Raimundo de Farias Brito
☛ Anunciado por Farias Brito desde a publicação de A base física do espírito (1912), sob o título “Ensaio sobre o Conhecimento e a Realidade”, este Ensaio sobre o conhecimento, embora incompleto, teve edição póstuma e só foi reconhecido e citado pela primeira vez como texto filosófico relevante por um representante da academia filosófica estadunidense (PhD por Columbia University e professor de Filosofia na New Mexico University por trinta anos), Fred Gillette Sturm, cuja pesquisa doutoral sobre a relação entre a metodologia de Farias Brito e a vertente existencialista (então em voga na psicologia norte-americana) foi por ele apresentada no Brasil, em Português, no âmbito do IV Congresso Nacional de Filosofia organizado pelo Instituto Brasileiro de Filosofia, em 1962, por ocasião do centenário de nascimento do filósofo brasileiro (1862-1917).
Texto de Fred Gillette Sturm disponível em:
https://textosdefilosofiabrasileira.blogspot.com/2008/06/o-significado-atual-do-pensamento.html
☛ In: BRITO, Raimundo de FARIAS. O mundo interior (ed. crítica, EDUFU, 2013), Apêndice. Organização e Estudo Introdutório por Luiz Alberto Cerqueira. Uberlândia: Universidade Federal de Uberlândia, p. 415-453.
∭
Capítulo I
POR QUE VOLTO A ME OCUPAR DE
ASSUNTOS FILOSÓFICOS
§1 — Da extensão do conhecimento
Há na esfera do conhecimento, ou antes, do que se nos apresenta na esfera do conhecimento como seu objeto próprio, uma região hoje considerada interdita, segundo uns, por ser de sua natureza mesma impenetrável; segundo outros, por ser, em virtude de seu caráter sagrado, inacessível aos profanos, só podendo ser antevista ou pressentida pelos que foram iniciados no “segredo dos deuses”. É a região, na linguagem dos gnósticos, chamada do “abismo e do silêncio”. Em linguagem menos nebulosa se poderia dizer: região da verdade e do mistério. Da verdade, para a sabedoria incriada a cuja razão nada escapa, por lhe ser tudo visível, sem dependência, nem do tempo, nem do espaço, nem de qualquer outra espécie de limitação. Do mistério, para nós, que, estando sob a dependência de todas as coisas, vegetamos na morte e temos nossas raízes no nada. Região impenetrável, região inconcebível; onde não há, nem dia, nem noite, nem terra, nem céu; nem trevas, nem luz; nem qualquer outra coisa, a não ser o Único, inacessível à inteligência [1]; onde nossos ouvidos não ouvem o som e nossos olhos não veem a luz — o que faz nossa consciência nada possa aí perceber e se sinta aniquilada e como morta. Região do ser sem relação e da unidade sem pluralidade, ou antes, das ideias eternas, onde o pensamento é ação, e a ideia é ato; o que é dizer que aí a palavra é corpo, e as ideias coisas vivas e reais... É a região da transcendência dinâmica, do infinito positivo e real; ou mais claramente, da consciência idêntica à existência, da ação idêntica ao conhecimento; do ser imutável e eterno, superior a todo número, como a toda a grandeza; inacessível a toda a visão, como a todo o pensamento; que não pode ser calculado, nem medido; que não pode ser pensado, nem sequer imaginado, por lhe não ser aplicável nenhuma das categorias de nossa razão... É “a eterna e profunda obscuridade”, de que nos fala, em seu deslumbramento místico, Mestre Eckhart; obscuridade, “de que nenhum olho pode aproximar-se, que nenhuma palavra pode atingir, e nenhuma inteligência compreender” [2]; onde a mais alta consciência a si mesma se desconhece, e a luz, por assim dizer, se oculta nas trevas; o que significa que aí toda a consciência limitada desaparece e totalmente se anula como fragilíssima luz no fundo do mais insondável abismo…
Nota 1: Vishnu, Purana I, II.
Nota 2: São fórmulas do Sama Veda.
É a região do ser imprescritível, do princípio superior a todos os princípios, do poder que tudo domina, da razão sem limitação, da vida sem dependência da morte; a região daquele “em relação ao qual tudo o mais é como trevas, falsidade e nada” [3]; daquele “a quem nenhuma criatura se esconde e a cujos olhos todas as coisas estão como nuas e descobertas” [4]; daquele “cuja palavra é viva e eficaz, e mais penetrante que a espada de dois gumes, e chega até o íntimo do corpo e da alma, até às juntas e medulas, penetrando os pensamentos e intenções mais ocultas” [5]; daquele que lê nas consciências e é o único que pode dizer “Eu sou a verdade”.
Nota 3: S. Tomás, Suma teológica, trad. Lachat, vol. VII, pág. 261.
Nota 4: Heb. 4, 12-13.
Nota 5: Ibidem.
Até aí certamente jamais poderá elevar-se nenhuma consciência humana. Bem o compreendo. Não obstante, é para aí que me sinto arrastado, em meu esforço pelo conhecimento, por uma atração irresistível. Será uma loucura? Não sei. Decerto não se poderá conceber maior cegueira, pois é evidente que me arrisco a conjecturas que são infinitamente superiores a todas as forças de meu espírito. Mas não posso, neste ponto, conter-me nos limites do que a razão claramente me faz compreender. O infinito me fascina e me penetra. E diante da luz que dele emana, sinto-me como que aniquilado, e tudo o mais se me afigura sem valor e como morto. É a razão por que me parece tão vã e irrisória e mesmo odiosa e ridícula a majestade fofa e irritante de algumas de nossas mais ruidosas grandezas humanas. E realmente serão alguma coisa mais do que simples vermes muitos dos que, no tumulto e desordem das sociedades, se apregoam como portadores da maior soma de autoridade e representantes do mais alto grau de poder? Examine-os em suas manobras e em seus processos de luta. São os protegidos da fortuna, os que sempre se consideram predestinados para a vitória, os que se fizeram dominadores por herança ou por conquista. Supõem-se senhores do mundo, e é com soberano desprezo que olham para a massa comum dos imbecis a quem dominam e cujo único destino fazem consistir em aplaudi-los e festejá-los em sua passagem triunfal. Pobres loucos. São também imbecis a seu modo, pois se iludem mui facilmente quanto à significação real de sua grandeza e poder. Alguns começam a apodrecer mesmo em vida. E o Cristo os lamentava, considerando-os, como estando, por si mesmos, já condenados; ao passo que falava com amor aos desprezados da vida, aos tristes e leprosos; e era aos pequenos e aos humildes que anunciava o seu reino e oferecia o favor e os benefícios da lei nova que pregava... Tudo isto nos perturba e nos confunde; mas ao mesmo tempo nos dá força, e, em certo sentido, nos esclarece, pois revela a ação misteriosa, mas segura e previdente, de uma sabedoria infinita.
É o que me parece de uma evidência irresistível e de uma eloquência soberana. Não se deve, porém, supor que assim pensando, ou assim falando, eu seja guiado ou esclarecido por algum estranho fenômeno de iluminação exterior. Que ninguém o imagine. Nem eu mesmo poderia imaginá-lo. E é somente porque já encontrei quem me acusasse de misticismo que entro em explicações desta ordem. Não há em mim nenhum misticismo, a menos que se entenda por misticismo coisa diferente do que a palavra significa em seu sentido próprio, tradicional e histórico: a interpretação dos mistérios do ser por sugestão ou inspiração de algum poder sobre-humano. O mistério me atrai, e a verdade que ambiciono possuir é a verdade completa, integral. Mas para isto só posso contar com os recursos naturais da razão e os processos regulares da lógica. Raciocino sobre os dados que minha consciência recebe da impressão das coisas e dos fatos: mas vou somente até onde a razão me leva. Nada tenho, pois, de visionário. Nada tenho de místico. Procuro interpretar o que vejo e compreender o que sinto — eis tudo. E para isto o critério que adoto é exatamente o da realidade e dos fatos. Quer dizer: aceito como critério da verdade o testemunho normal e permanente da consciência. Esse critério não excede os limites da razão e dos sentidos. E quando uma visão mística me viesse surpreender é provável que eu a tomasse por algum desarranjo momentâneo da razão. E certamente continuaria a pensar e refletir, sem que exercesse, esse fato, sobre o desenvolvimento de minhas ideias, a menor influência.
§2 — Não sou um visionário, nem um místico
Acredito explicar-me com bastante clareza. E insisto em repetir: nada tenho de místico. Outros poderão ser favorecidos pela graça incomparável de receber o conhecimento da verdade como quem é transportado ou iluminado pelo clarão imprevisto de uma revelação caída do alto. Eu não: não tenho a profundeza do místico, sentindo, como Pascal em seus momentos de êxtase, a presença do Eterno; nem a majestade soberana do profeta, recebendo como Moisés, em sua visão do Sinai, as tábuas da lei. Tenho, sim, a paixão do conhecimento, a ânsia de descobrir a verdade. Mas nasce isto em minha consciência como uma necessidade de caráter puramente subjetivo, como um impulso interior que encontra sem dúvida nas circunstâncias exteriores tenaz resistência, mas nunca se deixa por elas totalmente anular. É uma aspiração instintiva que se prende ao que há de mais alto e também de mais obscuro em meu ser: aspiração imperiosa, absorvente, profunda, que se forma insensivelmente, mas termina por concentrar todas as energias de meu espírito. É o que experimento no fundo de mim mesmo, quando me observo mais atentamente. E acredito que todos deverão sentir a mesma coisa, embora seja certo que tudo na vida tende a esmagar, desde suas primeiras manifestações, a aspiração do conhecimento: a pressão do meio, as dificuldades da ordem social e as inclinações naturais de nosso próprio organismo. E há outras circunstâncias ainda, que seria escusado mencionar. E para vencer a influência desastrosa de todo esse conjunto de fatos, seria naturalmente necessária uma energia quase sobre-humana. Não é, pois, de estranhar que a maior parte dos que aspiram, ou poderiam aspirar ao conhecimento, sucumbam. Contudo é certo que essa aspiração resistiu em mim a todas as dificuldades; e se bem que eu não saiba explicar como nasceu, nem tampouco determinar até onde poderá elevar-se, em todo o caso sinto que é aí que se acha o princípio mesmo e a razão de ser de toda a minha existência. De maneira que, considerando em particular a vida, este processo de formação ou de concentração e purificação do espírito, tão complexa e tão dependente, tão cheia de nobres e altas aspirações, e ao mesmo tempo tão frágil e mesquinha, tão incerta e tão miserável, podemos dizer que tudo o que a ela se refere é meio para seu desenvolvimento. Mas o conhecimento é o fim mesmo a que se destina. E como o conhecimento tem por objetivo a verdade, deve-se daí concluir que a verdade é o nosso fim supremo e o nosso destino mais alto. Não a verdade parcial, a verdade relativa ou fenomênica; mas a verdade total e absoluta, o conhecimento da significação real do mundo e da existência.
Mas para chegar a essa verdade, qual o caminho a seguir, qual o processo regular e mais seguro? Devemos tirá-lo de nós mesmos ou arrancá-la dos arcanos impenetráveis do cosmo, interrogando as vozes misteriosas da natureza?
§3 — Em meu esforço pelo conhecimento nenhum socorro me vem de fora
Pelo que observo em meu próprio pensamento, quando me esforço por descobrir a verdade, sob qualquer de seus múltiplos e variados aspectos, sou forçado a reconhecer que nenhum socorro me vem de fora. Indagando do sentido e valor do mistério que representamos, sou como um cego que tateia nas trevas: nenhum clarão se acende no alto, nenhuma luz se manifesta exteriormente para guiar-me na escuridão que me cerca. É por isto talvez que apenas proponho questões e nada resolvo, guiado unicamente pela luz sempre vacilante e incerta da razão. Um esforço, um esforço doloroso e triste — eis em verdade o que tem sido em mim o trabalho do espírito. E conquanto já bem longo seja o caminho percorrido, o certo é que ainda não fui, quanto à posse da verdade, além do ponto de partida. Debato-me em vão sem poder avançar um só passo. E comecei interrogando e é interrogando que termino. E sobre os grandes problemas que são o objetivo próprio do pensamento e têm até aqui constituído o trabalho dos séculos e da história, comecei fazendo conjecturas e continuo ainda simplesmente fazendo conjecturas. Interrogo, interrogo sempre. E nenhuma voz me responde, permanecendo sempre impassível e muda a natureza. Agito-me então e procuro, pelo raciocínio, interpretar estas sombras que passam e desaparecem, a realidade exterior e sua eterna fenomenalidade. Que é tudo isto que me cerca? Que sou eu mesmo que trabalho por conhecer a verdade?
Se uma voz me falasse do alto, dando-me a chave de toda a verdade, tudo estaria resolvido. Esclarecidos todos os pontos obscuros da existência, a paz se faria em meu pensamento, não havendo mais razão para nenhuma incerteza ou inquietação. Seria isto o meu renascimento, minha entrada definitiva, não na vida de que conheço apenas o lado doloroso e trágico, mas na plenitude do ser, na vida pura do espírito, no ser consubstancial com o conhecimento: seria um como clarão desfazendo a noite que me envolve, a luz desfazendo a treva.
Mas essa voz não me fala. E a treva continua impenetrável, não somente fora, como ainda dentro de mim mesmo. Não sou, pois, treva desfeita, mas apenas treva esforçando-se por penetrar a luz: uma consciência que mal se apercebe de si mesma, na desordem de suas inclinações, muitas vezes em oposição umas com as outras e sempre contrariadas, e na confusão e tumulto de suas aspirações e desejos, sempre insaciáveis e sempre insatisfeitas.
Sou, contudo, uma consciência. E se a consciência, como já disse, tem por objetivo a verdade, é meu dever procurar a verdade. Trabalhar, pois, neste sentido, trabalhar, trabalhar sempre — tal é o meu destino. Nem o devo, nem o posso compreender por outra forma. E se para dar cumprimento a esse destino, a razão é a única luz que me foi dada, claro se faz que devo tomar por guia a razão. E devo assim proceder, certo de que a razão não poderá enganar-me, pois o contrário disto seria acreditar que a natureza não passa de um tecido de contradições e monstruosidade inextricáveis. Nem devo temer que seja ineficaz o meu esforço, porque nenhum esforço do pensamento é ineficaz, quando se trabalha de boa fé.
§4 — Tenho vivido para estudar e meditar uma questão única: significação de meus anteriores trabalhos
Foi convencido desta verdade que voltei a prosseguir na tarefa a que dediquei minha vida e em que venho trabalhando desde 1895, época em que saiu publicado o meu primeiro ensaio filosófico: pesado encargo que tanto me tem sido penoso e que já tantas vezes tenho pensado em abandonar. Qual é, porém, a questão de que vou agora ocupar-me? A mesma de que me tenho ocupado em meus anteriores trabalhos: o que mostra que tenho vivido para estudar e meditar uma questão única. Mas esta questão única é ao mesmo tempo uma questão múltipla, pois apresenta muitas faces e pode ser encarada sob diferentes pontos de vista: o que quer dizer que encerra numerosos problemas. Todos estes problemas, porém, ligam-se a uma mesma corrente de investigações: não são problemas diferentes, mas apenas diferentes aspectos de uma só e mesma questão fundamental. E esta, quanto ao essencial, se resolve no seguinte: no esforço pela interpretação do verdadeiro sentido da existência; o que equivale a dizer que se resolve no esforço pelo estabelecimento de uma filosofia do espírito, pois, se o espírito é, segundo o ponto de vista que adoto, a “coisa em si” e o ser verdadeiro de todas as coisas, logo se compreende que não será possível chegar à legítima interpretação do verdadeiro sentido da existência senão pela noção do espírito.
Tal é a questão de que me tenho ocupado, em meus sucessivos trabalhos, sob diferentes pontos de vista. Entre estes, para melhor compreensão do plano que tive em vista desenvolver, convém destacar os seguintes: o ponto de vista crítico, o ponto de vista histórico, o ponto de vista sistemático ou dogmático, e o ponto de vista moral ou ético.
É a estes quatro pontos de vista que se ligam todas as obras a que tenho até aqui dado publicidade, sobre matéria filosófica, e em que gradativamente tenho procurado submeter a exame, com a possível coesão lógica, os seguintes assuntos:
1º – O ponto de vista crítico: o conceito de filosofia e sua significação fundamental como atividade do espírito;
2º – O ponto de vista histórico: gênese da filosofia moderna e análise crítica da consciência filosófica contemporânea;
3º – O ponto de vista sistemático: filosofia do espírito;
4º – O ponto de vista moral ou prático: a verdade como regra das ações.
Antes, porém, de passar ao estudo de nossa questão sob outros aspectos, julgo conveniente apresentar aqui em resumo a conclusão geral de todos estes trabalhos. É como melhor se poderá ver, no que se refere ao nosso plano de investigações, a coordenação dos problemas e a filiação regular das ideias.
Capítulo II
O PONTO DE VISTA CRÍTICO: O CONCEITO DA FILOSOFIA E SUA SIGNIFICAÇÃO FUNDAMENTAL COMO ATIVIDADE DO ESPÍRITO
§5 — Posição da questão
Trata-se aqui de um exame preliminar da filosofia. É a propedêutica da ciência: um como reconhecimento inicial para delimitação do campo das explorações filosóficas, precisando-se os conceitos fundamentais e indicando-se a extensão legítima e o destino próprio do conhecimento: assunto este sobre o qual grande confusão se nota ainda entre os autores; o que dá em resultado que as direções são múltiplas e, o mais das vezes, para pontos opostos, na marcha do pensamento; e os intuitos desarmônicos e muitas vezes contraditórios. E é a isto que se liga a variedade quase ilimitada dos sistemas, como a ineficácia e fraqueza das doutrinas filosóficas. Trata-se, em suma, de fazer uma rigorosa delimitação entre as diferentes energias em que se decompõe, na prática social, a atividade do espírito, não só definindo-as, cada uma em sua significação própria, como ainda procurando interpretá-las em seu desenvolvimento sucessivo, e em suas relações e múltiplas combinações.
O primeiro conceito a determinar é precisamente o da filosofia, do qual derivam e pelo qual facilmente se explicam todos os outros. Mas já neste ponto começam as divergências, ou melhor, começa a confusão, pois cada um define a filosofia a seu modo, ao mesmo tempo que pretende ter, também a seu modo, a sua intuição da vida e do mundo. O que quer dizer que há tantas filosofias quantas cabeças pensantes. E é o que se observa presentemente. Mas se fosse esta a situação normal do espírito, dever-se-ia reconhecer que há na obra do pensamento, não solidariedade, mas contrariedade; não coesão, mas dispersão. Ou ter-se-ia a confirmação do pensamento de Schopenhauer, quando diz que a filosofia é um monstro de muitas cabeças de que cada uma fala uma linguagem diferente. O que tudo significa no fundo que em filosofia todos pretendem ditar a lei, mas em rigor ninguém se entende; o que justificaria em relação a esta ciência ou suposta mãe das ciências, a frase com que Stuart Mill pretendeu pulverizar a silogística de Aristóteles, lavrando-se assim, sem mais qualquer apelo, esta ruidosa sentença: “A filosofia não passa de uma solene futilidade”.
Este paradoxo teve os seus representantes. E entre nós, onde tudo se exagera, se já não perdura, contudo, tem ainda os seus representantes atávicos. Tanto assim que ainda se encontram em nosso país indivíduos, homens de letras, jornalistas, políticos, que, a todo momento e a todo propósito, continuam a repetir ingenuamente a velha frase: “Só há um princípio absoluto: é que tudo é relativo”. Isto como se se tratasse da mais alta das verdades. E alguns até, estão ou fingem estar ainda convencidos de que a obra de Augusto Comte foi sem igual na história do pensamento, e está destinada a dominar pelos séculos dos séculos…
Para destruir, entretanto, este preconceito ou este fanatismo não se fazia necessário grande esforço. Bastava definir bem as coisas. A obscuridade de que propositadamente se procuraram cercar, estes fanáticos da positividade, não era tão grande quanto se chegou a imaginar. Eles próprios bem o sentiram. E bem depressa ficaram convencidos de que não poderiam ir muito longe. Nem poderiam criar dificuldades senão para os que nunca sentiram ou de todo já haviam perdido a fé nas aspirações ilimitadas do espírito. E em geral só embaraçaram e chamaram às suas fileiras os que, não possuindo a coragem ou a energia conveniente para entrar na cogitação dos grandes problemas, a si próprios se procuram reduzir, restringindo o círculo de suas esperanças, e criando limites fictícios para o desenvolvimento do espírito. Também o positivismo não era uma filosofia; mas, positivamente, uma negação da filosofia; e a mais intransigente e sistemática. E esta atitude não era natural, pois é a negação do destino próprio do espírito, que é alargar, cada vez mais, desenvolver sempre e indefinidamente a esfera do conhecimento. É isto coisa que forçoso é reconhecer, porque é evidente. E os próprios positivistas não podiam deixar de compreendê-lo, pois haviam de abrir os olhos um dia. Assim é que, extremamente orgulhosos, em começo de seu saber, muito artificialmente arquitetado, aliás, se bem que lhe dessem pomposamente o nome de saber enciclopédico, dentro em pouco já vacilavam em suas convicções, e faziam-se até místicos. O próprio fundador do sistema dera disto o exemplo. Depois, sentindo-se mal, muito mal numa atitude que lhe parecia difícil manter, já não falavam com a primitiva arrogância: entravam em arranjos com teorias estranhas, faziam concessões, admitiam que o mestre infalível, que o mestre dos mestres pudesse também errar. Por fim desistiram completamente de seu propósito de dar uma nova organização da sociedade sem Deus, nem rei, está bem visto [6]. E agora, certos de que seu ponto de vista não passava de uma enfermidade que já não podiam prejudicar a ninguém, por ter perdido toda a força de contágio, e só se pode contar como coisa quase totalmente pertencente ao passado, mostram-se acanhados e tímidos, menos intolerantes e menos fanáticos, e sempre pouco dispostos a discutir. Percebe-se bem que já se sentem vencidos. Mais do que isto: percebe-se bem que já se sentem mortos. Também não deviam esperar outra coisa, estes paralíticos ou estropiados do pensamento... Tanto apertaram a esfera do conhecimento, fazendo-a estreita e fechada, que por fim terminaram nela morrendo asfixiados…
Nota 6: Como de todas as outras novidades análogas com que imaginavam fazer tanto barulho no mundo ocidental, renovando a face das coisas...
Em todo o caso, morto o positivismo que não é senão uma das formas do ceticismo, este que tem por tendência natural reaparecer sempre, de novo se manifesta nos horizontes do espírito, repetindo por outros modos as mesmas negações sistemáticas e levantando, sob outros pontos de vista, as mesmas dúvidas eternas. Tal é o sentido das novas formas que aparecem do espírito crítico, sob as denominações mal definidas e vagas de filosofia científica, de naturalismo, agnosticismo, etc., ad instar de poesia científica, religião científica e outras formas análogas, que todas pressupõem o ponto de vista do conhecimento científico propriamente dito, ou do conhecimento feito à luz do método experimental. Esse método é realmente de efeito extraordinário e tem produzido uma verdadeira revolução, não só em tudo o que se refere ao conhecimento científico, como ainda em tudo o que se refere ao desenvolvimento econômico do mundo. Mas sua aplicação é restrita ao conhecimento referente aos acidentes das coisas, ou aos detalhes dos fatos: o que quer dizer: ao conhecimento especializado ou à ciência no sentido próprio do termo. Na filosofia tal método não poderá ser empregado senão incidentemente, e quando se tenha de invocar algum fato, sobre o qual tenha o direito de falar a ciência, como já pertencente a seu domínio. Pretender, porém, fundar filosofia à porta dos laboratórios, com observação de balança ou outros quaisquer processos de aparelhos mecânicos, seria uma loucura. A filosofia que daí saísse, seria quando muito, uma filosofia de cozinheiro. E para essa filosofia o mundo devia naturalmente tomar o aspecto de uma panela imensa no espaço... Ora, sobre este ponto não vale a pena insistir... Pois haverá quem conceba que o mundo, considerado em seu conjunto, que o universo, considerado na totalidade de sua existência, possa ser submetido a experiências de laboratório por processos mecânicos?
Pode-se falar de método experimental em filosofia. Mas quando essa fórmula não seja aí uma coisa inteiramente banal, deve ter uma significação totalmente diferente. É, por exemplo, a filosofia com a interpretação, que lhe é própria, dos fatos pelos processos da história; a filosofia, tendo-se em vista fazer a experimentação dos fatos do espírito ou o estudo empírico dos elementos mentais; a filosofia, fazendo-se, na dedução de suas leis próprias, a aplicação dos resultados gerais da ciência, ou outras coisas análogas. E compreende-se bem que o fato ainda se pode apresentar sob muitos outros aspectos. Desta multiplicidade de pontos de vista resulta que grande confusão logo se estabelece entre os autores, ainda os mais seguros e de maior autoridade, e isto faz que se perca o sentido legítimo de muitos dos princípios mais essenciais neste domínio. Por isto fazia-se indispensável examinar a fundo a questão do conhecimento. E para tal fim, a primeira condição, ou antes, o objetivo principal devia consistir exatamente no seguinte: em fazer claro e preciso o campo das investigações filosóficas, determinando com a máxima segurança, não somente o conceito da filosofia, como o de todas as outras operações e processos que estão com a filosofia em ligação mais direta, e como em relação imediata e necessária.
Tal foi a matéria de que me ocupei no volume com que dei começo, em 1895, à série então anunciada sob o título geral Finalidade do mundo.
Esse volume tinha por objeto A filosofia como atividade permanente do espírito humano. E aí as conclusões gerais a que cheguei, com o desenvolvimento e explicações complementares que tive de acrescentar em meus posteriores trabalhos, em particular, na Introdução de A base física do espírito, publicada em 1912, e no 1o. livro d’O mundo Interior, publicado em 1914, são, em suas linhas capitais, as que passo a expor.
§6 — Filosofia e ciência
O homem é dotado de tendência natural e espontânea para o conhecimento. Pode-se mesmo dizer que essa tendência é o seu destino próprio, ou pelo menos o seu destino mais alto. Assim é que, apenas começa a desenvolver-se no homem a inteligência, logo se manifesta nele a curiosidade que se observa já na criança, a qual continuamente se esforça por compreender, não somente o sentido das palavras, como igualmente a razão de ser das coisas e dos fatos. E se essa curiosidade se manifesta, em alguns casos excepcionais, intensa e profunda, logo se transforma em paixão, e leva todo aquele que se mostra dominado dessa paixão, a pensar sempre, a esforçar-se sempre e indefinidamente por interpretar a significação da realidade. É a isto que se chama paixão do conhecimento ou filosofia. E tal é realmente a característica particular do filósofo: quer tudo compreender, tudo explicar; e em sua ânsia por descobrir a verdade em todas as coisas, e sobretudo por compreender o sentido oculto da existência, jamais se dá por satisfeito, jamais considera como completa a sua obra, e está sempre a interrogar o desconhecido, a trabalhar sempre, a se esforçar sempre e indefinidamente por satisfazer a curiosidade que o devora, como se fosse uma sede inextinguível. Resulta deste esforço a ciência. Torna-se assim fácil precisar o conceito da filosofia, considerando-a em relação com o conceito da ciência. A filosofia vem a ser o espírito mesmo, investigando o desconhecido; o espírito mesmo, indagando da verdadeira significação da realidade e esforçando-se por elaborar o conhecimento. E o conhecimento elaborado — eis o que se chama ciência. Em outros termos: a filosofia é o conhecimento in fieri, o conhecimento em via de elaboração; a ciência é o conhecimento feito, o conhecimento organizado ou sistematizado.
Eis, sobre este assunto, como de modo muito preciso me expliquei no livro sobre A filosofia como atividade permanente do espírito humano:
A natureza é o grande e interminável problema do espírito humano. Nossa ignorância é como um longo véu que a envolve. E como é quase nada o que sabemos das coisas, sucede que tudo se apresenta com o caráter de mistério. E, levantada a ponta do véu, com as primeiras noções que vamos adquirindo, tão grande e tão maravilhosamente complexa e rica se mostra a natureza, que parece que o mistério cresce.
São bem conhecidas estas palavras de Sócrates: Só sei que nada sei. E isto não significa outra coisa, senão que é à proporção que vamos aprendendo alguma coisa, que chegamos a adquirir consciência da extensão infinita da natureza. Com o tempo, entretanto, e através das gerações que se sucedem, alarga-se a esfera da consciência. Às primeiras noções adquiridas na observação dos inumeráveis fenômenos do cosmo, reúnem-se outras, depois ainda outras, organizando-se todas em diversas [formas]1 de conhecimento correspondentes [aos diferentes aspectos da ordem natural]2. Os fatos são explicados e classificados. As leis que presidem sua aparição e desenvolvimento são descobertas e definidas. É determinada e compreendida a ordem de sua sucessão e coexistência. De modo que, ao lado do mundo que passa, que ninguém sabe de onde vem, nem para onde vai, [mas que nunca termina]3, forma-se no espírito do homem, gradativamente, indefinidamente, uma consciência que o representa. E essa representação também obedece a leis, desenvolve-se e cresce; e do mesmo modo que a natureza não tem limites, também ela nunca poderá tornar-se definitiva e completa. Depois, está sujeita a erros, pode refletir falsamente a realidade: daí a necessidade da verificação e da prova; e é só depois de haver sido submetido a essa verificação e a essa prova que qualquer ordem de conhecimento pode ser apresentada como expressão da verdade. Os conhecimentos que vão sendo verificados, conforme [a natureza]4 dos fenômenos [a que se referem e conforme as analogias que entre estes são descobertas]5, vão sendo [ao mesmo tempo]6 coordenados e classificados, [consolidando-se]7 em corpo de doutrina; e é assim que [gradativamente se vai constituindo]8 a ciência, a qual organizando-se e desenvolvendo-se, divide-se em [disciplinas distintas, na conformidade das diferentes categorias de fatos]9 observados. Deste modo as noções mais gerais dos corpos, as propriedades do número e da extensão, formaram o objeto da matemática. O movimento, essa atividade permanente que se desenvolve indefinidamente no espaço e no tempo, constitui o [objeto]10 de outra ciência, a mecânica. Da observação e verificação do movimento dos astros, do estudo dos corpos celestes, nasceu mais outra, a astronomia. E assim por diante, decompondo-se a ciência em seu desenvolvimento em diferentes ordens de [ciências]11: matemática, mecânica, astronomia, e mais particularmente, considerando-se certas modalidades especiais da matéria, física, química, biologia, etc.
Mas, até aí, trata-se somente dos fenômenos quanto a seu aspecto exterior, trata-se somente dos fenômenos objetivos. Não satisfeito, porém, com isto, o espírito, depois de observar o que se passa fora de si, no espaço e no tempo, volta-se para o interior de si mesmo e procura saber de que natureza é o princípio mesmo gerador do conhecimento. Daí a psicologia e a metafísica.
Sempre que qualquer conhecimento chega a ser verificado e organizado, é ciência. Mas o espírito nunca se dá por satisfeito: não se contenta com o conhecimento adquirido; [prossegue sempre em sua exploração da natureza; e esta não diminui no que dela ignoramos, não se oferece menos obscura e menos cheia de mistério, porque a conhecemos em alguns de seus caracteres: pelo contrário parece que aumenta de proporção à medida que se vai revelando]12 à consciência humana. [De maneira que nossa curiosidade cresce na proporção das nossas descobertas. E por fim, o que se verifica, depois de tudo, é que, com o desenvolvimento de nosso conhecimento, o que se consolida e desenvolve em nós, é unicamente a consciência de nossa ignorância.]13
É nesta exploração [da natureza, neste esforço pelo conhecimento que consiste o trabalho essencial e a função própria]14 da filosofia. De modo que a filosofia não é precisamente uma ciência. Nem sequer um dos ramos do conhecimento. É o princípio mesmo gerador do conhecimento: é a inteligência em ação, explorando a natureza e produzindo a ciência; em uma palavra: é o próprio espírito humano em sua atividade permanente, indefinida. [7]
Nota 7: Cf. Finalidade do mundo I, V. Entre colchetes, as variações significativas do texto, introduzidas pelo próprio autor, às quais correspondem pela ordem: 1. [ordens]; 2. [às diversas ordens de manifestações naturais]; 3. passagem suprimida; 4. [as analogias]; 5. [que representam]; 6. passagem suprimida; 7. [organizando-se]; 8. [se origina]; 9. [diversos ramos, conforme as diversas ordens de fenômenos]; 10. [princípio]; 11 [conhecimento]; 12. [quer continuar na sua exploração da natureza que aliás não fica diminuída em sua parte desconhecida porque em alguns caracteres insignificantes chegou a revelar-se]; 13. passagem acrescentada; 14 [do desconhecido é que está propriamente a função]. N. do E.
§7 — Filosofia pré-científica e filosofia supercientífica
Pela distinção que aí fica estabelecida, entendendo-se por filosofia o conhecimento in fieri, e por ciência o conhecimento feito ou elaborado, é evidente que a filosofia é anterior à ciência, pois não se compreende que a coisa em elaboração possa ser posterior à coisa elaborada. E realmente, examinando-se atentamente a obra do pensamento, o que se verifica é isto mesmo: que vem em primeiro lugar a curiosidade de saber, o esforço pelo conhecimento, e só depois aparece como resultado mesmo desse esforço, o conhecimento; o qual, sendo organizado e sistematizado, constitui precisamente o que se chama ciência. Primeiro a filosofia como esforço pelo conhecimento; depois a ciência como resultado ou produto natural desse esforço — tal é o desenvolvimento lógico do pensamento, justificando-se assim plenamente a fórmula que adoto de filosofia pré-científica, para caracterizar a filosofia como paixão do conhecimento: fórmula cuja significação real consiste exatamente em pressupor que a filosofia é anterior à ciência, ou pelo menos deve ser considerada, em certo sentido, como sendo anterior à ciência. E esta anterioridade não é uma convenção ou uma pressuposição arbitrária: é um fato real e histórico. E este fato prova-se, além do mais que se poderia alegar, pela significação etimológica da palavra, pois, como é sabido, filosofia vem de philos e sophos, e significa, assim, etimologicamente, amor da ciência; expressão que se poderia substituir por esta outra: instinto, inclinação ou paixão da ciência; o que tudo equivale a dizer: o princípio mesmo gerador da ciência. E está bem visto que o princípio gerador não pode vir depois da coisa gerada. E prova-se ainda, com mais eficácia, o mesmo fato, pelo desenvolvimento histórico do pensamento, considerado em relação com a formação das ciências, pois é bem sabido que estas últimas não constituíam em começo disciplinas separadas; e faziam, ao contrário, parte do mesmo corpo de doutrinas; conjunto informe de especulações a que não se tinha ainda dado organização definitiva, e em que se tratava de tudo, desde as relações de ordem matemática ou astronômica, até as mais altas e mais complicadas manifestações do ser moral e psíquico. Tal era o estado dos conhecimentos humanos ainda no tempo dos gregos, na escola pitagórica, como na escola jônica e eleática; na escola atomística, como na escola platônico-aristotélica, nascida da inspiração de Sócrates; nas escolas epicurista e estoica, como ainda na escola de Alexandria, em Plotino, Proclo e mais representantes do sistema. Era o que se veio a chamar a nebulosa inicial do conhecimento científico, a ciência em via de elaboração e sistematização, o espírito humano investigando o desconhecido e preparando a ciência; era a filosofia, no mais vigoroso sentido do termo. E foi só pouco a pouco que deste todo informe se foram sucessivamente destacando as diferentes disciplinas científicas: a princípio a matemática, depois a astronomia, depois a física, por fim a química, a biologia, etc. E é para notar que as últimas são de criação bem recente. A química data de Lavoisier. A biologia data, como é sabido, de Bichat e Claude Bernard.
E vê-se assim, pela história, o que certamente não deixa de constituir uma prova decisiva, que a filosofia realmente precedeu a ciência. É uma questão de fato, e contra fato não se argumenta. E não será difícil mostrar que é esta a marcha regular e necessária das ideias. Nem se poderia conceber por outra forma o desenvolvimento lógico do pensamento. Mas há quem tire daí a conclusão de que a filosofia não tem mais razão de ser e se deve dar por terminado o seu papel, uma vez que já se acham constituídas as ciências. Era este o seu objetivo próprio. E alcançado este objetivo, a que vem cogitar mais de filosofia? Esta se transformou na ciência; e o que se transforma, deixa de ser. O que resta, pois, é unicamente a ciência. E é só da ciência que devemos agora cogitar; o que quer dizer de fato provado e verificado. Daí esta tese, em verdade paradoxal, aparentemente muito lógica: a filosofia não tem nenhum valor teórico e só pode hoje ser tomada em consideração historicamente; o que significa que só vale como fato do passado. É a opinião comum entre muitos sábios ou entre muitos que a si próprios se apregoam ruidosamente como sábios, entendendo-se por ciência uma como espécie de divindade nova de que são eles os profetas e reveladores. O positivismo, por exemplo, não tem outra ideia. E se bem que ainda mantenha a palavra filosofia, desde que limita o papel da filosofia que devera, por isso mesmo, chamar-se, positiva, a uma simples generalização das verdades mesmas da ciência; logo, por aí se vê que o que se propõe fazer é a substituição da filosofia pelas ciências! E o mesmo se pode dizer de todos os sistemas empíricos, como de todas as tentativas de filosofia científica em geral, quando se limita todo o conhecimento a experiência de laboratório e se adota como regra a subordinação de todo o saber humano ao critério exclusivo do peso e da medida como pretende, por exemplo, Le Dantec.
Tudo isto, entretanto, é falso. Constituídas as ciências, a filosofia não fica parada em seu desenvolvimento, nem dá por terminada a sua missão. Pelo contrário, recebe, das ciências mesmas, novo impulso. E continuando a investigar o desconhecido, não só poderá sempre dar lugar à criação de novas ciências, como além disto é levada por disposição natural e necessária, a lançar as bases de uma concepção do mundo, dando a interpretação do todo universal.
É a filosofia considerada neste último sentido que eu chamo filosofia supercientífica. E com esta expressão, quero dizer precisamente que a filosofia não pode contentar-se com as ciências e vai sempre além das ciências. E isto se explica facilmente: é que a ciência jamais poderá esgotar a realidade. Nem se deve acreditar que possa ir além da superfície das coisas. Também, por mais que se desenvolva o saber científico, a verdade é que para todos os lados se estende o desconhecido em proporção ilimitada. E há sempre pontos obscuros nas coisas mais claras, mistério no que se supõe conhecer com mais precisão e rigor; o que mostra a legitimidade da fórmula de Bourdeau — “a ciência é como um simples ponto luminoso no meio de uma noite infinita”. E em verdade o que se sabe está para o que se ignora como quase nada para o infinito. É que sabemos tão pouco, que em rigor podemos afirmar que ignoramos tudo. E em sua significação verdadeira, o certo é que tudo é para nós completamente desconhecido. De modo que não será exageração afirmar que é dentro do desconhecido que estamos, nos movemos e agirmos, sendo certo que o desconhecido nos envolve e nos penetra, pois não somente desconhecemos as coisas que nos cercam, como a nós mesmos nos desconhecemos. Por onde se vê o absurdo ou insensatez daqueles que imaginam, pela ciência, possuir toda a verdade. Estes apregoam-se pomposamente de sábios; e orgulhosos, porque aprenderam a fazer a decomposição de alguns corpos, determinando os elementos simples que os compõem, ou porque se acham habilitados a fazer a classificação de uns tantos organismos, alguns de proporções ínfimas, perceptíveis somente à luz de poderosos aparelhos, acreditam que já não há para eles mistérios, nem na vida, nem no pensamento, e tudo podem explicar, só porque se julgam autorizados a falar em nome da ciência. Alguns mostram-se neste sentido fantasticamente ingênuos, e só porque afirmam que a ciência se manifesta neste ou naquele sentido, que a ciência prova, que a ciência verifica e demonstra isto ou aquilo, imaginam que já não têm mais o que fazer, devendo todos submeter-se, sem mais qualquer observação ou réplica.
A ciência, entretanto, a ciência verdadeira e legítima, não tem destas pretensões insensatas. Reconhece que a realidade verdadeira lhe escapa, certa de que gira num campo limitado. Campo limitado, mas ainda assim, contaminado de obscuridades impenetráveis. Deste modo confessa que os mais graves problemas ficam além de seu domínio. E a verdade é que a ciência não pode abranger a esfera toda inteira do ser ou do real, e não conhece, em geral, deste, senão aspectos ou modalidades particulares. Deste modo, por mais que venha a desenvolver-se, ficará sempre um resto, e este resto é o todo ilimitado, para investigações de ordem filosófica. Também cada ciência liga-se ao desconhecido por certo lado, e não há nenhuma que não esteja em desenvolvimento contínuo. E isto significa que todas elas estão subordinadas à filosofia, ou que a tendência natural da filosofia é sempre exceder as ciências, fazendo destas precisamente, o instrumento próprio, ou o elemento cabal, como ponto de apoio, para as suas incursões na região do desconhecido. É assim que à filosofia pré-científica sucede a filosofia supercientífica. Esta última vem a ser a mesma coisa que a metafísica e tem por destino próprio fornecer uma interpretação da realidade, ou, a determinação do verdadeiro sentido da existência.
Eis aqui, em conclusão, como foi feita na Introdução de A base física do espírito, a síntese de meu pensamento sobre este assunto:
[Na formação natural e desenvolvimento necessário das ideias,] vem em primeiro lugar a filosofia, que é a atividade mesma do espírito, que é o espírito interrogando a realidade, e elaborando o conhecimento [filosofia pré-científica, conhecimento in fieri, conhecimento em via de elaboração]. Desta elaboração resultam as ciências. Mas as ciências não bastam, e o espírito, de fato, segue duas direções diferentes; uma que leva à ciência, outra que leva à metafísica. Quer dizer: especializando-se, a filosofia produz as ciências; mas generalizando em seguida o resultado das ciências, eleva-se daí a uma interpretação da realidade e funda a metafísica [filosofia supercientífica, totalização da experiência ou concepção do todo universal]. É a concepção de que já Herbart nos dá uma ideia precisa, quando diz: ‘No pensamento a respeito do mundo e da humanidade, a força do espírito tende inevitavelmente para a metafísica que, semelhante às montanhas primordiais, forma a base vasta, profunda e invisível de todos os sonhos e de todas as aspirações humanas, e domina, ao mesmo tempo, com seus picos ab-ruptos e raramente pressentidos todas as outras alturas e profundezas’. (A base física do espírito, Introdução III, VII)
§8 — Perennis philosophia
A permanência ou perenidade da filosofia é fato que dispensa qualquer explicação ou esclarecimento. Deduz-se do conceito mesmo da filosofia tal como ficou estabelecido. É um de seus caracteres próprios e o mais importante. E isto se faz patente desde as nossas primeiras indicações sobre o assunto. A filosofia, de fato, foi por nós definida desde o início dos nossos trabalhos como o instinto mesmo do conhecimento, como a curiosidade natural que nos leva a investigar a natureza das coisas. E manifestando-se naqueles, pelo menos, que são seus legítimos representantes e seu instrumento próprio, como uma paixão que vai crescendo sempre, como uma sede inextinguível, logo por aí se vê que jamais poderá considerar como limitado o círculo de suas cogitações, e jamais poderá chegar ao término de seu desenvolvimento. É, para repetir a palavra de um pensador de tendências positivas, aliás, bem pronunciadas, “um como rio que nasce e morre nas nuvens”. É uma paixão que jamais se dá por saciada, uma necessidade que jamais se extingue. E como a necessidade é o motivo essencial e fundamental da ação, podemos acrescentar: uma necessidade, por conseguinte, uma atividade que não tem limites; logo, indefinida, eterna. É o que bem claramente se faz visível (é pelo menos o que tivemos em vista acentuar) já pelo título mesmo do livro a esta matéria especialmente dedicado: A filosofia como atividade permanente do espírito humano. E assim se deve entender, não somente considerando-se a filosofia no sentido pré-científico, como paixão do conhecimento (amor da ciência, conhecimento in fieri ou elaboração do conhecimento científico), como ainda no sentido supercientífico como esforço pela interpretação do sentido oculto das coisas (totalização da experiência, concepção do todo universal, metafísica).
É o que se compreende com a máxima clareza. Assim, em rigor, nada teríamos aqui que acrescentar. Mas a questão pode ser ainda considerada sob outro aspecto, e permite reflexões de outra ordem que não deixam de ser valiosas.
Nada tem de estranho que se forme uma proporção nestes termos: o conhecimento está para o espírito, como a nutrição para o corpo. É uma proporção perfeitamente legítima, fundada em relações reais, mais do que numa simples analogia. E esta proporção importa apenas no conhecimento deste fato incontestável: que o espírito precisa conhecer, nas mesmas condições que o corpo ou o organismo precisa nutrir-se.
Há, pois, um pão do corpo e um pão espiritual. Este último é o conhecimento. E como a filosofia é, em seu sentido próprio e originário, em sua significação tradicional e histórica, o amor da ciência ou a paixão do conhecimento, o que significa: o processo mesmo da formação da ciência, o princípio da constituição e a elaboração do conhecimento, daí resulta que pode ser considerado, em relação ao conhecimento, a mesma coisa que a fome em relação ao corpo.
A filosofia é, pois, a fome do pão espiritual, e essa fome satisfaz-se precisamente pelo conhecimento. O conhecimento vem a ser então o princípio da nutrição do espírito, nas mesmas condições que a matéria é o princípio da nutrição do corpo. E se a matéria, por isto mesmo que nutre o corpo, constitui a substância do corpo, do mesmo modo devemos afirmar que é o conhecimento que constitui a substância do espírito. E a analogia vai ainda mais longe, porque, considerando-se em sua constituição própria no ser vivo, o espírito e a matéria, vê-se que cada um destes dois princípios é, a seu modo, uma renovação contínua. É assim que todo o organismo está sempre a refazer-se, e no fundo, se resolve numa cadeia de movimentos moleculares ou, para falar segundo as concepções mais recentes e mais apregoadas da biologia, numa troca contínua de moléculas vivas. Do mesmo modo podemos dizer que se resolve o espírito apenas numa sucessão contínua de ideias. E como para conservar e desenvolver o organismo torna-se indispensável o esforço do indivíduo organizado que não só deverá evitar tudo o que lhe possa ser prejudicial e funesto, como ao mesmo tempo deverá ter à sua disposição tudo o que lhe é necessário e indispensável; nas mesmas condições devemos trabalhar pela conservação e desenvolvimento do espírito: o que equivale a dizer que devemos trabalhar pelo conhecimento, pois é pelo conhecimento que o espírito se conserva e desenvolve. Por onde se vê, mais uma vez, e já agora com evidência irresistível, que a filosofia como consciência da necessidade do conhecimento, como o esforço, em que naturalmente se resolve, pelo conhecimento, é tão essencial à vida do espírito, quanto a nutrição à vida do corpo. E como o espírito, em certo sentido, não tem limites, daí resulta que a filosofia é uma necessidade, e como da necessidade deriva a atividade, devemos dizer: uma atividade permanente, ilimitada.
Mas aqui uma observação curiosa poderá ser feita que nos leva a fazer uma distinção importante. E vem a ser a seguinte: se a filosofia ou o esforço pelo conhecimento é tão essencial à vida do espírito, quanto a nutrição à vida do corpo, como se explica que de nutrir-se todos precisam essencialmente, a tal ponto que se, por qualquer circunstância, mas de modo irremediável vem a faltar a alguém o pão para a boca, a consequência necessária é a morte; ao passo que de filosofia poucos cogitam, e daí nenhum inconveniente resulta? Como se explica isso?
A observação é grave. Mas o fato se explica facilmente. É que corpo, todos temos. E como nosso corpo se conserva pela nutrição precisamos nutrir-nos, e isto essencialmente. A nutrição é assim uma necessidade imperiosa imposta fatalmente a todo o ser vivo, porque não há vida sem corpo. Mas espírito poucos possuem. E aqueles que o não possuem, embora sejam vivos, não têm que cogitar senão da vida do corpo. Esta lhes basta. Nem se compreende que tenham de trabalhar pela conservação e desenvolvimento do espírito, pois seria trabalhar pela conservação e desenvolvimento do que não possuem. É verdade que o espírito deve ser o destino de todos: é como parece que se deve interpretar, em sua legítima e mais justa significação, a vida. E todos deverão a ele um dia chegar, mas sem dúvida mui tardiamente. E quem sabe se aqueles que ainda o não possuem em qualquer grau não terão de voltar ao nada absoluto?
Todos têm corpo, devemos insistir: é por isto que todos precisam nutrir-se. Mas espírito, são raros os que o possuem; é por isto que poucos precisam filosofar. Também o pão de cada dia, o pão material, nos é indispensável, e se nos vem a faltar irremediavelmente, o resultado é realmente a morte. Mas o pão do espírito poucos ambicionam. A grande maioria o desconhece por completo. Muitos, alguns dos quais, aliás, se apregoam representantes da mais alta cultura mental, o consideram um luxo perfeitamente dispensável, uma pretensão descabida e, em certo sentido, irrisória. E os poucos que se esforçam por adquiri-lo e chegam por fim a experimentá-lo, apenas conseguem compreender quanto é trabalhoso e amargo. Isto, entretanto, não exclui esta verdade que um exame mais atento e mais profundo dos fatos torna forçoso reconhecer: que só são verdadeiramente homens, que só são homens, no sentido legítimo da palavra, os que concorrem para o desenvolvimento do espírito. Isto quer se considere esse desenvolvimento no sentido lógico, quer no sentido estético, quer no sentido moral. E principalmente neste último sentido que é também o mais alto, nada se podendo conceber de mais nobre, de mais útil e de mais eficaz que a virtude. E os que não conseguiram elevar-se até esse ponto, os que se limitaram à vida do corpo, contentando-se com a satisfação de suas necessidades materiais, escravos da paixão e do interesse, cegos que viveram unicamente para os antagonismos do ódio, e para as tortuosidades e perfídias da ambição insaciável…
Todos estes, como deverão ser compreendidos?
Estas reflexões nos levam a reconhecer que há entre a vida do espírito e a do corpo analogias reais e incontestáveis. Mas essas analogias devem ser entendidas em termos, e não excluem divergências profundas. Mais do que isto: oposições e contrastes. Ou mais seguramente ainda: um antagonismo radical. E tão radical e profundo é realmente esse antagonismo que em verdade se pode dizer: entre a matéria e o espírito medeia o infinito. De tal modo que nada parece mais estranho, mais inexplicável, mais monstruoso e paradoxal do que a união da alma e do corpo num organismo vivo, o que importa a ligação da matéria e do espírito, ou a subordinação da consciência a esse fenômeno misterioso da vida.
Matéria e espírito, eis a síntese da universal existência. Mas que é a matéria? Que é o espírito?
Nestes dois princípios, sem dúvida, tudo se resume. E explicá-los em todas as suas modalidades, em todas as suas operações e processos, em todo o seu desenvolvimento, determinando com absoluta precisão todas as energias em que se resolvem, e todas as possibilidades, quer de ação, quer de fato, quer de pensamento, quer de realidade, que se encerram nestas energias, de maneira que nada aí exista que não fique conhecido de modo completo, absoluto, definitivo, seria explicar a totalidade das coisas. Mas quem até aí poderá chegar?
Só conhecemos qualquer forma do real, de modo extremamente restrito e sob alguns de seus aspectos particulares. E como cada coisa oferece sempre aspectos múltiplos, em quantidade incalculável, daí resulta que só as conhecemos relativamente, o que quer dizer, limitadamente, imperfeitamente, de maneira que, como são em si mesmas, fica sempre para nós um mistério impenetrável.
Que conhecemos da matéria? Quase nada.
Que conhecemos do espírito? Ainda menos.
Deste modo, em qualquer sentido e sob qualquer ponto de vista que se considerem as coisas, a verdade é para nós sempre esta: que é muito pouco, quase nada o que sabemos das coisas que nos cercam e são o objeto de nossa percepção, e ainda menos o que sabemos de nós mesmos. Uma muralha impenetrável limita nossa visão da realidade, e desta, em verdade, não conseguimos apreender senão acidentes passageiros e vagos, miragens longínquas, sempre envolvidas na sombra do mistério. Isto, quer se considere o espírito em qualquer de suas energias, sempre leves, sempre sutis, sempre intangíveis e luminosas; quer se considere a matéria, em qualquer de suas formas, sempre objetivas, sempre exteriores, sempre pesadas e inertes. Mas entre a matéria e o espírito existe a vida. Esta é como uma espécie de ligação necessária entre aqueles dois princípios, ou melhor, uma como transição necessária de um para outro. E como da vida fazemos parte, sentindo-a diretamente, sentindo-a em nós mesmos, por isto podemos dizer que é a única forma do real, em que conhecemos alguma coisa com certeza, alguma coisa em seu valor essencial e absoluto. E isto pela razão muito simples de que só aí encontramos alguma coisa em que nosso conhecimento se faz consubstancial com o ser.
Eis, pois, para nós o fato decisivo e nossa primeira verdade: vivemos. E desta verdade estamos certos, nem poderemos contestá-la, porque vida é sentimento e deste sentimento fazemos parte. Mas esta primeira verdade só se torna completa por esta outra: nascemos na dor, crescemos na dor e estamos sujeitos à decrepitude e à morte: o que significa: vida é sofrimento. E desta segunda verdade estamos igualmente certos, pois se trata também aí de uma verdade que entra do mesmo modo, na categoria das coisas que se sentem, das coisas a todo o momento experimentadas. Nem outra significação se poderia jamais dar ao que se pode chamar o sentimento da vida. Vida é sofrimento: tal é realmente o testemunho universal, a tradição contínua das gerações que se sucedem: para o conjunto dos seres, o laço comum que os liga a uma só e mesma cadeia de fatos — a unidade da dor; e para toda a consciência a experiência comum é o grito de cada dia.
E se a vida se estende entre esses dois extremos, o nascimento e a morte, poder-se-á dizer que nascer é a nossa primeira, e morrer, a nossa última desgraça?
A última? Quem o sabe?
De toda a forma, o que vai do nascimento até a morte é uma cadeia de amarguras e a esta cadeia de amarguras estamos sujeitos de modo fatal, irremediável, como se obedecêssemos ao decreto de um poder infinito, superior a todas as forças e incompreensível a todas as consciências: decreto supremo, decreto irrevogável, e em virtude do qual dura é para todos a realidade, dura e sempre triste; a tal ponto que ninguém com ela se conforma, e ninguém a ela se submete, senão protestando, gemendo e chorando.
E eis também por que a vida em todas a extensão da criação natural, desde o verme até o homem, e principalmente neste último, por isto mesmo que aí se acha mais desenvolvida a consciência, não passa de uma queixa contínua, de uma eterna lamentação e de um clamor universal... Clamor de morte e desespero…
Todavia, por esse clamor mesmo, por essa sucessão de amarguras, por esse desespero... uma coisa se faz para nós certa: é que existimos. E a vida poderá, neste caso, ser definida precisamente por estas palavras: é a consciência da existência. E realmente o ser vivo é aquele que sabe que existe, aquele que tem consciência da própria existência. É verdade que, compreendendo-se assim a vida, não fica bem esclarecido se a planta deverá ficar compreendida entre os seres vivos, porque não sabemos nem podemos verificar se a planta tem consciência da própria existência. Mas isto nada importa. E a planta pode ser apenas uma transição entre a matéria propriamente dita e a vida, ou entre a inconsciência e a consciência. De toda a forma fica sempre clara a distinção entre o ser consciente de si mesmo e o ser inconsciente, entre o ser vivo e a matéria propriamente dita. Esta última é o ser puramente objetivo, a forma exterior, o corpo, no verdadeiro sentido da palavra, compreendido este, abstração feita de toda e qualquer repercussão interna: o que tudo quer dizer: o ser, sem consciência; o ser, vácuo da realidade verdadeira; o ser, cuja única realidade consiste em ocupar um lugar no espaço. E, ocupando um lugar no espaço, pode este ser aí deslocar-se, fragmentar-se em elementos inúmeros, compor-se ou decompor-se, entrar em múltiplas combinações, formando todos os corpos da terra e multiplicando-se nas esferas inúmeras do espaço infinito; mas jamais poderá tornar-se consciente de si mesmo, pois não tem nenhuma significação subjetiva, e só existindo exteriormente, também só pode ser observado e conhecido exteriormente.
Eis aí, pois, com bastante precisão como se pode definir a matéria: é a existência inconsciente. O ser vivo é então aquele que tem consciência de si mesmo e sabe que existe; a matéria é o ser que não tem consciência da própria existência, que nada sente, que nada teme, nem deseja, que nada conhece; nem poderá jamais funcionar, nem sequer ser imaginado senão como objeto, jamais como sujeito do conhecimento.
Sobre esta matéria vil trabalha o espírito; mas ela por si mesma nada poderá criar, nem produzir, e só se move quando uma força exterior a impulsiona.
Esta primeira definição da matéria como existência inconsciente é apenas uma definição exterior, explicativa somente, e por conseguinte provisória. Mas bem compreendida nos leva imediatamente a uma interpretação mais profunda, ou pelo menos de significação mais positiva e real, a uma definição definitiva, radical e completa; é uma destas definições em que seria permitido dizer que se vai ao coração da coisa definida. E vem a ser a seguinte: a matéria é a consciência da morte.
É esta uma definição talvez pessimista em extremo; à primeira vista, obscura; mas, em todos os sentidos, verdadeira. E nós a faremos clara oportunamente, não podendo, por enquanto, limitar-nos, senão a indicações muito vagas mesmo porque só incidentemente somos levados a tratar deste assunto. Contudo é conveniente desde logo acentuar que o conceito da matéria, assim definido, não deixa de fazer sentir que há alguma coisa de grandiosamente trágico, de profundamente doloroso e cruel, digamos mesmo, alguma coisa de monstruoso e terrível, no processo inicial da geração do mundo, e mais particularmente na produção da vida; quer dizer: na criação de seres, condenados, por força de sua própria organização, e, em consequência, por determinação necessária, ao nascimento e à morte, e essa cadeia insuperável da vida, o que significa: a uma desgraça irremediável, a um suplício sem remissão.
Voltemos, porém, ao conceito da matéria. A matéria é a existência inconsciente, ou a existência morta; logo: a consciência da morte, porque essa existência inconsciente, essa existência morta, embora seja puramente exterior, objetiva, o que quer dizer, sem nenhuma consciência, tem, não obstante, o poder de representar-se em nosso espírito. E isto significa que dela temos consciência: o que deixa bem ver a legitimidade de nossa definição: a matéria é a consciência da morte.
Definição que também se poderia formular por esta forma: a matéria é a consciência do inconsciente.
Mas que vem a ser o inconsciente? Que vem a ser esse inconsciente que se representa em nosso espírito como corpo ou como matéria? Sabemos bem: o inconsciente é, em relação ao espírito, ou em relação à consciência, a mesma coisa que o nada em relação ao ser. Compreende-se assim o pensamento de Platão quando equiparava a matéria ao não-ser. E realmente assim é: a matéria é o não-ser — o não-ser em relação ao espírito, o não-ser em relação à consciência.
Tudo isto é claro. Nem se compreende que possa alguém de boa fé contestá-lo. Mas o que também é claro, embora pareça à primeira vista absurdo, é que esse não-ser é real; é que esse não-ser existe de fato. E tanto assim é que o vemos e tocamos; tanto assim é que, com ele, estamos em contato imediato, e dele dependemos, e por ele podemos, a todo o momento, ser esmagados.
Como se explica então a existência da matéria, dessa massa colossal que se estende de uma a outra extremidade do mundo: monstro ilimitado e sem forma, mas que encerra em si toda a forma e toda a espécie de limite, decompondo-se em todos os corpos e multiplicando-se em todas as coisas e fatos que são objeto de nossa percepção exterior: massa imensa, massa de proporções inauditas, incalculáveis; mas inconsciente e morta; que se fragmenta em todos os corpos vivos e mortos; que continuamente se produz e reproduz em todas as figuras e modos da múltipla realidade; e de que o planeta mesmo que habitamos, ou de que somos tristes prisioneiros, não é senão um fragmento disperso, no qual se desenvolve a vida, como o verme na decomposição do cadáver?
Eis a questão das questões, eis a questão suprema. É, no mais rigoroso sentido da palavra, uma questão atordoante, uma questão que nos assombra e a tal ponto nos perturba e nos confunde, que só de imaginá-la ficamos como que tomados de vertigem. Contudo não deverá ser de solução impossível: e se não nos é permitido desvendar todo o segredo, pelo menos devemos entrever, calcular ou pressentir alguma coisa da verdade que se encerra no mistério da morte. Eu, por minha parte, penso que a existência dos corpos, e a existência da matéria, é fato que só se poderá explicar como consequência de algum drama colossal, de alguma monstruosa tragédia passada no seio da existência primordial: drama assombroso, drama de valor infinito, cuja significação real não podemos compreender, nem sequer imaginar, mas que sem dúvida se passou, porque sem ele o mundo não se compreende e a vida não se explica. Foi, certamente, uma revolução. Mas revolução de ordem cósmica, revolução que fez tremer o universo: revolução, para nós, de proporções inconcebíveis; de tão superior e radical influência, de tão extraordinária e profunda significação, que mudou, em seus fundamentos, toda a base primitiva do ser, e chegou por assim dizer, a agitar o coração mesmo de Deus. Provavelmente uma parte da criação luminosa, puramente espiritual, que deverá ter precedido à existência do mundo corpóreo, deslocou-se de sua órbita própria; e sentindo-se muito alta, pensou em elevar-se ainda mais, e subindo, subindo sempre, em tão alta eminência se viu, que por fim veio a pensar em substituir o Incriado mesmo. Era a revolta da criatura contra o criador. Era a vertigem do espírito criado. O resultado é que nessa carreira vertiginosa para o alto, tanto se elevou, tanto subiu esse espírito que era, aliás, o filho dileto de Deus, que terminou por se perder no infinito; o que significa que terminou por ficar suspenso no vácuo. E não tendo então nenhum ponto de apoio, nenhum princípio de equilíbrio, e perdendo ao mesmo tempo a consciência de si mesmo para obedecer exclusivamente às leis do peso desprendeu-se no abismo... É o que se pode chamar a morte do espírito ou a transformação do espírito em matéria.
A matéria é, pois, espírito morto.
Tal é a significação profunda, verdadeira e real do dogma da queda. E esta interpretação do verdadeiro sentido da realidade exterior não deixou de já ser pressentida. Schelling, por exemplo, imaginou os corpos com inteligência petrificada: era uma vaga intuição, ou pelo menos, um pressentimento antecipado da verdade. E não se tratava aí de um simples devaneio poético ou de uma metáfora arrojada, mas de um esforço, já bastante seguro, por interpretar o sentido oculto das coisas, um começo de compreensão da verdadeira significação da matéria, tendo em vista o alto valor do espírito, e com fundamento no sentimento vivo da realidade.
A matéria é, pois, morte. E se a matéria se apresenta de dois modos, como matéria inorgânica e como matéria organizada, o que se conclui daí é que há duas espécies de mortes: a morte absoluta e uma morte relativa. A matéria inorgânica é a morte absoluta; a matéria organizada, uma morte relativa. A primeira é inconsciente; por conseguinte nada em relação à consciência, quase nada em relação ao ser. A segunda é inconsciente e consciente ao mesmo tempo: inconsciente em sua realidade externa, consciente no sentimento de sua realidade interior; logo, no sofrimento e na dor; logo, no sentimento de sua degradação e miséria.
Como se deve então compreender essa morte relativa a que se dá o nome de vida? É que vendo a queda do espírito, vendo o cadáver de seu filho, Deus se sentiu triste. E desde então a tristeza se fez a mãe das grandes coisas, e a dor se tornou uma coisa santificante. A matéria continuava ainda na vertigem da queda. Tudo era confusão e desordem em toda a extensão do infinito. Era o caos e a treva; o silencio e a morte... E Deus sofreu... E Deus chorou…
Mas o pranto divino, deixando-se a princípio perceber como um som vago e indistinto, como uma melodia longínqua, amargurada mas fascinadora e sublime, logo se desfez em lágrimas de dolorosa tristeza e dilacerante amargura. E estas lágrimas espalhando-se como uma chuva de ouro por toda a extensão do espaço infinito, lágrimas de sangue, ou lágrimas de fogo, instantaneamente se fizeram perceber como suave claridade e consoladora manhã nas profundezas da noite ilimitada do caos, curando, como um bálsamo sagrado, todas as feridas da morte, e restabelecendo por toda a parte a harmonia e a ordem. É a significação do fiat lux. Desde então ficou toda a existência material dotada de um contínuo desenvolvimento e sujeita ao domínio de leis invariáveis e eternas. Tal é a origem da luz exterior; tal é talvez a origem da música, esta arte misteriosa e sagrada; tal é provavelmente a significação do que se convencionou chamar a harmonia das esferas. Era uma nova criação a que Deus se resolvia; criação que era uma obra de amor e piedade, pois o que o Criador tinha em vista era unicamente habilitar o seu filho a libertar-se da morte.
Que Deus se resolveu a uma nova criação por amor e piedade e que o pranto divino foi o veículo sagrado para a obra de regeneração (a palavra regenerar significa criar de novo), é fato de que nos faz o Pentateuco a narração simbólica, quando, referindo-se a essas épocas primordiais da criação natural, nos diz o seguinte:
A terra era inerte e vazia, e as trevas cobriam a superfície do abismo, e o Espírito de Deus era levado sobre as águas. [8]
Nota 8: Gên. 1, 2.
A mesma tradição se encontra na literatura sagrada dos indianos. E nas Leis de Manu, ou Manava Dharma-sastra, o mesmo pensamento é também simbolicamente reproduzido, em termos quase idênticos, nas explicações que se seguem:
O espírito supremo produziu a princípio as águas, nas quais depositou uma semente produtora... E as águas foram chamadas Naras, porque eram a produção de Nara (o espírito divino). E foram elas o primeiro lugar do movimento (ayana) de Nara; razão, porque este, que é o Espírito divino, foi clamado Narayana; o que quer dizer: aquele que se move sobre as águas. [9]
Nota 9: Manava Dharma sastra (Leis de Manu), Liv. I, 8, 10.
Nas águas, que eram a matéria reduzida, pela queda, à rigidez do cadáver, mas tornada depois, pela piedade divina, apta para o movimento, Deus fez uma separação, colocando no alto o firmamento, e, embaixo, a terra; e nesta também distinguiu duas partes: o elemento úmido e o elemento seco, ou os mares e a terra propriamente dita. É o que igualmente nos descreve o Gênesis [10]. E deste fato nos dá também testemunho o Livro das Leis de Manu, quando diz que “o gérmen depositado por Deus no seio das águas se tornou um ovo brilhante como o ouro”, e acrescenta que esse ovo, sendo dividido em duas partes, “delas se formaram o céu e a terra, ficando no meio a atmosfera, as oito regiões celestes, e o reservatório permanente das águas”. [11]
Nota 10: Livro I, 8, 9.
Nota 11: Livro I, 9, 12 e 13.
No firmamento criou Deus as esferas luminosas, cada umas das quais é sem dúvida um centro do mundo, tendo o seu domínio próprio, mas sujeitos todos eles ao mesmo sistema de leis universais. O Sol é uma destas esferas luminosas.
E na terra criou as plantas, a erva verde, que dá semente, e a árvore que dá fruto, cada uma segundo o seu gênero e espécie. E estabeleceu assim as condições de vida.
Depois criou os animais, os répteis de alma vivente, e as aves que voam sobre a terra, debaixo do firmamento do céu; os grandes peixes e todos os animais que têm vida e movimento, os quais foram produzidos pelas águas cada um segundo a sua espécie, e todas as aves segundo o seu gênero. E abençoando-os disse: “Crescei e multiplicai-vos, e enchei as águas do mar, e as aves que se multipliquem sobre a terra”.
Por fim criou Deus o homem, feito de barro; o qual animou com seu sopro de vida. E o fez à sua imagem, e o fez macho e fêmea, em alma vivente, determinando-o a exercer império sobre todos os seres dotados de vida e a exercer domínio sobre a terra. E abençoando-os igualmente disse: “Crescei e multiplicai-vos, e enchei a terra e dominai-a; e dominai sobre todos os peixes do mar e sobre as aves do céu, e sobre os animais que se movem na terra”. [12]
Nota 12: Gên. I, 11, 12, 14, 16, 21, 22, 23, 24, 25, 27, 28.
Foi assim que se passaram as coisas em nosso planeta. E sobre estes fatos, a respeito dos quais muito clara e positiva é a Bíblia, este livro que é a mais extraordinária de todas as obras do homem, e o mais fecundo e o mais eloquente de todos os documentos humanos, uma tradição valiosa e altamente significativa nos vem de todos os povos, que remonta às eras mais remotas da história. E esta tradição é vaga e imperfeita, deficiente e confusa, nebulosa e fantástica, extravagante, por vezes, em muitas de suas revelações mais importantes; mas, em suas linhas capitais, sempre a mesma. E isto mostra que a história vem em confirmação das deduções da razão.
Quanto ao que se passou nos outros planetas, como em todos os mundos pertencentes às outras esferas luminosas do cosmo, nada sabemos. Nem isto provavelmente nos interessa. Mas é de supor que as coisas sejam aí análogas ao que se passa entre nós, devendo-se porém, ter bem presente ao espírito que nestes mundos infinitos do universo, todas as gradações imagináveis são possíveis, quer da matéria, quer do espírito; quer dessa forma relativa da morte a que se dá o nome de vida; quer da vida absoluta, ou da vida pura do espírito: o que quer dizer: da vida sem ligação com a matéria, e, por conseguinte, sem nenhuma dependência da morte. Nem se deve supor que o homem seja a forma mais alta da vida. Assim é no nosso planeta. Mas nosso planeta, bem o sabemos, é apenas um grão de areia no espaço. E quem sabe, em outras esferas do desenvolvimento natural, a que grau de perfeição não se terá elevado a matéria em seu esforço por libertar-se da morte?
Seja, porém, como for, o que parece fora de dúvida é que todo esse cenário imenso do mundo não foi feito senão para servir como teatro ou meio próprio para o desenvolvimento da vida. Assim neste cenário a vida é o que se encontra, ou o que se manifesta de mais alto. E razão tem, por exemplo, Hegel, o mais profundo, ou pelo menos o mais vasto e mais sistemático de todos os filósofos da natureza, quando diz que “a vida realiza a finalidade universal”, e que “a vida animal é o ponto culminante da natureza”. [13]
Nota 13: Enciclopédia, §350.
Determinando-se, entretanto, à criação desse teatro imenso do mundo, para que nele se desenvolvesse a vida, Deus não precisou criar nenhuma matéria nova; nem tampouco criar nenhum princípio novo para constituir a vida: serviu-se para tudo isto da matéria mesma já existente em consequência da queda, da massa imensa dos espíritos mortos. Por onde se vê que o mundo foi feito com cadáveres. Mas nessa massa imensa de cadáveres, princípios há que Deus animou com seu sopro de vida. E é a estes princípios que se liga tudo o que há de harmonia e beleza no mundo: o que justifica plenamente o pensamento de Ruskin, por exemplo, quando diz: “O belo é a assinatura de Deus sobre as coisas”.
A nova criação não é, pois, precisamente uma criação, no rigoroso sentido da palavra; mas apenas uma regeneração. E compreende-se bem que essa regeneração devia provir, não de Deus, mas da matéria mesma, ou do espírito decaído. E só assim será valiosa, trabalhando, por si mesmo, pela própria libertação, aquele que por si mesmo produziu o mal imenso da queda. E vê-se, por esta forma, que a vida que não é senão o esforço contínuo da matéria por libertar-se da morte, a vida com seus males, com suas lutas sem fim, com sua inquietação e miséria, não é obra de Deus, mas da matéria mesma. Esta, embora reduzida, em consequência da queda à inconsciência da morte, contudo não perdera totalmente a sua energia primitiva, e no fundo é espírito, embora aí, o espírito esmagado pelo peso da morte, tenha de todo perdido a consciência de si mesmo. O que Deus fez, foi isto: concedeu à matéria faculdade e poder para libertar-se. Mas isto devendo ela própria esforçar-se por essa libertação. A vida é esse esforço. E como a matéria se desconhece e continua, sempre, dormindo o seu sono de morte, nem sabe, nem pode trabalhar senão nas trevas, incertos são os seus processos, dolorosa a sua via. É por isto que a vida se multiplica em tantas formas estranhas, umas resistentes, outras de extrema fragilidade; umas, passageiras e vagas, por vezes, quase imperceptíveis; outras, mal definidas, sem individuação precisa e mal se podendo destacar da massa comum da matéria; algumas de enormes proporções, outras microscópicas; algumas de delicada conformação, harmoniosas e belas, outras asquerosas e horríveis... E ainda em suas formas mais nobres, em suas manifestações mais elevadas, ainda no homem, está sujeita a toda sorte de enfermidades, quer de ordem física, quer de ordem moral, a toda sorte de depravação e miséria. É que a matéria é cega; e na noite imensa a que ficou reduzida, não sabe abrir caminho para contemplar a luz, senão através do erro e da loucura, senão através do sofrimento e da dor. Deste modo trabalha sempre, mas pouco edifica. E não sabe vencer as dificuldades com que tem de lutar, nem sacudir o peso de que se vê oprimida, senão soltando gritos de desespero e, por assim dizer, dilacerando a si mesmo. Ásperos são os seus caminhos, dolorosa a sua via. E por mais que se eleve em seu trabalho de libertação, está sempre sujeita a novas quedas. É como se compreende a queda do homem; o qual, tendo sido criado imortal, por ter recebido diretamente o sopro da vida divina, foi, não obstante, arrastado pelo peso da matéria de que fora feito. Esta, sob a forma vil da serpente traidora, invejosa da glória que lhe foi concedida, de novo a atraiu ao seio da morte, lisonjeando-lhe a vaidade e iludindo-o com promessas vãs de falsa grandeza. O orgulho e a soberba que foram as causas primordiais da ruína do espírito, mais uma vez determinaram a sua queda na morte.
A vida é, pois, o esforço da matéria para libertar-se do mal, da queda, para subir do nada ao ser, da inconsciência à consciência: esforço vão, desesperado, porque o mal da queda é um mal infinito, e para vencer um mal infinito, indispensável se faz um poder infinito. E esse poder não pertence à matéria que nem sequer sabe que existe.
É por isto que, no desenvolvimento da vida, como na marcha contínua da história, a todo o momento se torna necessária a intervenção divina.
É o que explica a necessidade permanente do milagre.
É o que explica a inspiração dos profetas.
É o que explica a existência de um homem como Jeremias, ao qual Deus disse: “Antes que eu te formasse no ventre de tua mãe, eu te conheci; e antes que saísses da clausura do ventre materno, te santifiquei, e te estabeleci profeta entre os homens”. [14]
Nota 14: Jer. 1, 5.
É o que explica o aparecimento do Cristo: Deus feito homem, submetendo-se à provação dolorosa da vida, e sujeitando-se ao suplício da morte na cruz, para dar ao mundo o exemplo da humildade e do sacrifício.
Nesta longa exposição em que tivemos de entrar, antecipadamente, na cogitação de ideias e princípios que, só mais adiante e em lugar próprio, poderiam ser devidamente desenvolvidos, pode parecer, à primeira vista, que nos afastamos do objeto particular deste parágrafo e perdemos de vista o que pretendíamos estabelecer — que era o caráter permanente da filosofia.
Mas é um engano. Esta exposição era indispensável para que se possa formar juízo seguro e definitivo, perfeitamente claro e irrecusável, do verdadeiro valor da filosofia, como da extensão ilimitada de seu domínio e de seu caráter permanente, eterno.
E para mostrá-lo, poucas palavras bastam. Limitamo-nos às reflexões que se seguem e que são, em síntese, a conclusão geral de tudo o que ficou estabelecido.
Nosso fim próprio é libertar-nos da escravidão da matéria — o que significa: romper a cadeia da morte e voltar do nada ao ser, da inconsciência à consciência. É o que se deduz claramente de tudo o que ficou acima exposto. Mas, para essa libertação, ou antes, para este renascimento ou regeneração, só há um meio — o conhecimento, que é o processo mesmo da regeneração do ser decaído, ou de sua elevação do nada para o ser, ou da inconsciência para a consciência. E não foi senão para dar lugar a esse processo de regeneração e renascimento que foi criado o mundo, e no mundo se desenvolve esse drama ou tragédia misteriosa da vida: o que mostra a verdade da nossa tese fundamental — que o conhecimento é o destino próprio de toda a existência natural, o fim da evolução universal; ou antes, e para empregar a palavra própria e mais expressiva: a finalidade do mundo.
É o que já em A verdade como regra das ações, trabalho que publiquei em 1905, claramente faço sentir dizendo: “a finalidade do mundo é o conhecimento”. E agora acrescento que todo esse trabalho imenso do universo, todo esse processo infinito da natureza, multiplicando-se em formas inúmeras, em vias lácteas e nebulosas, em todos os corpos obscuros ou luminosos do espaço, e por fim, como último esforço, produzindo a vegetação e a vida, tudo isto a que se dá hoje o nome de evolução cósmica ou de evolução universal, tudo isto, não é senão o esforço permanente da matéria por se tornar consciente de sua própria existência ou entrar na posse de si mesma. E isto significa: por libertar-se da escravidão da morte, por libertar-se mesmo desta morte relativa a que se dá o nome de vida, e voltar à vida absoluta, a vida livre e ilimitada do espírito.
Ora, o conhecimento provém de duas únicas fontes: a revelação e a razão, ou a fé e a filosofia. Logo, só para estes dois princípios podemos apelar em nossa luta contra a morte, ou em nosso esforço pela libertação e regeneração da nossa própria existência. Mas a fé é de ordem sobrenatural: por isto só aos eleitos pode ser concedida. E os eleitos são poucos, raris nantes in gurgite vasto, e difícil será naturalmente encontrá-los no estado atual do mundo, em que a piedade parece ter sido varrida do coração humano, e a força é o único poder que se impõe ao respeito dos homens. Assim, o único refúgio que nos resta, o único remédio para todos nós que vegetamos, sem nenhum apoio do alto, neste vale de lágrimas do mundo e nesta via dolorosa da vida, é a filosofia. E é igualmente a filosofia que nos vinga e nos consola da imbecilidade e cegueira dos poderosos, da dureza e crueldade dos maus, como da vanglória e arrogância dos imbecis a quem o destino favorece com suas manobras irrisórias de cômico ou de palhaço, e, que, senhores da fortuna, depositários do poder e da autoridade, por direito de herança ou de conquista, pela astúcia, ou pelo crime, se supõem vitoriosos da vida e soberanos do mundo. Também a fé não nos vem quando queremos. Por isto só para a filosofia podemos sempre apelar: para a filosofia que é um esforço natural a todos; para a filosofia que é uma visão do mundo pela luz natural, e, por conseguinte, o veículo natural para a libertação do mal da matéria. E como esse mal é infinito, daí resulta que o círculo de ação da filosofia é também infinito. Deste modo, como o mundo mesmo, cuja explicação se propõe, a filosofia não tem limites, nem no espaço, nem no tempo. E isto significa exatamente que é uma atividade permanente, indefinida, eterna. E por aí se vê, de modo radical, de modo profundo e decisivo, claro como a luz, soberano como o esplendor mesmo da verdade, a perfeição e legitimidade da fórmula: perennis philosophia.
FIM
Nenhum comentário:
Postar um comentário