sexta-feira, 15 de março de 2013

Aristotelismo no Brasil: A ideia de felicidade no Curso Conimbricense

Fernanda Burack da Costa



Monografia de Graduação (2013)
Universidade Federal do Rio de Janeiro
Instituto de Filosofia e Ciências Sociais
Departamento de Filosofia
Centro de Filosofia Brasileira
Orientador: Professor Doutor Luiz Alberto Cerqueira






Sumário

Introdução - O aristotelismo no Brasil

1. O Curso Conimbricense no contexto do Humanismo

2. O conceito de alma nos Conimbricenses

2.1 O conhecimento de si e a vida moral: Padre Vieira

3. O conceito de felicidade nos Comentários do Colégio Conimbricense à Ética a Nicômaco de Aristóteles

Referências



 Textos referidos de Padre Vieira e L. A. Cerqueira estão disponíveis em:

 Bibliografia sobre Ratio Studiorum, Conimbricenses, Pedro da Fonseca, traduções de obras de Aristóteles, encontram-se disponíveis em "O aristotelismo no Brasil", no seguinte endereço:












Introdução

O aristotelismo no Brasil


“Porque o bem, ou é presente, ou passado, ou futuro: se é presente, causa gosto; se é passado, causa saudade; se é futuro, causa desejo.” (Padre Antônio Vieira, Sermão de Nossa Senhora do Ó, Bahia, 1640)



Segundo Aristóteles, em sua Ética a Nicômaco, toda a ação consciente tende para algum bem, que é o seu fim, no sentido de que ela visa à satisfação de alguma necessidade material ou moral do indivíduo, sendo que das ações conscientes a que gera maior satisfação é a necessidade moral. Entendemos assim que é na acepção moral de ‘bem’ que ele afirma, no mesmo texto, ser a felicidade o sumo bem do homem.

A Ética a Nicômaco é um estudo exemplar sobre o caminho para a felicidade e pode ser apresentado como um itinerário das virtudes. Sabemos, entretanto, que o significado histórico do texto clássico sempre depende do modo e das condições de sua recepção. Na Idade Média, por exemplo, sabemos que o referido texto aristotélico foi conhecido apenas em parte, e que nesse contexto específico da cultura escolástica a sua adoção esteve subordinada à preocupação teológica.

Somente a partir da tradução de Grosseteste para o latim, em1248, descobriu-se que havia muito mais na Ética a Nicômaco, o que dava a entender que o seu significado filosófico transcendia os limites do contexto histórico, no sentido mesmo de nem tudo o que então era tematizado a partir da sua leitura poderia ser colocado em acordo com o pensamento cristão. 

No centro dessa dificuldade, destaca-se o fato de que a leitura do Livro X levou a compreender o que Aristóteles entendia por theoria, notando-se então que havia uma discordância fundamental entre o pensamento de Aristóteles e a interpretação cristã do texto aristotélico sobre a felicidade.

Enquanto a leitura cristã do texto identificava a felicidade com Deus, o texto aristotélico negava a existência de uma entidade externa que pudesse ser o bem supremo do homem, pois a felicidade humana se constituiria na autorrealização do indivíduo por suas próprias forças.

Sobre esta discordância, os leitores cristãos chegaram à conclusão de que do ponto de vista filosófico não se procura uma causa primeira remota — que seria Deus —, senão uma causa primeira próxima. Neste sentido, a felicidade é concebida como um fim em si mesmo, isto é, que não se ordena a uma causa externa, mas que pode ser considerada divina por este modo absoluto como ela é concebida, que é o que mais se assemelha à ideia de Deus.

Entretanto, a recepção histórica da Ética a Nicômaco não se restringiu à Idade Média, pois o tema da felicidade é recorrente em qualquer época.

Do ponto de vista cultural, principalmente a partir do século XVII, quando se concebe a moderna ideia do Estado cujo pressuposto é o comprometimento moral do indivíduo com a ordem social, a consideração da felicidade como problema passou a suscitar, como ainda hoje, as mais vivas discussões no plano político, em termos, por exemplo, de “políticas públicas”. Neste sentido, desde a recepção da Ética a Nicômaco nas escolas capitulares e episcopais do cristianismo medieval, a consideração da felicidade tornou-se um problema vinculado à formação do indivíduo.

Desse ponto de vista, vemos que no Brasil o problema da felicidade refere-se originariamente à recepção da Ética a Nicômaco no âmbito do Curso Conimbricense, o qual foi concebido, no século XVI, para servir de base filosófica aristotélica à formação do indivíduo nos colégios jesuíticos espalhados pelo mundo, inclusive no “Novo Mundo”.

Nosso trabalho tem como objeto de estudo o conceito de felicidade que foi introduzido no Brasil pela pedagogia dos jesuítas, cujo método de ensino, a Ratio Studiorum, estabeleceu entre nós, desde o final do século XVI à segunda metade do século XVIII, aquele aristotelismo ibérico originário do século XVI que teve na Universidade de Coimbra o seu principal centro de divulgação.

Partimos do pressuposto de que esse aristotelismo conimbricense, costumeiramente denominado “Segunda Escolástica” e, portanto, de origem medieval, é a tradição mais antiga do estudo filosófico no Brasil.

Os jesuítas vieram com o colonizador português e trouxeram consigo o seu método de ensino, cujo êxito já se comprovara na Europa ao longo da segunda metade do século XVI. Veremos adiante que o ensino público de filosofia no Brasil Colônia foi padronizado pelo método dos jesuítas e que, desse modo, a Ratio Studiorum passou a ter um valor documental que nos permite examinar com rigor o aristotelismo dentro do qual se estabeleceu pela primeira vez um ideal ético na cultura brasileira.

A recomendação da doutrina de Aristóteles é evidente na Ratio Studiorum, principalmente onde se trata do estudo filosófico, ou seja, nas Regras do Professor de Filosofia. Aí são indicadas hierarquicamente as questões que devem ou podem ser omitidas, as que devem ser estudadas apenas sumariamente e as que devem receber maior atenção. Essa delimitação revela não só a preocupação de conservar, à maneira escolástica, a subordinação da Filosofia à Teologia, no tanto quanto a conciliação entre fé e razão consagrada ao longo de séculos envolve uma certa compreensão da alma humana em sua liberdade de arbítrio; mas também revela, como uma novidade, o intuito de introduzir avant la lettre o sentido de uma política pública, isto é, o teor político-pedagógico de um projeto de ensino para todo um povo.

Cabe observar previamente, entretanto, que mesmo sendo o ensino filosófico sob a vigência da Ratio Studiorum uma preparação para a vivência teológica do mundo, nem por isso o estudo de um texto aristotélico deixa de ser filosófico, assim como já se revelara após a tradução da Ética a Nicômaco por Grosseteste.

O aristotelismo da Ratio Studiorum nos remete ao célebre Curso Conimbricense, no qual os jesuítas traduziram do grego para o latim, e comentaram, obras de Aristóteles. É deste conjunto de livros — que passaremos a chamar apenas de conimbricenses — que destacamos, para o estudo que nos propomos, o Comentário aos ‘livros das éticas de Aristóteles a Nicômaco’, de 1593, da autoria de Manuel de Góis.

Acreditamos que a partir da Ratio Studiorum, na qual se funda o ensino do conhecimento que o brasileiro tem de si mesmo como ente moral ao longo de dois séculos, podemos de fato chegar aos conimbricenses enquanto matriz desse conhecimento; e que desse modo não só se justifica o nosso interesse acerca do aristotelismo no Brasil, como também o nosso interesse no conceito de felicidade estabelecido no Comentário de 1593, com vistas a estudos futuros acerca da ideia de cultura ética como um problema.


1. O Curso Conimbricense no contexto do Humanismo
A fundação do Colégio das Artes, em 1548, junto à Universidade de Coimbra deu início a um período de renovação pedagógica e filosófica em Portugal, em resposta a uma exigência de rigor e objetividade para o aristotelismo escolástico então decadente no século XVI. Apoiada na invenção da imprensa, tal exigência de rigor originou um empreendimento inovador, a elaboração dos conimbricenses, por meio dos quais os mestres jesuítas estabeleceram a exegese de texto como princípio de validade objetiva do estudo filosófico.

Entre 1592 e 1606, foram lançados em Coimbra e Lisboa cinco volumes correspondentes a oito tomos de um curso de filosofia composto para os alunos dos colégios da Companhia de Jesus e subordinados ao título geral Comentários do Colégio Conimbricense da Companhia de Jesus. Os livros versavam sobre textos originais de Aristóteles, que foram então estabelecidos com os recursos da época, e depois traduzidos e comentados pelos mestres jesuítas. Assim foram cumpridas as determinações pedagógicas da Companhia, provenientes de Roma, em conformidade ao aristotelismo oficial.

Podemos questionar-nos sobre qual a razão de um empreendimento desse porte, reeditando comentários a Aristóteles no século XVI [1], quando o antiaristotelismo de autores como Pedro Hispano (Tudo que Aristóteles disse é falso, 1536) já conquistava adeptos na Universidade. Antes da invenção da imprensa era praticamente impossível um critério objetivo de estudo do texto aristotélico. Neste sentido, os antiaristotélicos tinham razão ao afirmar que tudo aquilo que se atribuía a Aristóteles era falseado, pois realmente o pensamento do filósofo era frequentemente desfigurado. Como nos alerta o filósofo português mais importante dessa época, Pedro da Fonseca:

ainda que todos os que frequentavam os estudos de filosofia quisessem ser tidos como aristotélicos, pouquíssimos eram os que estudavam Aristóteles. Efetivamente, julgavam que a doutrina aristotélica se continha mais perfeita e proficientemente explanada em certas súmulas e investigações elaboradas pelo zelo dos mais diligentes do que no próprio autor. [2]

Nota 1A recepção de Aristóteles no Ocidente deu-se por três maneiras distintas: (i) a ação capital de Boécio (séc. V-VI), que traduziu para o latim e comentou algumas das obras lógicas que pertencem ao denominado Organon; (ii) a tradição arábico-islâmica que desenvolveu, durante o fim do século XII e o inicio do século XIII, um longo e notável trabalho de tradução e comentário, permitindo, desta forma, o conhecimento efetivo da maior parte das obras do Estagirita; e (iii) o Curso Conimbricense (séc. XVI), um empreendimento que se distinguiu de tudo o que já havia sido produzido nas duas ocasiões anteriores devido à amplitude, autoconsciência e analiticidade do trabalho de tradução e comentário das obras, envolvendo o cotejo com traduções anteriores.

Nota 2CERQUEIRA, 2002, p. 35.

O objetivo dos Jesuítas era a fidelidade a Aristóteles. E embora tenham sido concebidos por força de uma necessidade pedagógica, os conimbricense logo se revestiram de uma forma universal, que tornou seu préstimo de algum modo semelhante aos escritos dos filósofos anteriores, como os de alguns renascentistas, que no intuito de comentar Aristóteles estudaram Platão e a filosofia grega ou árabe; e os de alguns escolásticos, na medida em que souberam enriquecer a filosofia cristã com novas intuições.

A partir do Renascimento, espalhou-se o entusiasmo pelo humano, pelo bem viver, pelo bem falar, pela beleza física, enfim por tudo o que a natureza humana pode proporcionar, não só de gratificante, mas também de eficiente e produtivo. Mas se podemos dizer que o Humanismo renascentista anunciou um novo estilo literário, e um novo estilo de pensar, privilegiando o tema da liberdade humana, os longos séculos da cultura medieval deixaram uma marca profunda: o cristianismo.

Temos então na península ibérica um Humanismo cristão. Os conimbricenses exprimem esse espírito humanista cristão: a sua condição é ser a passagem do teocentrismo medieval para o antropocentrismo que caracteriza a filosofia renascentista e moderna.

Verifica-se nos conimbricenses uma certa harmonia doutrinária, principalmente quanto à defesa da doutrina teológica de Tomás de Aquino, mas os comentadores não deixaram de inserir nos comentários o seu próprio espírito. Manuel de Góis, o responsável pela maioria dos Comentários, e autor do Comentário de 1593, não foi decerto um simples procurador da Sociedade de Jesus, mas foi nessa qualidade que se esperava que ele atuasse, para que a autoria fosse colegial e não propriamente individual.

Desse modo, o caráter colegial dos Comentários implica uma exigência de uniformidade doutrinária, mas sem excluir alguma eventual dissensão, em nome da independência do espírito, isto é, da liberdade de arbítrio, e de sua clarividência. Para o efeito da publicação, entretanto, prevaleceu o alinhamento de cada um com o projeto político-pedagógico da missão educativa dos jesuítas, de maneira que todos os Comentários foram editados sob a chancela da Sociedade de Jesus — “Commentarii Collegii Conimbricensis Societatis Iesu”.

Todavia, o significado moral da independência do espírito humano, sobretudo no que diz respeito à escolha do que é o recomendável no comentário elaborado, certamente é o que aproxima o mestre jesuíta do Humanismo renascentista. Isto tem a ver com a questão do livre-arbítrio, que foi introduzida pela filosofia cristã, e que no contexto do Humanismo torna-se um convite ao indivíduo para assumir a sua liberdade: se Deus intervinha no seu destino, era apenas no início e no fim; no início, com a graça suficiente; e no fim, como recompensa, com a graça eficaz. Durante o percurso, caberia ao indivíduo a liberdade de arbítrio para agir de um modo ou do modo contrário, assumindo assim a responsabilidade por seus atos.

É pela questão do livre-arbítrio que podemos estabelecer uma contraposição entre os Jesuítas e a Reforma. Na realidade, a criação da Companhia de Jesus, por Inácio de Loyola, visava revitalizar a vivência religiosa em tempo de crise e de divisão da Europa. Dois mundos pareciam digladiar-se num indesejável cenário de cisão religiosa e fragmentação política e cultural. A própria Universidade, deixava de ser como fora outrora, uma realidade europeia para se tornar cada vez mais uma estrutura nacional. Neste sentido, o empreendimento dos conimbricenses foi concebido como uma política pública de Estado, porquanto ele não teria alcançado maiores consequências sem o apoio do rei de Portugal, D. João III, que confiou a formação do espírito no reino de Portugal aos jesuítas, sendo essa a maneira de enfrentar, no plano da ação, os vários projetos da Reforma protestante, mormente baseados na negação da teologia de Tomás de Aquino, então denunciada como ‘filosófica’ por seu caráter conceitual.

Mas independentemente do perfil escolástico da missão educativa da Companhia de Jesus, aferrando-se à tutela da teologia sobre a filosofia; do seu papel político na Contrarreforma; e das razões teológicas que levaram os jesuítas a participar na defesa do livre-arbítrio contra as teses de Lutero [3], convém ressaltar que o aristotelismo dos mestres jesuítas como Luis de Molina, Pedro da Fonseca e Francisco Suárez não corresponde exatamente àquele da Escolástica (CERQUEIRA, 2011a, p. 164). O que chamamos de Humanismo cristão envolve uma época de transição — importa vincar esta diferença — na qual se afirma a dignidade do homem.

Nota 3“A polêmica teve a sua origem na filosofia do Renascimento e no contexto do Humanismo. Em seu De libero arbitrio (1439), Lorenzo Valla se propõe examinar se a presciência divina é incompatível com a liberdade humana, e conclui pela desconfiança em relação à razão e pela necessidade da fé como fundamento da certeza; em seu Libri quinque de fato, de libero arbitrio et de praedestinatione (1520), Pomponazzi defende a tese de uma intervenção arbitrária de Deus; Erasmo de Roterdam, por sua vez, na obra De libero arbitrio (1524) tenta evitar os desvios dos reformadores, procurando uma mediação entre a Reforma e a Contrarreforma. Em resposta a Erasmo, Lutero publica De servo arbitrio (1525), onde procura ressaltar o poder do Criador de transformar de fato e de direito o livre-arbítrio da criação em servo-arbítrio das criaturas. Nesta condição, o sentido da liberdade implica o caráter absoluto da vontade do Criador, de maneira que a criatura humana tenderia como que naturalmente a perder o sentido dessa liberdade, porque ao desaparecer sua semelhança com o Criador, em consequência das limitações impostas pela própria natureza, transformar-se-ia o filius Dei em servus Dei” (CERQUEIRA, 2011b, 275).

Além destas características marcantes, cabe assinalar que os conimbricenses constituíram-se também num empreendimento único, sem similar em qualquer época da história do ensino filosófico. Do ponto de vista pedagógico, ele pode ser considerado decisivo para os desdobramentos posteriores do ensino filosófico no âmbito da cultura moderna. E se for considerado desde a sua origem, na reforma da universidade portuguesa no século XVI, o aristotelismo dos conimbricenses assume uma posição média e estratégica para uma perfeita concepção da filosofia, não só como disciplina normativa e sensível aos condicionalismos históricos, mas também como atitude reflexiva que permite ao homem ultrapassar, pelo seu próprio uso teórico da razão, os limites de sua condicionalidade histórico-cultural: o aristotelismo português configura-se hoje como um meio exclusivo, uma porta independente, pela qual tanto se pode chegar à filosofia medieval e daí à filosofia antiga, como se pode chegar à filosofia moderna e daí à filosofia contemporânea (CERQUEIRA, 2002, p. 37).


2. O conceito de alma nos Conimbricenses

"Pelo rigor da demonstração, da matéria sobre que versa e pela nobreza, a ciência da alma sobressai de entre as outras partes da Filosofia, quer seja para regular e gerir a vida com dignidade, quer seja para conhecer tudo da verdade útil."  (In: III De AnimaProemium)

Durante o século XVI houve vários debates e “disputas” [4] sobre a natureza da alma, cujas implicações epistemológicas, metafísicas e teológicas foram importantes para a história da filosofia.

Nota 4“No ensino de origem escolástica, a disputa (disputatio) surgiu como uma ampliação da questão (quaestio) e da leitura ou lição (lectio). Em função das dificuldades geradas pelo ensino escolar com base na leitura, surgiu a meditação (meditatio) no intuito de esclarecer dúvidas de interpretação. Daí vieram as glosas sob a forma de anotações interpostas e marginais feitas pelo próprio leitor. Da glosa resultou a exposição (expositio) enquanto o recurso a frases ou sentenças como chave de explicação do texto original. Como frequentemente um texto filosófico se presta a diferentes interpretações, oferecendo então sentenças contrapostas, surgiu a questão como um gênero independente de problema teórico a resolver. Na discussão oral ou escrita de uma questão, a disputa se estabelecia entre alguém que defendia uma afirmação ou tese e outro que a impugnava, de modo que, à exceção das disputas entre os ‘dialéticos’, em geral procurava-se negar a tese contrária” (CERQUEIRA, 2002, p. 220).


Entre os teólogos-metafísicos a questão principal era sobre a existência ou não de algo que dá a vida [5] aos seres humanos de tal maneira que eles adquiririam um status de superioridade quando comparados com os outros animais. Havendo este “algo” que dá a vida, então haveria uma alma humana que transcende o corpo perecível. Por outro lado, se a resposta para a questão inicial for que não há diferença significativa entre os seres humanos e os outros animais, esta conclusão colocaria em dúvida toda a capacidade intelectiva humana, pois aparentemente o homem se distinguiria dos outros animais através do uso teórico da razão, e então, junto com essa negativa surgiria a questão sobre o que seria a consciência e o que seria a verdade.

Nota 5Segundo a definição de Aristóteles, “dentre os corpos naturais, uns possuem vida, outros não. Chamo ‘vida’ à autoalimentação, ao crescimento e ao envelhecimento. Todo o corpo natural que participa da vida será, consequentemente, uma substância, e isto no sentido de substância composta [...] o corpo não está entre as coisas que são ditas de um sujeito. O corpo antes é sujeito e matéria. A alma, portanto, tem de ser necessariamente uma substância, no sentido de forma de um corpo natural que possui vida em potência” (ARISTOTELES, tratado Da Alma 412a).

De um problema metafísico se chega a um problema epistemológico. Se há verdade e se esta reside na consciência, então há um intelecto que a apreende. O corpo serviria para “materializar” a consciência, no sentido de que a matéria é enformada gradualmente. O fundamento desta compreensão encontra-se no Comentário do Colégio Conimbricense da Companhia de Jesus sobre os três livros do tratado Da Alma de Aristóteles Estagirita (Manuel de Góis, 1598), quando se trata da natureza humana: “deve entender-se que a matéria do feto, primeiro, é enformada pela alma vegetativa, de seguida pela sensitiva, em último, pela intelectiva” (GOIS, 2010, p. 228).

Quanto ao conceito da alma “intelectiva” como um grau posterior aos seus estados “vegetativo” e “sensitivo”, isto deve ser entendido gradativamente, na medida em que estes três graus são instâncias de aperfeiçoamento dos seres animados, pois “a alma intelectiva [...] dista ao máximo da matéria impura, da materialidade do corpo humano” (GOIS, 2010, p. 237). Neste sentido, há duas possibilidades inteiramente distintas para uma explicação causal tanto (i) da necessidade material, quanto (ii) da necessidade espiritual ou moral: no primeiro caso, (i) a ordem de dependência, na qual o que vem depois depende do anterior; no segundo caso, (ii) a ordem de eminência, na qual o que vem depois excede o anterior, partindo-se do grau inferior para o grau mais elevado, de maneira que se diz primeiro ou anterior o que excede, e posterior o que é excedido.

Quanto à ideia de uma ordem de eminência para dar conta da necessidade espiritual ou moral, já afirmara Aristóteles, no tratado Sobre a alma:

é evidente que a alma é causa também enquanto aquilo em vista do qual [...] Mas ‘em vista do qual’ diz-se em dois sentidos: aquilo em vista do qual [a alma como fim] e aquilo para o qual [o bem dela mesma] significa tê-la como fim e procurar o bem dela mesma. (ARISTOTELES, 2010, p. 72; 415b)

Diz ainda Aristóteles que o ato é anterior à potência, e que o que é posterior em geração é anterior em substância (Metafísica, IX, 8, 1050a).

Se o ser humano tem algo de divino, então mais uma vez se levanta a questão sobre a falibilidade e a fragilidade do homem. Nesta linha, impõe-se a questão referente à possibilidade de erro de julgamento, tanto no nível intelectual quanto no nível moral, pois o ser humano tem que ser responsável de alguma maneira por tais erros de julgamento para ser imputável, isto é, para ser responsabilizado por suas boas ou más ações.

Neste ponto, deve-se ressaltar a defesa intransigente, pelos jesuítas, da liberdade como um poder independente do espírito como princípio de ação moral. Destaca-se aqui a contribuição notável de Pedro da Fonseca (1528-1599), quando ele afirma que a liberdade implica a possibilidade de escolher aquilo que não é manifestadamente melhor e o mais perfeito, sem que isto afete qualitativamente o exercício dessa mesma liberdade [6] (itálicos acrescentados), pois o que está em questão é o modo próprio do ser humano em ação, e não o que é escolhido ou visado em si mesmo.

Nota 6CERQUEIRA, 2011b, p. 276.

Vale observar, entretanto, relativamente à posição defendida nos conimbricenses que, mesmo considerando-se como hipótese a negação do caráter espiritual do ser humano, ainda assim entendeu-se que os princípios básicos da moralidade tem que estar de alguma maneira associados diretamente com a natureza humana.

No contexto da Escolástica, a questão da imortalidade da alma fora levantada, dentre outros momentos, no debate sobre a mortalidade do corpo e a salvação da alma individual, debate este ligado às Sentenças de Pedro Lombardo. A discussão tornara-se ainda mais complexa com a recepção dos comentários de Averróis ao De anima de Aristóteles, nos quais o filósofo islâmico parece negar a imortalidade da alma individual, a salvação individual e a responsabilidade humana pelas próprias ações. Tomás de Aquino se dispôs dar uma interpretação correta e adequada do texto de Aristóteles e analisar a estrutura da alma humana do ponto de vista teórico, a fim de demonstrar em que sentido ontológico e epistemológico se pode dizer que a alma de um individuo é imortal. A partir de então, a abordagem teórica das questões referentes à alma humana tornou-se ligada à questão de como o texto do De anima poderia ser melhor interpretado.

A recomendação feita pelo quinto concílio lateranense, em 1513, incitava não somente os teólogos, mas também os filósofos a utilizar todos os meios para provar tanto quanto possível a verdade da religião cristã de que a alma humana individual é imortal.

Este fato histórico ajuda a explicar porque a nascente Companhia de Jesus produziu já no século dezesseis inúmeros comentários manuscritos ao De anima de Aristóteles, sendo que três daqueles manuscritos foram publicados ainda no século dezesseis — os comentários de Francisco Toledo (1574) e os de Manuel de Góis (1598), além de uma sessão dedicada a pontos essenciais referidos ao De anima nos Comentários à Metafísica de Aristóteles de Pedro da Fonseca (1589).

Outro elemento interessante que surgiu com a análise do Comentário ao De anima dos Conimbricenses foi a constatação de que já na esteira do que tinha feito Pedro da Fonseca, a preocupação tinha se deslocado da análise filológica do texto de Aristóteles — a explicação do texto é uma parte muito pequena do referido Comentário — para a resposta às principais questões filosóficas e teológica suscitadas pela leitura do De anima, ou seja, o que importaria para eles não era descobrir se Aristóteles defendia ou não a imortalidade da alma humana individual, mas sim apresentar os argumentos que a razão dispõe para provar tal mortalidade. Há aqui que se ter presente que esta liberdade de interpretação começa com Pedro da Fonseca e se consolida com Francisco Suárez, em suas Disputationes metaphysicae (1597).

Para Suárez, a alma não pode ser destruída, pois não é de natureza composta, cuja consequente postulação de que no âmbito do psíquico não há distinção entre faculdades sensitivas e intelectivas. A alma, portanto, somente poderia ser destruída por Deus. O corpo, por outro lado, é composto e por isso é perecível.

Os filósofos jesuítas põem-se de acordo com a concepção aristotélica de alma como substância:

tem de ser necessariamente uma substância, no sentido de forma de um corpo natural que possui vida em potência. (ARISTOTELES, 2010, p. 62; De an., II, 15)

Enquanto forma, a alma não é composta, e não se confunde com o corpo; como também se distingue das suas operações e das formas naturais dos seres não vivos. A alma é aquilo por meio do qual vivemos, sentimos, mudamos de lugar e entendemos. A alma não está toda em nenhuma parte do corpo, mas toda em todas as partes, só que não da mesma maneira, pois a vista está no olho, e a phantasia no cérebro, mas o intelecto e a vontade estão igualmente em todo o corpo.

A alma é forma do corpo e princípio de nossa atividade, sendo, portanto, simples, espiritual, subsistente, imortal e igual em relação às almas das outras pessoas.

A intelecção caracteriza-se por ser geradora do verbo, razão pela qual pensar nada mais é do que uma linguagem interior, tese que reabilita e reequaciona a tese agostiniana explicitamente avocada no Comentário de 1598. A intelecção dá-se pelo verbo mental, que é uma assimilação ou representação da coisa conhecida mediante a espécie expressa dessa coisa. A essência ou natureza do pensar consiste em informar e em exprimir de maneira inteligível a coisa em si mesma. Sendo geradora de um verbo, a intelecção é uma ação, não uma qualidade ou disposição, embora o verbo seja uma qualidade do espírito que conhece. Se a assimilação em que o pensamento se traduz põe em relação a potência intelectiva com a coisa pensada (que se identificam no ser, mas são formalmente diferentes), os Jesuítas interpretam Tomás de Aquino no sentido em que o verbo não é apenas aquilo pelo qual singularmente se pensa a coisa expressa por si, mas também o processo de intelecção terminado, i.e., intencionalizado ou universalmente objetivado.

Basta-nos ter presente que nos séculos XV e XVI os pensadores se dividiam nestas matérias de reconhecida produtividade histórica moderna. Discutia-se, por exemplo, a diferença entre o “conceito formal”, que designa o ato de conhecimento, a imagem expressa da coisa, e o “conceito objetivo”, a própria coisa enquanto conhecida ou concebida pela mente. A noção de “exemplar” enquanto “conceito objetivo” é, por fim, explicada em três pontos: (i) aquilo que um especialista intui e exprime mediante imitação; (ii) a expressão da coisa, quer no seu conteúdo exemplar imitável, quer no conceitual que a representa; (iii) a ideia, que em Deus se encontra de forma eminente e, no Homem, como imitação.

Se não é possível depararmo-nos com a dimensão d cogito cartesiano no texto de Góis — seja do ponto de vista epistemológico ou existencial —, nem por isso deixaríamos de assinalar que nele podemos encontrar o antecessor do moderno cogito, a saber — a inteligência como fundamento (suppositum intelligens), conceito que provavelmente ainda não recebeu a devida atenção na história da filosofia, pois na verdade trata-se do modo como a alma humana pode chegar ao conhecimento de si, de sua própria essência.

Diferentemente de certa tradição latina que interrogava sobretudo nos termos do intelecto possível, em Coimbra a pergunta é explicitamente a seguinte: se a alma humana, pela sua própria essência, se pensa a si mesma. Os Jesuítas não podiam deixar de se inscrever nesta longa herança da psicologia do conhecimento de si e da autorrepresentação.

Enquanto referida ao corpo, o sujeito inteligente conhece a si mesmo mediante atos reflexos sobre a sua própria atividade. Isto, segundo os Jesuítas, nos quatro momentos seguintes: (i): concebe a si como espécie extraída dos sentidos; (ii): reflete sobre o seu ato, percebendo-o; (iii): compreende que tem uma imagem espiritual de uma coisa corpórea; (iv): acaba por perceber-se como uma realidade imaterial, uma inteligência.

Do ponto de vista de nosso estudo, é fundamental observar que tais ensinamentos orientam as atividades intelectuais no mundo da vida, como se verifica nos sermões do Padre Antônio Vieira:

Há de servir o corpo ao próprio conhecimento, como o aço no espelho serve à vista: o aço serve à vista; porque rebate e lança de si as espécies de quem se vê ao espelho; de maneira que o mesmo que impede o conhecimento direto, serve ao conhecimento reflexo. (VIEIRA, As cinco pedras da funda de Davi, II, 8)


2.1 O conhecimento de si e a vida moral: Padre Vieira
O Padre Antônio Vieira é a mais conhecida expressão de um verdadeiro espírito transcendente formado durante o período em que vigorou no Brasil o método de ensino dos Jesuítas. Além das suas preocupações de missionário, percorrendo aldeias no interior da Bahia, e de seu perfil como conselheiro real e diplomata, em Vieira distinguiram-se desde cedo as virtudes oratórias. Como autor estético, construiu uma obra literária notável tendo em vista o indivíduo, categoria que, opondo-se à de público, exprime já uma mentalidade moderna e não meramente escolástica.

Acredito que até aqui tenha ficado claro que nos séculos XVI-XVIII a filosofia no Brasil não se concebe senão como disciplina normativa da Ratio Studiorum. O fato de considerarmos o Padre Antônio Vieira digno de interesse filosófico não quer dizer que o consideremos estritamente um filósofo. Pelo contrário, se se justifica um interesse filosófico em seus textos, isto não se deve às questões nem aos problemas por ele suscitados no intuito de converter os homens à religiosidade cristã e católica, senão à universalidade de suas concepções ao pensar tais questões e problemas na perspectiva do aristotelismo que se verifica nos conimbricenses. Todavia, Vieira jamais pensou questões ou problemas foras dos limites do aristotelismo oficial. Para que Vieira fosse considerado propriamente um filósofo ele precisaria ao menos ter-se posicionado, como Descartes, contra o dogmatismo de que se revestiu tal aristotelismo. (CERQUEIRA, 2002, p. 102)

Em um dos seus sermões mais notáveis, As cinco pedras da funda de Davi (1673), o autor inicia suas reflexões dizendo que “neste mundo racional do homem, o primeiro móbil de todas as nossas ações é o conhecimento de nós mesmos”, e com essa afirmação Vieira introduz na base da cultura de língua portuguesa o conceito do ‘conhecimento de si’ como princípio de ação moral, uma vez que distingue o limpo conhecimento de si do conhecimento de si misturado com o corpo e os sentidos do corpo como condição de uma mesma experiência atual de conhecimento, na medida em que para ele, a ciência infusa, isto é, a ciência adquirida passivamente, não basta:

Qual será logo no homem o limpo conhecimento de si mesmo? Digo que é conhecer e persuadir-se cada um, que ele é sua alma. O pó, o lodo, o corpo, não é eu; eu sou a minha alma: este é o verdadeiro, o limpo e heroico conhecimento de si mesmo; o heroico porque se conhece o homem pela parte mais sublime; o limpo, porque se separa totalmente de tudo o que é terra; o verdadeiro, porque ainda que o homem verdadeiramente é composto de corpo e alma, quem se conhece pela parte do corpo, ignora-se, e só quem se conhece pela parte da alma se conhece [...] Homem, se te ignoras, se te não conheces, sai fora. Eu bem sei que a causa de muitas ignorâncias é o não sair; o homem tanto sabe, quanto sai, e aqueles que não saíram, não sei como podem saber, se não for por ciência infusa, a qual ainda não basta. (As cinco pedras da funda de Davi, II, 7).

O autor não concebe a “visão interior” de si mesmo sem a corporeidade, porque a corporeidade mesma de todo o sujeito de conhecimento serve à autoconsciência na medida em que é necessário antes sair de si, para depois entrar em si. Em outras palavras, a corporeidade serve à autoconsciência se e na medida em que a subjetividade se funda individual e casualmente na corporeidade. O corpo é instrumento indireto para o conhecimento. Nas próprias palavras do autor:

Assim é no homem o conhecimento de si mesmo; se para no corpo, ignora-se; se reflete sobre a alma, conhece-se saia logo do corpo, e sacuda-se do pó, se quer conhecer-se [...] quem vê corpo, vê um animal; quem vê alma, vê ao homem. (As cinco pedras da funda de Davi, II, 8)

Vieira distingue no homem dois modos do ser: o modo do ser (i) natural, pelo qual nossas ações se explicam em função de forças imanentes que correspondem à forma aristotélica nos corpos vivos, razão pela qual ele diz que “há de servir o corpo ao próprio conhecimento” (VIEIRA, As cinco pedras da funda de Davi, III; ed. cit., vol. 2, p. 533), no sentido de que a matéria é enformada gradualmente pela alma, de tal modo que, conhecendo a si mesmo, “quem vê o corpo, vê um animal”; e o modo do ser (ii) moral, pelo qual nossas ações se explicam segundo o poder de ser indiferente à necessidade referida ao corpo como um mecanismo e dita material, gerando assim, correlativamente, a necessidade espiritual distintiva da condição humana.

Através da liberdade como indiferença, o homem moral teria o “poder” de superar a regularidade/causalidade mecânica imposta pela natureza, se tornando indiferente tanto às dificuldades quanto aos prazeres. Em consonância com os jesuítas de sua época, Vieira se põe perfeitamente de acordo com o ensinamento de Manoel de Góis, quanto ao princípio de que “o sujeito de toda a ciência moral é o homem enquanto age livremente”. A questão da liberdade de indiferença estaria diretamente ligada à polêmica com os reformadores, quando os Jesuítas saíram em defesa da liberdade de arbítrio: seria inerente à natureza do homem o poder de indiferença a agir de um modo ou do modo contrário, de tal maneira que o indivíduo pode sentir que absolutamente nenhum fator externo pode determinar a sua vontade.

Cada um quer escolher para si o melhor e o mais perfeito, mas para tanto precisa subordinar essa escolha ao entendimento. Porém, o fato de que somos capazes de escolher o que não é o melhor para nós, como no caso da escravidão ao vício, não afeta qualitativamente o exercício dessa liberdade. Fazer uma escolha equivocada não desqualifica o poder mesmo de optar, assim como um pássaro aprisionado em uma gaiola não tem a sua capacidade de voar afeta somente por estar momentaneamente aprisionado.

O problema moral envolve a conhecimento prévio de que pelo livre-arbítrio o homem goza de poder do sim e do não como um poder absoluto. A liberdade da alma consciente de si não só envolve a ordem de eminência, contrária àquela da alma dependente do corpo nas instâncias vegetativa e sensitiva, como também justifica o mérito do grau de perfeição alcançado pelo qual ela se salva e se conserva íntegra e incorruptível — embora não salve o próprio corpo da morte — e assim se reveste de uma condição divina (CERQUEIRA, 2002, pp. 90-99).


3. O conceito de felicidade nos Comentários à Ética a Nicômaco de Aristóteles
No Comentário de Manuel de Góis sobre a Ética a Nicômaco de Aristóteles, o problema da felicidade é tratado em quatro questões e envolve o estudo da Ética como sendo a necessidade de “ver com clareza o que é honesto, o que é desonesto, o que se deve aceitar ou repelir” (GOIS, 1957, p. 59). Mas antes de enunciar tais questões, deve ficar claro que a felicidade é compreendida como sendo um bem, segundo a definição aristotélica de que o que se denomina ‘bem’ é o fim almejado de toda a ação consciente. É neste sentido que a felicidade (felicitas → εὐδαιμονία) é considerada por Aristóteles o bem supremo, isto é, algo visado e querido por si mesmo, e não apenas o mero efeito ou resultado mecânico de nossos atos:

toda ação e toda eleição tendem (…) para algum bem (…) tem-se definido o bem como ‘aquilo a que tendem todas as coisas’. Mas parece haver alguma diferença entre os fins das coisas. Umas vezes são atividades que se desenvolvem por si mesmas; outras vezes são resultados dos atos. (ARISTOTELES, Ética a Nicômaco I, 1)

Se é verdade que existe em nossos atos algum fim, o qual é querido por si mesmo, enquanto que os fins intermediários só se justificam em função deste mesmo fim; e se também é verdade que não nos determinamos a agir passando de um fim particular a outro, assim ao infinito, é evidente que o fim último pode ser o bem, e até mesmo o bem supremo. (ARISTOTELES, Ética a Nicômaco I, 2).

Parece que essa diferença entre o bem querido por si mesmo e o bem intermediário, ou seja, aquele que aparece numa ordem infinita de bens visados, se explica mais claramente em função da causalidade. O que queremos dizer é o seguinte: que a felicidade enquanto o bem querido por si é a causa final, última, com vistas à qual todos os bens intermediários podem ser considerados honestos e aceitáveis, e, portanto, justificáveis como “atividades que se desenvolvem por si mesmas”. Neste sentido, a felicidade não pode resultar de uma causalidade eficiente, como se alguém que fosse levado a desejar algo ardentemente pudesse “encontrar a felicidade”[7]. Neste caso, o que é visado logo pode ser substituído por outro bem, como se verifica na sociedade de consumo, na qual o homem passa a criar artificialmente necessidades para si. Quanto ao bem querido por si mesmo, que pressupõe a capacidade de “ver com clareza o que é honesto” e de escolher “o que se deve aceitar”, não pode ser o alvo de quem é mecanicamente levado a desejar algo, nem de uma atividade inconsciente. Portanto, de acordo com a doutrina aristotélica, que se refere à atividade que se desenvolve por si mesma, o comentador jesuíta estabelece que “o sujeito de toda a ciência moral é o homem enquanto age livremente”.

Nota 7Conforme a tradição aristotélica, a causalidade eficiente se define com base na regularidade observável, de maneira que por meio de uma coisa a que chamamos ‘causa’ tem de ser posta outra coisa que se chama ‘efeito’. Assim se explicam os fenômenos da natureza na física, na química e demais ciências naturais. Mas em se tratando das ações humanas intencionais, é o fim visado e enquanto querido, eventualmente existente, que nos move a agir.

Uma vez visualizado o problema da felicidade em função da causalidade — a saber: que (i) o conceito da felicidade implica a atividade que se desenvolve por si mesma, e que, por isso, (ii) o sujeito da felicidade só pode ser o homem que age livremente —, fica mais fácil entender o nosso interesse no Comentário conimbricense sobre o problema como sendo um interesse propriamente filosófico.

Deste modo, podemos situar a posição dos jesuítas no âmbito do Humanismo, bem como considerá-la em relação à tese de Lutero, no âmbito da Reforma, contra o livre-arbítrio. Também assim, podemos alcançar uma visão mais esclarecida sobre os fundamentos da formação ética no Brasil colonial, se levarmos em conta que a Ratio Studiorum de fato estabeleceu o aristotelismo conimbricense como tradição originária do ensino filosófico brasileiro[8].

Nota 8CERQUEIRA, 2009. Consulta em 15/07/2012:


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