sociedade; porém a pergunta surge espontânea: que sociedade? A humana por certo.


64. Mas a frase sociedade humana não passa de frase, ou é simplesmente a soma dos mil e quatrocentos milhões de terrícolas. No sentido jurídico, moral, religioso, político e até econômico ou comercial mesmo, não tem valor nenhum.


65. Se, porém, o objeto da ciência não é a sociedade em geral, mas esta ou aquela, geográfica e historicamente determinada, não diminuem por isso as dificuldades de observação, e acresce que teríamos tantas sociologias, quantos são os grupos sociais, que mostram um caráter distinto e um desenvolvimento mais ou menos homogêneo, ou sejam raças, ou povos, ou Estados, o que aliás não merece uma refutação.


66. A divisão das condições da vida social em estáticas e dinâmicas é belamente simétrica, e não deixa de ter o seu fundo de verdade. Mas a ciência não vive da simetria, do arquitetônico das suas divisões; antes de tudo, ela vive de fatos. O saber que tais condições existem, é um bom princípio regulador; mas nada aproveita, enquanto não se sabe quais e quantas são elas, como se determinam o seu valor e a sua recíproca influência.


67. Este conhecimento é impossível.


68. Não obstante a improficuidade dos seus esforços, os sociólogos continuam a gastar papel e tinta. Um insigne dentre eles, o fisiologista francês Gustave Le Bon, não tem a mínima dúvida sobre as justas pretensões da tal ciência. No empenho de sustentá-las, ele apresenta quatro hipóteses, únicas possíveis, de explicação dos fenômenos sociais, e excluindo as três primeiras, que julga inaceitáveis, só deixa de pé a última, que é justamente a sua tese. Ei-las:


1. um poder superior, chamado Deus ou Providência, dirige a seu bel-prazer as ações dos homens;


2. os acontecimentos são o resultado do acaso;


3. os acontecimentos são a consequência das vontades humanas;


4. os acontecimentos representam uma cadeia de necessidade, estreitamente ligada, e trazem em si as causas de sua evolução fatal.


69. Dividida assim a questão em quatro pontos de vista, aparentemente irredutíveis, nada mais fácil do que escolher um deles e tirar então por meio da lógica as consequências desse pressuposto.


70. Mas o erro é evidente. A separação exclusiva dos membros da divisão não tem assento nos fatos; é puro trabalho especulativo, um resultado de análise, que procede por abstração. Concedendo-se ao espírito científico, ao desabusado espírito do tempo, que Deus seja banido da história, que seja um ingrediente inútil na mecânica social, nem por isso os outros três fatores deixam de poder coexistir. A quem, pois, dissesse que a sociedade se mantém pela combinação de uma tríplice ordem de fenômenos, como provar o contrário?


71. E enquanto não se demonstrar que o acaso é de todo uma palavra sem sentido — e que as vontades humanas são forças naturais, são simples forças motrizes, como o calor ou a electricidade —, o que vale a sociologia? Certamente nada.


72. A questão do acaso é mais séria do que se supõe. Carlos Ernesto Baer o define: um acontecimento que coincide com outro, sem achar-se preso a ele por nenhum nexo causal. Lazarus Geiger diz que o acaso está entretecido e indissoluvelmente ligado com tudo que se desenvolve. Noiré é desta mesma opinião. E, bem ponderado, é difícil não abraçá-la.


73. Com efeito, a sociedade e a natureza apresentam cotidianas coincidências, cuja explicação não pode ser dada por nexos causais. Como, porém, o espírito humano sente a necessidade de ligar todo fenômeno a uma causa, ele transporta muitas vezes esta lei do pensamento a domínios, onde ela não vigora, e daí resulta uma porção de contrassensos, que ainda hoje perturbam a marcha regular da indagação científica. A superstição e a crença no milagre descendem, em grande parte, dessa conversão arbitrária do casual em causal.


74. É bem sabido como a lógica do povo continua a amarrar à cauda dos cometas a peste, a guerra, e em geral todas as calamidades, que porventura depois deles apareçam na Terra. Quanto são, porém, infundadas estas e outras iguais crenças, basta a seguinte consideração para mostrá-lo. Suponhamos que uma estrela — e a hipótese não é gratuita —-, a estrela Alcyone, por exemplo, de repente desaparecesse do céu; mas também suponhamos que esse fato viesse imediatamente depois de um grande acontecimento humano —- a destruição de um vasto império, a queda do papado, ou outro qualquer sucesso notável. Proclamada a morte da estrela pela extinção da sua luz, qual seria o crente que não visse no desaparecimento do astro um indício da cólera divina, motivada ou causada pelo fato dado no mundo?


75. Entretanto é certo que, se isto porventura acontecesse no correr do ano vigente, a estrela em questão nada tinha que ver com as coisas que figuramos, pela simples razão de já haver morrido há séculos. O último alento vital exalado por ela teria sido em 1312, pois que a sua luz gasta não menos de 573 anos para chegar até nós. Não haveria portanto nenhuma relação de causalidade, e a aparente sucessão imediata dos dois fenômenos seria um mero acaso.


76. Como se vê, o acaso figura legitimamente na ordem das ideias que tem um conteúdo positivo. Não pode, pois, ser de todo eliminado, para deixar imperar somente o puro causalismo das forças naturais.


77. Deus mesmo — o obscuro e incognoscível Deus! —, merece ele com efeito não ser levado em conta pelos arquitetos do edifício sociológico? A parte que lhe compete no mecanismo da sociedade, é tão nula, como a que lhe cabe no mecanismo da natureza? Excluído Deus como poder, como força criadora de fenômenos naturais, é fácil também excluí-lo como poder, como força motivadora de fenômenos sociais? Estas questões parecem ter algum valor.


78. Não é decerto em nome de Deus, que os planetas giram em torno do Sol, e as falenas em torno da luz, que vai queimá-las; não é em nome de Deus, que o mar se quebra na praia, ou os rios caem dos montes, ou a chuva estraga as searas, ou a peste mata os rebanhos. Mas é incontestável que o homem, em nome de Deus, podendo fazer muita coisa ruim, também faz muita coisa boa. Não é preciso ser devoto para afirmá-lo; a sinceridade científica obriga a reconhecê-lo.


79. Se pois Deus pode ser posto fora do universo, como força real mediata ou imediatamente eficaz, não pode sê-lo da sociedade, como força ideal, que sob a forma psicológica do motivo concorre para um sem número de ações elevadas, como também para um sem número de ações indignas. Ainda que ideal, é sempre força, aliás não suscetível de explicação mecânica, e como tal destinada a perturbar os cálculos de qualquer ciência, que pretenda reduzir os movimentos da dinâmica social à exatidão das fórmulas da dinâmica celeste.


80. Em última análise as quatro hipóteses de Le Bon me parecem quatro pés, indispensáveis todos à marcha da sociedade. Se dentre eles algum se mostra manco e pesado, é a tal cadeia de necessidades, pois até hoje, no que toca à vida histórica dos povos, não tem passado de um conceito a priori, donde a dialética pode tirar bonitas consequências teóricas, mas a prática nada tem haurido de sério e aproveitável.


V


O direito é um produto da cultura humana. Conceito do direito*


* Nota do Editor: para melhor compreensão deste tópico, é recomendável a leitura do artigo, do mesmo autor, Sobre Uma Nova Intuição do Direito (com destaque para a Parte VI, §135-§157, sobre a antítese natureza/cultura); texto disponível em: http://textosdefilosofiabrasileira.blogspot.com/2009/05/sobre-uma-nova-intuicao-do-direito-1881.html


81. Dizer que o direito é um produto da cultura humana importa negar que ele seja, como ensinava a finada escola racionalista e ainda hoje sustentam os seus póstumos sectários, uma entidade metafísica, anterior e superior ao homem.


82. A proposição do programa é menos uma tese do que uma antítese; ela opõe à velha teoria, fantástica e palavrosa, do chamado direito natural, a moderna doutrina positiva do direito oriundo da fonte comum de todas as conquistas e progressos da humanidade, em seu desenvolvimento histórico.


83. Faz-se porém preciso deixar logo estabelecido o que se deve entender por cultura, em que consiste o processo cultural.


84. Antes de tudo: o conceito da cultura é mais amplo que o da civilização. Um povo civilizado não é ainda ipso facto um povo culto. A civilização se caracteriza por traços, que representam mais o lado exterior do que o lado íntimo da cultura. Assim ninguém contestará, por exemplo, aos russos, aos turcos mesmos, a muitos outros povos do globo, relativamente florescentes, o nome de civilizados. Eles têm mais ou menos ordenadas as suas relações jurídicas; possuem, pela mor parte, constituições e parlamentos; aproveitam-se dos progressos da ciência, da técnica e da indústria moderna; seus altos círculos sociais falam diversas línguas, leem obras estrangeiras, vestem-se conforme a moda novíssima de Paris, comem e bebem, segundo todas as regras da polidez. Porém não são povos cultos.


85. Estas últimas ideias, que nos parecem exatas, tomamo-las de empréstimo a Cristiano Muff, um escritor alemão, mas alemão insuspeito para os espíritos devotos, por ser um dos que trazem sempre na boca o nome de Deus. Já se vê que o conceito da cultura é muito mais largo e compreensivo do que se pode à primeira vista supor. Sem uma transformação de dentro para fora, em uma substituição da selvageria do homem natural pela nobreza do homem social, não há propriamente cultura.


86. Quando pois dizemos que o direito é um produto da cultura humana, é no sentido de ser ele um efeito, entre muitos outros, desse processo enorme de constante melhoramento e nobilitação da humanidade; processo que começou com o homem, que há de acabar somente com ele, e que aliás não se distingue do processo mesmo da história.


87. Determinemos melhor o conceito da cultura. O estado originário das coisas, o estado em que elas se acham depois do seu nascimento enquanto uma força estranha, a força espiritual do homem, com a sua inteligência e a sua vontade não influi sobre elas, e não as modifica, esse estado se designa pelo nome geral de natureza.


88. A extensão desta ideia é constituída por todos os fenômenos do mundo, apreciados em si mesmos, conforme eles resultam das causas que os produzem, e o seu característico essencial é que a natureza se desenvolve segundo leis determinadas e forças que lhe são imanentes; não se afeiçoa de acordo com fins humanos. Quando isto porém acontece, quando o homem inteligente e ativo põe a mão em um objeto do mundo externo, para adaptá-lo a uma ideia superior, muda-se então o estado desse objeto, e ele deixa de ser simples natureza.


89. É assim que se costuma falar de riquezas naturais e de produtos naturais, significando alguma coisa de anterior e independente do trabalho humano [6]. Mas o terreno em que se lança a boa semente, a planta que a mão do jardineiro nobilita, o animal que o homem adestra e submete a seu serviço, todos experimentam um cultivo ou cultura refreadora da indisciplina e selvageria natural. A cultura é pois a antítese da natureza, no sentido de que ela importa uma mudança do natural, no intuito de fazê-lo belo e bom. Esta atividade nobilitante tem sobretudo aplicação ao homem. Desde o momento em que ele põe em si mesmo e nos outros, ciente e conscientemente, a sua mão aperfeiçoadora, começa ele também a abolir o estado de natureza, e então aparecem os primeiros rudimentos da vida cultural.


Nota 6: Os fabulistas do direito natural mal compreendem que fazem dele um irmão dos frutos que se colhem nas selvas, ou do ouro e prata que se extraem das minas, ou até dos mariscos que se apanham na praia! O direito natural vem a ser, segundo eles, o direito sem mistura de realidade positiva, considerado em sua pureza original; uma espécie de direito em pó ou de direito em barra, que vai sendo pouco a pouco reduzido a obra… Não há maior contrassenso.


90. Vem aqui muito a propósito as seguintes palavras de Júlio Fröbel [Carl Ferdinand Julius Fröbel]:


A cultura em oposição à natureza é o processo geral da vida, apreciado, não segundo a relação de causa e efeito, mas segundo a de meio e fim. Ela é o desenvolvimento vital, pensado como alvo, e até onde chegam os meios humanos, tratado também como alvo; é a vida mesma considerada no ponto de vista da finalidade, como a natureza é a vida considerada no ponto de vista da causalidade.*


* Nota do Editor: tais considerações de Julius Fröbel encontram-se em sua obra System der socialen Politik, sobretudo nos capítulos 6 e 7, p. 35-56; texto disponível em: https://archive.org/details/systemdersocial01frgoog/page/n7/mode/2up?view=theater


91. Eis aí. No imenso mecanismo humano, o direito figura também, por assim dizer, como uma das peças de torcer e ajeitar, em proveito da sociedade, o homem da natureza, bem ao contrário do que pensava Rousseau, para quem tudo consistia “à ne pas gâter l’homme de la nature en l’appropriant à la société*.


* Nota do editor: tradução livre: “… em não estragar o homem da natureza, em sua apropriação pela sociedade”; cf. Rousseau, Julie ou La Nouvelle Héloïse, Carta VIII do Tomo V.


92. O direito é, pois, antes de tudo, uma disciplina social, isto é, uma disciplina que a sociedade impõe a si mesma na pessoa dos seus membros, como meio de atingir o fim supremo — e o direito só tem este — da convivência harmônica de todos os associados. Daí vem von Ihering dizer que o fim ou o alvo é o criador de todo o direito. Não há instituto jurídico, por mais elevado que seja na escala evolucional, que não tenha um caráter finalístico, ou um resto da forma primitiva do interesse e utilidade comum.


93. Este modo de conceber o direito como um resultado da cultura humana, como uma espécie de política da força que se restringe e modifica, em nome somente da sua própria vantagem — não como um presente divino, mas como um invento, um artefato, um produto do esforço do homem para dirigir o homem mesmo —, esta concepção ainda conta presentemente decididos adversários.


94. São aqueles que viciados por uma péssima educação filosófica habituaram-se a ver no direito e na força duas coisas de origem inteiramente diversa, ou dois poderes, como Arimã e Ormuz, que disputam entre si o primado sobre a Terra; quando a verdade é que o pio Ormuz do direito e o fero Arimã da força constituem um mesmo ser; Ormuz não é mais do que Arimã nobiIitado. Disse-o também Rudolf von Ihering.


95. E é digno de ponderar-se: os sectários de um direito filho do céu, ou obra da natureza, os que não podem compreender que o homem tenha podido forjar a sua própria cadeia, criando regras de convivência social, estão no mesmo pé de simplicidade e lastimável pobreza de espírito, em que se acha o povo ignorante, quando atribui a causas divinas muita coisa que afinal se verifica ser efeito de causas humanas.


96. Um exemplo basta para confirmá-lo. É sabido como ainda hoje, nas ínfimas camadas da rudeza popular, mantém-se a velha crença nas pedras do trovão ou do corisco, que se entranham pela terra sete braças, e no fim de sete anos voltam à superfície, onde é feliz quem as encontra, porque tem nelas um talismã inestimável.


97. Entretanto o progresso dos estudos pré-históricos já chegou a estabelecer como verdade incontestável que essas pedras são instrumentos de que serviram-se os homens primitivos. Ainda no começo do século passado (1734), quando Mahudel [Nicolas Mahudel], na academia de Paris, atribuiu-lhes uma tal procedência, foi objeto de escárnio público. Mas de que se tratava então? Não era de dar uma origem humana àquilo que se supunha, sem exceção dos próprios sábios da época, formado nas nuvens e caído do céu? Que diferença há pois entre este e o atual espetáculo em relação ao direito, que o rebanho dos doutores ainda tem na conta de uma ordenação divina? O futuro responderá. Bem entendido: o futuro para nós, visto como em outros países já o futuro é presente.


98. Convençamo-nos portanto: o direito é um instituto humano; é um dos modos de vida social, a vida pela coação, até onde não é possível a vida pelo amor; o que fez Savigny dizer que a necessidade e a existência do direito são uma consequência da imperfeição do nosso estado. O seu melhor conceito científico é o que ensina o grande mestre de Göttingen: “o conjunto de condições existenciais da sociedade coativamente asseguradas”. Se ao epíteto existenciais adicionarmos evolucionais — pois que a sociedade não quer somente existir, mas também desenvolver-se —, aí temos a mais perfeita concepção do direito.


VI


O direito como ideia e sentimento: psicoLogia do direito. O direito como força: fisiologia e morfologia do direito


99. Há muito que se costuma dividir o direito em objetivo e subjetivo: mas nunca se refletiu bastante sobre o valor de cada um destes membros da divisão.


100. Designa-se por direito objetivo o conjunto de regras ou de princípios, estabelecidos e manejados pelo Estado, que têm por fim a ordem legal da vida; e por direito subjetivo o cunho da regra abstrata, constituindo uma autorização concreta da pessoa.


101. São exatas estas definições. Mas dado até de barato que se definam de outra maneira aquelas duas faces do direito, aqueles dois únicos modos de compreendê-lo e apreciá-lo, o que fica fora de dúvida é que o direito subjetivo indica sempre alguma coisa de pessoal, de característico e inerente à personalidade humana.


102. E quando bem se atende que o termo subjetivo foi tomado de empréstimo à tecnologia filosófica, onde ele tem um sentido determinado, significando tudo que pertence ao mundo interior, ao mundo da consciência, facilmente se chega a perguntar, se tal subjetividade não vai até aos domínios da psicologia propriamente dita; se além da facultas agendi ou do “cunho da regra abstrata, que constitui uma autorização concreta da pessoa”, o direito não é ainda objeto de observação interna, uma forma ou um dado psicológico, emocional e mental, que abrange muito mais do que uma simples faculdade de agir.


103. Tal foi e tal é o pensamento do programa. Assim como se fala de uma psicologia da música, de uma psicologia da religião, e até mesmo de uma psicologia do amor, no sentido de estabelecer o que se passa no espírito a propósito de amor, de religião ou de música, assim também pode-se falar, e com igual significação, de uma psicologia do direito. [7]


Nota 7: Não vão porventura supor que fazemos o direito irmão da música. É uma simples comparação de que nos servimos para esclarecer o nosso pensamento. Entretanto permita-se-nos observar que não deixaria de ser um problema histórico muitíssimo importante a indagação das causas, pelas quais o povo do corpus juris, o povo donde saíram os Pompônios e os Paulos, passou a ser o povo dos Palestrinas, dos Lattès, dos Cherubinis e outros. Mas repetimos que não queremos igualar o direito à música ou à religião. Os ilustres voluntários da ignorância, que riem-se de tudo, que eles não compreendem — não esperdicem o seu desdém; reflitam um pouco e verão que a coisa é muito simples.


104. Ainda hoje se diz dos antigos romanos, que eles tinham em alto grau o senso jurídico da mesma forma que se atribui aos italianos o senso musical, o senso artístico, aos judeus o senso religioso, etc. O que é verdade a respeito dos povos ainda mais se acentua a respeito dos indivíduos.


105. O senso jurídico individual é um fato psicológico, de observação cotidiana. Ele se manifesta de dois modos: pelo sentimento do próprio, e pelo sentimento do direito alheio. O primeiro é uma das bases do caráter; o segundo uma das fontes da virtude. Ser justo não é mais do que sentir o direito dos outros e proceder de acordo com um tal sentimento. Mas este sentimento, que aliás pode elevar-se até à paixão e ao entusiasmo, não existe isolado. Verdadeira ou falsa, clara ou obscura, há sempre uma ideia que o acompanha.


106. Já se vê que não se inova coisa alguma em tratar da psicologia do direito, como nada haveria de novo em tratar, por exemplo, da psicologia pela arte. O direito não é só uma coisa que se conhece, é também uma coisa que se sente.


107. Mas estes dois momentos psicológicos não esgotam o seu conteúdo; não basta apreendê-lo como ideia e sentimento nos limites da vida interior; o que importa sobretudo é encará-lo como função, como atividade, como força. É o que dá lugar a uma fisiologia e a uma morfologia do direito.


108. São expressões estas capazes de provocar séria estranheza. Como se compreende tal fisiologia e morfologia jurídica? A pergunta é natural, e a resposta ainda mais. Comprometo-me dá-Ia completa, exigindo apenas um pouco de atenção.


109. É geralmente sabido que a palavra fisiologia sempre foi aplicada com a significação de ciência que se ocupa das funções vitais, assim como a palavra morfologia, que é de data mais recente, emprega-se no sentido de ciência das formas orgânicas. E qualquer que seja a extensão que se dê a uma e outra, o fundo permanece o mesmo. A fisiologia pressupõe a morfologia, como a função pressupõe o órgão.


110. Isto é incontestável. Pois bem; vejamos agora o que sai daí.


111. Não é de hoje, mas há muito tempo que as frases organização social, organização política, organização judicial, e outras semelhantes existem até na linguagem do vulgo. Todo mundo está de acordo sobre o sentido que se lhes atribui. Não são metáforas vãs. Se elas querem dizer alguma coisa, é exactamente que a sociedade, o Estado, a justiça se nos afiguram como seres, como todos orgânicos, análogos aos demais organismos da natureza.


112. E essa analogia foi sempre reconhecida pelas melhores cabeças pensantes. Além de Platão e Aristóteles, que são ricos de paralelos a tal respeito, basta lembrar na Antiguidade romana, Menenio Agrippa [Menenio Agrippa Lanato], que por ocasião da célebre secessio in montem sacrum, fez o povo voltar ao cumprimento dos seus deveres por meio da frisante comparação das diversas camadas e classes sociais com os diversos órgãos e aparelhos do corpo humano*.


* Nota do Editor: sobre essa referência à sedição da plebe romana no Monte Sacro (século V a. C.), como sendo um marco na história do direito enquanto negociação, consultar Studia Humanitatis – παιδεία, disponível em: https://studiahumanitatispaideia.blog/tag/menenio-agrippa-lanato/


113. Ora, onde quer que haja uma função, onde quer que se fale de função, aí há uma fisiologia; mas no grande organismo da sociedade as funções precípuas, essencialmente vitais, são as funções jurídicas; a vis organizatrix do Estado é justamente o direito. Como pois não compreender que o direito tenha uma fisiologia, quando se compreende que ele tenha as suas funções? E se a toda fisiologia corresponde uma morfologia, como a todo funcionalismo corresponde um organismo, por que achar inconcebível uma morfologia do direito? É muita opiniaticidade. [8]


Nota 8: Para maior clareza, lembramos ainda as expressões corriqueiras — órgão da justiça pública, funcionário público, função pública. Os espíritos desprevenidos acharão nelas mais um argumento em favor de nossas ideias.


114. A psicologia, a fisiologia e a morfologia do direito mantêm entre si uma certa relação hierárquica, de modo que a primeira não existe sem a segunda, e esta não existe sem a última. Mas a recíproca não é verdadeira. É possível a existência do órgão jurídico, separado da respectiva função, como também a existência da função independente da ideia e sentimento do direito.


115. As coisas em geral, enquanto apropriadas e acomodadas às necessidades do homem, são outros tantos órgãos, por meio dos quais ele funciona. Até o seu cão e o seu cavalo são projeções da sua atividade, são órgãos do seu direito. A abelha da minha colmeia, que não trabalha para si, mas para mim, é uma irradiação jurídica da minha personalidade. Isto é aparentemente estranho, mas no fundo verdadeiro.


116. A criança no berço, o próprio feto no seio maternal, já não é somente um órgão, porém um funcionário do direito, ainda que a sua única atividade, a sua única função jurídica, seja a de viver. Entretanto faltam-lhe os momentos psicológicos, mental e emocional; ausência esta que é a base filosófica da necessidade reconhecida por todas as nações cultas, da representação tutelar dos menores e desassisados. [9]


Nota 9: Estas ideias terão mais largo desenvolvimento no programa nº 13, onde se trata do direito como uma função da vida nacional. O leitor inteligente não precisa de maiores detalhes para compreender a justeza das expressões do programa. No entanto importa observar que podíamos ir muito adiante, e, além de uma fisiologia e morfologia, admitir até uma mecânica do direito. Isto seria de causar espanto; mas nós perguntaríamos apenas: que é uma forca ou uma guilhotina? Um instrumento jurídico — ninguém contestá-lo-á; porém de que natureza? A resposta é decisiva. (Vê bem o leitor que o malogrado autor destes estudos pretendia levá-los muito adiante. Pretendia desenvolver todas as teses de seu programa, que vai publicado no Apêndice).


117. Nada mais simples. Desde o martelo do operário, mais abaixo ainda, desde o machado do pobre campônio até ao pincel ou o cinzel do grande artista, estende-se a rica variedade do aparelho morfológico do direito, como função da vida nacional. A própria pena do escritor é um instrumento jurídico, é um órgão de igual função. A terra mesma, com todo o seu armazém de forças, faz parte desse aparelho.


118. Há porém a ponderar uma circunstância notável. A ordem natural do valor e importância das coisas, que servem de meios à atividade humana, não é a mesma que a ordem jurídica. Assim, a natureza estabelece a série das coisas imóveis, móveis e semoventes, para empregarmos a expressão consagrada, pouco mais ou menos como: 1, 2, 3; mas o direito a estabelece, em sentido inverso como: 3, 2, 1. É certo o que disse Börne que, só pelo fato de viver um boi é melhor do que o mais rico brilhante; porém em face do direito, como órgão de função econômica ou de trabalho, que é também função jurídica, o brilhante vale mais do que o boi.


119. Adiante voltaremos a este assunto, que nos parece mais fecundo do que talvez se suponha.


VII


Ciência do direito: definição e divisão


120. Uma vez concebido o direito como o complexo de princípios reguladores da vida social, estabelecidos e manejados pelo Estado, importa averiguar o que é e em que consiste a respectiva ciência.


121. A vida do direito no seio da humanidade, diz Pessina, requer duas grandes condições para o seu aperfeiçoamento, isto, a arte e a ciência. Cronologicamente a arte antecede a ciência, porém vai melhorando com o surgir e progredir da ciência mesma, assim como na vida econômica do gênero humano, a arte transformadora da natureza precedeu o conhecimento científico dos fenômenos naturais, para depois aproveitar-se das vitórias alcançadas com o surgir e progredir de uma ciência da natureza.


122. Quando o programa fala de uma ciência do direito, nem é no sentido das vagas especulações, decoradas com o nome de filosofia, nem no sentido de um pequeno número de ideias gerais, que alimentam e dirigem os juristas práticos. A ciência do direito, a que o programa se refere, tem o cunho dos novos tempos; não consiste em saber de cor meia dúzia de títulos do corpus juris, e tampouco em repetir alguns capítulos de Ahrens, ou qualquer outro ilustre fanfarrão da metafísica jurídica.


123. A ciência do direito é uma ciência de seres vivos; ela entra por conseguinte na categoria da fisiofilia, ou filogenia das funções vitais. O método que lhe assenta é justamente o método filogenético, do qual diz Eduard Strasburger ser o único de valor e importância para o estudo dos organismos viventes. [10]


Nota 10: Se o leitor entende, tanto melhor para si; caso porém não entenda, não é culpa nossa. Talvez nos perguntem: quem é esse senhor Eduard Strasburger? Só podemos responder que não é lente da nossa faculdade, nem candidato à deputação geral; mas é professor universitário de Jena, e o escrito dele, ao qual nos reportamos, intitula-se: Ueber die Bedeutung phylogenetischer Methoden für die Erforschung lebender Wesen*.


* Nota do Editor: tradução livre: “Sobre a importância dos métodos filogenéticos para o estudo dos seres vivos”. Texto original disponível em: https://books.google.com.br/books?hl=pt-BR&lr=&id=S-JgAAAAcAAJ&oi=fnd&pg=PP4&dq=Eduard+Strasburger,+Jenaische+Zeitschrift+für+Naturwissenschaft+8,+1874+pdf&ots=xd73AXtg2U&sig=T1YEHIG_gxdWvX4CivhRmpJ7ih0#v=onepage&q&f=false



124. Quando Alexandre de Humboldt define a vida — uma equação de condições —, a definição é verdadeira, não só quanto à vida dos indivíduos, mas também quanto à dos povos. Ora entre as condições, cuja equação forma a vida destes últimos, o direito ocupa um lugar distinto, pois ele é o conjunto orgânico dessas mesmas condições, enquanto dependentes da atividade voluntária e como tais asseguradas por meio da coação. A ciência do direito vem a ser portanto o estudo metódico e sistematizado de quais sejam essas formas condicionais, de cujo preenchimento, ao lado de outras, depende a ordem social ou o estado normal da vida pública.


125. Mas assim considerada, a ciência do direito assume feição histórica e evolutiva, apresentando por conseguinte dois únicos lados de observação e pesquisa. São os dois pontos de vista da filogenia e da ontogenia, conforme se estuda a evolução do mesmo direito na humanidade em geral, ou nesta ou naquela individualidade humana, singular ou coletiva. [11]


Nota 11: Consulte-se as obras de Haeckel, principalmente a História da criação e os Alvos e caminhos da história evolucional. Aí melhor compreender-se-á o profundo sentido das ominosas expressões ontogenia e filogenia.


126. Assim como existe, segundo Haeckel, uma ontogenia glótica, pelo que toca ao desenvolvimento linguístico do menino, e uma filogenia glótica, relativamente ao mesmo desenvolvimento dado no gênero humano, assim também se pode falar de uma ontogenia e de uma filogenia jurídica. Se é certo que a humanidade em seu começo tinha tão pouco o uso da linguagem, como ainda hoje a criança o tem, não deve haver dúvida que, no domínio jurídico, a ontogenia também seja uma repetição da filogenia. A humanidade em seu princípio não sentia nem sabia o que é direito, como não o sabe nem sente o menino dos nossos dias. [12]


Nota 12: Os doutores que pretendem felicitar a mocidade brasileira com a conservação dos cacaréus de direitos naturais, direitos inatos, originários, etc., têm um exato pressentimento da própria derrota, quando se insurgem contra estas e outras aplicações de dado naturalísticos à esfera jurídica, pois elas põem bem patente a inanidade das velhas doutrinas. E é digno de nota que ainda hoje há quem fale com todo sério de um direito primigênio, sem refletir que esta última expressão foi tomada de empréstimo à história natural, em cuja tecnologia latina é que se encontra a frase elephas primigenius. Mas quão distante o sentido de uma do da outra expressão! Aqui significando um dos maiores fósseis, um quadrúpede da época diluvial, cuja espécie desapareceu; ali porém querendo significar um primeiro direito, um direito gerador de todos os direitos humanos, o direito da liberdade, desta mesma liberdade, que aliás ainda não é de todo nascida, e que na genealogia dos direitos, segundo promete a história, há de ser o último nato. Que disparate dos tais senhores!


127. Entretanto não convém parar aí. A ciência do direito pode ainda ser considerada sob outro ponto de vista. Como ciência que indaga as relações dos homens entre si, ela se divide em várias partes, segundo as diferentes formas sociais, dentro das quais a ação do homem se desenvolve.


128. Assim costuma-se mencionar um direito interno e outro externo, conforme se trata das relações do Estado com a humanidade — o que até hoje não passa de mera aspiração —, ou das relações do Estado com os indivíduos e com as sociedades dentro dele organizadas.


129. O direito interno se ramifica em privado e público. Este por sua vez, quando limitado ao modo de organização política, forma o direito constitucional; e aplicado à indagação das leis de coexistência das comunas e das províncias com o Estado, dá origem ao direito administrativo. Tratando-se porém da segurança pública e das mais eficazes garantias da sociedade vê-se nascer o direito e o processo criminal.


130. É por uma análoga diferenciação que brotam do mesmo tronco o direito comercial e o direito eclesiástico. Mas releva advertir que todas estas divisões não alteram a natureza do direito, que pelo lado formal permanece sempre o mesmo, ainda que varie pelo lado material. O direito é um todo orgânico; as diferentes divisões a que ele se presta, não desmancham a harmonia do sistema. São resultados da análise, que entretanto ainda esperam a síntese ulterior.


VIII


Como se deve compreender a teoria de um direito natural, que não é a mesma coisa que uma lei natural do direito*


* Nota do Editor: para melhor compreensão deste tópico, é recomendável a leitura do artigo, do mesmo autor, Sobre Uma Nova Intuição do Direito (com destaque para a Parte IV, §78-§97); texto disponível em: http://textosdefilosofiabrasileira.blogspot.com/2009/05/sobre-uma-nova-intuicao-do-direito-1881.html


131. A ideia capital do programa está na combinação das duas seguintes proposições: não existe um direito natural; mas há uma lei natural do direito.


132. Isto é tão simples, como se alguém dissesse: não existe uma linguagem natural; mas existe uma lei natural da linguagem; não há uma indústria natural, mas há uma lei natural da indústria; não há uma arte natural, mas há uma lei natural da arte. Coisas todas estas que qualquer espírito inteligente compreende sem esforço, no sentido de que, perante a natureza não há língua nem gramática, não há semítico nem indo-germânico; o homem não fala nem falou ainda língua alguma, não exerce indústria, nem cultiva arte de qualquer espécie que a natureza lhe houvesse ensinado. Tudo é produto dele mesmo, do seu trabalho, da sua atividade.


133. Entretanto a observação histórica e etnológica atesta o seguinte fato: todos os povos que atravessaram os primeiros, os mais rudes estádios do desenvolvimento humano, têm o uso da linguagem; todos procuram meios de satisfazer as suas necessidades, o que dá nascimento a uma indústria; todos enfim são artífices das armas com que caçam e pelejam, dos vasos em que comem e bebem, dos aprestos com que se adornam, e até dos túmulos em que descansam.


134. Particularmente a cerâmica, a arte do oleiro, oferece neste ponto um precioso ensinamento. Encontram-se vasos por toda parte: nos míseros tapumes que constroem os indígenas da Austrália, para os protegerem contra os ventos do mar, assim como nas choças dos cafres e bantos, e nos wigwams dos selvagens da América do Norte. Encontram-se vasos nas habitações dos primeiros íncolas da Grécia, da Itália e da Alemanha, bem como nas dos antigos americanos e nas dos asiáticos [13]. Encontram- se vasos por toda a parte: sobre a mesa dos sábios, na toilette das damas, nas choupanas, nos templos, nos palácios, em todas as fases da cultura, desde a bilha de Rebeca até o lindo frasquinho de cristal, ou o ovoide de prata, que entorna pingos de essência no seio da moça hodierna.


Nota 13: Gustav Klemm, Westermann’s Monatshefte VI, 259.


135. Como se vê, são fenômenos repetidos, que, submetendo-se ao processo lógico da indução, levam o observador a unificá-los sob o conceito de uma lei, tão natural, como são todas as outras que se concebem, para explicar a constante repetição de fatos do mundo físico.


136. Assim pode-se falar de uma lei natural da indústria, ou de uma lei natural do fabrico de vasos, ou de uma lei natural do uso do fogo, tendo somente em vista a generalidade do fenômeno, nos primeiros momentos da evolução cultural e nos mais separados pontos de habitação da família humana; do mesmo modo que se fala de uma lei natural da queda dos corpos, ou do nivelamento das águas.


137. Mas nunca veio ao espírito de ninguém a singular ideia de uma indústria, de uma cerâmica, de uma arte natural, no sentido de um complexo de preceitos, impostos pela razão, para regularem as ações do homem, no modo de exercer o seu trabalho, ou de fabricar os seus vasos, ou de construir os seus artefatos. Seria esta uma ideia supinamente ridícula.


138. É isto mesmo, porém, o que se dá com relação ao direito. Como fenômeno geral, que se encontra em todas as posições da humanidade, desde as mais ínfimas até às mais elevadas, em forma de regras de conduta e convivência social, o direito assume realmente o caráter de uma lei. Mas esta lei, que se pode também qualificar de natural, não é diversa das outras mencionadas.


139. Se o direito é um sistema de regras, não o é menos qualquer mister, qualquer arte, ou qualquer indústria humana. Se as regras do direito são descobertas pela razão, não deixam de ser também oriundas da mesma fonte as normas dirigentes da atividade do homem em outro qualquer domínio.


140. A razão que entra na formação de um código de leis, ainda que seja perfeito e acabado como o corpus juris, é a mesma, exatamente a mesma, que assiste ao delineamento de um edifício, ou à confecção de um par de sapatos [14]. Dizer portanto que o direito é um conjunto de regras, descobertas pela razão, importa simplesmente uma tolice, visto que se dá como caraterístico exclusivo das normas de direito o que aliás é comum à totalidade das regras da vida social.


Nota 14: Reflitam, e verão que a verdade é esta. A razão é tão necessária para escrever-se, por exemplo, um compêndio de direito natural, como é necessária para fazer-se, por exemplo, um par de botas, ou um par de tamancos. A prova é que, se os chamados animais irracionais não têm compêndios de direito natural, também não têm tamancos nem botas.


141. Assim — para limitar-nos a poucos exemplos —, a civilidade tem regras: quem as descobriu? A dança tem regras: quem as descobriu? Não há arte que não as tenha: quem as descobriu? Ninguém ousará negar a presença da razão em todas elas; mas também ninguém ousará afirmar que haja um conceito a priori da civilidade, nem um conceito a priori da dança, ou de outra qualquer arte. De onde vem, pois, o apriorismo do direito?


142. A pergunta é séria. Uma razão que, por si só, sem o auxílio da observação, sem dados experimentais, é incapaz de conceber a mais simples regra técnica, é incapaz de elevar-se à concepção, por exemplo, de uma norma geral de fabricar bons vinhos, ou de preparar bons acepipes, como pode tal razão ter capacidade bastante para tirar de si mesma, unicamente de si, todos os princípios da vida jurídica?


143. Os teimosos teoristas de um direito natural são figuras anacrônicas, estão fora de seu tempo [15]. Se eles possuíssem ideias mais claras sobre a história do tal direito, não se arrojariam a tê-lo, ainda hoje, na conta de uma lei suprema, preexistente à humanidade e ao planeta que ela habita.


Nota 15: Vale a pena fazer aqui a seguinte observação. O leitor note bem: ao profundo conhecedor do direito civil, dá-se o nome de civilista; ao do direito criminal, o nome de criminalista; ao do direito público, o de publicista; ao do comercial, o de comercialista, etc., etc.; que nome dá-se, porém, ao sábio do direito natural? A nossa língua não o conhece. Isto é significativo.


144. Como tudo que é produzido pela fantasia dos povos, ou pela razão mal educada dos espíritos diretores de uma época determinada; como a Alma, como Deus, como o Diabo mesmo, do qual já houve em nossos dias quem se aventurasse a escrever a crônica [16], o direito natural também tem a sua história. Não é aqui lugar próprio para apreciar o processo da formação desse conceito, desde o seu primeiro momento na antiga filosofia grega; mas podemos estudá-lo entre os romanos, cujo alto senso jurídico é uma garantia em favor dos resultados da nossa apreciação.


Nota 16: Por exemplo: do Dr. Karsch [Anton Ferdinand Franz Karsch], Naturgeschichte des Teufels.


145. Antes de tudo, é um fato incontestável que a ideia de um direito natural foi inteiramente estranha aos romanos, durante muitos séculos. Como todas as nações da Antiguidade, Roma partiu, em seu desenvolvimento político, do principio da exclusividade nacional, em todas as relações sociais.


146. Mas pouco a pouco, e à medida que o povo romano foi se pondo em contato com outros povos, abriu-se caminho a uma nova intuição oposta àquelas tendências de exclusivismo nacional, e como resultado dessa intuição apareceu, na esfera jurídico-privada, o conceito do jus gentium.


147. O velho direito romano, o orgulhoso jus civile romanorum, era uma espécie de muralha inacessível ao estrangeiro. Mudaram-se, porém, os tempos, as condições de existência do grande povo, e fez-se então preciso dar entrada a novos elementos de vida. A ideia do jus gentium foi o primeiro passo para uma desnacionalização do direito. A exigência fundamental do jus civile fazia depender da civitas romana a participação de suas disposições. Era uma base muito estreita, que só podia aguentar o edifício político de um povo guerreiro e conquistador.


148. Mas essa base alargou-se, e em vez da civitas, o senso prático de Roma lançou mão do princípio da libertas como fundamento da sua nova vida jurídica. Já não era preciso ser cidadão romano, bastava ser homem livre, para gozar das tranquias e proventos do direito.


149. Não ficou, porém, aí. A cultura romana, tornando-se cultura greco-Iatina, pela invasão e influência do helenismo, cuja mais alta expressão foi a filosofia, recebeu em seu seio um grande número de ideias então correntes sobre a velha trilogia: Deus, o homem e a natureza. Este último conceito, principalmente, mostrou-se de uma elasticidade admirável. A filosofia de Cícero lhe deu feições diversas. Não só a natura, mas também a lex naturae, a lex naturalis, a ratio naturalis, a ratio naturae, representam nos seus escritos um importante papel.


150. Nas obras dos juristas posteriores estas frases assumiram proporções assustadoras. Na falta de outro fundamento, a natura, era o último refúgio de qualquer explicação filosófica. Não deixa até de produzir atualmente uma certa impressão cômica o sério inalterável com que grandes jurisconsultos faziam as despesas de suas demonstrações, só à custa de uma chamada ratio naturalis. [17]


Nota 17: Basta lembrar os seguinte textos: naturalis ratio efficit (Dig. 41, 1-L. 7. §7º; naturalis ratio permittit (Dig. 8, 2-L. 8); naturali ratione communis est (Dig. 9, 2-L. 4); naturali ratione pertinet (Dig. 13, 6-L. 18, § 2º); naturalis ratio suadet (Dig. 3, 5-L, 39); naturali ratione inutilis est (Dig. 44, 1, 7-L. 1 §9º); e assim inúmeros outros.


151. Nada mais simples, portanto, do que a marcha evolucionária do direito, mediante o influxo da filosofia, dar ainda um passo adiante e construir mais amplas doutrinas, tomando por base o conceito da natura hominis, de onde originou-se o jus naturale, não somente aplicável aos homens livres, mas aos homens em geral.


152. Era a última forma da intuição jurídica do povo rei. Era um direito novo, sem dúvida, mas também um direito de escravos. E por uma dessas notáveis coincidências da história, esse direito dos pobres, dos míseros de todo gênero, aparecia ao mesmo tempo que começava a ganhar terreno a religião dos desvalidos. [18]


Nota 18: Releva aqui dar conta de um fato pouco notado. O primeiro protesto contra a desnaturalidade da escravidão não partiu de filósofos, nem de fundadores de religiões, porém de juristas. Foram decerto os jurisconsultos romanos que, ao fecharem o período do seu maior esplendor, deram àquela desnaturalidade um fundamento teórico, estabelecendo como princípio que, segundo o jus naturale, todos os homens são livres e iguais; pelo que a escravidão é contra o direito. Princípio este atualmente estéril, mas naqueles tempos fecundo e admirável.


153. Tudo isto, porém, foi resultado do espírito particular de uma época. A desnacionalização do direito, começada com a ideia do jus gentium e concluída com a do jus naturale, foi apenas aparente. A grande naturalização de Caracalla, ou concessão da civitas a todos os habitantes do império, fez que os domínios deste coincidissem com os do mundo culto de então. A humanidade formava, segundo a frase de Prudêncio, alternis ex gentibus una propago [“de várias estirpes uma nação”; Contra Symmachum II, 616-618]. O direito romano era direito humano. Os princípios do jus naturale, como um direito, quod vero naturalis ratio inter omnes homines constituit, tiveram um valor prático. A grandeza e unidade do império suscitaram a ideia de uma societas humana, a qual se aplicassem esses mesmos princípios.


154. A ilusão era desculpável. O que, porém, não merece desculpa é a cegueira de certos espíritos que, virando as costas à história e desprezando o seu testemunho, insistem na antiga e errônea doutrina de um direito natural.


155. Com efeito, na época de Darwin, ainda haver quem tome ao sério a concepção metafísica de um direito absoluto, independente do homem; ainda haver quem tome ao sério os chamados eternos princípios do justo, do moral, do bom, do belo — outros muitos adjetivos substantivados, que faziam as despesas da ciência dos nossos avós —, é realmente um espetáculo lastimável.


156. Nós temos a infelicidade de assistir a esse espetáculo. A despeito de todos os reclamos do espírito filosófico moderno, os homens da justiça absoluta e dos direitos inatos ainda ousam erguer a voz em defesa das suas teorias. E ninguém há que os convença da caducidade delas. É tarefa que só ao tempo incumbe desempenhar.


157. Nem nós outros que os combatemos, aspiramos a tal glória; assim como não queremos — digamo-lo francamente —, não queremos que se nos tenha em conta de inovadores. A negação de um direito natural é coeva da tese que primeiro o afirmou. Seria um fenômeno histórico bem singular que, havendo em todos os tempos cabeças desabusadas protestado contra as aberrações da especulação filosófica, somente a oca teoria do direito natural nunca tivesse encontrado barreira. Esse fenômeno não se deu.


158. Já na Grécia, e entre outros Arquelau, um jovem contemporâneo de Heráclito, havia contestado a procedência divina das leis humanas. Particularmente Carneades, o cético de gênio, negou a existência de um direito natural, e reconheceu somente como direito o direito positivo. Jus civile est aliquod, naturale nullum*. Este seu princípio corresponde exatamente à intuição dos nossos dias. [19]


Nota 19: O estudo superficial e quase nulo, que se costuma fazer da filosofia grega não dá uma ideia exata do importante papel histórico do ceticismo. Entretanto os céticos eram todos espíritos superiores, os quais rompendo com as tradições recebidas declaravam guerra de morte às verdades convencionais do seu tempo. E a prova do quanto eles valiam, que a própria filosofia de Sócrates, propondo-se combater o ceticismo dos sofistas, acabou por destruir as bases da velha intuição filosófica, de um modo ainda mais decisivo, do que fizeram-no os sofista mesmos. Os cétIcos eram antes de tudo homens sinceros, que não acreditavam nas frivolidades então ensinadas, e tinham a coragem de declará-lo. Carneades foi um desses.


* Nota do Editor: tradução livre: “O direito civil é algo não natural”; ressalte-se que no âmbito da cultura helênica, esse princípio — de que as leis que organizam a vida civil estão sujeitas à mudança — aparece mais claramente como problema em Aristóteles, Ética a Nicômaco V, 7; e no âmbito da cultura greco-romana, a expressão jurídico-filosófica desse concepção aparece em Cícero, De res publica III: “Jus enim de quo quaerimus civile est aliquod, naturale nullum”.


159. Mas a questão não está em saber se já houve na Antiguidade quem contradissesse a doutrina de um direito estabelecido pela natureza. O que deve hoje ser tomado em consideração, é o modo de demonstrar a invalidade dessa mesma doutrina, são os novos argumentos deduzidos contra ela; e isto basta para legitimar as pretensões da teoria hodierna.


FIM


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