sexta-feira, 10 de setembro de 2021

A alma da mulher

Tobias Barreto


Publicado em Estudos alemães (1883), este ensaio foi escrito em épocas diferentes, a propósito da conferência Die Psyche des Weibes de A. Jellinek: em julho de 1874, a Introdução, e em julho de 1881, o restante. Tobias Barreto se propõe fundamentar ideias e argumentos progressistas e modernizadores, então apresentados em projeto quando deputado provincial (1878-1879), para que fosse criada uma escola para mulheres no Recife de nível superior e profissionalizante: o Partenogógio.


Seus discursos sobre educação da mulher estão disponíveis em:

https://archive.org/stream/TobiasBarretoObrasCompletas06EstudosDeDireitoVol.1/Tobias%20Barreto%20-%20Obras%20Completas%2004%20-%20Discursos#page/n45/mode/2up.






Introdução


1. Adolf Jellinek é um distinto israelita alemão contemporâneo.


2. Os seus escritos e as suas prédicas, na sinagoga de Berlim, ocupam lugar de honra entre os produtos do gênero, e fazem que o proclamem um estilista perfeito e um brilhante orador: predicados adjacentes, ou superpostos a uma ciência sólida.


3. O trabalho que tenho presente e que vai ser o assunto deste artigo, não é de natureza apropriada a fornecer a medida, eu digo, toda a medida, do mérito do autor. É uma conferência feita, em 1872, no ginásio acadêmico de Viena, sobre a questão da mulher, encarada e esclarecida pelo lado psicológico. Facilmente compreende-se a impossibilidade, na qual devia achar-se o orador, de vazar em cadinho tão pequeno uma grande porção do ouro da sua mina. Todavia me parece que aí mesmo se podem ver a viveza e lucidez de um vasto espírito.


4. Falando na questão da mulher, não sei se posso contar com a disposição dos meus leitores para certa ordem de ideias, condensadas nessa frase, e que não são entre nós muito comuns. Porquanto é só de longe em longe que nos chega alguma notícia dos reclamos e protestos de ilustres representantes do sexo feminino, quer na Europa, quer na América, em prol dos seus direitos, desconhecidos e vilipendiados.


5. Entretanto, não há dúvida de que a mulher e suas relações domésticas e sociais formam um dos problemas superiores, que se debatem na atualidade. É digno de notar-se que, sendo uma das mais robustas propugnadoras da chamada emancipação do sexo a judia Fanny Lewald, célebre escritora e romancista da Alemanha, seja também um homem da mesma raça que pretenda demonstrar, por sua vez, a falta de fundamento, a irracionalidade de semelhante intuito. Se ele atingiu, ou não, o alvo que visara é ponto que entrego inteiro ao juízo do leitor autorizado, sem contudo abdicar a minha opinião de espectador atento e consciencioso sobre o alcance da controvérsia e os modos de resolvê-la. Diz Jellinek:


A essência feminina em sua generalidade, como um fenômeno particular da vida natural e humana, tem sido sempre apreciada, nas diversas fases do desenvolvimento do espírito e da história dos povos; a mulher, porém, como personalidade, com todos os atributos que se ligam a este conceito, foi só nos tempos modernos que se tornou objeto de sérias indagações e fortes debates.


6. Depois disto, e para comprová-lo, o autor faz uma espécie de resenha das opiniões que dominaram entre vários povos da Antiguidade, a respeito da mulher. A poesia mitológica dos gregos, a filosofia alegórica dos alexandrinos, a mística de muitas confissões religiosas, até os gnósticos cristãos e cabalistas judeus, trovadores, minnesänger e cavalheiros da Idade Média, tudo lhe dá testemunho de não ter sido olvidada a excelência feminina. Como era natural e adequado às proporções estreitas do seu trabalho, o sábio israelita passou rapidamente por esses dados da História e não se quis demorar em extrair, quanto pudera, a substância deles. Há uma coisa, porém, que não merece desculpa: é a maneira, meio atropelada, por que o autor nos apresenta, em épocas diferentes, o conceito psicológico de Eva. Não seria mais conforme ao espírito científico, ou para melhor dizer ao espírito alemão, mostrar, ainda que em ligeiros traços, o desenvolvimento dessa grande ideia, as viagens que tem feito através dos séculos até chegar ao ponto de hoje? Uma vez que se propôs, segundo as próprias expressões, fundar a dignidade da mulher por meio de uma análise filosófica, o método a seguir, e imagino, podia ter sido outro.


I


7. O pensamento que presidiu à confecção das linhas iniciais do presente escrito, é o mesmo que me leva atualmente a continuá-lo e concluí-lo [1]. Se alguma diferença se faz porventura notar entre as ideias de outrora e as ideias de hoje, é tão-somente a que pode consistir entre um estado de florescência e um estado de frutificação. Verdade é que seis janeiros dificilmente passam por um espírito, sem deixar abatidos muitos anelos, muitas esperanças, e não poucas vezes também até muitas convicções. Mas no que toca ao assunto, que nos ocupa, eu pude resistir; depois de tanto tempo de abandono, encontrei o velho alaúde perfeitamente afinado, quero dizer, o coração, como dantes, expansivo e predisposto para a questão da mulher, tanto mais quanto neste ínterim ela tomou uma feição mais correta e enriqueceu-se de novas adesões.


Nota 1: O artigo traz na frente da sua primeira parte a data de 1874; data cuja identidade o leitor terá de notar em mais de um trabalho contido neste volume. Não lhe faço reparo. Todos esses artigos foram começados e publicados naquele ano em um jornal, que dirigi, intitulado Um Sinal dos Tempos. À primeira vista nada importava que eu, continuando-os hoje, lhes desse a data hodierna; mas há uma razão em contrário, que não deixa de ter seu peso: sem a indicação do tempo em que foram publicados, eu correria atualmente, em muitos pontos, o risco de passar por um epígono, se não por um plagiário. Não se levará pois a mal que queira livrar-me de tal pecha; é isto ainda uma das formas da probidade literária.


8. O ilustre rabino, a quem aprouve reforçar também com a sua quota o capital, já tão crescido, de prejuízos obscurantes sobre a natureza, o destino, a vocação feminina, se a esta hora ainda existe, não deve olhar com muito orgulho para o seu trabalho de 1872, que bem pudera denominar-se um ensaio de ginecologia bíblica; deve antes sentir-se tristemente impressionado de ver que as suas ideias, ainda que elevadas pouco acima do nível do senso comum, que é a chamada filosofia do povo, não conseguiram ganhar terreno. A parte louca da humanidade, aquela que gira em elipse alongadíssima em torno da velha prática da vida, e que é dotada de maior grau de adaptabilidade, insiste no seu propósito de outorgar à mulher, na esfera da prosa, uma fração ao menos do que se lhe confere na esfera da poesia.


9. E a questão já chegou a tal ponto, que os doidos entusiastas da emancipação de Eva começam a ser os mais arrazoados no debate. Já vai soando como um ruído de matraca a pretensão fradesca de não abrir-se no gineceu, nem sequer uma janela, que dê para o grande mundo, para a vida em pleno ar, e de permitir-se apenas uma fresta, por onde a mulher veja somente o céu. O nosso autor não leva tão longe, é verdade, as suas exigências de oposicionista convicto; mas não é por isso menos errôneo e inaceitável o seu ponto de vista. O seu ponto de vista, disse eu; porém não é de todo exato. O sábio israelita não pisa em terreno próprio. A sua intuição sobre a mulher, a despeito das graças e encantos do seu bom dizer, é a mesma velha intuição judeu-cristã: a perpétua dependência e inferioridade feminina, ou antes a mulher rainha e súdita, senhora e escrava ao mesmo tempo. É debalde que o autor entoa aqui e ali um salmo à beleza e a uma ou outra excelência psíquica da companheira do homem; o conceito geral não se modifica: é sempre a mulher exclusivamente votada à vida da família, a mulher sem autonomia, sem iniciativa, sem talento, sem originalidade. E tudo isto sob que pretexto? Ainda sob o de um plano divino, ou de uma lei da natureza.


10. Eu não contesto que nas atuais relações de subordinação e dependência da mulher para com o homem há uma certa regularidade, uma espécie de conformação ao fim, para que ambos existem. Mas justamente no modo de apreciar este fato é que reside o erro da escola, a que se filia Adolf Jellinek. Além de que as coisas regulares ou irregulares são como as boas ou más, das quais diz Shakespeare (Hamlet, Ato II, cena 2) que não o são por si mesmas, que é o pensamento quem as torna tais, acresce que a sociedade, bem como a natureza, sem ser dominada por um princípio de finalidade, pode chegar a resultados de caráter finalístico. E se é possível, por meio da seleção natural ou artística, interromper a série evolutiva de fenômenos que já atingiram esse grau de regularidade, e por um processo de diferenciação dar a uma classe de seres qualidades novas, nenhuma razão milita contra a possibilidade de abrir novos caminhos ao desenvolvimento feminino, de apagar pela instrução, que também é um meio de seleção, a inferioridade atual da mulher e colocá-la dignamente ao lado do homem. É esta a grande questão, de que aliás Jellinek parece ter tido apenas um vago pressentimento. Assim encarado, o problema tem outra face; e para a sua solução, ou antes para tentar resolvê-lo, pois que todas as soluções de problemas humanos rara vez transpõem os limites da tentativa, já não basta alegar que a mulher é um ente fraco, mais receptivo que produtivo, mais sensível que inteligente, etc. etc.; porquanto tudo isto se concede, mas tudo isto não envolve para ela a impossibilidade de uma adaptação superior à herança e por conseguinte de uma transformação de potências, de um aumento de predicados.


11. O nosso autor, por um ato de lealdade não comum, declara reconhecer que o assunto em questão oferece logo em princípio uma séria dificuldade; e é que, no presente estado das coisas, é impossível formar um juízo seguro sobre o espírito feminino e aplicar uma justa medida às atitudes intelectuais do belo sexo, atento que, por efeito dos prejuízos sociais, as mulheres não têm podido até hoje desenvolver e pôr em prova as suas capacidades. A objeção é realmente séria; mas o autor não hesita em dá-la por facilmente respondível, alegando, como resposta, que no presente estado social nós temos ocasião bastante de observar a vida espiritual do outro sexo e destarte convencer-nos de que a psique masculina e a psique feminina não são idênticas; modo este de discorrer, que não passa de um crasso paralogismo, e não deixa de provocar um riso de desdém.


12. Em defesa de sua tese Jellinek ainda invoca a chamada economia da natureza, que nada faz superfluamente, que não se repete em seus tipos... Mas ele não se lembra que a natureza é como Deus, que se presta a ser invocado, com igual direito e chances iguais de triunfo, por qualquer de duas hostes beligerantes; nada resolve, por conseguinte. Diz ele:


Enquanto a voz masculina de uma mulher for, como é, uma coisa chocante e estranhável, nós teremos também por justificado o falar-se de uma psicologia feminina…


13. Sim, senhor; mas o que prova isto? Absolutamente nada em relação ao tema proposto. De bom grado concedo a existência de uma psicologia feminina, mas... Quem a faz? Quem lhe formula as leis? Jellinek tem o defeito comum a todos os comungadores da mesma ideia: só parece que, ao menos uma vez na vida, já fizeram parte do sexo amável, tal é o tom de segurança com que falam, psicologicamente, das fraquezas da mulher.


14. Eu não duvido em subscrevê-lo: a mulher com qualidades másculas, a mulher ossuda e barbada, é na verdade um fenômeno chocante, e autoriza-nos a pressupor uma grande diferença entre os papéis de cada sexo; mas também é certo, que, enquanto se nos não explicar plausivelmente, por que razão, uma vez admitida a unidade de lei no desenvolvimento das espécies, o pavão, por exemplo, é mais bonito que a pavoa, o galo mais que a galinha, o novilho mais que a novilha, o leão mais que a leoa, só a mulher entretanto é mais bonita que o homem, nós temos o direito de admitir uma superioridade feminina e de reclamar para ela as regalias que entendemos competir-lhe.


II


15. A chamada questão da mulher, depois de atravessar a fase poética e retórica, na qual se queimou muito incenso em honra da deusa, e também, conforme os gostos, muito grito de execração se fez ouvir contra a diaba, depois de deixar o estado crepuscular do idealismo fantástico, chegou enfim ao pleno dia do realismo científico, onde até a estatística com toda a fria prosa dos seus dados, não se recusa a lhe prestar serviços. Não se trata mais hoje pois de escrever livros à saúde da mulher. Cessou o banquete dos deuses, e com as musas que adormeceram, emudeceu também a lira dos poetas. Bem entendido, não para sempre, por algum tempo somente; pois dá-se no domínio ginecológico alguma coisa de semelhante ao que se dá no domínio astronômico: por mais longe que vá o espírito observador, nunca poderá afirmar ter conhecido tudo que é cognoscível e capaz de entrar no campo objetivo dos seus instrumentos de observação; e é justamente esta esfera de conjeturas e pressentimentos, tangente ao círculo, grande ou pequeno, do nosso saber, quer no distrito das estrelas, quer naquele dos belos olhos femininos, que há de sempre constituir o mundo da poesia.


16. Com razão diz Elisa Oelsner, relativamente a este ponto:


Assim como para a consciência religiosa o deus transcendente tem ido pouco a pouco se transformando em deus imanente, assim também o nosso batalhar pelo futuro não se dirige mais a ideais de além, infinitamente longínquos, porém os modelos do nosso produzir saem de nós mesmos, do nosso saber e poder, e este idealismo, que quer o que pode, e por isso pode o que quer, parece-nos o único autorizado; os esforços que vão além dele são pura fantasmagoria. [2]


Nota 2: Frauen-Anwalt, 1 Jahrgang, p. 99.


17. Todo e qualquer escrito, por conseguinte, que se propõe na época hodierna adicionar uma página ao grande livro do chamado sexo fraco, é anacrônico e atrasado, desde que não encara a questão pelo seu lado prático, mas se limita a repetir, com bem poucas variações, o tema popular, que se assobia nas ruas, quero dizer a velha cantiga da beleza feminina, unida à incompetência para outros misteres, que não sejam os do conchego familiar, e da sua despoetização pelo contato com a vida política e social.


18. Não sei mesmo como um espírito, qual Adolf Jellinek, julgou poder, na terra de Betty Paoli, opor um dique à corrente em que se imergem Marianne Hainisch, Auguste Wilhelmine von Littrow, Johanna Leitenberger, Josefina Wertheimstein e outras muitas naturezas demoníacas, com frases de passageiro efeito e cediços conselhos de prudência. [3]


Nota 3: A expressão “naturezas demoníacas”, que não duvido pareça estranha, eu a emprego com o propósito de firmar a antítese que existe entre mulheres inteligentes e cônscias do seu destino, de um lado, e de outro lado o grande número de simplórias, frias, indiferentes, mal sabendo externar uma ideia, que se eleve alguns pontos acima do mezzo soprano da moda, do tricô e do crochê, mulheres bonecas, em que se pode, é verdade, adivinhar umas lindas e polpudas pernas, um umbigo ideal, delícia dos olhos ou de qualquer outro sentido ainda mais exigente, e que faria lembrar o próprio alabastrum unguenti pretiosi, derramado sobre a cabeça do Cristo, mas também se reconhece um espírito paupérrimo, e às quais aliás se dá o título de naturezas angélicas, sem dúvida por já mostrarem na terra o idiotismo transcendental que as espera no céu.


19. Os escritores que ainda se dão ao trabalho de bradar contra as justas pretensões da mulher, têm o ar de quem se julga único iniciado nos grandes mistérios de um olhar amoroso, ou de um arfar de seio feminino. Dir-se-ia que só eles conhecem, que só eles experimentaram a magia de um abraço, ou a inebriante doçura de um beijo, e que por isso tratam de mostrar a nós outros, pobres profanos, a quem são desconhecidas estas divinas coisas, que a mulher não é isso que nós pensamos, mas um ente à parte, o qual ao muito pode entrar conosco na luta pela vida em sua forma rudimentar, que é a conquista do pão quotidiano, porém nunca entrar conosco na luta pelo direito, pela luz, pela verdade!... São muito ingênuos estes senhores! Também nós sabemos que gosto tem o néctar, e de que carne é feito o manjar dos numes; mas não é este o ponto em discussão. O desenvolvimento da essência feminina, no sentido de concentrá-la e reduzi-la ao círculo único da família, tem sido natural e regular? Além do teatrinho do lar doméstico, em que ela realmente representa o primeiro papel, não há um teatro mais vasto, onde ela possa expandir talentos e forças ainda não aproveitados? Em uma palavra, a mulher é instrutível pelo mesmo modo e nas mesmas proporções que o homem? Eis a questão, que aliás não é mais uma tal, visto como já bem pouco falta para dar-se, pelo menos no campo da teoria, a vitória completa da emancipação feminina.


20. O começo de toda cultura, diz Julius Fröbel, é uma oposição à natureza, oposição que não se envergonha de dar até preferência ao que é antinatural, só para documentar o direito do capricho [4]. Esta asserção envolve uma verdade profunda, que bem explica, por que razão a mulher, desde os primeiros tempos, foi tolhida em seu desenvolvimento natural e mandada seguir um caminho, que nunca poderá levá-la ao cimo do outeiro, onde há séculos a esperam seus títulos e seus direitos. Releva porém saber, se este falseamento da evolução histórico-humana, no que pertence ao belo sexo, é ou não suscetível de correção [5]. Eu creio que sim; e o meio de corrigir uma tal cenogênese, individual e social, é sobretudo a instrução, profunda e seriamente ministrada, de modo a despertar e acender no espírito feminino em geral uma centelha, que rara vez tem brilhado, isto é, o sentimento da personalidade, a consciência do próprio valor. O cérebro da mulher ainda não está atrofiado e, à falta de exercício, reduzido à inércia funcional dos olhos da coruja, ou das asas da ema. Ainda é possível uma reação salvadora, que aliás só pode vir pelo meio indicado. Desta espécie de renascimento do sexo feminino depende, em alta escala, o futuro da humanidade. Quem espera frutos do futuro, diz Heinrich von Sybel, deve bem cuidar das flores da atualidade, e a melhor florescência de um povo são justamente as suas mulheres.


Nota 4: Die Gesichtspunkte und Aufgaben der Politik, p. 243.

Nota 5: A velha frase belo sexo já me vai causando suspeitas; quer parecer-me que ela, por si só, exprime tudo que há de frívolo e leviano no modo comum de apreciar a natureza feminina. Dá-se com o belo sexo o que se dá com as belas letras: assim como, a respeito destas, bem poucos são os que consideram-nas mais que um assunto de puro entretenimento, assim também, a respeito daquele, são raríssimos os que se elevam acima do ponto de vista, não direi estético, mas puramente plástico; e este é o mal, que deve ser combatido.


21. Minha ideia, pondere-se bem, a ideia que eu esposo, não é a da rápida transição de um extremo a outro. Nada haveria de mais perigoso do que essa passagem, por exemplo, da Silencieuse à Philosophie des Unbewussten... A natureza não dá saltos; mas seria um salto mortale a troca imediata da familiaridade com Isaac Singer ou Elias Howe pela familiaridade com Hartmann ou Schopenhauer. Não sigo por esse caminho. Os pósteros poderão um dia compreender e admitir, verbi gratia, uma schopenhaueriana costureira; porém hoje é incompreensível e detestável uma costureira schopenhaueriana, uma costureira filósofa, epíteto este, que, entretanto, caberia de direito a toda e qualquer mulher do nosso tempo e da nossa terra, a quem aprouvesse subitamente emancipar-se da almofada por amor do livro, pois que todas, em última análise, qualquer que seja a sua condição econômica e posição social, não saíram ainda do terreno em que floresce a ciência da agulha e do dedal. Festina lente — também é neste, como noutros pontos, a minha norma de conduta.


22. Mas não se julgue que, assim opinando, eu queira fazer coro com uma certa classe de netunistas políticos, que não admitem catástrofes, que explicam tudo pelo tempo, que exigem para a extinção de um erro ou o reconhecimento de uma verdade a mesma soma de séculos, que se requer para a formação de um arrecife ou a de um banco de coral [6]. Est modus in rebus, sunt certi denique fines. Da árvore que plantarmos hoje, os nossos netos poderão apenas colher as primeiras flores, mas ao certo já os seus filhos estarão no caso de recolher os frutos.


Nota 6: O destino tem ironias!... A minha querida Alemanha é a criadora ou pelo menos a formuladora da teoria da evolução, que em muitos casos não passa de uma teoria da paciência, por força da qual o plutonismo político e social é um ataque à história, um absurdo científico. Entretanto, dificilmente encontrar-se-á, nesta esfera, um fenômeno plutônico mais caracterizado do que a súbita elevação da pátria de Kant ao grau de primeira potência política do mundo atual; elevação merecida, sem dúvida, mas nem por isso menos inesperada e fora dos cálculos comuns, tanto quanto podia sê-lo o aparecimento de uma ilha por efeito de uma erupção vulcânica. Já se vê que nem sempre a evolução é suficiente para solver certos embaraços. Da combinação do netunismo com o plutonismo é que pode resultar a verdadeira doutrina, dando-se a cada um o seu papel: ao inconsciente da história, a lentidão das águas no seu labor de acumulação e putrefação; à consciência humana, o rápido processo ígneo dos abalos e agitações necessárias.


III


23. No modo de expor os termos do problema, cuja resolução tomou a seu cargo, Jellinek é mais poeta do que filósofo, um poeta porém de antigo estilo, que se delicia na pintura dos mil encantos, mas também na descoberta de cem mil defeitos na face diurna da natureza humana. O seu pretendido estudo psicológico não deixa de apresentar, aqui e ali, observações razoáveis; mas mesmo assim, encarado de alto abaixo, considerado em seu todo, é simplesmente um trabalho de fantasia; mimoso na verdade, mas sempre exagerado. Sobre que classe de seres não se pode idear uma psicologia? As próprias flores têm a sua, a crer-se nos poetas, que lhes conferem este ou aquele sentimento. A psicologia da mulher, por Jellinek, é vazada em molde igual.


24. Mas o que causa maior estranheza é que o autor, como já fiz sentir, não tomou uma posição definida no campo do combate. Embalde buscar-se-ia saber, como ele se mantém em relação ao grau de cultura, a que deve chegar o sexo feminino; nem uma palavra a tal respeito; antes porém, se é possível algum sinal do seu pensamento neste sentido, encontra-se a velha ideia da vocação exclusiva da mulher para:


dar à vida humana o seu verdadeiro valor, para lidar ao lado do homem, aconselhá-lo, animá-lo, entusiasmá-lo, discipliná-lo, moderá-lo, enternecê-lo, nobilitá-lo, aperfeiçoá-lo.


25. O que tudo quer dizer: para ser esposa e mãe; missão esta que ninguém ainda negou à mulher, e que não é o que se trata de esclarecer.


26. Não é sem muita razão que F. P. von Holtzendorff, um dos grandes defensores da causa feminina, assim se exprime:


Entre as frases ocas e retumbantes dos modernos tempos, não se acha uma só, que tenha produzido mais confusão ou prejuízo, do que a de vocação natural. A verdade, que nela se desfigura, significa somente que a esposa, mãe e dona-de-casa, tem o seu mais alto e último mister a cumprir no seio da família, não fora dela. Falar de vocação natural, é coisa que teve um sentido, só enquanto foi preciso opor barreira à desnaturalidade da compressão das virgens na vida claustral. Hoje é diferente. A frase de vocação natural, até das que ficam solteiras, é a mais característica fraqueza de cabeça e falta de pensamento, que se retrai diante da atualidade. [7]


Nota 7: Frauen, Anwalt, 1, p. 53.


27. Nada mais claro e decisivo. Se a mulher existe unicamente, como sói dizer-se, para a vida da família, para as funções supremas de mãe e de esposa, a conclusão é que, uma vez não atingido este alvo, pois que a todas não é dado enfiar no dedo o anel esponsalício, nem o cingir-se da charpa da maternidade é ato que só dependa do desejo de cada uma, a vida da mulher que lá não chega, é uma vida falhada, uma existência espectral, uma peregrinação lastimável. Mas esta conclusão é absurda em si mesma, e ainda mais, porque ela importaria justificar o prostíbulo, quase como uma bela instituição social, estabelecida para corrigir os erros do destino. Assim aqueles que não cansam de repetir o estribilho da chamada vocação natural, deviam lembrar-se, antes de tudo, que no grande baile da vida muita senhora fica sem cavalheiro, que a sociedade não tem à sua disposição o número de noivos, de que carecem as noivas, e que, portanto, é uma extravagância, na educação da mulher, só ter em vista o futuro estado de mãe de família. Pondo de parte o que de mau tem causado esta maneira de ver, atento que mais de um casamento infeliz só deve a sua infelicidade ao velho preconceito, pelo qual a mulher que não casa, é um ente inútil, como o segundo tomo de uma obra de dois, dos quais perdeu-se o primeiro, eu me limito à seguinte observação: dado mesmo de barato que a única missão feminina fosse a de ter filhos e de viver ao lado do homem, há porventura alguma incompatibilidade entre esta nobre missão e um grau superior de cultura? Tão simples é o papel de esposa e mãe, que dispensa a luz intelectual, ou até repele-a como perturbadora do sossego doméstico? Será também uma lei providencial que o homem culto, quando casado, não tenha uma mulher, com quem converse, nem seja por ela entendido?


28. Estas perguntas trazem em si mesmas as suas respostas, isto é, o espanto, se não antes o riso, que provocam; e todavia elas são naturalmente suscitadas pela opinião comum a respeito da educação do outro sexo, opinião burlesca e anacrônica, que eu sempre estarei disposto a combater.


29. Como se vê, a questão central no presente assunto já não é a de saber, de quantas asas se compõe a psique de Eva, ou se ela é realmente apta para os grandes voos, mas somente a de fazê-la entrar com o homem na partilha dos mais altos gozos da vida, que são os gozos da inteligência. E aqui seja-me permitido lembrar ideias, já uma vez por mim enunciadas na defensão deste mesmo tema, quando tive a honra, como deputado provincial, de apresentar um projeto de lei sobre a instrução superior feminina nesta província. [8]


Nota 8: Este projeto, que teve apenas o succés d'estime de passar em primeira discussão, continha a ideia da criação de um estabelecimento público de cultura literária e profissional para as moças, sob a denominação de Partenogógio do Recife, e dividido em duas escolas: escola média (Mittelschule) e escola superior (Höhere Schule). Não preciso dizer que a minha ideia pareceu então um sonho de poeta. E possível que hoje, depois que a mãe França entendeu dever, como obrigação do Estado, elevar o nível da instrução do outro sexo, estragada e abatida pelas doutoras do sacré coeur & cia., já se compreenda o alcance do meu projeto, mas é certo que naquela época (maio de 1879) julgaram-no objeto de deliberação por mera condescendência; e tanto assim foi, que um ano depois, quando eu não era mais deputado, fizeram-no cair em segunda discussão, por ser um projeto “desponderado” e até “imoral” !...


30. Estas ideias, com que preambulei a defesa do projeto por mim apresentado, conservam ainda hoje aos olhos de muita gente, não quero dissimulá-lo, a novidade, o despropósito, a extravagância de então. Mas eu insisto em crer que a verdade está do nosso lado, do lado em que nos achamos todos os propugnadores de um melhor cultivo da inteligência feminina. Em assunto de instrução, sobretudo, é soberanamente injusto que a mulher continue a fazer, em relação ao homem, o papel de Ruth – colligere spicas post terga metentium –, e isto mesmo nos casos excepcionais, pois que de ordinário o seu labor mental não se estenda nem sequer a entrar na seara científica, para apanhar as espigas que caem das mãos dos segadores. Diz Clemens Nohl:


Até hoje, em todas as questões da vida pública só se tem imiscuído uma parte da humanidade; à outra tem-se imposto silêncio, conservando-a bem longe das soluções reclamadas, como incapaz de julgar a tal respeito. Chamou-se metade do gênero humano para um trabalho, que só por todo ele pode ser executado. Isto foi uma loucura, que a humanidade mesma tem pago bem caro. [9]


Nota 9: Ein neuer Schulorganismus, p. 151.


31. Meu ponto de vista é idêntico; e não canso de confessá-lo alto e bom som.


32. Limitada como tem sido em geral, e como ainda hoje há quem pense que deve ser, não passando além da elementariedade, a instrução feminina é totalmente inútil, e quase podia dizer, perniciosa e fatal. Se já houve quem opinasse que a arte de ler e escrever, sem cultura espiritual propriamente dita, é mais um mal do que um bem, pois importa para os agitadores um meio seguro de propaganda, tendo eles por esse modo um rebanho de leitores dóceis, que não refletem, que não reagem criticamente, parece que isto é aplicável com igual, se não maior propriedade, à instrução elementar feminina. No velho prejuízo, ainda mal extinto atualmente, pelo qual não se admite que a mulher saiba ler e escrever, a fim de não abusar desta ciência com epístolas amorosas, há um fundo de verdade. O abc, reduzido à sua própria eficácia, é uma força perturbadora do equilíbrio moral. Antes a casa de todo não varrida, do que somente começada a varrer e deixada em meio caminho, para acudir-se de pronto a outros misteres: a impressão da imundície fica mais pronunciada. Da poesia do billet-doux à baixa prosa do rol de roupa suja vai apenas a distância de um salto de gato; e todavia são estes os dois polos da esfera literária da mulher, como ela deve ser, segundo o conceito que na prática infelizmente ainda predomina. [10]


Nota 10: Mais de uma discípula que aproveita de tais colégios não sabe nem sequer conjugar o verbo saber. "V. Excia. far-me-á o obséquio de tocar ao piano um noturno de Chopin?” — “Não sei-o”, é a resposta comum. Bem poucos seriam, na verdade, os que não quisessem fazer dos próprios lábios catechu, para apagar na boca da bela aquela letrinha de mais... Porém o sei-o em vez de sei faz mal aos nervos.


33. Não falta mesmo quem julgue que a honestidade é uma flor selvática, que só viceja em terreno virgem, não revolvido por mãos humanas; que a honradez da mulher é um produto da natureza, e como tal somente medra e floresce na razão inversa do cultivo mental. Singularíssima ideia. É uma triste honestidade aquela que só pode existir por favor da ignorância, ao lado da estupidez. Será de minha parte uma esquisitice, mas eu não compreendo a atitude de certos homens, que calculam o grau da própria ventura pela bruta honradez da cara-metade, sentindo-se elevados e orgulhosos de terem o seu relógio de ouro de lei. Que novidade! Comprar o anel de brilhante como tal, e depois mostrar-se desvanecido e aditado com a legitimidade da pedra!... A honradez na mulher não é um ato, mas um estado; e nesta pressuposição é tão conciliável com a estolidez da mulher de um Haydn, que rasgava-lhe as partituras para fazer embrulhos, como com o talento e ilustração de uma qualquer, que esteja no caso de secundar seu marido no mais difícil dos trabalhos — o trabalho de pensar —, que não viva dele eternamente separada quoad thorum et mensam do espírito. A honestidade feminina, quanto a mim, é uma coisa muito comum e faz parte da bagagem ordinária da vida; é um predicado tão pouco característico desta ou daquela individualidade, como o langor dos cabelos, ou a pequenez dos pés. Não é fenômeno tão singular, nem que custe tanto esforço, para formar-se dele uma virtude, exceto uma virtude que só pode ser garantida pelas quatro grossas paredes da parvoíce. Alguma coisa de análogo, talvez, ao que se dá com a liberdade: deve ser muito poética para quem está na cadeia; porém eu, graças a Deus, acho-a prosaica e trivial, como a água que bebo e o ar que respiro.


34. Demais, a moralidade que se pretende salvaguardar com a pressão cerebral feminina, está bem longe de ser, como se crê, um rebento da natureza: é um fato de convenção. A moral convencional chega até lá. E para bem explicá-la, seja-me permitido repetir a seguinte narrativa — Um viajante do Oriente achando-se em Constantinopla, saiu uma tarde a passear e contemplar em suas particularidades a cidade dos sultões. Aproximando-se de um parque, onde havia um bosquezinho, cuja sombra era atraente, ele sentiu um murmúrio de vozes humanas; tornou-se curioso, espreitou e viu: odaliscas que se banhavam!... E algumas delas iam então saindo das águas. Que espetáculo! Mas... oh! terror! As belas pressentiram que alguém as lobrigava, e a um grito uníssono, fugiram todas... todas nuas, cada qual mais linda, mais provocadora com a pele de seda umedecida e ondulante,


Comme si, gouttes à gouttes,

Tombaient toutes

Les perles de son collier,


em procura dos véus que pendem da folhagem, e com que logo cobrem os rostos, abandonando tudo mais à extática contemplação do feliz observador; pois esta uma lei do Alcorão: a mulher não deixar que o homem lhe veja a cara; o resto é indiferente. Não se parece um tal preceito com o do evangelho sagrado e profano da nossa moralidade, pelo qual está assentado que a mulher saber escrever um livro é coisa que gera suspeitas contra o seu caráter; não assim porém saber escrever uma carta de namoro? Fazer literatura no salão, conversando e discutindo com qualquer homem culto, está fora dos limites da regular instrução feminina, e compromete a sua reputação; mas é justo e regularíssimo fazer teologia com o padre no confessionário... Isto é digno de riso; mas tem também o seu lado sério, o lado triste e lastimável. [11]


Nota 11: Ao menos enquanto não chegar à época prefixa pelo profeta V. Hugo, o nosso atraso há de ser sempre superlativo em relação a outros países: temos para isso muito boas razões. Mas é consoladora, se não para mim, todavia para outros, a esperança gerada pelo verbo do vidente. Isto é, que no século XX, de 1900 em diante, o Brasil há de ser alguma coisa de grande e extraordinário. Só há a ponderar o seguinte: é que, no mesmo século vindouro, segundo próprio alcance de V. Hugo, a França tem de ser deusa (Paris guide); e como este, muitos outros fatos dar-se-ão, a crer-se no vaticínio do mestre, que aliás são inconciliáveis com a prometida grandeza do Brasil. Oh!... mísera fraqueza humana! O republicano V. Hugo, não achando palavras bastantes para agradecer a honra que lhe adveio da visita de um rei, como Pedro II, deita-se a dormir e sonha maravilhas para esta terra, que esse rei aliás tão desastradamente governa!!...


35. O alteamento da instrução da mulher é um fato já incorporado ao movimento evolucional do processo histórico. [12] É inútil levantar lamentos e objeções a respeito. A faísca do fogo celeste, que alguém já disse continha o coração da mulher fiel, pode carecer, para bem brilhar, da noite da desgraça, mas não carece das trevas da ignorância. Em torno de uma cabeça opaca dificilmente se move um coração luminoso. A ciência não seria digna dos nossos preitos, nem dos nossos sacrifícios, se nas mãos da mulher ela sempre se transformasse em instrumento de perdição. Nem o que se quer em geral, é colocar a mulher na torre solitária da especulação científica. Entre a mulher sábia e a mulher instruída, diz com acerto o holandês van der Wyk, há uma grande diferença, e no que toca à prática da vida, aquela não é mais imprópria e desajeitada do que o homem sábio, a quem não poucas vezes o hábito de pensar confere uma certa aspereza de trato, que não se dá bem com as luvas de pelica. Mas que importa, porque é também o que basta, é ter mulheres instruídas; altura esta que pode ser vingada pelo espírito do sexo, que é um digno irmão do nosso espírito [13]. A chamada questão da mulher não tem outro sentido.


Nota 12: Este assunto já tinha sido debatido na mesma assembleia provincial de Pernambuco, na qual anteriormente ao decreto de 19 de abril de 1879 discutira-se a questão da atitude da mulher para os estudos universitários, a propósito de um pedido de auxílio que fizeram duas distintas moças, a fim de estudarem medicina no estrangeiro; e nessa discussão eu tive alguma parte.

Nota 13: Irmão mais moço e mais sadio, e pelo que nos diz respeito visivelmente superior em talento. Não é um galanteio de escritor; é uma convicção, a mulher brasileira é, em geral, guardadas as proporções, mais inteligente que o homem. Nota-se-lhe um certo desembaraço, uma certa viveza de intuição que não é comum no sexo masculino, em sua grande maioria assinalado por uma tal inércia devida talvez ao excesso de calor, a cuja maléfica influência o homem está mais exposto. E este fenômeno da superioridade intelectual feminina, salvo uma ou outra incorreção da língua, por falta de instrução, manifesta-se até nos círculos polares de nossa fútil aristocracia, onde as mulheres são quase todas ágeis, vivaces, conversáveis, ao passo que os homens são ordinariamente de uma lastimável curteza de vistas, revelando a cada passo a preponderância do elemento animal.


36. Assim estudado, o problema a resolver é muito mais complexo e exigente do que o supôs Jellinek, cumprindo assegurar que para a sua solução, a despeito das forças de que dispõe, o ilustre rabino contribuiu bem pouco.


FIM


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