Erivaldo Fernandes Neto
Dissertação de Mestrado (2016)
Dissertação de Mestrado (2016)
Universidade Federal do Rio de Janeiro
Instituto de Filosofia e Ciências Sociais
Departamento de Filosofia
Centro de Filosofia Brasileira
Orientador: Professor Doutor Luiz Alberto Cerqueira
Instituto de Filosofia e Ciências Sociais
Departamento de Filosofia
Centro de Filosofia Brasileira
Orientador: Professor Doutor Luiz Alberto Cerqueira
Resumo
As pesquisas sobre a dignidade humana no Brasil têm sido desenvolvidas em sua maioria dentro da área do direito. Resultando em um considerável material crítico. As análises realizadas neste contexto apontam em comum para a falta de conteúdo explicativo sobre o termo, concluindo a dificuldade de seu uso prático nas defesas e decisões no âmbito jurídico. No sentido axiológico, os que questionam a dignidade humana como conceito vago, concordam que ela é um princípio moral surgido do intuito de defender a integridade humana em seu aspecto amplo, não permitindo que os indivíduos sejam rebaixados de sua condição humana essencial. Mas, mediante casos complexos como os de aborto, eutanásia e suicídio, por exemplo, quais critérios objetivos o aplicador do direito terá para tomar uma decisão justa? Com o propósito de investigar conteúdos mínimos para o conceito de dignidade humana, este trabalho traz uma análise historiográfica da introdução do conceito no Brasil, apontando para atualização de seu significado. Para cumprir este objetivo, analisar o pensamento brasileiro do século XIX é um ponto chave, por ser o período em que surgiram os primeiros entendimentos modernos acerca da dignidade humana no país, que paulatinamente foram conquistando mais espaços na sociedade e amplitude conceitual. Com foco neste período os principais autores citados serão Gonçalves de Magalhães e Tobias Barreto, como representantes das duas principais doutrinas filosóficas presentes no país naquele momento.
Palavras-chave: Filosofia brasileira; Dignidade humana; Direitos humanos; Ética.
Abstract
Human Dignity as a Philosophical Problem in Brazil of the 19th Century
Research on human dignity in Brazil has been developed mostly within the area of laws, resulting in considerable critical material. The analyzes carried out in this context point in common for the lack of explanatory content of the term, concluding the difficulty in its practical use in defense and decisions on legal framework. In the axiological sense, those who question human dignity as a vague concept, agree that it is a principle of moral emerged order to defend human integrity in its broad aspect, not allowing individuals are relegated to their essential humanity. But through complex cases such as abortion, euthanasia and suicide, for example, what criteria the goals right applicator will have to make a fair decision? In order to investigate minimum content to the concept of human dignity, this work brings a historiographical analysis of the concept of the introduction in Brazil, aiming to upgrade its meaning. To fulfill this goal, analyze the Brazilian thought of the nineteenth century is a key point, as the period in which they arose the first modern understandings of human dignity in the country, which were gradually gaining more space in society and conceptual range. Focusing this time the main authors will be cited Gonçalves de Magalhães and Tobias Barreto, as representatives of the two main philosophical doctrines in the country at that time.
Key-words: Brazilian philosophy; Human dignity; Human rights; Ethics.
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO
CAPÍTULO 1 - FONTES FILOSÓFICAS DA CONSTITUIÇÃO POLÍTICA DO BRASIL
1.1 Contexto do problema
1.2 O conceito de dignidade humana como direito no Brasil
1.3 Observações
CAPÍTULO 2 - A LIBERDADE COMO GRAU MÍNIMO DA DIGNIDADE: GONÇALVES DE MAGALHÃES
2.1 O espiritualismo romântico
2.1.1 Caráter transcendente da dignidade humana
2.1.1 Caráter transcendente da dignidade humana
2.2 A cultura ético-moral do espiritualismo romântico
2.3 Observações
CAPÍTULO 3 - A CULTURA COMO FATOR DA DIGNIDADE: TOBIAS BARRETO
3.1 Consciência e sensibilidade
3.1.1 Crítica do caráter transcendente da evidência
3.1.1 Crítica do caráter transcendente da evidência
3.2 A consciência de si como fundamento da dignidade
3.3 A cultura como antítese da natureza
3.4 A cultura como fator da dignidade humana
CONCLUSÃO
REFERÊNCIAS
☛ Textos originais em língua portuguesa (Padre Antônio Vieira, Gonçalves de Magalhães,Tobias Barreto, Sílvio Romero, L. A. Cerqueira; além de traduções de Aristóteles, Platão, Descartes, Hobbes, Locke, Hume, Rousseau, Kant e outros) encontram-se disponíveis em: http://textosdefilosofiabrasileira.blogspot.com
∭
INTRODUÇÃO
Neste trabalho nos propomos investigar acerca dos fundamentos históricos do conceito de dignidade humana. Trata-se de um estudo em que verificamos, como ponto de partida, a premência e a dificuldade no mundo de hoje para se fazer um uso adequado e rigoroso do conceito. Isto é evidente na esfera jurídica, a ponto de os juristas em geral ressaltarem a necessidade de que sejam estabelecidos conteúdos mínimos para uma concepção de dignidade humana, como condição indispensável para libertá-la do estigma de uma ideia vaga e inconsistente, e desse modo torná-la capaz de legitimar soluções satisfatórias para problemas altamente complexos[1]. Alguns exemplos são bastante eloquentes: uma família italiana que requer a suspensão dos procedimentos médicos da genitora para deixá-la morrer em paz, após longo período em estado vegetativo; um cidadão brasileiro até então considerado exemplar e de conduta ilibada que requer a descriminalização da denúncia contra si por cultivar maconha em sua residência, alegando que sempre foi para seu uso exclusivo; o pedido de um jovem francês, representado por seus pais, que queria receber uma indenização pelo fato de ter nascido, isto é, por não ter sido abortado, alegando ter se tornado vítima de um diagnóstico que não assinalou uma previsível lesão física e mental incapacitante.
Nota 1: Cf. Luís Roberto Barroso, Dignidade da pessoa humana no direito constitucional contemporâneo: natureza jurídica, conteúdos mínimos e critérios de aplicação, ed. cit., p. 3.
Nestes casos, o que mais se aproxima de um conceito universalmente válido da dignidade humana são as decisões das cortes constitucionais dos diferentes países, na medida em que a suprema corte de um país se vale de precedentes e argumentos utilizados pelas cortes congêneres de outros países. Por si só essa maneira de conceber a dignidade humana não esconde o fato de que o valor de um conceito assim adquirido, relativamente a diferentes contextos histórico-culturais, não pode ser absoluto. Nesse aspecto, o conceito da dignidade humana estará sempre sujeito a críticas e a revisões. Este é o caso, por exemplo, dos índios e dos negros, que têm conquistado legislações próprias nas diferentes partes do mundo com objetivo de lhes garantir uma melhor qualidade de vida.
A história das relações humanas é uma história de conflitos e por isso mesmo é uma história marcada por fatos de opressão e barbaridades, em que se imputa todo tipo de sofrimento às pessoas, como nos casos mais expressivos de violência em massa, por exemplo, do genocídio de judeus pelos nazistas, da escravidão negra e do genocídio indígena nas Américas, todos foram fatos legitimados durante um determinado momento histórico a partir de normas jurídicas baseadas em ideologias e consensos sobre a natureza humana, servindo a interesses de determinados grupos sociais, com a consequência de milhões de mortos, torturados e perseguidos. Então, a necessidade de que tenhamos como parâmetro das decisões jurídicas um valor mínimo absoluto da vida humana, não é só para evitar práticas heterogêneas do direito e decisões contraditórias que caracterizariam injustiças, mas em princípio serve para defender a vida humana, fundamentando as decisões sobre dilemas éticos buscando preservar o valor da vida humana em todos os casos.
Na maior parte das constituições democráticas e declarações internacionais, existem referências à dignidade humana como um princípio fundamental das noções de direitos humanos, como um conceito que já contém em si mesmo o seu predicado, sem a necessidade de acréscimos a uma compreensão preexistente. Neste sentido, a dignidade humana é constantemente citada como fundamento de políticas públicas assistenciais de distribuição de renda e inclusão social, muito em voga na atualidade brasileira. No entanto, quando investigadas as interpretações jurídico-filosóficas dos direitos humanos fundamentais, verificamos que a dignidade humana é um conceito que gera dúvidas e dissidências, longe de ser um conceito evidente por si mesmo. Nessa mesma linha de entendimento, procura-se ressaltar que a dignidade humana não é como inicialmente se pode pensar algo preexistente e acessível ao conhecimento, quando se faz referência, por exemplo, à vida humana como sendo a integridade física.
O problema em questão — O que é isso, a dignidade humana? — nós nos propomos investigá-lo no âmbito da filosofia moderna, mais especificamente a partir do surgimento dos Estados modernos e das discussões sobre liberdade, direito e justiça, com destaque para os séculos XVII-XIX, em que há um aprofundamento na discussão sobre a dimensão ética das relações humanas.
Vemos por exemplo, o caso do Brasil. A partir da Constituição do Império do Brasil, em 1824, estava garantido a todo o cidadão brasileiro o direito de comunicar seus pensamentos sem dependência de censura. Mas não bastava por em circulação ideias novas para entrar no compasso das civilizações mais desenvolvidas. Proveniente dos naturalistas, e na medida em que envolve os conceitos de transformação e melhoramento, a ideia de evolução muito contribuiu para conferir força de lei científica a todo o anseio de reforma das instituições de origem colonial, tanto na esfera social quanto emocional e mental do indivíduo, passando assim a integrar o conceito de civilização introduzido pelos filósofos modernos como realização de povos livres. Este novo conceito de civilização levou a intelectualidade brasileira, que frequentara os grandes centros europeus de ensino universitário e cultura moderna, como foi o caso de Gonçalves de Magalhães, o reformador da literatura brasileira, a admitir como sendo errado, perigoso e condenável, do ponto de vista histórico, econômico e político, manter no Brasil o instituto da escravidão[2] (MAGALHÃES, 2004, p. 388). Mas embora tal evidência tivesse sido suficiente para que na Constituinte de 1823 José Bonifácio de Andrada assumisse um papel de vanguarda quanto à integração gradual dos povos indígenas e de origem africana na sociedade brasileira, o mesmo não se deu com o reformador da literatura brasileira, que justificou a condição de inferioridade do escravo no Brasil, ao conciliar como possibilidades contrárias, coexistindo simultaneamente, uma sociedade de entes sem liberdade, na medida em que é possível supor todos os indivíduos submetidos à necessidade das leis da natureza segundo uma causalidade mecânica, todos obedecendo a uma única vontade sempre justa, e uma sociedade de entes livres que não exclui a outra nem é por ela excluída, e na qual cada um pode ser justo pela própria vontade e virtuoso pelos próprios esforços (CERQUEIRA, 2013, p. 611-616).
Nota 2: Cf. Francisco de Sales Torres Homem, “Considerações econômicas sobre a escravatura”, no segundo número da Niterói, Revista Brasiliense: “os governos, expressão completa dos preconceitos, dos erros, e falsos interesses da época, e desvairados pelos motivos daquela economia, que antepõe o trabalho bruto, instintivo, e forçado ao livre, e inteligente, mantinham, e protegiam como altamente útil ao [Brasil] um gênero de tráfego, que (…) corrompe as nascentes da prosperidade pública”. Nessa mesma linha de entendimento, no “Ensaio sobre a literatura do Brasil”, Gonçalves de Magalhães assim se manifesta: “A economia política tem combatido vitoriosamente o erro que desde muito grassava na política, que um povo não pode prosperar senão à custa de outro povo (…) política essa que à imitação dos romanos (…) Portugal exerceu sobre o Brasil” (MAGALHÃES, 2004, p. 388). Disponível em: http://textosdefilosofiabrasileira.blogspot.com.br/2012/05/discurso-sobre-historia-da-literatura.html. Acesso: 02/06/2015.
O que se verifica na justificativa de Magalhães são duas diferentes ordens de explicação causal no plano das ações humanas, a da vontade natural e a da vontade livre, sendo esta, enquanto condição do mérito na ação moral, totalmente negada ao indivíduo escravizado: ele não tem o direito de agir segundo a autodeterminação da vontade. Ora, desse ponto de vista não se justificaria prever ou supor o que de fato está acontecendo ao indivíduo escravizado, isto é, a sujeição física que o obriga a restringir suas ações às leis de natureza (nem boas nem más, sempre justas) e à esfera da causalidade mecânica.
Contrariamente à coexistência de homens livres e não livres na doutrina de Magalhães, teríamos a posição dos filósofos modernos em geral, ao entenderem que a participação no mundo da ciência e da indústria é uma conquista de povos livres[3]. Kant, por exemplo, que passou a exercer grande influência no Brasil a partir da obra de Tobias Barreto, destaca-se por considerar a vontade livre uma condição intrínseca e inalienável à condição humana sob o Estado constitucional e segundo a ordem de uma causalidade final. Assim se verifica conforme a conhecida formulação do imperativo categórico:
Age de tal maneira que uses a humanidade, tanto na tua pessoa como na pessoa de qualquer outro, sempre e simultaneamente como fim, e nunca simplesmente como meio. (KANT, 2007, P.69)
Nota 3: Hume, por exemplo, é categórico ao afirmar que pelo termo “liberdade queremos dizer apenas um poder de agir ou não agir segundo as determinações da vontade [de maneira que] qualquer homem que não esteja aprisionado ou acorrentado é capaz desta liberdade hipotética. Logo, aqui não há assunto para discussão”. Cf. Hume, An enquiry concerning human understanding, VIII, Parte I ("Da liberdade e da necessidade").
Mas na perspectiva de Kant, o que seria a dignidade humana, enquanto fim previsto e visado, senão uma condição apriorística de igualdade, que ele denomina “dignidade de todos os seres racionais ou dignidade de toda a natureza racional”? E desse ponto de vista apriorístico[4], a igualdade perante a lei pode transformar-se em postulado estéril conforme o entendimento do então ministro da justiça do Imperador Pedro II, O romântico José de Alencar, para quem “a distância entre o político e o filósofo é imensa, não obstante se acharem reunidas em uma só individualidade essas duas faces da razão. Há reformas que o espírito prevê em um futuro remoto, ao passo, que no presente combate como altamente prejudiciais. Tudo tem seu tempo” (ALENCAR, 1868, p. 9).
Nota 4: Quanto ao caráter imanente e a priori do bem visado, Kant chama a atenção para “uma magnífica pedra de toque daquilo que consideramos ser a mudança de método na maneira de pensar [a saber: que] só conhecemos a priori das coisas o que nós mesmos nelas pomos” (KANT, Crítica da razão pura, B XVIII).
Do ponto de vista causal, a vontade livre como condição apriorística de igualdade entre os homens pode fazer com que uns sejam mais iguais entre si do que outros, na medida em que seja entendida a liberdade, na definição de Kant na Fundamentação da metafísica dos costumes, como a propriedade da vontade de ser “eficiente, independentemente de causas estranhas que a determinem [de maneira que a liberdade] tem de ser uma causalidade segundo leis imutáveis, ainda que de uma espécie particular, pois de outro modo uma vontade livre seria um absurdo” (KANT, 2007, p. 93-94). Neste sentido, a vontade livre poderia ser considerada, enquanto resistência, um primeiro grau ou o grau mínimo da dignidade humana, ressaltando-se então o caráter conservador do espírito.
Uma vez suscitado o caráter conservador da vontade livre, a questão passaria a ser: qual o significado moral da dignidade humana na medida em que, de acordo com o preceito ético aventado em Rousseau, o indivíduo que resiste a políticas públicas que promovem a redução de injustiças sociais e o bem estar daqueles que se tornaram vítimas de preconceitos, poderia ser forçado a libertar-se da indiferença que acomete os espíritos deliberadamente resistentes a políticas públicas?[5] (CERQUEIRA, 2013, p. 606).
Nota 5: “Eis como se justifica em Rousseau uma ação do Estado com esse propósito: ‘Para que o pacto social não seja uma fórmula vã, ele encerra tacitamente esse compromisso de que quem quer que se recuse a obedecer à vontade geral será obrigado a isso por todo o corpo; o que significa que será forçado a ser livre [ce qui ne signifie autre chose sinon qu’on le forcera d’être libre]; pois essa é a condição que, dando cada cidadão à pátria, o garante contra toda dependência pessoal; condição que produz o engenho e o funcionamento da máquina política e que é a única capaz de tornar legítimos os compromissos civis, os quais, sem ela, seriam absurdos, tirânicos e sujeitos aos maiores abusos (…) O que o homem perde pelo contrato social é a liberdade natural e um direito ilimitado a tudo quanto deseja e pode alcançar’” (CERQUEIRA, 2013, p. 606).
Como resposta a esta questão, Kant propõe um limite que se aplica a todos os seres racionais e deve regular todas as ações moralmente legítimas. Sua aplicação se dá através do imperativo categórico que, sendo um imperativo se estabelece como um dever, a indicar como todo o indivíduo se obriga a agir dentro de limites. Assim devem ser, segundo Kant, as relações humanas, para que o arbítrio de um possa harmonizar-se com o arbítrio do outro, sem prejuízo da liberdade. O que garantiria legitimidade à norma não seria o seu sentido estritamente negativo enquanto limitação da vontade, senão o caráter positivo da autodeterminação, fazendo com que o primeiro direito fundamental seja o direito à liberdade, e assim todas as máximas morais do imperativo categórico têm por base a manutenção da liberdade como direito inalienável, e a harmonia social, que consiste em respeitar o outro como sendo livre.
No âmbito dos sistemas judiciários Kant exerce ainda uma considerável influência, uma vez que a liberdade e a igualdade são premissas fundamentais para qualificação das decisões, sendo princípios fundamentais dos direitos humanos na maior parte das Constituições nacionais. Mas também se constata frente às exigências de soluções relativas a diferentes contextos histórico-culturais, como nos casos concretos mencionados acima, que necessitamos de um maior aprofundamento na pesquisa sobre a dignidade humana enquanto um valor relativo, e não absoluto.
O legado da moral kantiana nos mostra que a dignidade não pode ser um conceito polissêmico, pois isso resultaria em práticas heterogêneas do direito, sujeito a contradições morais. Por outro lado, o simples reconhecimento de valores fundamentais, não garante por si uma melhor condição de vida, nem a inviolabilidade desses direitos, como vimos na doutrina conservadora assumida por Gonçalves de Magalhães e José de Alencar acerca da escravidão no Brasil. Portanto, assim como não podemos deixar de considerar o legado kantiano, também devemos assinalar que alicerçada na razão pura, e em seu caráter transcendental, a doutrina de Kant diz respeito à experiência apenas enquanto condição de possibilidade, desconsiderando a historicidade do conceito da dignidade humana.
Quanto ao essencial do legado kantiano, deve-se exaltar o fato de que na história da filosofia ocidental deve-se a Kant a formulação de que o conceito da dignidade humana pressupõe a ideia de relatividade do saber em seu caráter imanente e a priori, de maneira que somos levados a concordar com Tobias Barreto quando subordina a sua ação orientada para o bem visado como fim, não à evidência cega e sem fundamento, e sim ao próprio uso da razão, ao próprio entendimento:
se a liberdade é alguma coisa, ela consiste na capacidade que tem o homem de realizar um plano por ele mesmo traçado, de atingir um alvo, que ele mesmo se propõe. Eu não sei se o conceito da finalidade deve ou não ser inscrito na tábua das categorias, segundo a doutrina de Kant; mas esse conceito, que nada significa no mundo físico, tem toda significação no mundo psicológico. A causalidade da natureza e a causalidade da vontade não têm o mesmo caráter. [6]
Nota 6: Cf. Tobias Barreto, “Glosas heterodoxas”, parte IV, 58. Disponível em: http://textosdefilosofiabrasileira.blogspot.com.br/2012/07/glosas-heterodoxas-um-dos-motes-do-dia_26.html. Acesso: 03/07/2015.
No Brasil, a moderna concepção da dignidade humana é oriunda da tradição filosófica francesa. Frei Francisco do Monte Alverne nos deixou um precioso testemunho do que foi descobrir na língua francesa o caminho mais fácil para promover o próprio adiantamento intelectual, o que em seu caso, promovido a pregador junto à capela frequentada pela Corte portuguesa que se transferira para o Rio de Janeiro em 1808, significava ilustrar o próprio espírito[7]. A partir daí foram criadas no espírito colonizado as condições para a regular recepção de ideias modernas, principalmente após a promulgação da Constituição Política do Império do Brasil, cujas ideias fundamentais se devem aos teóricos da Restauração francesa. Assim, do ponto de vista da modernização, podemos destacar o uso das ideias filosóficas modernas, a exemplo do conceito de poder moderador, atribuído ao imperador brasileiro, como resultado do acesso à filosofia universitária francesa, sobretudo a partir das primeiras décadas do século XIX[8]. A esse uso específico se devem não só os conceitos jurídicos fundamentais da Constituição de 1824, extraídos da filosofia política do francês Benjamin Constant, como também o romantismo reformador de Gonçalves de Magalhães, e o perfil filosófico de sua obra, inspirado na corrente espiritualista liderada por Victor Cousin na academia francesa. (CERQUEIRA, 2015, p. 15-21).
Nota 7: Cf. L. A. Cerqueira, Modernização no Brasil, ou o falseamento do compromisso ético com o modo do ser moderno, tese defendida como requisito para promoção à categoria de Professor Titular do Departamento de Filosofia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (CERQUEIRA, 2015, p. 15-16).
Nota 8: Idem, p. 19-21.
Mas o que deve ser considerado o marco zero do moderno sentido da dignidade no Brasil foi a livre manifestação e circulação do pensamento sem censura oficial a partir de 1824, o que tornou possível a recepção do romantismo francês e a reforma literária na década de 1830, bem como a busca desenfreada de ideias novas no estrangeiro.
A grande atualização legal em relação à ideia de ser humano no momento da independência no Brasil foi a introdução da categoria de cidadão, a quem foram atribuídos os direitos fundamentais. No entanto, foi excluída da categoria de cidadão toda a população dos escravos de origem africana, na qual evidentemente se mantinham formas resistentes de sociabilidade interna, de maneira que, do ponto de vista estritamente formal da lei, toda a população dos escravos foi “prevista” e “suposta” como uma sociedade não livre coexistente com a sociedade brasileira que acabara de manifestar-se pela Constituição em sua vontade livre de povo independente.
Prevalece nesse momento a concepção “espiritualista” de que não seria tanto o entendimento, quanto a qualidade de agente livre inerente à consciência de si como espírito, que confere ao homem a sua distinção específica entre os animais, ressaltando-se assim a desigualdade como condição originária da relação entre os homens[9].
Nota 9: Cf. L. A. Cerqueira, “Liberdade e modernização no Brasil” (CERQUEIRA, 2013, p. 604; disponível em: http://www.seer.ufu.br/index.php/EducacaoFilosofia/article/view/17826).
Nesse sentido, o espiritualismo defendido por Maine de Biran e Victor Cousin foi a base para as teses espiritualistas de Magalhães, o qual empreendeu o primeiro esforço sistemático de modernização emocional e mental do espírito brasileiro, ao acenar com a importância do método científico na fundamentação de suas teses.
De maneira geral, na concepção espiritualista de Magalhães, os fenômenos externos são resultados da relação entre as faculdades a priori da razão e os modos diversos da sensibilidade, que de maneira também a priori servem de sinais naturais ao espírito, revelando a ele os diferentes movimentos do corpo. Cada um dos fenômenos sensoriais são determinados por leis universais com as quais o espírito está conectado através da presciência divina, que determina uma ordem universal à qual todas as coisas são submetidas. As conclusões do pensador brasileiro têm por base a observação de fatos que se repetem mecanicamente na História e que segundo ele tem uma ligação entre si, o que o leva a concluir que todos os fatos correspondem a uma lógica universal a qual todos os seres estão submetidos e através do espírito são capazes de entendê-la, como por exemplo, as leis da física, da mecânica, mas também da ordem social e assim também das normas morais. Para Magalhães a dignidade humana está relacionada à ideia de liberdade enquanto essência do eu que resiste como memória:
A consciência é a ciência refletida em alguém, individualizada, personalizada, possuída por um sujeito ativo e convertida assim em faculdade individual (...) As percepções atuais e as passadas supõem sempre a consciência, sem a qual não existiriam; mas a consciência não necessita de percepções atuais para se exercer; ela pode pensar com as percepções passadas, que se acham na sua memória (...) O ser ativo que possui a faculdade de saber permanece sempre idêntico, e com ele permanece a consciência contemporânea de sua duração. Essa duração da consciência é a memória (...) A memória é a consciência do passado (...) A memória nos revela a identidade do eu e da consciência, porque ela é o fato mesmo da duração idêntica do eu consciente. [10]
Nota 10: Apud L. A. Cerqueira, Modernização no Brasil, ou o falseamento do compromisso ético com o modo do ser moderno (CERQUEIRA, 2015, p. 23).
É Tobias Barreto, apontado como o primeiro crítico da história da filosofia no Brasil, quem reconhece o atraso da doutrina espiritualista no país, considerada em sua interpretação e apropriação dos princípios e valores introduzidos pela filosofia moderna. Sua defesa de um moderno conceito de dignidade consiste na necessidade de aproximar a cultura brasileira do desenvolvimento científico e tecnológico do mundo oitocentista, reformando o conceito que o brasileiro tem de si mesmo:
O Brasil padece de uma espécie de prisão de cérebro (…) É preciso sujeitar-se à dolorosa operação da crítica de si mesmo, do despego, do desdém, e até do asco de si mesmo, a fim de conseguir uma cura radical.[11]
Nota 11: Cf. Tobias Barreto, Sobre a filosofia do inconsciente, 3; disponível em: http://textosdefilosofiabrasileira.blogspot.com/2013/02/sobre-filosofia-do-insconsciente.html.
Também assim manifestou-se Sílvio Romero, quando confessou:
Pelo que me toca, há sido a minha vida intelectual uma constante e dolorosa luta para arredar da mente o que nela foi depositado pelo ensino secundário e superior, e substituir tão frágeis noções por dados científicos. (ROMERO, A filosofia no Brasil, Conclusão, §568; disponível em: http://textosdefilosofiabrasileira.blogspot.com/2011/07/nota-inicial-o-titulo-deste-pequeno.html).
Contra o uso do espiritualismo francês por Magalhães, Tobias preferiu os pensadores alemães, especialmente Kant.
O pensamento de Tobias Barreto é o ponto focal desta pesquisa, por considerarmos que ele trata diretamente da dignidade humana enquanto um problema legado pela necessidade de modernização no Brasil, alinhando-se principalmente com a doutrina de Kant, e tendo como contraponto o espiritualismo de Gonçalves de Magalhães.
Para realizarmos nossa pesquisa, nos propomos esclarecer o pensamento ético de Tobias Barreto, observando os seguintes pontos:
a) Sua crítica do caráter conservador da vontade livre em termos de indiferença e falta de coesão social, em virtude da qual ele concebeu uma doutrina da cultura como antítese da natureza;b) Sua concepção de que o ser humano transcende a natural dinâmica do espírito em função de uma causalidade final;c) Sua ideia de que o valor do humano consiste no fato de que ele é fonte de valores, razão pela qual não pode não ser livre;d) Sua concepção de que a moralidade diz respeito às deliberações de foro íntimo, mas se desenvolve através da criação de princípios éticos universais que, não obstante serem relativos ao bem concebido e visado como fim humano, implicam, no plano da ação, um compromisso do indivíduo com esses mesmos princípios.
Do ponto de vista metodológico, faremos a análise de três fases do pensamento brasileiro no século XIX, as quais constituirão os três capítulos que temos em vista:
1- Influências Filosóficas na Constituição Política do Brasil;2- A Liberdade como Grau Mínimo da Dignidade no Espiritualismo Romântico de Gonçalves de Magalhães;3- A Cultura como Fator da Dignidade Humana em Tobias Barreto.
O objetivo central da proposta é mostrar o avanço do conceito de dignidade humana no Brasil de maneira teórica, esclarecendo mais sobre seu significado, e mostrando, para além dos fatos históricos, como a independência política do Estado, libertação dos escravos e a proclamação da república, que a evolução quanto ao sentido da dignidade indica uma substancial mudança nos valores éticos no país, e que é preciso pesquisar no âmbito das ideias quais foram as hipóteses e justificativas responsáveis pela atualização da perspectiva de aperfeiçoamento do ser humano.
CAPÍTULO 1
FONTES FILOSÓFICAS DA CONSTITUIÇÃO POLÍTICA DO BRASIL
A outorga da Constituição Política do Império do Brasil, em 1824, definiu a forma de organização do Estado brasileiro recém-independente, instituindo suas estruturas e suas bases administrativas na forma da divisão dos poderes, além da introdução de diversas categorias do pensamento moderno na cultura do país[12], dentre as quais destacamos a categoria de cidadão e os direitos fundamentais. Cumprindo então com as finalidades do trabalho, nos dedicamos neste primeiro capítulo à análise da vida como um valor em si e da liberdade como direito inviolável conforme o que foi instituído pelo texto constitucional, fazendo um paralelo com algumas teorias filosóficas do período que ajudam a explicar mais sobre a recepção do conceito moderno de dignidade humana no Brasil oitocentista.
Nota 12: “Não perceberam as Cortes que uma nova nacionalidade nascia do grande parto liberal da monarquia portuguesa consorciada ao elemento nativo, cuja busca de identidade e independência tinha raízes nas lutas coloniais de expulsão dos invasores, passava pela Inconfidência e subia de ponto nos sucessos da Revolução Pernambucana de 1817 até chegar ao momento culminante da Assembleia Nacional Constituinte. É aí que se nos depara a intervenção simultânea de dois poderes constituintes, cujas relações foram sempre marcadas de indissimulável tensão, de teor competitivo, e perpassadas de mútuos ressentimentos, disputas de supremacia e recíprocas desconfianças, acabando assim por inaugurar uma crise constituinte da qual nunca nos libertamos por inteiro senão de maneira aparente, ocasional e fugaz, mais na aparência que na realidade Quais foram esses dois poderes constituintes? O poder constituinte originário, dos governados, teve a sua soberania golpeada e embargada, não sendo, portanto partícipe da obra criadora das nossas primeiras instituições públicas, como Estado e Nação; e o poder constituinte derivado do absolutismo, o poder constituinte do príncipe que fez a Carta Imperial; ao invés da promulgação, uma outorga; ao invés do ato de soberania de um colégio constituinte, o mesmo ato por obra da vontade e do livre arbítrio de um imperador, que na Carta Fundamental decretara a autolimitação de seus poderes.” (BONAVIDES, 2000, p.165)
1.1 CONTEXTO DO PROBLEMA
O processo de modernização das relações políticas entre Estado e indivíduo foi marcado por diversos dilemas representados na forma de manifestações populares e revoltas armadas que se estenderam por diferentes regiões do mundo. Do ponto de vista político-institucional, podemos citar como marco zero da história da modernização nos países da América, tanto do norte como do sul, a Revolução Francesa, acontecimento marcado pela luta popular que defendeu a igualdade e a liberdade como princípios inerentes à condição de ser humano, como consta na Declaração de Direitos do Homem e do Cidadão aprovada pela Assembleia Nacional Francesa em 1789, que assim dispõe em seu Artigo 1º:
Os homens nascem e são livres e iguais em direitos. As distinções sociais só podem fundamentar-se na utilidade comum. (texto completo disponível em: http://www.direitoshumanos.usp.br/index.php/Documentos-anteriores-à-criação-da-Sociedade-das-Nações-até-1919/declaracao-de-direitos-do-homem-e-do-cidadao-1789.html)
No Brasil, a crise dos valores éticos e das instituições políticas se agravou a partir do final do século XVIII com o intento revolucionário de ações organizadas por movimentos reivindicatórios, como a Inconfidência Mineira (1789), a Conjuração Baiana (1798), a Revolução Pernambucana (1817) e a Confederação do Equador (1822–1831). No que concerne à luta popular por direitos, os movimentos brasileiros tinham em comum entre si o caráter separatista e os valores republicanos de igualdade, liberdade e partilha dos poderes.
A principal questão constitucional pós-Independência, provocada pelo contexto conflituoso, pode-se dizer que foi a dificuldade em pensar um Estado harmônico, soberano e economicamente estável, que contemplasse as exigências dos grupos sociais por direitos e participação nas decisões políticas[13]. Tendo como referência o contexto político francês, é possível apontar para as soluções propostas por Benjamin Constant como a principal referência teórica da primeira Constituição brasileira[14]. Podemos considerar sua teoria ética e política como uma tentativa de conciliação da moderna ideia de ser humano como um valor em si mesmo e da ideia conservadora de uma hierarquia social maculada na figura do Rei como autoridade máxima.
Nota 13: “Os espíritos do século XVIII voltaram as ideias contra a realidade, em lugar de dormitar na harmonia preestabelecida entre as ideias e a realidade. A idéia de Deus volta-se contra a religião, a ideia de direito volta-se contra a prática social, a ideia do homem cidadão contra o Estado: eles estavam decididos a mudar a realidade com as suas ideias!” (VERDENAL, 1974, p. 38)
Nota 14: Cf. C. E. C. Lynch, O Poder Moderador na Constituição de 1824 e no anteprojeto Borges de Medeiros de 1933: Um estudo de direito comparado, ed. cit., p. 93-111.
O Poder Real teorizado por Constant foi adotado no texto constitucional de 1824 como Poder Moderador, bem como sua ideia de separação entre os direitos civis e os direitos políticos; destacamos o que entendemos como sendo os pontos centrais da sua influência: Art. 98. - “O Poder Moderador é a chave de toda a organização política, e é delegado privativamente ao Imperador, como Chefe Supremo da Nação, e seu Primeiro Representante, para que incessantemente vele sobre a manutenção da Independência, equilíbrio, e harmonia dos mais Poderes Políticos”. E continua: Art. 99 - “A Pessoa do Imperador é inviolável, e Sagrada: Ele não está sujeito a responsabilidade alguma”. Em relação aos direitos civis e políticos destacamos:
Art. 179. A inviolabilidade dos Direitos Civis, e Políticos dos Cidadãos Brasileiros, que têm por base a liberdade, a segurança individual, e a propriedade, é garantida pela Constituição do Império... [15]
Nota 15: Cf. Constituição de 1824. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao24.htm. Acesso: 27/07/2015.
Compõe ainda o Artigo 179 uma série de tópicos que elencam as especificidades dos direitos do cidadão. Porém, no caput do artigo já estão fixados os direitos fundamentais, sendo eles a liberdade e a proteção à vida, colocados como condições necessárias para garantia de todos os demais direitos.
O reconhecimento formal da liberdade como direito e da vida como um valor independente a ser protegido, não foi suficiente, por exemplo, para por fim a prática da escravidão. Em sua ampla maioria os escravos eram negros de descendência africana e submetidos aos trabalhos forçados sem nenhum direito. Foram totalmente ignorados no texto constitucional, sendo reconhecidos como cidadãos apenas os indivíduos livres. Posição que evidencia a contradição existente no marco legal brasileiro relacionado à garantia de direitos e a própria ideia de dignidade humana como valor moral universalmente válido.
Art. 6. São Cidadãos Brasileiros:I. Os que no Brasil tiverem nascido, quer sejam ingênuos, ou libertos, ainda que o pai seja estrangeiro, uma vez que este não resida por serviço de sua Nação.II. Os filhos de pai brasileiro, e Os ilegítimos de mãe brasileira, nascidos em país estrangeiro, que vierem estabelecer domicílio no Império.III. Os filhos de pai brasileiro, que estivesse em país estrangeiro em serviço do Império, embora eles não venham estabelecer domicílio no Brasil.IV. Todos os nascidos em Portugal, e suas possessões, que sendo já residentes no Brasil na época, em que se proclamou a Independência nas províncias, onde habitavam, aderiram a esta expressa, ou tacitamente pela continuação da sua residência.V. Os estrangeiros naturalizados, qualquer que seja a sua religião. A lei determinará as qualidades precisas, para se obter carta de naturalização.
O avanço dos direitos civis no Brasil excluiu parte significativa da população brasileira na condição de homens não livres ao não considerá-los como cidadãos. Nesse sentido assimilamos como contradição nacional a formalização de um sistema político moderno (Poder Moderador), fundado nos ideais de liberdade e valor da vida, que manteve escravos sem nenhum direito e tratados como mercadoria[16].
Nota 16: “A convergência de interesses entre grandes e pequenos escravistas foi fundamental para garantir a sobrevivência da escravidão no Brasil por mais de três séculos. Em 1822, quando o país tornou-se independente de Portugal, o grande esforço das elites nativas foi promover a modernização das instituições sem acabar com a escravidão. A primeira constituição do Brasil, promulgada em 1824, em alguns aspectos considerada uma das mais modernas e liberais das Américas, mantém-se intacto o direito de propriedade dos senhores sobre seus escravos. Defender os princípios do liberalismo segundo os quais todos os homens eram livres e iguais, e ao mesmo tempo manter a escravidão, foi o grande dilema vivido pelo país durante todo o século XIX.” (ALBUQUERQUE, 2006, p. 66)
Os documentos deixados por José Bonifácio de Andrada e Silva mostram que houve um movimento entre os constituintes que argumentou a favor da aprovação de um dispositivo constitucional que proibisse totalmente o tráfico de escravos no país[17], seguindo o exemplo inglês. Além disso, esse mesmo grupo defendeu que constasse na Constituição um plano que apontasse para a gradual libertação e integração dos escravos na sociedade brasileira[18]. Em sua obra o autor fundamenta a sua argumentação na ideia de que todos os humanos são iguais por natureza, sentem, pensam e se articulam de forma igual. Assim então, todos deveriam ter compaixão do homem escravizado, pois a escravidão deveria ser considerada um atentado contra a condição humana em geral, um atentado contra humanidade e não só contra um indivíduo ou um grupo[19].
Nota 17: Presente em nossa história desde o início movimento de independência, José Bonifácio foi presidente da junta governativa de São Paulo (1821) e posteriormente assessor e ministro de D. Pedro, juntamente com seu irmão Martim Francisco. Tornou-se o principal organizador da Independência do Brasil com atuação destacada no processo constitucional. Seu liberalismo, porém, limitava-se ao discurso ou a alguma literatura que produziu sobre a necessidade de abolição gradual da escravidão.
Nota 18: Cf. José Bonifácio de Andrada e Silva, Representação à Assembleia Geral Constituinte e Legislativa do Império do Brasil sobre a escravatura, de 1825. Disponível em: http://www.brasiliana.usp.br/handle/1918/01688900#page/1/mode/1up. Acesso: 14/07/2015.
Nota 19: Idem, ibidem: “Se os negros são homens como nós, e não forma humana de brutos animais; sentem e pensam como nós, que quadro de dor e de miséria não apresentam eles á imaginação de qualquer homem sensível e cristão? Se os gemidos de um bruto nos condoem, é impossível que deixemos de sentir também certa dor simática com as desgraças e misérias dos escravos; mas tal é o efeito do costume, e a voz da cobiça, que vêm homens correr lágrimas de outros homens, sem que estas lhe espremam dos olhos uma só gota de compaixão e de ternura”.
Além da escravidão, como herança da tradição monárquica portuguesa a Constituição de 1824 manteve a concessão de títulos nobiliárquicos, como assim nos apresenta Nuno Gonçalo Freitas Monteiro, a partir de seu trabalho O Ethos Nobiliárquico no Final do Antigo Regime: Poder Simbólico, Império e Imaginário Social[20], em que explica como era entendido o sentido da dignidade através do poder da monarquia que se fundamentava na concessão de títulos e honras como sinal de distinção qualitativa entre os indivíduos:
As representações do mundo social dominantes em Portugal e no seu império no século XVIII concebiam a ordem social na hierarquia dos seus distintos corpos, sancionada pela tradição. Quer isto dizer que a mesma ordem social se legitimava pelo tempo e pela história, uma história com origens medievais incontornáveis (...) Em primeiro lugar, importa não esquecer que durante todo o período medieval e moderno, a nobreza não era apenas uma dignidade, mas uma dignidade à qual correspondiam privilégios. Ora, desde os finais da Idade Média que esses privilégios foram sendo progressivamente institucionalizados, ou seja, consagrados e inscritos no direito na ordem jurídica. (MONTEIRO, 2005, p. 5)
Nota 20: Texto publicado na revista Almanack Braziliense, Universidade de São Paulo, 2005, n. 02.
O modelo de divisão social português que remontava a idade média consistia em uma hierarquização qualitativa dos indivíduos, através de titulações. Cada titulação correspondia ao acesso à determinados privilégios. Primeiramente, os nobres eram “identificados sobretudo de acordo com as funções que desempenhavam (os que combatem, os que detêm poderes jurisdicionais, os que recebem determinadas delegações da realeza, etc.)”, posteriormente, principalmente a partir do século XVI, a nobreza corresponde “cada vez menos a uma função, para passar a ser cada vez mais uma qualidade”[21]. Era possível fazer uma separação dos que se tornavam nobres por conta do nascimento e os que se tornavam por algum tipo de merecimento. Neste sentido “o acesso aos diversos graus de nobreza constituía, nesse terreno, um recurso de poder fundamental das monarquias”, uma vez que toda estrutura política e a divisão social estavam diretamente relacionadas aos níveis hierárquicos da nobreza, pois por meio “destes processos podiam conceder aos seus súditos, não apenas benefícios materiais vários, mas ainda as tão procuradas honras e distinções”. Cada vez mais os títulos e honras foram sendo regulamentados por meio de “regras de acesso e de prova (brasões de armas, hábitos das ordens, filhamentos da casa real, acesso à governança das terras, elitização no acesso às distinções superiores)”, ou mesmo “por vezes mais difícil de ultrapassar” era exigida a comprovação pela pureza de sangue, prática que dificultava o acesso da maior parte da população aos bens de consumo e serviços, além de creditar maior valor e interesse por parte da população em geral pelas titulações e distinções. Mais que distinguir a qualidade dos indivíduos, a concessão de títulos era uma forma de regular a distribuição de bens e serviços dentro da sociedade, o que explica o rigoroso processo para sua concessão: apesar do abalo sofrido durante o pombalismo, o essencial manteve-se em pleno Século XIX. Mesmo com a garantia isonômica dos direitos do cidadão, foi conservada na Constituição de 1824 a política de hierarquização social por meio da concessão de títulos, sob a responsabilidade do Poder Executivo e submetidos a decisão da assembleia (MONTEIRO, 2005, p. 5-7).
Nota 21: “A noção de qualidade, central na cultura política das elites dos séculos XVII e XVIII, reportava-se à qualidade do nascimento, ou seja, ao estatuto que cada um tinha antes mesmo de nascer. A definição mais relevante tratado de nobreza de finais do Antigo Regime, segundo a qual a nobreza é uma certa dignidade derivada dos pais, ou da concessão do Príncipe.” (OLIVEIRA, 1806, p. 5)
Podemos considerar assim que a primeira Constituição do Brasil pós-independente teve uma contribuição substancial na mudança da forma como se davam as relações humanas no país, não somente nos aspectos político e social, mas na própria forma da recepção de ideias e a relação com o conhecimento[22]. Destacamos a introdução dos diretos civis, através dos quais foi reconhecido como norma o valor da vida humana em si mesmo, não estando a dignidade humana a mercê de qualquer divindade ou poder político constituído. As instituições do Estado na obrigação do cumprimento da Lei deveriam, portanto, sempre agir em favor da preservação da vida através da garantia da segurança individual e para manutenção da liberdade. Mas ao reconhecer esses avanços não deixamos de considerar mais uma vez a continuidade da hierarquização qualitativa dos indivíduos, uma vez que por nascimento uma pessoa era escrava e se encontrava sem direito algum e também em virtude do nascimento o imperador era um ser sagrado acima de qualquer julgamento moral ou responsabilidade.
Nota 22: Considerando-se a garantia da liberdade de expressão e da recepção de ideias sem censura, empregada no texto constitucional como direito civil inviolável do cidadão.
Ainda que em um aspecto formal, foi instaurada uma tendência de ampliação dos direitos e de maior representatividade social na política, que se estendeu até o final do século XIX, culminando na libertação dos escravos e na proclamação da república. Então, concluímos que apesar da reconhecida tentativa de se estabelecer um modelo moderno de Estado, a opção pela monarquia constitucional ao invés da república, a continuidade do catolicismo como religião oficial, a manutenção da escravidão, os limitados direitos de participação política e a continuidade da concessão dos títulos nobiliárquicos, mostram que a Constituição de 1824, como meio para modernização do Estado brasileiro, foi mais tendenciosa à conciliação entre as novas ideias modernas e as velhas práticas políticas herdadas da tradição portuguesa, do que a uma ruptura radical, como foi tentado na Revolução Francesa.
O contexto político social brasileiro exigia uma forma de organização duradoura que permitisse a elaboração de um plano de desenvolvimento do país como nação ao longo prazo, contemporizando e harmonizando os setores divergentes e movimentos separatistas, assim como atendendo as cobranças por mais direitos e maior participação política de alguns grupos sociais. Na esteira de Constant foi instaurado no Brasil o Poder Moderador como uma opção para centralização do poder político, com objetivo de manter a unidade nacional sem prejuízos das demandas sociais.
1.2 O CONCEITO DE DIGNIDADE HUMANA COMO DIREITO NO BRASIL
Entendemos que o conceito moderno de dignidade humana no Brasil foi introduzido pela Constituição de 1824, inspirado no pensamento francês, Benjamim Constant e Rousseau principalmente. Com isso, nos propomos a dissertar sobre algumas ideias dos dois autores, buscando fazer um paralelo com as referências da Constituição.
Em conformidade com o pensamento de Constant, como garantias legais previstas na Constituição, relacionadas aos direitos humanos, podemos elencar resumidamente as seguintes:
1) a consideração da Lei como máxima reguladora das ações livres e o fim do poder ilimitado de um soberano na forma da divisão dos poderes;2) a liberdade de expressão e de absorção de ideias sem censura oficial, de locomoção sem necessidade de prévia autorização e de culto religioso;3) o direito à propriedade privada;4) a participação na administração pública por meio da nomeação de funcionários, petições e reivindicações. [23]
Nota 23: Apud PIVA, P. J. L. & Tamizari, F., Benjamin Constant e a Liberdade Rousseauniana. Cadernos de Ética e Filosofia Política (USP), v. 16, p. 188-207, 2010.
A evidência dos direitos assim dispostos no texto constitucional mostra que na sociedade brasileira moderna o objetivo do direito era garantir o acesso a determinados privilégios de forma privada, mais do que a ampliação da participação política na forma da partilha do poder como era notadamente a pauta de reivindicação por direitos das sociedades antigas. No entanto, o poder não era concentrado de maneira sem limites a uma única pessoa ou a uma classe de pessoas. Foram instituídos quatro poderes, distintos e independentes entre si, “o Poder Legislativo, o Poder Moderador, o Poder Executivo, e o Poder Judicial”, tendo por intuito comum a manutenção dos direitos civis e políticos e a proteção dos cidadãos. Os direitos eram instituídos por meio da Lei como uma convenção laborada pelos poderes constituídos e assentida pela vontade geral, com o objetivo de contemporizar as divergências sociais e disputa pelo poder. As instituições nesse caso agiam para aplicar a Lei com isonomia, garantindo ampla cobertura dos interesses individuais. (CONSTANT, 2005, p. 7).
A liberdade como direito fundamental nesse contexto era a garantia de acesso aos direitos instituídos de forma igual, estando ela fora de qualquer competência social, sendo fundamento para todas as regulamentações legais, mas não podendo ser por elas revogada[24]. Ser livre significava por tanto, ter acesso individual aos privilégios antes relegados a uma minoria nas monarquias absolutistas. Dessa forma a regulação social deveria primar pela garantia da liberdade individual em igual medida para todos, lhes conferindo pleno acesso aos privilégios privados, não somente por reconhecer a liberdade como uma condição natural do ser humano, mas por entendê-la também como um direito sem o qual o povo perde sua soberania e torna-se incapaz de cumprir com seus deveres.
Nota 24: “O objetivo dos antigos era a partilha do poder social entre todos os cidadãos de uma mesma pátria. Era isso o que eles denominavam liberdade. O objetivo dos modernos é a segurança dos privilégios privados; e eles chamam liberdade as garantias concedidas pelas instituições a esses privilégios.” (CONSTANT, 2005, p. 7)
A igualdade de direitos, tendo a liberdade como valor comum a todos os cidadãos, não corresponde, no entanto, às contemporâneas teorias socialistas, por exemplo, em que a igualdade de direitos corresponde à distribuição equitativa de bens e acesso aos serviços públicos. Trata-se da garantia da limitação do poder de uns sobre outros, mas principalmente garantir que todos em igual medida possam determinar para si mesmo seus próprios fins, deterem suas propriedades, sem temer qualquer tipo de intervenção do Estado ou da sociedade. Esse é o principal privilégio social, que parte do reconhecimento da vida humana como um valor em si mesmo e inviolável.
Conforme já exposto, a liberdade e a proteção da vida são as bases dos direitos civis e políticos, mas a Lei como limite para ação individual é uma restrição à liberdade, é impeditiva mesmo quando assegura direitos, uma vez que ao assegurá-los impede que sejam realizadas uma série de ações que os contrariem. Assim, a arregimentação da sociedade por meio da Lei e das instituições, encontra como questão a contradição entre a manutenção da liberdade individual como direito inviolável e a soberania do coletivo na forma da Lei. Em outras palavras, como garantir a liberdade individual como direito de todos através de medidas restritivas, sem que assim se elimine a liberdade?[25] Essa questão como problema moderno, aparece também na moral kantiana, assim como nas obras de Rousseau e de diversos outros autores de destaque:
A universalidade dos cidadãos é o soberano, no sentido de que nenhum indivíduo, nenhuma fração, nenhuma associação parcial pode se arrogar a soberania, se ela não for delegada. Mas daí não decorre que a universalidade dos cidadãos ou os que por ela são investidos da soberania possam dispor soberanamente da existência dos indivíduos. Ao contrário, há uma parte da existência humana que, necessariamente, permanece individual e independente, e que está de direito fora de qualquer competência social. [26]
Nota 25: Cf. Benjamin Constant, ed. cit., p. 9.
Nota 26: Idem, p. 10.
Para Constant, a liberdade como direito fundamental no âmbito privado, não está sujeita ao consenso da maioria, não podendo ser revogada por nenhuma forma de soberania e nem por nenhuma Lei, não é um aspecto político sujeito a interpretações ideológicas conforme a mudança dos contextos. A soberania do coletivo se restringe ao aspecto legal, sendo a Lei o limite para o exercício da liberdade individual, sem autoridade para revoga-la em sua totalidade, podendo exercer sua função reguladora apenas para atender a uma determinada utilidade comum, com vistas à manutenção dos direitos e da harmonia social.
A liberdade assim pensada como um valor absoluto, isto é, inviolável e acessível a todos, deve ter por referencial de ser humano um indivíduo dotado de um valor igualmente inviolável e comum, caso contrário, tal conceito de liberdade ficará relegado ao plano da pura abstração. Rousseau nos apresenta esse referencial, considerando a vida humana como um valor em si que independe de qualquer competência social ou religiosa. Ao descrever o humano em seu estado de natureza, pensado inicialmente fora de qualquer convívio social, destituído de valores e de qualquer consciência moral, ele liberta a ideia de ser humano de qualquer dependência divina e comunitária[27].
Nota 27: “Os filósofos que examinaram os fundamentos da sociedade sentiram a necessidade de remontar até ao estado de natureza, mas nenhum deles aí chegou. Uns não vacilaram em supor no homem desse estado a noção do justo e do injusto, sem se inquietar de mostrar que ele devia ter essa noção, nem mesmo que ela lhe fosse útil. Outros falaram do direito natural que cada qual tem de conservar o que lhe pertence, sem explicar o que entendiam por pertencer. Outros, dando primeiro ao mais forte autoridade sobre o mais fraco, fizeram logo nascer o governo, sem pensar no tempo que se devia ter escoado antes que o sentido das palavras autoridade e governo pudesse existir entre os homens. Enfim, todos, falando sem cessar de necessidade, de avidez, de opressão, de desejos e de orgulho, transportaram ao estado de natureza idéias que tomaram na sociedade: falavam do homem selvagem e pintavam o homem civil. Não ocorreu mesmo ao espírito da maior parte dos nossos duvidar que o estado de natureza tivesse existido, quando é evidente, pela leitura dos livros sagrados, que o primeiro homem, tendo recebido imediatamente de Deus luzes e preceitos, não estava também nesse estado, e que, acrescentando aos escritos de Moisés a fé que lhes deve toda filosofia cristã, é preciso negar que, mesmo antes do dilúvio, os homens jamais se encontrassem no puro estado de natureza, a menos que, não tenham nele caído de novo por algum acontecimento extraordinário: paradoxo muito embaraçante para ser defendido e absolutamente impossível de ser provado” (ROUSSEAU, 2001, p. 13).
Ao pensar o ser humano destituído de tudo que não é próprio de sua natureza básica, Rousseau entende estar realizando algo não antes feito pelos filósofos, que consiste em buscar entender o ser humano em seu estado selvagem e assim entender o que é de fato o ser humano. Esse ponto de partida permitiu a construção de uma teoria ética e política independente do ideal de ser humano escolástico, que pensa o humano a partir da essência de Deus e da criação, e do helênico, que pensa o humano a partir de sua relação social, ambas, cada uma em seu tempo, haviam determinado de maneira hegemônica a filosofia ocidental[28]. Assim é proposto uma nova forma de pensar o humano, fora de qualquer tipo de tendência especulativa que não seja a hipótese do seu estado natural, sozinho consigo, cuja necessidade básica é a própria subsistência e a partir desse estágio inicial, analisar então como o ser humano chegou até a idade moderna e inferir quais são as causas históricas dos mal feitos sociais do período (ROUSSEAU, 2002, p. 41).
Nota 28: “A religião nos ordena a crer que o próprio Deus, tendo tirado os homens do estado de natureza imediatamente depois da criação, eles são desiguais porque ele quis que o fossem; proíbe-nos, porém, de formar conjecturas, tiradas somente da natureza do homem e dos seres que o rodeiam, sobre o que poderia ter acontecido ao gênero humano se tivesse ficado abandonado a si mesmo.” (ROUSSEAU, 2002, p. 41)
Como resultado de sua pesquisa, Rousseau nos apresenta a vida humana dotada de um valor natural que não tem nenhuma origem divina ou social, deve-se a sua particular capacidade racional e sensível, sendo ele insubstituível e valoroso em si mesmo. Ao contrário dos animais, que seguem somente as determinações da sua própria natureza sem capacidade de discordar, o humano por natureza é capaz de mudar constantemente seus hábitos, se adaptando as circunstâncias adversas e prefigurando pra si determinados fins, independente das determinações mecânicas da natureza em geral ou de qualquer essência divina[29]. Por essa razão mesma, cada ser humano é único e insubstituível. Nesse aspecto a liberdade é uma condição necessária para o desenvolvimento humano digno, em última instância a possibilidade de agir de um modo ou de modo contrário conforme sua vontade fazendo uso da razão e assim prefigurando para si determinadas motivações é o que diferencia o humano dos demais animais e garante a sua vida um valor individual inviolável.
Nota 29: “Não vejo em todo animal senão uma máquina engenhosa, à qual a natureza deu sentidos para prover-se ela mesma, e para se preservar, até certo ponto, de tudo o que tende a destruí-la ou perturbá-la. Percebo precisamente as mesmas coisas na máquina humana, com a diferença de que só a natureza faz tudo nas operações do animal, ao passo que o homem concorre para as suas na qualidade de agente livre. Um escolhe ou rejeita por instinto, o outro por um ato de liberdade, o que faz com que o animal não possa afastar-se da regra que lhe é prescrita, mesmo quando lhe fosse vantajoso fazê-lo, e que o homem dela se afaste freqüentemente em seu prejuízo. É assim que um pombo morre de fome perto de uma vasilha cheia das melhores carnes, e um gato sobre uma porção de frutas ou de grãos, embora ambos pudessem nutrir-se com os alimentos que desdenham, se procurassem experimentá-lo; é assim que os homens dissolutos se entregam a excessos que lhes ocasionam a febre e a morte, porque o espírito deprava os sentidos, e a vontade fala ainda quando a natureza se cala.” (ROUSSEAU, 2002, p. 41)
Sendo coerente com seu método de investigação, Rousseau acusa os teóricos naturalistas de cometerem o erro de identificarem o efeito como causa. Isso fica claro em suas críticas, por exemplo, a Aristóteles e Grotius[30], quando ele defende que o humano não pode ser investigado pura e simplesmente através do seu estado atual, como se assim o fosse por alguma lei natural e universal que o submetesse a determinada condição. O método de investigação usado para identificar a natureza humana deve considerar que a causa das condições humanas atuais são as relações históricas que se desenvolvem no decorrer do tempo. As causas são múltiplas e envolvem interesses e aspectos, que estão muito além da luta natural pela vida ou das leis naturais da física[31]. Sendo assim não existem entre os humanos aqueles que por natureza nasceram para serem escravos existem aqueles que pela força foram subordinados a essa condição por tanto tempo que já nem se reconhecem mais como humanos:
Renunciar à própria liberdade é o mesmo que renunciar à qualidade de homem, aos direitos da Humanidade, inclusive aos seus deveres. Não há nenhuma compensação possível para quem quer que renuncie a tudo. Tal renúncia é incompatível com a natureza humana, e é arrebatar toda moralidade a suas ações, bem como subtrair toda liberdade à sua vontade. Enfim, não passa de vã e contraditória convenção estipular, de um lado, uma autoridade absoluta, e, de outro, uma obediência sem limites. Não é claro não estar a gente a nada obrigada em relação àquele de quem se tem o direito de tudo exigir? E esta simples condição, sem equivalência, sem permuta, não arrasta a nulidade do ato? Que direito teria meu escravo contra mim, uma vez que me pertence tudo quanto ele possui, e, sendo meu o seu direito, esse meu direito contra mim mesmo não é porventura um termo sem sentido? [32]
Nota 30: “O raciocínio de Calígula retorna ao de Hobbes e ao de Grotius. Aristóteles, antes deles todos, tinha dito que os homens não são naturalmente iguais, e que uns nascem para escravos e outros para dominar.” (ROUSSEAU, 2001, p. 11)
Nota 31: “Aristóteles tinha razão, mas ele tomava o efeito pela causa. Todo homem nascido escravo nasce para escravo, nada é mais certo: os escravos tudo perdem em seus grilhões, inclusive o desejo de se livrarem deles; apreciam a servidão, como os companheiros de Ulisses estimavam o próprio embrutecimento. Portanto, se há escravos por natureza, é porque houve escravos contra a natureza. A força constituiu os primeiros escravos, a covardia os perpetuou.” (Idem, ibidem)
Nota 32: Idem, 2002, p. 7.
Para ele, aquele que por submissão à força, perde a sua liberdade, perde também sua condição humana. Não há nenhuma compensação possível para alguém que negocia sua liberdade com algum outro de forma particular, a liberdade tem um valor acima de qualquer outro valor, se confunde com o próprio valor da vida. Perder a liberdade significa perder a possibilidade de acesso a todos os outros direitos, além de não poder também cumprir com seus deveres, sendo sempre obrigado a tudo, perdendo totalmente o sentido da sua existência.
Ao reconhecer os direitos fundamentais, podemos considerar que a Constituição tem por base essa ideia de ser humano, no entanto, conforme já mostrado esse conceito não foi universalizado a toda sociedade brasileira, mas contemplava apenas uma parte, que era considerada na categoria de cidadãos. A dignidade assim considerada como direito inviolável, exigiu do Estado e das suas instituições, uma organização capaz de agir em defesa dos direitos fundamentais, criando um ambiente social favorável para o desenvolvimento humano digno. Assim sendo como é possível organizar um Estado harmônico sem atentar contra o princípio de dignidade humana? Nesse ponto em que são pensados os estados modernos tendo a dignidade humana como fundamento, existem divergências entre Rousseau e Constant.
Rousseau admite a alienação total do indivíduo em favor da comunidade, desde que se doe por sua própria vontade visando à utilidade comum:
Todas essas cláusulas, bem entendido, se reduzem a uma única, a saber, a alienação total de cada associado, com todos os seus direitos, em favor de toda a comunidade; porque, primeiramente, cada qual se entregando por completo e sendo a condição igual para todos, a ninguém interessa torná-la onerosa para os outros (…) Enfim, cada qual, dando-se a todos, não se dá a ninguém, e, como não existe um associado sobre quem não se adquira o mesmo direito que lhe foi cedido, ganha-se o equivalente de tudo o que se perde e maior força para conservar o que se tem. [33]
Nota 33: Cf. ROUSSEAU, 2002, p. 10.
Doar-se por completo ao corpo social, significa renunciar a liberdade natural em favor da partilha do poder social e da proteção individual garantida pelo coletivo. Para Rousseau existem duas formas de desigualdade entre os humanos, uma natural e outra moral. A natural consiste nas diferenças físicas, da saúde, da força do corpo... Etc. A Moral é instituída através de convenções autorizadas ou consentidas pelos indivíduos em geral. No estado selvagem as relações humanas eram reguladas a partir da primeira, sendo o uso da força o principal critério de desigualdade, definindo os fortes e os fracos, os que obedecem e os que mandam. No estado moderno podemos apontar como parâmetros de desigualdade a concessão privilégios, honras e poderes políticos a uma parcela da sociedade em detrimento dos demais, através de convenções laboradas pelos poderes constituídos e com assentimento ou indiferença da maioria[34]. Ao questionar a desigualdade segundo o estado de natureza, identificamos que o poder varia entre os que conseguem pela força impor a sua vontade. Agora, questionar a desigualdade no estado moderno do ponto de vista da moral é o mesmo que questionar se uns valem mais do que outros, se todas as qualidades, como a virtude ou a sabedoria se repetem sempre no mesmo grupo familiar na proporção de sua riqueza e poder[35]. Tal empreitada já seria absurda e a sua própria investida já seria reconhecer a grande disparidade de princípios morais instalada na sociedade.
Nota 34: “Concebo na espécie humana duas espécies de desigualdade: uma, que chamo de natural ou física, porque é estabelecida pela natureza, e que consiste na diferença das idades, da saúde das forças do corpo e das qualidades do espírito, ou da alma; a outra, que se pode chamar de desigualdade moral ou política, porque depende de uma espécie de convenção, e que é estabelecida ou, pelo menos, autorizada pelo consentimento dos homens. Consiste esta nos diferentes privilégios de que gozam alguns com prejuízos dos outros, como ser mais ricos, mais honrados, mais poderosos do que os outros, ou mesmo fazerem-se obedecer por eles.” (ROUSSEAU, 2002, p. 38-39)
Nota 35: Cf. ROUSSEAU, 2002, p. 39: “pois isso equivaleria a perguntar, por outras palavras, se aqueles que mandam valem necessariamente mais do que os que obedecem, e se a força do corpo e do espírito, a sabedoria ou a virtude, se encontram sempre nos mesmos indivíduos em proporção do poder ou da riqueza: questão talvez boa para ser agitada entre os escravos ouvidos por seus senhores, mas que não convém a homens razoáveis e livres, que buscam a verdade”.
Assim a alienação total da liberdade individual em favor do bem comum é pensada como uma forma de corrigir a desigualdade moral na sociedade moderna. Trata-se de uma proposta de organização social, que protege cada indivíduo e seus bens de todo tipo de força que tente se impor acima dos demais. E assim abrindo mão de sua liberdade natural por sua própria vontade unindo-se a todos sem restrição, não estará subordinado à outra vontade se não a sua própria, permanecendo livre como antes e adquirindo para si os benefícios da vida social em igualdade com todos[36].
Nota 36: “Encontrar uma forma de associação que defenda e proteja de toda a força comum a pessoa e os bens de cada associado, e pela qual, cada um, unindo-se a todos, não obedeça portanto senão a si mesmo, e permaneça tão livre como anteriormente.” (Idem, ibidem)
Tendo por experiência as consequências da Revolução Francesa, Constant entende que este é um ponto fraco da filosofia de Rousseau, ao qual se debruçará buscando corrigir seus maus feitos, por meio de uma nova proposição. Para ele, a alienação total do indivíduo em favor do coletivo concede um poder ilimitado ao povo, colocando em risco a harmonia social e a soberania do Estado:
Rousseau desconheceu essa verdade, e seu erro fez do seu contrato social, tantas vezes invocado em favor da liberdade, o mais terrível auxiliar de todos os gêneros de despotismo. Ele define o contrato firmado entre a sociedade e seus membros: a alienação completa de cada indivíduo com todos os seus direitos e sem reserva à comunidade. Para nos garantir quanto às consequências desse abandono tão absoluto de todas as partes da nossa existência em benefício de ser abstrato, ele nos diz que o soberano, isto é, o corpo social, não pode causar dano nem ao conjunto dos seus membros, nem a cada um deles em particular; que, se cada um se dá a todos, não se dá a ninguém; que cada um adquire sobre todos os associados os mesmos direitos que a eles é concedido, o equivalente de tudo o que perde, com mais força para conservar o que tem. Mas ele esquece que todos esses atributos preservadores, que confere ao ser abstrato a que chama soberano, resultam do fato de que esse ser se compõe de todos os indivíduos, sem exceção. Ora, assim que o soberano tem de fazer uso da força que possui, isto é, assim que é preciso proceder a uma organização prática da autoridade, como o soberano não a poder exercer por si mesmo, ele a delega, e todos esses atributos desaparecem. Como a ação que se faz em nome de todos está, queira-se ou não, à disposição de um só ou de uns poucos, acontece que, dando-se a todos, não é verdade que não se dá a ninguém; ao contrário, dá-se aos que agem em nome de todos. Daí decorre que, dando-se por inteiro, não se entra numa condição igual para todos, pois que alguns tiram um proveito exclusivo do sacrifício do resto. Não é verdade que ninguém tem interesse em tornar essa condição onerosa aos outros, pois existem associados que estão fora da condição comum. Não é verdade que todos os associados adquirem os mesmos direitos que cedem; nem todos ganham o equivalente do que perdem, e o resultado dos que sacrificam é, ou pode ser, o estabelecimento de uma força que lhes tira a que têm. [37]
Nota 37: Cf. Benjamin Constant, Escritos políticos, ed. cit., p. 11.
As críticas a Rousseau reafirmam a posição de Constant na defesa da liberdade em seu aspecto privado, que consiste no acesso aos direitos constituídos em igualdade com os demais cidadãos, por meio da intervenção das instituições que agem para garantir o cumprimento da Lei. Tal posição é apresentada contrariamente ao corpo social, sustentado na ideia do direito como partilha do poder social.
Se por um lado o absolutismo de um monarca é prejudicial ao indivíduo, também o é relegar um poder sem limites ao povo, por exemplo, é imoral pensarmos que em uma sociedade moderna a comunidade possa dispor deliberadamente da vida de um indivíduo sem que lhe seja garantido um prévio julgamento e o direito de defesa por uma instituição isenta e capaz de proferir um julgamento imparcial[38]. Da mesma forma não se pode conceber que todos estão inseridos na sociedade em uma condição de igualdade, uma vez que por diversos aspectos que se perdem na passagem dos tempos os homens estão em condições de desigualdade em diversos aspectos. Como esperar que todos tenham então o mesmo nível de comprometimento na vida comunitária?
Nota 38: Idem, p. 17: “não mais se atribui à sociedade inteira o direito de vida e de morte, sem julgamento. Assim, nenhum governo moderno pretende exercer tal direito. Se os tiranos das antigas republicas parecem muito mais desenfreados que os governantes da história moderna, é em parte a essa causa que devemos atribuir tal fato. Os atentados mais monstruosos do despotismo de um só muitas vezes deveram-se à doutrina do poder sem limites de todos”.
As diversas partes da crítica se baseiam principalmente no fato da dificuldade francesa de estabelecer de maneira prática um modelo de governo capaz de consolidar a soberania popular, tal qual como teorizada por Rousseau, o que Constant chamou de “soberania abstrata”. O problema consiste no fato de que para exercer seu poder o copo social precisa delegar autoridade a um governante ou a um grupo de governantes que é ou são por ele legitimamente constituído(s). Equivocadamente Rousseau entendeu que o problema do absolutismo era principalmente o modelo de organização política que cerceava o acesso da maior parte do povo as decisões públicas e aos privilégios sociais, ele não percebeu que o problema geral não estava vinculado ao modelo de organização política somente, mas principalmente à concessão de poderes ilimitados a uma autoridade seja ela o monarca ou o corpo social[39].
Nota 39: Idem, p. 12: “O soberano tem o direito de punir, mas apenas as ações culpadas; ele tem o direito de fazer guerra, mas somente quando a sociedade é atacada; ele tem o direito de fazer leis, mas somente quando essas leis são necessárias e contanto que sejam conformes à justiça. Por conseguinte, não há nada de absoluto, não há nada de arbitrário nessas atribuições”.
Benjamin Constant avança: “Se você supuser o poder da minoria sancionado pelo assentimento de todos, esse poder se torna então a vontade geral”[40]. Sendo assim, não haveria contradição moral em conceber um poder monárquico e ao mesmo tempo reconhecer a soberania popular, sendo o monarca ou a corte sancionada por aclamação do povo, podendo o próprio povo destituí-lo caso assim seja a vontade coletiva.
Nota 40: Idem, p. 7.
Independentemente do modelo de organização política, o problema consiste em um poder se erguer através da força e da subjugação do povo, se tornando ele ilegítimo moralmente. Para Constant a legitimidade de um poder soberano reside na transferência da soberania do povo para um representante ou um grupo de representantes escolhido pelo próprio povo, sem que o povo perca a sua soberania, podendo destituir seus representantes quando assim entenderem[41]. Com isso a destituição da liberdade individual em virtude do coletivo representa um problema e não uma solução a desigualdade. A proposição apresentada por Constant consiste em universalizar o acesso aos privilégios sociais através dos direitos fundamentais primando pela autonomia em suas decisões e opiniões tendo respeitada sempre a sua individualidade. Alienar a individualidade nesse sentido é sempre um prejuízo, para o qual não há compensação social possível (Idem, p. 8).
Nota 41: Idem, p. 8: “Esse princípio se aplica a todas as instituições. A teocracia, a realeza, a aristocracia. Quando dominam os espíritos, são a vontade geral. Quando não os dominam, nada mais são que a força. Numa palavra, só há no mundo dois poderes: um ilegítimo, é a força; o outro legítimo, é a vontade geral”.
Independentemente do modelo de administração a ser instituído, Constant prefigura a necessidade de um poder central que tenha a legítima autoridade de regular as ações livres e as divergências sociais, impondo assim, limites às vontades individuais e coletivas sem revogá-las. Para ele, a falta de direitos e de abertura política no período das monarquias absolutistas, não era necessariamente uma característica do modelo monárquico, mas sim, a consequência da falta de estruturas reguladoras para limitar o poder do monarca sobre a maioria[42]. O mesmo aconteceu na república francesa, em que se relegou todo poder ao povo, sem se criar as devidas estruturas políticas para regular esse poder, tendo como consequência constantes disputas internas e desordem social[43].
Nota 42: Idem, p. 12: “O soberano tem o direito de punir, mas apenas as ações culpadas; ele tem o direito de fazer guerra, mas somente quando a sociedade é atacada; ele tem o direito de fazer leis, mas somente quando essas leis são necessárias e contanto que sejam conformes à justiça. Por conseguinte, não há nada de absoluto, não há nada de arbitrário nessas atribuições”.
Nota 43: Idem, p. 9: “Numa sociedade fundada na soberania do povo, é certo que não cabe a nenhum indivíduo, a nenhuma classe, submeter o resto à sua vontade particular; mas é errado que a sociedade inteira possua sobre seus membros uma soberania sem limites”.
A proposição central de Constant consiste na afirmação de que o poder ilimitado ou a renuncia total da individualidade, conduzem a ações arbitrarias de grande prejuízo ao humano em geral. A dignidade humana como direito inviolável, somente pode ser garantida tal como exposta anteriormente, dentro de um Estado que tenha intuições sólidas capazes de garantir o exercício dos direitos fundamentais de forma privada; caso contrário, a dignidade humana seria apenas um reconhecimento abstrato sem relação com a realidade prática.
Notadamente, conforme já mostrado, a Constituição brasileira adotou as orientações de Constant como forma de organização do Estado, em detrimento da perspectiva de Rousseau, optando pelo modelo de monarquia constitucional, mas restrita à participação social na política do que o modelo republicano. Brevemente destacando a teoria do poder real como um meio de organização política baseada no princípio da dignidade humana como direito:
Nossa Constituição, ao estabelecer a responsabilidade dos ministros, separa claramente o poder ministerial do poder real. O simples fato de que a autoridade do monarca é inviolável e de que os ministros são responsáveis constata essa separação (…) O poder real (entendo por isso o poder do chefe de Estado, qualquer que seja o título que ele tenha) é um poder neutro. O dos ministros é um poder ativo. [44]
Nota 44: Idem, p. 18.
Referindo-se à carta constitucional francesa de 1814, Constant explana sobre o seu modelo de organização política do Estado. O monarca não exerce uma função ativa na sociedade, não tem nenhuma responsabilidade em responder por aquilo que se executa na política do Estado, uma vez que os ministros são os que têm autonomia e, portanto, a responsabilidade de prover as políticas de Estado, sendo eles também responsáveis por suas consequências:
O poder executivo, o poder legislativo e o poder judiciário são três engrenagens que devem cooperar, cada qual em seu âmbito, com o movimento geral. Mas, quando essas engrenagens desajustadas se cruzam, se entrechocam e se travam mutuamente, é necessária uma força que as reponha em seu devido lugar. Essa força não pode estar numa das engrenagens, porque lhe serviria para destruir as outras. Elas têm de estar fora, tem de ser neutra, de certo modo, para que sua ação se aplique necessariamente onde quer que seja necessário aplica-la e para que seja preservadora, reparadora, sem ser hostil (…) O poder real fica no meio, mas acima dos outros quatro, autoridade ao mesmo tempo superior e intermediária, sem interesse de comprometer o equilíbrio, tendo ao contrário todo interesse em mantê-lo. [45]
Nota 45: Idem, p. 19.
Além do executivo, são propostos então mais três poderes o poder judiciário, o legislativo e o poder real, o último estaria acima dos demais, porém sem nenhuma responsabilidade com eles, intervindo apenas quando devidamente necessário para manutenção da ordem, garantindo que um poder não se sobreponha ao outro. Como chefe de Estado, o monarca representava a segurança de que todos os administradores públicos estariam cumprindo com suas funções para garantia dos direitos civis e políticos, e do bem estar social.
O monarca nesta proposta é o baluarte da liberdade, não tendo ele outra opinião nem vontade, se não a de manter a liberdade geral, uma figura então que se mantém em separado, que não está em uma condição comum com os demais membros da sociedade. Então para limitar os poderes e impedir absolutismo, Constant cria um poder que está acima de todos os outros poderes, mas que tem também seu poder limitado pelo compromisso com a liberdade e o bem social[46]. Não está dentro das competências do Rei dirimir os direitos civis, por exemplo. Apesar de estar acima de qualquer outro poder constituído, sua vontade não está acima da vontade coletiva, tratasse de um poder regulador, um poder intermediário, que existe para conciliar as posições divergentes e garantir a harmonia, independência e vigência dos poderes. A figura do monarca como irresponsável e cercado de privilégios que garantam sua permanência e a hereditariedade do cargo, são aspectos que podem ser interpretados como conservadores. Se em Rousseau consiste a gênese da ideia de estado moderno e uma tentativa radical de crítica e renovação das ideias políticas por meio da defesa radical da igualdade e da liberdade coletiva, em Constant existe uma clara tentativa de conciliação das ideias modernas com as práticas monárquicas mais conservadoras, na defesa da hierarquia social dos poderes, da propriedade privada e da individualidade como direito fundamental[47].
Nota 46: Idem, p. 19: “A monarquia constitucional nos proporciona, como já disse, esse poder neutro, tão indispensável a qualquer liberdade regular. O rei, num país livre, é um ser à parte, superior às diversidades de opinião, sem outro interesse que a manutenção da ordem e a manutenção da liberdade, sem nunca poder entrar na condição comum, inacessível por conseguinte a todas as paixões que essa condição faz nascer e a todas as que a perspectiva de tirar algum proveito alimenta necessariamente no coração dos agentes investidos de um poder momentâneo”.
Nota 47: “O poder executivo reside de fato nos ministros, mas a autoridade que poderia destituí-lo tem, na monarquia absoluta, um defeito, o de que ela é sua aliada, e, na república, o de que ela é sua inimiga. É só na monarquia constitucional que ela se eleva ao nível de seu juiz. Um monarca hereditário pode e deve ser irresponsável: é um ser à parte no topo do edifício. Sua atribuição, que lhe é particular e que é permanente não apenas nele, mas em toda a sua estirpe, desde seus ancestrais a seus descendentes, separaram-no de todos os indivíduos do seu império. Não é em nada extraordinário declará-lo um homem inviolável, quando uma família é investida do direito de governar um grande povo, com exclusão das outras famílias e em detrimento de todas as possibilidades de exclusão (…) Os elementos de que se compõe a veneração que cerca o monarca impedem que ele seja comparado com os seus ministros, e a permanência da sua dignidade faz que todos os esforços dos seus partidários se dirijam contra o novo ministério” (Idem, p. 24-25).
Dada a natureza do trabalho, não cabe aqui prosseguir na análise do modelo de administração pública instituída pela Constituição de 1824. Coube, no entanto, mostrar como as estruturas administrativas modernas foram criadas com base na ideia da dignidade humana como direito, tendo por objetivo último a garantia do amplo exercício dos direitos fundamentais do cidadão.
1.3 OBSERVAÇÕES
Identificamos nessa primeira parte que o moderno conceito de dignidade humana foi introduzido no Brasil pela Constituição de 1824 que teve como antecedente o pensamento francês, conforme nos esforçamos em mostrar, a partir da influência da revolução Francesa e de Benjamin Constant, principal teórico do período da restauração da monarquia francesa. Principalmente no que concerne aos direitos civis e políticos, a ideia de cidadão e a organização do Estado moderno. Alguns políticos liberais como no caso de José Bonifácio, levantaram questões a cerca do novo referencial de ser humano instituído pela Constituição, a partir das suas contradições, como por exemplo, a manutenção da escravidão e do tráfico de escravos. Apesar desses esforços, podemos citar que filosoficamente foi no período romântico que surgem as primeiras análises teóricas sobre essa contradição.
De maneira geral, este primeiro capítulo tem por objetivo esclarecer alguns conceitos que julgamos fundamentais para uma melhor compreensão da ideia de dignidade humana no Brasil no período do século XIX. A análise inicial foi suficiente para confirmar nossa hipótese de que a dificuldade de atribuirmos um valor universalmente válido para vida humana é um dilema que surge na gênese do estado moderno ainda ao final do século XVIII, quando Rousseau então confronta os naturalistas. Dessa forma, assim como na França a dignidade humana como direito no Brasil foi motivo de contradições e problemas, que deram início a um debate teórico que durou todo o século XIX e que de alguma forma ainda mantemos na atualidade.
CAPÍTULO 2
A LIBERDADE COMO GRAU MÍNIMO DA DIGNIDADE: GONÇALVES DE MAGALHÃES
Três décadas após a Constituição Política do Brasil, Domingos José Gonçalves de Magalhães, então consagrado como reformador da literatura nacional e introdutor do romantismo no Brasil, faz a seguinte reflexão:
Custa-nos muito no meio, ou no fim da vida, renovar as nossas ideias, como o mudar de linguagem, e reformar os nossos costumes. Assim, não há verdade em ciência alguma, não há fato novo, achado pelo trabalho assíduo de alguns espíritos, que não fosse, e não seja combatido por mil juízos antecipados. Outras vezes, não podendo conciliar fatos que nos parecem contrários ao que sabemos, negamos hoje o que afirmamos ontem, damos agora como causa o que antes reconhecemos ser efeito, ou desacoroçoados duvidamos de tudo; o que também é um erro, porque infalivelmente alguma coisa é verdade sem a menor dúvida para o espírito humano, a começar pela sua própria existência. (MAGALHÃES, 2004 (1858), p. 348; original disponível em: https://digital.bbm.usp.br/view/?45000008694&bbm/4164#page/376/mode/2up)
No Brasil pós-Independência, entendemos que o romantismo foi o primeiro esforço deliberado de modernização da cultura, que teve início como movimento literário na década de 1830, inspirado no romantismo francês. Como movimento estético europeu, o romantismo teve representantes destacados principalmente na Inglaterra, França e Alemanha, sendo fonte de inspiração de ideias ao redor do mundo durante todo século XIX. Seu propósito era fazer frente aos fundamentos que caracterizaram a filosofia iluminista do século XVIII, combatendo o puro racionalismo e a objetividade matemática como forma de explicar o mundo. Assim, o movimento foi intensamente marcado pela defesa da subjetividade, do lirismo como forma de expressão e pela valorização das emoções.
No âmbito da cultura nacional não houve um movimento semelhante ao Iluminismo europeu do século XVIII, ao qual possamos propor alguma relação historiográfica necessária com o romantismo brasileiro do século XIX, isto, em função do rígido sistema de ensino público difundido no Brasil durante praticamente três séculos, em que o estudo de filosofia se restringia quase que estritamente ao aristotelismo de origem escolástica renovado em Portugal[48], ao mesmo tempo em que investia na censura à circulação de obras do pensamento moderno. O romantismo brasileiro, então, se desenvolveu pelo aspecto da necessidade de modernização das ideias no país, que se encontrava em atraso em relação aos debates que se faziam ao redor do mundo ocidental e não em decorrência de uma tradição de pensamento anterior. O movimento surgiu como uma tentativa de desenvolver a cultura brasileira fazendo uso das tendências de pensamento que se desenvolviam na Europa. Já o espiritualismo eclético francês foi introduzido no Brasil na sequência do romantismo.
Nota 48: “A partir de 1572, quando pela primeira vez no Brasil foi oferecido um curso de Artes pelo colégio dos jesuítas na Bahia, prevaleceu no ensino filosófico brasileiro, ao longo de três séculos, no âmbito de uma política de instrução pública, um aristotelismo segundo o modelo do colégio das Artes de Coimbra, fundado em 1548 pelo rei D. João III e confiado à Cia. de Jesus desde 1555. Esse aristotelismo conimbricense, desenvolvido nos Comentários a Aristóteles para uso no curso de Artes, foi introduzido no Brasil pelo método pedagógico dos jesuítas, a Ratio Studiorum, à qual devemos reportar-nos para saber o que e como era o estudo filosófico no curso de Artes no Brasil.” (CERQUEIRA, 2015, p. 41)
Mas a reforma da literatura nacional, mediante a recepção do romantismo, e a fundamentação da reforma, mediante a recepção do espiritualismo da Restauração francesa, não nos despertam interesse filosófico somente por terem sido organizados pelo mesmo autor, Gonçalves de Magalhães, e sim pelo fato de um ter sido preâmbulo do outro. A nova linguagem expressa pelo romantismo no Brasil carecia de uma base teórica sólida para fundamentar os valores e ideias que já se manifestavam na cultura brasileira através da literatura, assim surgiu o espiritualismo, com a defesa teórica da subjetividade, da sensibilidade e da religiosidade.
O espiritualismo romântico, como preferimos chamar esse movimento estético-filosófico brasileiro do século XIX, teve por principal objetivo a mudança da consciência de si como humano, inserindo na cultura brasileira a ideia de sujeito, que é responsável por si e pelo mundo a sua volta, devendo fazer bom uso da sua liberdade conforme orienta a presciência divina. Estes novos estímulos ao pensamento foram fundamentais para o desenvolvimento da filosofia nacional, pois introduziram no Brasil, diversas categorias que foram usadas por pensadores posteriores, mas principalmente por inaugurar no país uma forma própria de ver os problemas filosóficos que eram abordados nos grandes centros de pensamento da Europa, fazendo uso dos métodos da ciência moderna, cujo espírito era o de estabelecer rigor através do método de experimentação e comprovação as teorias acerca da realidade.
2.1 O ESPIRITUALISMO ROMÂNTICO
A Constituição de 1824 introduziu o conceito de cidadão no Brasil e com ele uma nova forma de organização social e política alicerçada nos direitos fundamentais e na compreensão da vida humana como um valor em si mesmo. Na década seguinte, como confluência do marco legal, apontamos para o espiritualismo romântico como a primeira tentativa teórica de pensar o ser humano a partir dos novos fundamentos apresentados pelo pensamento moderno. Destacamos a ideia de um valor intrínseco à vida humana.
Não se trata da ação isolada de um ou de alguns poucos representantes dispersos pelo país, o espiritualismo romântico se consolidou como um movimento organizado de pensamento, que rendeu a publicação de livros, periódicos, cursos, além de promover a formação de professores, tomando parte ativa nas discussões teóricas que ocorriam em alguns lugares da Europa. Gonçalves de Magalhães foi o mais destacado representante desta corrente de pensamento no século XIX, assim se esforçou em promover no país uma mudança no método de pensar, primeiramente através da reforma da literatura nacional, e posteriormente através da orientação dessa reforma no pensamento pela filosofia.
Inspirado pelos franceses, principalmente pelo romantismo de Chateaubriand e pelo espiritualismo eclético de Victor Cousin, ele editou em 1836, com a ajuda de Manuel de Araújo Porto-Alegre e Francisco de Sales Torres Homem, a Niterói, Revista Brasiliense, na qual publicou o Ensaio sobre a história da literatura do Brasil, defendendo a necessidade de uma urgente reforma da literatura brasileira, e o texto Filosofia da religião. O primeiro produto de seu empenho nesse sentido foi a obra, Suspiros poéticos e saudades, também do ano 1836, que foi responsável pela inauguração do romantismo brasileiro. A segunda parte de seu esforço intelectual compreende a defesa da adoção de métodos mais rigorosos de comprovação científica, defendendo uma aproximação da filosofia com as leis gerais da física e do determinismo natural como meio para se chegar a uma moral objetiva e universalmente válida. Suas obras filosóficas principais são: Filosofia da religião, de 1836, Fatos do espírito humano, de 1858, e A alma e o cérebro, de 1876.
O romantismo no Brasil surgiu a partir de uma considerável preocupação com a instabilidade dos conceitos e valores morais difundidos[49], que pareciam não serem mais estáveis como antes, isto, por conta do enfraquecimento da escolástica como teoria hegemônica no país, desde as reformas pombalinas, assim como da queda do absolutismo político e religioso, com a instituição legal da liberdade de expressão e de crença, que abriu espaço à relatividade do conhecimento e da fé. Magalhães então viu como problema social de sua geração as manifestações culturais, como a poesia, música, literatura e as ideias filosóficas, que tinham por fundamento a relativização dos valores morais[50]. Assim, a nova linguagem do romantismo era carregada de um forte sentimento de patriotismo e de reestabelecimento da religiosidade em resposta ao paganismo, como forma de combater a diversificação do pensamento em virtude de uma moral objetiva alicerçada nas virtudes do espírito.
Nota 49: “Quem ao menos uma vez separou-se de seus pais, chorou sobre a campa de um amigo, e armado com o bastão de peregrino, errou de cidade em cidade, de ruína em ruína, como repudiado pelos seus; quem no silêncio da noite, cansado de fadiga, elevou até a Deus uma alma piedosa, e verteu lágrimas amargas pela injustiça, e misérias dos homens; quem meditou sobre a instabilidade das coisas da vida e sobre a ordem providencial que reina na história da humanidade, como nossa alma em todas as nossas ações; esse achará um eco de sua alma nestas folhas que lançamos hoje a seus pés, e um suspiro que se harmonize com o seu suspiro.” D. J. Gonçalves de Magalhães, Suspiros Poéticos e Saudade, Paris, 1836. Disponível em: http://www.literaturabrasileira.ufsc.br/_documents/0006-00717.html#Lede. Acesso: 12/09/2015.
Nota 50: “O poeta sem religião e sem moral, é como o veneno derramado na fonte, onde morrem quantos procuram aí aplacar a sede. Ora, nossa religião, nossa moral é aquela que nos ensinou o Filho de Deus, aquela que civilizou o mundo moderno, aquela que ilumina a Europa e a América: e só este bálsamo sagrado devem verter os cânticos dos poetas brasileiros.” (Idem)
Consideramos assim, pelo aspecto histórico que a reforma literária promovida na década de 1830, foi o primeiro resultado teórico de destaque consequente da liberdade de expressão como direito garantido na Constituição de 1824, que permitiu a circulação de obras modernas e a livre defesa de ideias no Brasil. Em seu aspecto conceitual entendemos que o romantismo brasileiro foi um preâmbulo para a doutrina espiritualista, tendo por objetivo o desenvolvimento da cultura nacional mediante o resgate de valores morais sólidos.
A opção de Magalhães em fazer uso das ideias de teóricos franceses de sua época, como meio de promover a modernização da filosofia no Brasil, deve-se principalmente a presença positiva da cultura francesa no país após a chegada da Corte Portuguesa na cidade do Rio de Janeiro em 1808[51]. Sendo decisiva também a influência de Fr. Francisco do Monte Alverne seu orientador no Seminário de São José, cuja oratória já continha elementos do moderno pensamento francês[52].
Nota 51: Foi a época dos artistas franceses: Lebreton, Debret, os Taunay, Ferrez, Grandjean de Montigny. Cf. L. A. Cerqueira, Gonçalves de Magalhães como fundador da filosofia brasileira. (CERQUEIRA, 2009, p. 8) Disponível em: http://textosdefilosofiabrasileira.blogspot.com.br/2009/04/goncalves-de-magalhaes-como-fundador-da.html. Acesso: 12/09/2015.
Nota 52: “Sem dúvida, Magalhães beneficiou-se, em sua própria cidade natal, dos fatores que em geral concorrem para definir uma vocação: apelo intelectual e passional. Assinalo os estudos na Academia de Belas Artes, onde participou na Exposição de 1830 juntamente com seu amigo Araújo Porto Alegre (Viana, 1916: 559), o qual era discípulo de Debret; a graduação, entre 1828 e 1832, no curso de medicina do Rio de Janeiro, onde fez sólida amizade com Francisco de Sales Torres Homem; por último, mas com certeza o fato decisivo na trajetória intelectual, a sua condução ao espiritualismo francês, em 1832, mesmo ano da estréia como escritor (Poesias), pelas mãos de Monte Alverne, de quem foi ouvinte no Seminário de São José, e cuja amizade, além do grande prestígio na corte, foi determinante para que ele pudesse desencadear seu projeto de estudos em Paris” (CERQUEIRA, 2004, p. 31-32)
Motivado então pelas influências de sua juventude, Magalhães foi à França no ano de 1833, retornando no ano de 1837:
Uma vez estabelecido em Paris, estudou ciência e filosofia, tendo acompanhado os cursos de Jouffroy, discípulo de Cousin. Além dessas atividades, procurou não só viver a agitada vida cultural parisiense, como também viajou pela França, Itália e Suíça. O entusiasmo nessa decisiva experiência europeia, transparente na correspondência que manteve com Monte Alverne, por exemplo, chegou a lhe valer, por parte da crítica contemporânea, a imagem deturpada de 'turista'. Voltou para o Rio de Janeiro no início de 1837.[53]
Nota 53: Cf. L. A. Cerqueira, Gonçalves de Magalhães como fundador da filosofia brasileira. (CERQUEIRA, 2009, p. 8) Disponível em: http://textosdefilosofiabrasileira.blogspot.com.br/2009/04/goncalves-de-magalhaes-como-fundador-da.html. Acesso: 12/09/2015.
Seus contatos na França incluíram principalmente os teóricos do espiritualismo e os representantes do romantismo francês. Ambos, movimentos surgidos após a restauração da monarquia francesa, que segundo a tese de Verdenal, desempenhavam uma importante função política por meio da instrução universitária. As fontes de Magalhães, destacando Victor Cousin como a principal, elaboraram uma filosofia baseada em um espírito de conservadorismo social e político, com origens que remontam à Reid, a Royer-Collard, a Descartes, a Maine de Biran, a Leibniz e a Platão, ganhando espaço rapidamente nos cursos universitários, por não apresentar riscos a ordem e a tradição[54].
Nota 54: “Com Fatos do espírito humano, ele se propôs provar a necessidade de um princípio universal de conciliação espontânea — o espírito ou consciência — como uma evidência de caráter absoluto e transcendente, admitindo como suposto um “princípio vital”, historicamente atribuído a Plotino, e que fora recuperado por naturalistas de sua época, como W. Herschel (obra citada: Discours sur l’étude de la philosophie naturelle; ed. francesa de 1834), Étiènne Geoffroy Saint-Hilaire (obra citada: Histoire naturelle générale des règnes organiques, de 1854), e principalmente M. Jean Pierre Flourens (obra citada: De la vie et de l’intelligence, de1858).” (CERQUEIRA, 2015, p. 19)
A história oficial do espiritualismo remete sua origem a Maine de Biran, cujo pensamento objetivou a busca por um nível primitivo da consciência humana, que servisse de acesso ao absoluto, em que o espírito estaria no mesmo grau da realidade, ao ponto de conseguir obter um conhecimento metafísico apenas através do aprofundamento da experiência quotidiana de si mesmo. O ser não é mais concebido de forma objetiva, como substância ou fenômeno, mas como ação espiritual, sob uma forma subjetiva, sendo esta ação em última instância pensamento ou vontade[55].
Nota 55: Idem, p. 36
Na mesma época de Biran são ainda apontados como precursores do espiritualismo, Laromiguière e Royer-Collard. Mas foi Victor Cousin que, Ministro da Instrução Pública na primeira metade do século XIX, promoveu a reforma das universidades francesas, após a restauração da monarquia, estendendo o espiritualismo sobre uma classe de professores instruídos com os recursos e o poderio do Estado (Idem). Uma principal característica dessa doutrina é a consideração da filosofia como uma prática de análise interna da consciência, em busca de verdades indubitáveis, que servissem de parâmetro para definição do bem e do mal, servindo de justificativas para caracterizar as boas ações de maneira objetiva, por exemplo. Através deste tipo de investigação os espiritualistas acreditavam ser capazes de compreender o mundo em seu aspecto natural e histórico, em seu caráter finalista ou providencial, uma vez que, para Cousin, além dos limites deste mundo, há um Deus, que cria a humanidade e lhe dá um fim nobre, e não a abandonará no desenrolar misterioso de seu destino.
Foi a partir da constatação dessa realidade intelectual francesa, que Magalhães se inspirou a realizar a modernização da filosofia no Brasil, buscando atualizar as ideias por meio dos mesmos métodos, se empenhando em restaurar alguns valores da sociedade absolutista sob novas bases de pensamento, se aproximando dos métodos de investigação científica[56].
Nota 56: Cf. Gonçalves de Magalhães, Discurso sobre o objeto e importância da filosofia, de 1842: “a razão, só a razão, deve dominar sobre todos os nossos conhecimentos, para que se possam denominar científicos” (MAGALHÃES, 2001, p. 325).
2.1.1 CARÁTER TRANSCENDENTE DA DIGNIDADE HUMANA
Como apresentado no capítulo anterior, o conceito de ser humano formulado por Rousseau e considerado na Constituição de 1824, partiu da hipótese do homem selvagem, destituído de qualquer pressuposto moral ou religioso. Essa forma de pensar representou uma mudança de método investigatório, em que se parte de uma dúvida geral para se suscitar algumas hipóteses de investigação do problema, ao contrário da escolástica, por exemplo, em que o pensamento servia para explicar mais sobre uma verdade já revelada. Como consequência dessa mudança de método, surgiu a ideia da vida humana como um valor em si mesmo, independente de qualquer essência divina, que serviu de base à instituição dos direitos civis e políticos nos estados modernos, incluindo o Brasil. No entanto, apesar do avanço conceitual da legislação brasileira, no que se refere aos direitos fundamentais, o espiritualismo romântico se dedicou a retomar a análise da natureza humana a partir do pressuposto da sua imagem e semelhança de Deus. Assumindo como questão: “Porque criou Deus os espíritos humanos”? Na tentativa de definir então, qual o valor da vida humana, a partir do valor que a vida humana tem para Deus, já que a razão da existência humana é no caso da criação, a vontade divina (MAGALHÃES, 2004, p. 2).
Magalhães justifica a escolha do seu método de investigação, apontando logo no início de seu trabalho, que não irá se debruçar sob-hipóteses ou teorias abstratas, mas considerar apenas fatos reconhecidos na natureza através das “ciências não suspeitas de metafísica e de misticismo” (Idem). Assim podemos considerar que ele entende a hipótese de Rousseau sobre a natureza humana como sendo uma explicação fantasiosa, apenas fruto da própria imaginação, uma vez que não é possível fazer qualquer experimento real, para comprovar que a evolução social e da consciência do humano ocorreu da forma como ele supôs. Magalhães anuncia que tratará de fatos, tanto da consciência como da realidade, como ponto de partida para explicar o ser humano.
Apesar do caráter inicialmente conservador do seu método de investigação, que remonta aos naturalistas, o trabalho de Magalhães também parte de compreensões modernas, como a constatação da consciência de si como intelecto e como causa, sendo este, para ele um fato incontestável da existência humana.
A sua investigação acerca do que é propriamente o ser humano, parte da observação de fatos surgidos da relação entre a natureza e a história humana. Como primeiro dado ele então indica que, ao mesmo tempo em que a natureza organiza o mundo de tal forma a torná-lo um ambiente, que na maior parte do tempo é favorável ao desenvolvimento da vida humana, lhe nega o que lhe é mais necessário, os itens para sua subsistência, apenas alcançados a partir do trabalho braçal. E esta mesma natureza alheia ao sofrimento humano, de fases em fases revolta-se contra ele, lhe infligindo graves sofrimentos, como no caso dos desastres naturais, a cheia de rios que devastam plantações, terremotos, falta de alimento, estiagens prolongadas... Etc. Com isso em seu percurso histórico a humanidade tem se empenhado com êxito em prodigiosos inventos e teorias científicas, que a ajudam a fazer uso dos incidentes da natureza a seu favor ou a evitá-los. Mas todas as ciências, artes e produtos humanos ainda são incapazes por si só de dizer algo sobre a sua dignidade, pois o humano não pode ser diminuído em sua essência simplesmente aquilo que produz, como se suas obras materiais ou as suas condições físicas, representassem seu fim último, como um mero escravo do corpo e vítima da natureza.
Superada essa primeira constatação, ele julga que não é então se limitando aos métodos de observação dos fenômenos exteriores que o humano consegue reconhecer a si mesmo, definindo o que lhe é próprio, mas sim através da reflexão dos atos da própria consciência, que implica a necessária separação entre corpo e espírito.
Analisemos então as diferenças apontadas por ele entre as propriedades do corpo e do espírito. Sobre o corpo e assim entendemos a matéria e os fenômenos em geral, Magalhães conclui que as qualidades que pela sensação atribuímos aos fenômenos não estão realmente nos fenômenos mesmos. Toda matéria e todo fenômeno é, portanto, efeito e não causa, pois não são substâncias. Como afirmara Leibniz[57], nós atribuímos aos corpos uma imagem de substância, pois com rigor aquilo que é constituído de partes não pode ser substância. Magalhães absorveu esta compreensão como verdade, definindo substância como aquilo que permanece idêntico, inalterado, sem outro modo de ser[58], de outra forma, são apenas atribuições que o espírito humano confere as coisas. Assim, o espírito é substância, por ter em si duas qualidades fundamentais, que são o saber e o poder, que se confundem com o próprio ser. O ser sabe e pode de outro modo não teria razão de ser e não existiria[59]. No entanto, o ser humano nada sabe e nada pode sem uma causa, dada a finitude que lhe impede de deter todo saber e todo poder, não podendo ele ser causa de si mesmo, deve então necessariamente haver um ser que tudo pode e tudo sabe que dá condições de saber e poder ainda que de maneira limitada aos humanos[60], no caso, Deus que dá condição de existência a todos os espíritos e consequentemente a todas as coisas, sendo ele a substância de tudo o quanto temos conhecimento.
Nota 57: Conforme a citação de Magalhães: Novos ensaios, II, XXI, p. 72.
Nota 58: “Substância é quem se conhece existir, sabendo, e podendo, e permanecendo idêntico, inalterável sem outro modo de ser além destes.” (MAGALHÃES, 2004, p. 301)
Nota 59: “O saber, e o poder são inseparáveis do ser, são o ser mesmo; porque o ser, a substância, é uma foça que sabe, e pode. O ser que nada pode é um ser inútil, não tem razão de ser, e então na existe. É uma puta abstração do nosso espírito, tal como a matéria inerte dos corpos.” (Idem, ibidem)
Nota 60: “Quanto ao Ser divino, se nada sabemos, e percebemos sem uma causa, um Ser real e necessário sabemos evidentemente que ele é; que tudo sabe, porque tudo pode; e tudo pode, porque tudo sabe; que ele é por conseguinte Razão eterna, absoluta de todas as coisas. Que a sua eternidade é o tempo, condição para nós de toda a sucessão; e a sua infinidade criadora é o espaço, condição nós de todas as manifestações. Ora, quem é omnipotente e onisciente não pode achar oposição em coisa alguma, é por conseguinte infinitamente livre, infinitamente bom, infinitamente verdadeiro, infinitamente belo e perfeito. Si nós sabemos que Deus é assim, sabemos o que ele é, e como é.” (Idem, p. 302)
O entendimento de Deus como condição necessária para toda existência, sendo ele substância e causa de todos os fenômenos é o ponto central na filosofia de Magalhães, uma vez que toda sua argumentação posterior será justificada a partir dessa visão.
Para ele o universo sensível ao qual temos acesso é apenas uma extensão do universo intelectual que existe no pensamento de Deus, que nos é acessível de maneira corpórea através dos sentidos[61]. As Leis da natureza e o que foi chamado pelos filósofos anteriores de substância material, em sua concepção são na verdade apenas volições da vontade de Deus, do espírito infinito que tudo sabe e tudo pode. Não é, portanto, o espírito que está interligado ao corpo, mas o corpo e o espaço é que permanecem no espírito[62].
Nota 61: “Do que até aqui fica demonstrado podemos concluir que este universo sensível é uma reverberação do universo intelectual, que existe no pensamento de Deus, e que se corporiza para nós pelo reflexo das nossas intuições e sensações: que essas sensações não são qualidades de nenhuma substância finita, e atômica, mas simples sinais dos movimentos dos pensamentos de Deus, que por elas se nos tornam sensíveis; do mesmo modo que se nos fosse possível perceber por meio de sensações todos os atos de qualquer espírito humano, eles nos pareceriam movimentos rápidos, e os seus pensamentos nos pareceriam objetos corpóreos.” (MAGALHÃES, 2004, p. 348-349)
Nota 62: Cf. Fatos do espírito humano, cap. XV: “Não parecerá agora extravagante pensamento se dissermos que o espírito não está no corpo e no espaço, mas sim que o corpo e o espaço estão intelectualmente no espírito, ou perante o espírito.” (MAGALHÃES, 2004, p. 351)
Leibniz coloca uma dificuldade para este tipo de pensamento ao afirma que não é possível acreditar na vida humana apenas como um sonho, pois seria impossível um sonho tão duradouro e seguido como é a vida humana, bem como a existência de uma relação necessária entre um fenômeno e outro no âmbito externo a consciência seria uma impossibilidade, pois a existência dessa relação garante que os fenômenos não são organizados aleatoriamente, o que pressupõe a existência de uma ordem fora da consciência privada daquele que percebe a realidade. Concluindo que os fenômenos externos não podem ser apenas uma representação do nosso próprio intelecto, pois se assim fosse, haveria múltiplas realidades variando aleatoriamente conforme as disposições dos intelectos, sem que se fosse possível estabelecer uma relação necessária entre os fatos da experiência. Ao que Magalhães responde: não é aleatoriamente que os fenômenos e a vida humana são organizados, mas sim a partir da unidade do intelecto divino, sustentando a possibilidade de que os fenômenos externos sejam somente representações do pensamento de Deus, que em alguma medida se repetem no nosso próprio intelecto (MAGALHÃES, 2004, p. 347-376).
Entendendo ter resolvido as questões referentes ao corpo e as sensações, e buscando a verdadeira essência humana, ele se dedica a investigação acerca do espírito, estabelecendo como primeira diferença radical entre o espírito e a matéria, o fato de que o espírito não é um simples pensamento da inteligência divina que se move por razões necessárias, assim como o corpo é para o humano. Apesar de o espírito estar na inteligência divina, não é por ela completamente determinado. O espírito tem consciência de si, recepciona os pensamentos de Deus e tenta interpretá-los, toma decisões e age de maneira independente. Esta liberdade e consciência de si lhe garantem uma individualidade real, tendo o espírito a posse de si mesmo. A liberdade é entendida como uma condição necessária ao reconhecimento de si como indivíduo, ou seja, como consciência privada. A posse da liberdade é o que diferencia os espíritos humanos dos demais espíritos, da matéria e dos fenômenos.
Seguindo com sua explicação, ele expõe que como imagem e semelhança de Deus, o humano herdou de seu criador as qualidades que o distingue das demais criaturas, consistindo nelas a sua dignidade enquanto humano, são elas: “a duração idêntica, atestada pela consciência e pela memória; a inteligência e a liberdade, e, por conseguinte a posse de nós mesmos, e a faculdade de inventar, testemunhada pelas ciências progressivas, e por todas as nossas obras, e pelos sonhos”[63]. Neste ponto, destacamos a memória, que garante a existência do espírito como substância, dando ao espírito a condição de permanecer o mesmo, conforme o passar do tempo. O valor da vida humana em si mesmo, consiste no fato do espírito ser substância, portanto em alguma medida, causa da realidade, que é garantida pela memória, da mesma forma que pela ação livre.
Nota 63: Idem, p. 354.
A presença da ideia de autodeterminação como condição natural do espírito no pensamento de Magalhães corresponde à ideia moderna de dignidade humana, por exemplo, defendida por Kant, no entanto, no caso do primeiro o limite moral para ação livre não é determinado pela própria consciência, ou por uma regra moral objetiva fundada na razão como no caso do segundo, mas pelas leis universais determinadas por Deus, que organizam as relações humanas através das necessidades impostas pela natureza. A condição corpórea da necessidade impede que o espírito desenvolva todo o potencial de suas qualidades. A limitação da vontade individual é determinada pelas leis e condições universais que se impõem como necessidades e se opõe às suas deliberações. Ao mesmo tempo em que Magalhães considera esta condição sensível algo negativo, por impedir que o humano atinja o máximo de suas qualidades e siga somente a sua própria vontade, sem limites, ele considera também que esta condição é necessária para o desenvolvimento da moral, da justiça, assim como do senso estético e das virtudes, pois sem a sua condição sensível e, portanto, sem ser forçado a um aprimoramento moral por meio da necessidade, o espírito humano estaria fadado aos abusos da sua liberdade, caindo em disputas e degenerações sem fim[64].
Nota 64: “O que limita o nosso poder é o corpo animal, essa imagem, esse complexo de fenômenos sensíveis, sujeito a leis necessárias, independentes da nossa vontade, que demanda imperiosamente a nossa atenção, e involuntariamente se opõe às nossas determinações. O corpo não nos foi dado como uma condição de saber e de querer, mas como uma sujeição que coarctasse esse poder livre, de que abusaríamos, chamando-nos à vida prática. Sem esse corpo, sem as relações sensíveis com outros espíritos, e com os objetos pensados por Deus, e postos ao nosso alcance, não poderíamos efetuar as intuições puras de justiça, de dever, de virtude e do belo no meio de todas as lutas da liberdade e da inteligência, de que a história, essa consciência do gênero humano, conserva a lembrança para nosso ensino. Só com esta triste condição poderíamos ser entes morais. Essa é a nossa glória, e o nosso bem. Só tem liberdade neste mundo quem é inteligente; só tem inteligência quem é livre, e obra por si mesmo; e quem tem inteligência e liberdade tem consciência de si mesmo, é de necessidade um ente moral.” (MAGALHÃES, 2004, p. 354-355)
A moralidade neste contexto é determinada em primeira instância pela ação livre, então Deus permitiu que os humanos fossem livres para que se tornassem bons por seus próprios esforços, sendo merecedores da virtude e da justiça, sendo dignos delas por seus próprios méritos. Assim, todo sofrimento existe em função do desenvolvimento moral do espírito, que deve superar as condições adversas da natureza e das relações sociais por seus próprios esforços, conquistando para si o valor moral da vida[65].
Nota 65: “Mas demos que desaparecessem todas as virtudes, e todas as ciências, desaparecendo todas as suas ocasiões, todos os vícios, e todos os males humanos. Mesmo assim essa sociedade de máquinas vivas, pouco mais ou menos como a das abelhas, impossível seria com a inteligência e a liberdade; porque bastariam estas duas condições para que cada indivíduo pensasse, discorresse, e quisesse ordenar as coisas a seu jeito; e cada qual pensando, e querendo operar a seu grado, não haveria acordo, não haveria sociedade, seria a guerra o estado permanente, e viveriam os homens em um estado muito pior do que o atual . Supondo porém uma sociedade de entes sem liberdade, sem virtudes nem vícios, sem bens nem males, todos de acordo e uniformes obedecendo a uma só vontade sempre justa; uma tal sociedade é possível, e talvez exista em qualquer outro sistema planetário; mas sendo também possível uma sociedade de homens livres, que não exclui a outra, nem é por ela excluída , esta sociedade existe de fato no nosso planeta, e dela somos membros, livres graças a Deus, a fim de que sejamos justos por nós mesmos, virtuosos e sábios pelos nossos próprios esforços, e não um rebanho de máquinas, obedecendo cegamente a uma vontade soberana.” (MAGALHÃES, 2004, p. 356)
Então, o que existe na realidade é um contínuo embate entre liberdade e necessidade, sendo a liberdade característica do espírito e a necessidade que as condições do corpo impõem são conceitos opostos entre si, um limita o outro, mas mesmo assim aparecem juntos durante a vida humana para garantir a harmonia social e o progresso moral dos indivíduos. “A liberdade de muitos só era possível com algum elemento fatal, que os reunisse, e os harmonizasse; e a coexistência da liberdade e da necessidade prova que tudo foi previsto e ordenado com maior sabedoria que a ordem de todo esse imenso universo”[66]. Sua proposta de pensamento promove a conciliação entre a ideia de livre-arbítrio e a presciência divina, defendendo que todas as vontades livres, disputam entre si e se harmonizam conforme a determinação da razão absoluta, que se manifesta através das necessidades que todos experimentam durante a vida, como as ações que independem das vontades dos espíritos humanos, assim tudo pode estar prescrito, sem que os humanos deixem de ser livres[67]. Deus pode então saber de tudo que vai acontecer, pois para garantir a liberdade, basta que ele não tenha determinado previamente as ações humanas, que serão naturalmente anuladas ou levadas adiante conforme a necessidade já prescrita pelo próprio Deus. “Livres somos nos nossos esforços, e o que há de ser acontece, não por ter sido previsto e determinado, mas como uma consequência natural da luta da liberdade contra a necessidade.” (Idem).
Nota 66: Idem, p. 357.
Nota 67: “Eu creio que, reconhecendo-se bem no que consiste o livre-arbítrio, distinguindo-o do elemento fatal e previsto que lhe resiste, e da oposição mesma de todas as vontades livres que se combatem, coordenam e harmonizam perante a razão absoluta e a necessidade das coisas que não dependem da nossa vontade, possa tudo estar previsto, sem que deixem os homens de ser livres.” (MAGALHÃES, 2004, p. 358)
Continuando sua pesquisa, ele afirma que assim como Deus organiza as vontades individuais, limitando-as e determinando-as conforme a necessidade, também a vida social está submetida à organização divina. Deus permitiu que o espírito humano se organizasse e agisse conforme suas vontades próprias, mas “obrigou-o pela razão e pelo corpo a conformar-se à ordem providencial dos seus infalíveis planos”. Bem como, a natureza é organizada através das leis gerais da física, química e matemática, que são muitas vezes barreiras às vontades dos humanos, limitando-os a viver dentro de determinados limites espaciais e temporais, assim também os acontecimentos sociais são organizados conforme os planos de Deus, agindo conforme sua justiça, harmonizando as vontades individuais a partir da lei da necessidade representada pelos fenômenos da sensibilidade e pela ordem mais conveniente das coisas, que nos obriga a aceitar determinadas condições de vida.
2.2 A CULTURA ÉTICO-MORAL DO ESPIRITUALISMO ROMÂNTICO
Magalhães entende a liberdade como uma condição necessária para o desenvolvimento moral. Se as ações não são praticadas livremente não pode haver nenhum mérito nelas, não podem ser julgadas nem como sendo boas nem como sendo más, mas apenas determinações mecânicas da natureza. A liberdade como característica humana, herdada de Deus, nos permite contrariar a natureza e as determinações da sensibilidade, fazendo determinadas opções em detrimento de outras possibilidades de escolha. Sabendo que existe um Deus que determina leis que nos obrigam a condições de vida segundo sua justiça, qual é a melhor forma de agir, como é possível fazer um bom uso dessa liberdade no meio social?
Segundo ele, acima das vontades individuais e dos prazeres que comumente motivam as ações humanas, existe um bem soberano que deve ser fim de todas as ações morais. Todos tem o dever moral de perseguir com rigor esse bem e realizá-lo, fazendo os sacrifícios que forem necessários para isso[68]. Esse bem é apresentado pelo próprio Deus, quando o humano se submete ao cumprimento de seus deveres sem almejar, por exemplo, glória, fama ou qualquer benefício em troca da ação moral. A ação propriamente moral consiste na intenção do bem em todos os atos sem ansiar nenhum benefício próprio. Com isso, o mal é caracterizado como a intenção em benefício próprio, motivada exclusivamente pelo interesse e prazeres individuais. Todos os crimes ocorridos durante a história da humanidade tiveram por base o interesse próprio, sendo o egoísmo a causa de todo o mau moral[69]. Por sua vez, o humano que se deixa guiar pelos apetites do corpo, torna-se escravo das sensações e ignora sua natureza intelectual. A individualidade não pode ser o único objeto do nosso cuidado, assim, Magalhães critica duramente os filósofos que apresentaram o humano como naturalmente egoísta e sempre pronto para declara guerra aos demais a fim de defender seus próprios interesses, citando Hobbes e Maquiavel como exemplos dessas doutrinas[70].
Nota 68: “Temos pois um bem, um soberano bem, que deve ser o fim de todas as nossas determinações, e um dever rigoroso, absoluto de procurá-lo, e de realizá-lo, apesar de todos os sacrifícios, e de todos os cálculos de interesse, sob pena de sermos imorais e corruptos se o não fizermos.” (MAGALHÃES, 2004, p. 364; texto original disponível em: https://digital.bbm.usp.br/view/?45000008694&bbm/4164#page/396/mode/2up)
Nota 69: “Considerando separadamente a ação, não duvido afirmar que, à exceção dos casos de rematada doidice, todos os atos dos fanáticos políticos e religiosos, todos os crimes praticados neste mundo não tiveram outra causa senão o cálculo do interesse individual, e paixões egoísticas, e não o motivo puro de dever, com o fim de fazer o bem.” (MAGALHÃES, 2004, p. 365)
Nota 70: “Essa moral repugnante dos Helvetius, essa pérfida política dos Maquiavéis, esse abjeto despotismo da força dos Hobbes, são sátiras e sarcasmos à humanidade, e não coisas que lhe convenham. Elas só servem para ridiculizar e embrutecer o homem, deslustrar a virtude, entronizar o vício, e corromper os governos. Não é nos hospitais, e nos pútridos cadáveres que se estuda a natureza humana; ela aí se mostra em parte, mas enferma, corrupta, ou morta.” (MAGALHÃES, 2004, p. 366-367)
Para ele o humano constrói sua individualidade a partir do coletivo, sendo essencialmente um ente social que se define como indivíduo a partir das relações que estabelece. Sua conclusão tem por base o fato de que desde o nascimento até a morte o ser humano mantém uma relação de interdependência com a sociedade, sendo instruído por ela e para ela, e assim também por ela e para ela está sempre trabalhando. Dessa forma ao analisar a sociedade, ele constata a existência de uma consciência social, uma razão que ilumina a todos de igual maneira. Dela decorrem as ideias comuns de belo, bem, amor, heroísmo, caridade, amizade e tudo mais que nos conecta como humanos[71]. Essa compreensão justifica sua conclusão de que a natureza humana, não é egoísta, mas ao contrário, é social e age para o bem do coletivo.
Nota 71: “O homem é antes um ente social, do que individual . Desde o momento em que aparecemos neste mundo até aquele em que o deixamos, a cada instante dependemos e necessitamos da sociedade; nela vivemos, por ela e para ela nos instruímos; todos nela pensam, e trabalham por nós e para nós; como nós por ela e para ela: a mesma razão nos ilumina a todos; a nossa consciência é por assim dizer a consciência da sociedade; e mais vezes a consultamos do que a nós mesmo. A inteligência, a vontade, o amor, a paternidade, a amizade, a caridade, o heroísmo, as intuições puras do bem, do belo, e do justo, todas as ciências, todas as artes belas, todas as indústrias, a saúde e a enfermidade, tudo nos conduz à sociedade, ou dela nos vem, como um fluxo e refluxo contínuo de um só elemento.” (MAGALHÃES, 2004, p. 367)
O desenvolvimento moral depende da socialização e assim tudo converge para sociedade, não por um contrato formal, por convenção ou pela própria vontade, mas pela lei da providência. Bem como um corpo e suas partes é a sociedade com seus indivíduos, apesar de parecer que trabalham separados, agem todos em conjunto e para todos, sendo a sociedade o corpo moral do ser humano, pois é nela que se desenvolvem os seus valores. O fim último dos indivíduos é agir na sociedade pela prática da virtude e o fim da sociedade é a perfeição pela prática da justiça. Com isso, cada ato deve ser refletido levando em consideração suas consequências sociais, buscando sempre realizar refletidamente aquilo que será bom de maneira geral. A moral é determinada a partir das intenções que visam o favorecimento do bem comum, enquanto a imoralidade é associada à intenção egoísta de obter benefícios próprios. Assim como a consciência individual, a consciência coletiva é livre, assim a sociedade se organiza livremente e por isso deve definir seus próprios rumos, cabendo interferência divina apenas quando ela estiver caminhando para o mal. O objetivo da sociedade é o aperfeiçoamento moral de todos em conjunto, tendo por instrumento o intelecto que desvenda a verdade que através das ciências que revelam as obras de Deus e ajudam o humano a melhorar sua condição de vida.
Com essa defesa da vida social que se confunde com o fim moral do ser humano, Magalhães desenvolve seu conceito de pátria, como sendo a perfeita representação da sociedade segundo seu próprio pensamento. Na pátria cada um deve agir conforme os interesses coletivos, fazendo os sacrifícios que forem necessários para o bem comum, dessa forma:
Se me perguntarem por que amamos a pátria ainda que ingrata seja, por que amamos os filhos e os amigos; eu não acharei outra resposta senão: é porque é o nosso dever; porque ninguém foi feito para amar-se a si mesmo, mas para amar a todos, e a tudo o que é bom, justo e belo. [72]
Nota 72: Idem, p. 371.
A pátria em sua concepção deveria ser defendida a partir de seus valores e de suas instituições, pois somente assim seria possível que o ser humano superasse seus egoísmos e agisse conforme a virtude e os princípios morais emanados de Deus para o espírito humano, conforme sua justiça. Ao voltar seu pensamento acerca do bem absoluto e de uma verdade que serve de base para todas as outras evidências, o humano passa a olhar para o mundo e reconhecê-lo como belo e bom, pois é a prova da onisciência e da onipresença de Deus e não mais do ponto de vista dos sofrimentos do corpo, se encorajando a suportar as dificuldades pelo cumprimento do dever moral revelado pela presciência divina através dos valores da sociedade e das necessidades.
Finalizando esta parte, para ilustrarmos a teoria sobre o valor da vida humana, apresentada, apontamos para os comentários de Magalhães sobre a condição dos trabalhadores europeus do início da revolução industrial, que revelam sua perplexidade frente às condições humilhantes as quais eles eram submetidos, definindo-os como “escravos de raça branca”, afirmando que apesar dos admiráveis avanços econômicos do novo modelo de produção, as condições de trabalho eram indignas de um ser humano. Este comentário mostra ainda que sua reflexão sobre a escravidão, não era em nível racial, uma vez que brancos também poderiam ser escravizados, pois assim, como os negros, todos poderiam ser submetidos fisicamente através da força ou da necessidade.
Para ele os avanços das ciências, da cultura e da tecnologia, não poderiam ser valorizados em detrimento aos valores morais e das aspirações próprias do espírito. No entanto, ele não sustenta a mesma opinião ao se referir aos escravos negros no Brasil. Apesar de reconhecer as misérias da escravidão e a impossibilidade do país se desenvolver na economia capitalista moderna tendo escravos na base de sua economia, ele argumenta do ponto de vista moral, que é possível “uma sociedade de homens livres, que não exclui a outra, nem é por ela excluída” (ver nota 65 acima).
Sua tese se apoia nas defesas de Grotius, considerando que, se é possível uma pessoa alienar sua liberdade tornando-se escravo de um só senhor, também é possível que uma população inteira o faça, sem que este fato resulte em uma imoralidade. Ele considera que nada tem no efeito que já não esteja contido na causa, não sendo possível que os humanos atinjam o bem através de suas próprias escolhas se não a partir de um princípio universal, que organiza a sociedade. Apesar de reconhecer que a escravidão é uma condição indigna, pois atenta contra as aspirações do espírito, no caso da escravidão no Brasil, Magalhães apela para uma justificativa histórica, defendendo assim sua necessidade. Em seu entendimento havia no Brasil naquele momento duas populações distintas, uma de pessoas historicamente formadas para serem livres que eram nascidas sobre o amparo das leis e se desenvolviam colaborando para o progresso da sociedade brasileira, enquanto a segunda era formada de um povo completamente distinto, de africanos que foram trazidos ao Brasil com uma única finalidade, que era a exploração da mão de obra, especificamente para o trabalho braçal, portanto, incapazes de assumir uma função livre na sociedade colaborando para o bem social. Essa segunda população, não foi formada para ser livre e não foi trazida ao Brasil com o objetivo de ser integrada à população brasileira. Assim, a escravidão no Brasil era tida como um mal necessário ao progresso moral da sociedade em geral, a escravidão servia neste contexto ao bem comum e, portanto era entendida como moralmente aceitável. No entanto, a única possibilidade de desenvolvimento moral do escravo era, então, aceitar sem resistência seus deveres, entendendo que apesar de seu sofrimento individual, ele estava contribuindo para o bem de todos, não só em seu tempo, mas também das gerações futuras. Com vistas ao bem moral a coexistência de indivíduos livres e não livres em uma mesma sociedade, não representa na lógica de Magalhães uma contradição ética.
Podemos sugerir que para ele a diferença entre o escravo brasileiro e o trabalhador europeu, era principalmente a de que apesar de ambos realizarem trabalhos indignos a condição humana, o escravo é submetido contra sua própria vontade, portanto, apenas cumpri com as obrigações delegadas, tendo sido formado para servir a uma vontade de outro, que não é por ele mesmo assentida, mas imposta força. O escravo negro não entendia a si mesmo como imagem e semelhança de Deus, assim ele não era capaz de ter ciência e nem de acessar as qualidades do espírito, estava fora da compreensão geral de ser humano formulada por Magalhães, pois aquele que é livre e capaz de agir por si, conhece a si mesmo como espírito e assim é formado nas qualidades do espírito divino. Já o trabalhador europeu, trabalha por sua própria vontade, apesar das condições sociais lhe encaminharem às condições indignas de trabalho, pode ele se revoltar e mudar sua própria condição, contribuindo assim para humanização dos processos de trabalho, pois tem a experiência da liberdade.
No espiritualismo romântico brasileiro, ontologicamente a dignidade humana corresponde às altas qualidades do espírito compartilhadas por Deus, mas não é defendida como direito inalienável assim cada uma das qualidades distintivas do ser humano podem ser reduzidas, quando o próprio ser humano a partir da sua formação, não reconhece em si mesmo as qualidades do espírito, visando o aperfeiçoamento moral. A escravidão brasileira, apesar de atentar reconhecidamente contra a dignidade humana era justificável em vista da formação da consciência de si como humano. A intenção final serve de justificativa para todo sacrifício, que em princípio pode ser considerado como um mal, mas que na verdade pode ser justificada, a partir da justiça universal.
Com essa explicação Magalhães, responde a contradição ética legada pela Constituição de 1824, justificando de alguma forma a ausência de qualquer consideração sobre o escravo em seu texto.
2.3 OBSERVAÇÕES
Neste capítulo aprofundamos a pesquisa sobre a dignidade humana no contexto da filosofia brasileira, sob o viés dos primeiros movimentos de pensamento que se destacaram na modernização das ideias filosóficas no século XIX. Identificamos o romantismo e espiritualismo como doutrinas, através das quais se realizou a primeira revisão conceitual acerca da ideia de ser humano no Brasil pós-Independência. Ambas têm por fundador Gonçalves de Magalhães, e assim mantém entre si uma forte semelhança de princípios. Com isso, não as entendemos como formas de pensamento distintas, mas como doutrinas que se complementam entre si, que chamamos Espiritualismo Romântico. Trata-se, portanto, de manter o foco em Gonçalves de Magalhães, seu fundador e principal representante.
O que primeiramente chama a atenção em sua obra é o seu método de pesquisa, pois primeiramente ele se anuncia como um pensador moderno, que denuncia o atraso das ideias em âmbito da filosofia nacional, mas ao desenvolver seu pensamento se volta para pesquisa da natureza humana a partir da ideia de criação divina, sem fazer referências críticas diretas ao pensamento oitocentista de base estritamente racional, que afastou a ideia de Deus como uma via de explicação da realidade, o que em alguns momentos faz com que a sua opção pela metafísica cristã como meio de discutir os problemas filosóficos, pareça contraditória. Tobias Barreto irá fundamentar essa crítica de maneira mais veemente, ao acusar Magalhães de só ter estudado Kant a partir da visão de Victor Cousin.
No contexto do seu pensamento há sempre uma dependência do humano em relação a Deus. A dignidade humana é se não, um reflexo das qualidades de Deus, visto que o humano é considerado a imagem e semelhança do seu criador, tudo que no ser humano é bom em alguma medida provém de Deus, a consciência dessa identidade é o que dá possibilidade do desenvolvimento moral do indivíduo. Neste contexto, a principal qualidade do ser humano é a liberdade, que lhe possibilita ter uma existência individual real, podendo tomar suas próprias decisões, mas enquanto participante da inteligência divina, suas vontades são limitadas a realidade, pois a liberdade de escolha rivaliza com as necessidades impostas pelas leis da natureza, por sua condição sensível e corpórea e também pelas leis que organizam a sociedade, da qual a inteligência divina faz uso para harmonizar as vontades individuais, garantindo assim o aprendizado moral do ser humano a partir da restrição da liberdade através da determinação das vontades por parte da necessidade.
Enquanto a Constituição de 1824 tratou a liberdade como direito fundamental, sendo uma condição intrínseca a própria natureza humana e por isso inalienável, Magalhães retoma a ideia de liberdade como um atributo ou uma qualidade divina que se estende em alguma medida aos seres humanos e por ser uma qualidade concedida por Deus é por ele também regulada. O valor da vida humana não é então um valor em si, em primeira instância não é também um valor moral conquistado pela retidão no cumprimento de determinados princípios, mas antes é um valor dado por Deus, caracterizado pelas qualidades divinas herdadas pelo humano.
Seu pensamento considera que os fatos da história da humanidade, desde os grandes acontecimentos que afetaram drasticamente o desenvolvimento das civilizações até as relações sociais mais básicas, não tiveram por causa única a simples relação aleatória ou deliberada das vontades individuais, mas sim também as determinações de Deus que conforme sua justiça divina faz uso da natureza e da consciência coletiva, para determinar os acontecimentos sociais com objetivo de garantir o desenvolvimento moral conjunto, permitindo que alguns fatos aconteçam e sejam levados a diante e outros não, assim também permitindo que as pessoas sintam de determinada maneira comum, como no caso dos consensos estéticos e éticos. Toda experiência que temos do mal existente no mundo, o sofrimento e o sacrifício das próprias vontades, são consequências da justiça divina que obra para o bem do todo. Assim se de tempos em tempos os valores morais de uma sociedade se transformam radicalmente é em função das necessidades impostas por Deus, com o objetivo de instruir os indivíduos a enfrentar os males morais de suas épocas.
Entendemos então, que há ao menos dois graus de dignidade humana em seu pensamento:
1. O primeiro grau em que a vida humana é entendida como um valor dado por Deus, na medida em que o ser humano é sua imagem e semelhança e compartilha em alguma medida das suas qualidades;
2. Agindo em função do bem comum, cumprindo com suas obrigações sem requerer para si benefícios próprios, o ser humano se torna moralmente digno, angariando para si todas as virtudes necessárias para cumprir com os desígnios de Deus contribuindo para o aperfeiçoamento moral da sociedade.
O problema principal desse tipo de pensamento moral é a contradição entre a liberdade como autodeterminação de si e a presciência divina que determina os acontecimentos sociais e naturais conforme as necessidades identificadas pela justiça divina. Esta tentativa de conciliação foi duramente criticada a partir da década de 1860 principalmente pela Escola do Recife, como uma forma de dar um caráter cientificista para velhos argumentos absolutistas.
Essa sua postura conciliadora, foi o que o levou a não assumir uma defesa radical contra a escravidão no Brasil, se atendo apenas a justificar o fato. Apesar de reconhecer a escravidão como um atentado à dignidade humana, Magalhães recorre à ideia de uma justiça universal, que age para o bem de todos. Essa justiça determina que existam homens livres e não livres convivendo em uma mesma sociedade, no entanto, correspondem a populações distintas, justificada pela análise dos fatos internos da consciência. A população descendente de colonos era formada para serem livres, seus integrantes entendiam a si mesmos como imagem e semelhança de Deus, a liberdade para eles era uma realidade natural em seus contextos, de modo contrário, os africanos, foram trazidos ao Brasil como escravos e como escravos se conformaram, uma vez que foram formados assim em seus meios, sendo a escravidão algo natural para eles. A liberdade assim é entendida como uma qualidade inerente ao ser humano, porém, seu exercício depende que algum fato externo, por exemplo, a convivência social, desperte essa qualidade intrínseca. Caso contrário, o ser humano está de alguma forma incapaz de desenvolver uma consciência livre, de maneira a controlar suas vontades e direcioná-las para objetivos benéficos para sociedade brasileira. Dessa forma, uns se acomodavam a justiça divina por sua própria vontade, outros eram coagidos a se conformar.
No contexto do pensamento brasileiro Magalhães deixou sua marca, que é reconhecida como um esforço pioneiro de pensamento, que toca em temas sensíveis para qualquer sociedade moderna, como a justiça, religiosidade, ciências naturais, moral e política, o que faz dele um pensador, cuja ação intelectual conseguiu sintetizar ideias que introduziram no Brasil os principais problemas modernos aos quais as futuras gerações de pensadores iriam se dedicar a responder.
CAPÍTULO 3
A CULTURA COMO FATOR DA DIGNIDADE: TOBIAS BARRETO
“As ideias de um indivíduo podem ter a última feição, a frescura da atualidade, e todavia as suas emoções quase sempre regularam-se pelo ritmo de uma época anterior. O coração é um relógio que de ordinário anda atrasado.” (Tobias Barreto)
Tobias Barreto inicia formalmente sua carreira acadêmica ao ingressar na Escola de Direito do Recife no ano de 1864. Antes já havia exercido atividade profissional como professor de latim, tendo sido contemporâneo de Castro Alves, disputou com ele espaço como poeta, conquistando grande reconhecimento em sua época. O primeiro registro de seu interesse por filosofia é de antes do início de seus estudos superiores, quando teve aulas com Frei Itaparica em 1861 e posteriormente quando prestou concurso para cadeira de professor de filosofia no ginásio pernambucano no ano de 1967, concorrendo à vaga contra um reconhecido tomista, o qual, após o empate nas provas de avaliação, foi nomeado por ser casado.
No período de sua formação acadêmica, a corrente de pensamento filosófica disponível mais facilmente era o espiritualismo romântico, ensinado nos cursos preparatórios para ingresso nas faculdades e também nas escolas secundárias, podemos definir com confiança que era a filosofia oficial do Estado.
Os primeiros anos de sua produção filosófica coincidem com os últimos anos da guerra do Paraguai, que gerou no seio social um forte sentimento de patriotismo e unidade nacional, inflamando cada vez mais os discursos políticos favoráveis ao pacto federativo e a libertação dos escravos, que foram importantes participantes das glórias de batalha da guerra, segundo o manifesto republicano de 1870. Com isto, se intensifica no país uma nova fase das ofensivas políticas contra a monarquia e um surto de novas ideias, que avançavam em relação aos levantes populares do início do século, entre as quais destacamos a introdução do positivismo de Comte e a teoria de Darwin acerca da evolução das espécies por meio da seleção natural. Tobias Barreto foi uma das principais referências desta fase crítica da cultura brasileira, ao mesmo tempo em que foi fortemente influenciado por ela[73].
Nota 73: Em relação à época de Tobias Barreto, alguns autores contemporâneos por ele estudados e citados em alemão foram depois esquecidos. Na história da recepção das ideias filosóficas no Brasil, este fato valeu como prova de um germanismo obsessivo e pernóstico. Dentre esses autores alemães, Du Bois-Reymond (1818-1896) é atualmente redescoberto como o mais importante intelectual do século XIX na área da neurociência. Ver: http://mitpress.mit.edu/books/emil-du-bois-reymond; quanto a Ludwig Noiré (1829-1889), cuja recepção por Tobias Barreto chegou a ser ridicularizada com base em suposta irrelevância, é considerado atualmente um clássico esquecido da teoria da atividade. Ver: http://psyjournals.ru/en/tatigkeitstheorie/2010/n2/36482.shtml. (CERQUEIRA, 2015, p. 30)
Concluiu seus estudos superiores no ano de 1869, ainda na cidade do Recife, período em que a ocupação profissional na região era majoritariamente de ordem agrária, em particular, a produção, extração e venda de açúcar de cana. Mais da metade da mão de obra empregada neste mercado era de escravos, privados de qualquer direito em relação as suas condições de vida e trabalho. Frente a este contexto de exploração humana, uma guerra e a introdução de novas ideias modernas no Brasil, surgiram os pensamentos de Tobias Barreto, que se colocaram reativamente contra a realidade preponderante, atacando prioritariamente as ideias conservadoras, que em sua concepção eram barreiras ao avanço da cultura e a afirmação do pensamento científico, capaz de melhorar a vida dos indivíduos na sociedade, trazendo o real progresso social.
Motivado pelo estudo de ideias modernas ainda inéditas no Brasil e pela constatação da dura realidade social experimentada em seu meio, ingressou no Partido Liberal e criou um jornal intitulado O Americano, em que publicou diversos artigos de crítica religiosa. Exerceu um mandato de deputado da província no primeiro semestre do ano de 1879, compondo a bancada do seu partido, empenhando com diligência forte oposição à monarquia e ao conservadorismo religioso, além de ter feito francas defesas dos menos favorecidos de direitos, como as mulheres e os escravos.
Os estudos mais atuais sobre a história da filosofia brasileira posicionam Tobias Barreto como o primeiro crítico da filosofia nacional, por se dedicar a argumentar contra os principais temas suscitados pela tradição de pensamento que o antecedeu. Sua intenção declarada era promover o avanço do pensamento a partir do reconhecimento do atraso da filosofia difundida no país em relação aos avanços teóricos do resto do mundo moderno, promovendo o adiantamento da cultura a partir da crítica da própria cultura, ao invés de se restringir a importar alguma corrente de pensamento estrangeira e dar a ela um ar de brasilidade.
Apesar de seu isolamento no nordeste brasileiro de onde nunca saiu, publicou artigos em alguns periódicos científicos alemães e manteve uma relação epistolar com alguns teóricos germânicos. Esta aproximação fez com que alguns estudiosos considerem que Tobias Barreto introduziu no pensamento brasileiro a filosofia neokantiana alemã (Dilthey, Windelband, Rickert, Eduard von Hartmann)[74].
Nota 74: ALMADA, L. & CERQUEIRA, L. A alma e o cérebro: as origens do debate acerca da Psicologia científica no Brasil, Instituto de Psicologia UERJ, Rio de Janeiro, v. 10, n. 3 (2010). Disponível em: http://www.e-publicacoes.uerj.br/index.php/revispsi/article/view/8935/6824. Acesso: 19/01/2016.
3.1 CONSCIÊNCIA E SENSIBILIDADE
Os primeiros trabalhos filosóficos de Tobias Barreto são críticas dirigidas aos postulados centrais do espiritualismo romântico. Assim, em um artigo com o mesmo título da principal obra de Gonçalves de Magalhães, Fatos do Espírito Humano, originalmente publicado no Correio Pernambucano no ano de 1869, Tobias Barreto se opôs a teoria da sensibilidade expressa no capítulo XVIII da obra original, denunciando-a como “a face psicológica do tradicionalismo”, classificando Magalhães como “diletante perigoso em matéria filosófica, cujos argumentos “se devem perseguir com apupos, como um parasita e como um inimigo” (CERQUEIRA, 2011, p. 181). A forma implacável com que Tobias Barreto se refere ao pensamento de Magalhães apresenta um pouco do que ele pretendeu realizar na filosofia brasileira, a crítica radical ao pensamento conservador de origem escolástica ainda caracterizado no espiritualismo romântico pela tentativa de explicação da realidade a partir da ação de Deus e de causas estranhas à razão.
Para Tobias a referida teoria da sensibilidade é digna de ser analisada, justificando a sua iniciativa de publicar um artigo homônimo. Esta parte da obra em específico era para ele o exemplo claro do tradicionalismo incrustado no pensamento brasileiro, a partir do qual era possível depreender a necessidade de modernização das ideias em âmbito nacional.
A teoria da sensibilidade de Magalhães provém da tese de que a sensibilidade não é uma propriedade da alma, mas de um princípio diverso, elaborada em função do problema da união entre alma e corpo. Assim, a vida não deriva nem da alma e nem corpo, mas de uma força sensível distinta, com isso as sensações permanecem de maneira a priori na “faculdade de sentir”, a espera de um estímulo externo para se manifestar. Defendendo assim a existência de um princípio vital que organiza em igual medida as sensações:
Com efeito, se o princípio vital é quem organiza o corpo, como o autor admite, pois que o organismo conserva-se e desenvolve-se por meio de funções, é claro que estas são dirigidas ou presididas, se não exercidas pelo mesmo princípio. Ora, basta notar que as funções da vida vegetativa são contínuas; a continuidade é sua condição normal, sob pena de produzir-se o dessaranjo na economia e dar lugar à doença e à morte. (BARRETO, "Fatos do Espírito Humano", II, 25; disponível em: http://textosdefilosofiabrasileira.blogspot.com/2013/02/fatos-do-espirito-humano.html)
Tobias aponta para inconsistência da proposta de Magalhães, pois quem sente, não só sente, pois, uma vez que se sente é porque é capaz de sentir, portanto, essa capacidade não pode se encontrar fora do próprio indivíduo que tem consciência da sensibilidade em ato e em potência, considerando que sabe o que sente, assim, como sente e de que maneira irá sentir, no caso de experiências que se repetem e são armazenadas na memória:
se na consciência não entra o prazer mesmo, mas apenas a sua noção, como quer o nosso autor, em que se funda a distinção moral do prazer e do dever, bem como a distinção psicológica de prazeres e dores? (BARRETO, idem, II, 81)
Com esta questão, Tobias mostra que o erro de Magalhães foi não considerar que o princípio que sente é o mesmo que pensa. Se o indivíduo que através do vigor da vontade resiste a se entregar cegamente aos prazeres sensíveis em função de um dever moral não distinguisse com clareza o que é a sensação do prazer, porque deveria ele resistir? E ainda, que mérito haveria no ato de resistir? O discernimento claro a respeito das sensações é necessário para construção da moral.
Esta primeira investida teve por objetivo descaracterizar o espiritualismo como uma corrente de pensamento de caráter científico, desconstruindo a noção de que através dela se conseguiu desenvolver positivamente uma ciência da alma, apoiada no conceito moderno de verdade científica, como claramente queria fazer crer Magalhães.
3.1.1 CRÍTICA DO CARÁTER TRANSCENDENTE DA EVIDÊNCIA
Talvez o principal pilar de sustentação da doutrina espiritualista seja a imanência da ideia de Deus no intelecto humano, concepção que Tobias Barreto se esforça para descontruir de maneira satisfatória. Entendendo que uma vez superada a possibilidade de Deus como fonte de explicação da realidade, estariam superadas de uma vez as ideias fracas, injustificáveis do ponto de vista racional, últimas manifestações do conservadorismo que impedia o avanço da cultura em direção as possibilidades científicas de explicação da realidade, capazes de corrigir os erros teóricos legados pelas gerações passadas e melhorar a vida do brasileiro em geral, estabelecendo assim uma separação necessária entre filosofia e teologia.
O objetivo final de sua empreitada neste sentido era a criação de bases confiáveis para pensar o valor da vida humana a partir do próprio ser humano, sem que fosse necessário recorrer ao recurso da criação para definir a essência humana, como faziam os teóricos brasileiros.
Como referido, Rousseau já havia pensado a natureza humana fora de qualquer dogmatismo, no entanto, não se aplicou a aprofundar argumentos contra ele, principalmente contra o dogmatismo cartesiano, via pela qual os espiritualistas franceses renovaram seus argumentos para defender uma natureza humana vinculada a existência de Deus. Já Tobias, ao contrário, considerou ser preciso, fazer uma crítica à tradição, capaz de superar o argumento da dependência necessária do humano em relação a Deus, para que a filosofia possa de fato avançar em uma lógica racional.
Os espiritualistas em geral construíram suas filosofias com base na compreensão de Deus como ideia inata, e desse modo fazendo uso do pensamento cartesiano, a exemplo de Jules Simon — "Eu tenho em mim a ideia de Deus, isto é, a ideia do infinito. Como ela em mim existe? Só pode ser por uma das seguintes razões: ou porque o infinito existe, e então é natural que eu tenha dele ideia, ou porque não existindo o infinito, eu formei a ideia que dele tenho" —, o que foi analisado por Tobias Barreto em seu artigo Sobre a Religião Natural de Jules Simon.
Não obstante a isto, o espiritualismo brasileiro igualmente concebeu que como dado da consciência, Deus era uma revelação do espírito, uma ideia inata, que persiste no intelecto, enquanto participa do intelecto do próprio Deus de outra forma a existência humana ou a existência da própria realidade seria injustificável.
No entendimento de Tobias, o espiritualismo pretendeu construir novas bases para o pensamento filosófico sob o entendimento de si como intelecto, o que seria uma primeira verdade indubitável, a partir da qual seriam deduzidas todas as outras verdades. Porém, o acesso à verdade não era perseguido por métodos estritamente racionais, limitados às faculdades do espírito, pois para justificar a existência de verdades objetivas e negar a relatividade do conhecimento, há um recurso a Deus, que como ideia inata garante a possibilidade de uma existência real dos seres humanos e dos fenômenos, a partir da suposição de uma providência unívoca que dá ordem a todas as coisas.
Como mostrado no capítulo anterior, Magalhães absorve essa compreensão explicando que Deus é a substância e, portanto, causa de todos os espíritos e fenômenos, por que se o indivíduo tem consciência de Deus, mesmo sem ter qualquer experiência sensível com ele, é por que Deus existe e compartilha essa ideia com o ser humano, que mesmo limitado pela matéria e pelas corrupções do corpo, permanece tendo a consciência de si como imagem e semelhança de Deus. Bem como a existência da realidade tal como concebida pela razão, determinada por uma mecânica que se constata pelas leis naturais que harmonizam o mundo garantem a durabilidade temporal e a percepção espacial de maneira comum aos espíritos, só é possível por que existe uma causa eficiente única que organiza todas as partes e dá um sentido objetivo a elas. Assim, a realidade externa não pode ser efeito do intelecto humano puramente, mas, de uma consciência superior que salvaguarda a existência real e não apenas ideal dos dados da experiência sensível. Existe, portanto, segundo Magalhães, uma causalidade exterior que independe do intelecto e possibilita uma experiência comum da realidade a todos que a percebem. Se retirarmos a ideia Deus como causa de toda natureza, todos os dados são questionáveis e uma explicação satisfatória da realidade em si mesma seria impossível.
Tobias acusa Magalhães de desconsiderar as limitações do intelecto humano. O fato de a ideia de Deus estar inserida no intelecto sem ter sido por ele criada, gera a suposição natural da existência de um ser acima do humano que é causa dessa ideia em seu intelecto, mas para além dessa simples dedução, o intelecto é capaz de explicar com precisão algo sobre Deus? Se não há uma resposta segura para esta pergunta, é possível supor que Deus mantém alguma relação necessária com o ser humano?
As ideias metafísicas em geral, incluindo as ideias, de perfeição, infinito, imortalidade, bem como a ideia de Deus, são classificadas por ele como antinomia, como por exemplo, a ideia de infinito, que o indivíduo tem é apenas uma suposição gerada da experiência que ele tem do finito, mesmo sem poder ter qualquer comprovação racional ou lógica da existência do infinito, a ideia permanece nele como vaga e confusa. Com isto, tanto a conclusão de que Deus existe, quanto à conclusão de que Deus não existe, são deduzidas a partir de fatos da realidade ou da consciência como premissas e apesar de diametralmente opostas, ambas são críveis, logicamente válidas e coerentes, sem que uma anule a outra. Fato que mostra as contradições inerentes ao intelecto humano e o seus limites para tratar de alguns assuntos. Ao pensar os limites do intelecto, Tobias abre possibilidade para se pensar a relativização do conhecimento, uma vez que como Kant ele entende que o intelecto se limita a compreensão dos fenômenos e dos dados teóricos limitados pelas faculdades razão, que dependem na maior parte das vezes de contextos variáveis.
Portanto, para ele a crença em Deus é um fato incontestável da consciência, pois é inegável que existem diversas representações comuns de Deus entre os diferentes povos do mundo, que se desenvolveram na própria consciência humana e só podem ser explicadas em si mesmas, considerando que não se trata de um dado objetivo da razão, passível de comprovação, ao mesmo tempo em que a ideia mesma de Deus como objeto de investigação do intelecto é um dado indeterminado e incerto, não passando de uma ideia confusa.
O método espiritualista de afirmação da existência de Deus partiu da constatação de um fato para supor a existência necessária do seu contrário, mas, uma ideia assim adquirida sem uma experiência real, encontra dificuldades mesmo em se afirmar como dado teórico da razão, pois é impossível quantificar ou codificar estes dados metafísicos em signos precisos, capazes de significá-los como objeto de estudo teórico, como é feito com a matemática e com a física teórica, por exemplo. A primeira questão colocada por Tobias neste sentido é: a ideia que eu tenho de Deus corresponde a uma representação de um ser real?
Bem, é de comum acordo entre os modernos que Deus não é um dado empírico, não é possível que o indivíduo tenha uma experiência sensível de Deus por si mesmo, portanto, não pode haver uma comprovação real de suas características, por meio das categorias da razão, ou seja, nada pode ser afirmado sobre suas qualidades ou sua substância com certeza. Deus não pode então, ser comunicado, por que nada pode ser pensado sobre ele com certeza, muito menos apontado com rigor como causa eficiente da natureza, da consciência e da sociedade.
Ao organizar todas as ideias metafísicas em uma mesma categoria, de ideias confusas, sobre as quais nada se pode declarar com certeza, pela impossibilidade de comprovação empírica ou dedutiva, Tobias Barreto refunda as bases da epistemologia no Brasil, liberta o pensamento teórico do dogmatismo que o manteve refém por quase 400 anos.
Assim, quanto à prova da existência de Deus, como uma questão filosófica, consideramos que nenhuma proposta de definição vai conseguir deduzir características necessárias de Deus, dada a impossibilidade de experiência real com ele, que nos é vedada através dos sentidos e também pelas limitações das faculdades mentais superiores. Então qualquer resposta acerca da existência ou não de Deu, seria apenas responder a pergunta com o pressuposto dela mesma, que já seria a própria noção vaga que temos de Deus. Nenhuma resposta a pergunta sobre a existência ou não de um Deus será capaz de acrescentar algum conhecimento seguro ao interlocutor, além do que ele já possuía ao formular a questão.
Esta é a parte principal da crítica de Tobias ao que ele considera como último resquício da filosofia medieval, mostrando a impossibilidade da ideia de Deus servir como recurso de explicação da natureza humana, porém a ideia mesma de Deus persiste como problema, para o qual não parece haver uma solução simples. Por fim, sua conclusão é a de que qualquer definição acerca de Deus ou dos conceitos metafísicos citados são apenas suposições, que cabem ao campo da crença e não da ciência.
3.2 A CONSCIÊNCIA DE SI COMO FUNDAMENTO DA DIGNIDADE
Afastada a hipótese de uma religião natural — no mesmo sentido em que se afasta a hipótese de um direito natural, sem prejuízo, entretanto, de se constatar a existência de uma lei natural do direito no desenvolvimento histórico da vida em sociedade, bem como de uma lei natural da religião —, rejeita-se a ideia inata de um Deus Criador, em função da qual o indivíduo humano em suas ações seria Dele naturalmente a imagem e semelhança. Sendo assim, em que consistiria a dignidade da vida humana? Para Tobias Barreto, a resposta a esta questão envolve a consciência de si.
Em sua análise, ele parte de uma questão que na cultura brasileira foi legada pelo espiritualismo, que é a dificuldade de conciliação entre o corpo e a alma racional. Dificuldade que aparece ao se considerar que a liberdade é uma propriedade da alma que garante ao indivíduo a posse de si mesmo, o que pode ser evidenciado quando o indivíduo faz menção a si, como eu, afirmando a certeza de sua própria existência individual e privada, assim como a certeza de que está agindo de determinado modo por sua própria vontade. Não se trata, portanto, de um indivíduo que simplesmente existe, mas que sabe que existe. Porém esta constatação por si mesma não afasta o fato de que a existência real do indivíduo pressupõe um corpo que existe sob o julgo das necessidades e das leis universais da natureza. Há uma evidente contradição entre a liberdade inerente ao intelecto que tem ciência de si mesmo, e assim julga e determina para si seus objetivos e disposições, e as determinações impostas pela natureza, às necessidades físicas, aos instintos básicos. Dada esta problemática, em que medida ocorre essa determinação natural do ser humano e em que medida o humano tem de fato domínio sobre sua própria vida?
desde Sócrates até os nossos dias, a consciência humana tem sido interpelada, e todavia as suas respostas ainda não enchem meia folha de verdades. Não basta reconhecer e alegar a existência dos fatos internos. (BARRETO, A ciência da alma ainda e sempre contestada, II, 16; disponível em: http://textosdefilosofiabrasileira.blogspot.com/2010/12/ciencia-da-alma-ainda-e-sempre.html)
Tobias acusa a tradição de ter se entregado ao vício de investigar a consciência, como uma evidência dada no mesmo nível da integridade física, em que os sentidos são pesquisados como meios, através dos quais se percebe a toda realidade externa. Assim, a tradição se dedicou a tentar conhecer os fatos internos da consciência, fazendo uso dos mesmos meios usados para conhecer os fatos externos por meio da verificação dos sentidos. Desta compreensão podemos afirmar com certeza que saíram a maior parte das teorias sobre as leis, causas e forças do espírito, que atuam como categorias pelas quais se conhece o mundo material, bem como os sentimentos e emoções em geral. Esta mesma forma de investigação é segundo ele, responsável pela tese espiritualista de que o eu é a primeira causa conhecida, assim a psicologia e não a mecânica seria o caminho de investigação para se entender a organização da realidade, como, por exemplo, propôs Maine de Biran e foi seguido pelos espiritualistas posteriores. Isto, pela impossibilidade da consciência ser entendida como fenômeno, uma vez que sua substância é de conhecimento imediato, como já relatado, o indivíduo sabe da sua existência e este entendimento de si não é determinado por nenhuma substância externa, antes é mesmo uma evidência revelada pela própria constatação de si mesmo. O eu é, portanto, causa de si mesmo, de outro modo sua substância escapa a possibilidade de seu entendimento. Ao estudar a consciência, não se deve empregar então, o mesmo método usado na investigação das ciências naturais, pois ao contrário da medicina e da física, por exemplo, os fatos internos da consciência não podem ser objetos de comprovação empírica, dada a falta de meios para reproduzi-los e categorizá-los como fenômenos regulares. O erro dos espiritualistas foi justamente esse, não reconhecer que se o eu substancial é uma intuição a priori da consciência, os fatos internos da consciência são evidentes em si e não só fazem parte da vida, “mas se confundem com a vida mesma”.[75]
Nota 75: ALMADA, L. CERQUEIRA, L. A alma e o cérebro: as origens do debate acerca da Psicologia científica no Brasil. Instituto de Psicologia UERJ, Rio de Janeiro, v. 10, n. 3 (2010). Disponível em: http://www.e-publicacoes.uerj.br/index.php/revispsi/article/view/8935/6824. Acessado em: 19/01/2016.
A partir desse erro os espiritualistas assumiram como ponto de partida para suas investigações, ideias comuns, buscando a reprodução de fatos internos da consciência na realidade, com o objetivo de categorizá-los e interpretá-los como leis gerais conforme uma mecânica determinada, aplicando assim o mesmo método de investigação das ciências da natureza. Porém, como já explicitado os fatos da consciência são incompatíveis com a experiência sensível, portanto necessitam de outros métodos de pesquisa científica para serem abarcados como fenômenos internos da consciência. Tobias se posiciona reativamente contra a proposta espiritualista de entender o ser humano de forma objetiva e científica, pelo método da psicologia experimental, quando afirma que qualquer suposição sobre a alma como objeto de análise, apenas pode apontar para o seu “estado natural, entregue a si própria, seguindo somente a marcha traçada pela lei de sua existência” (BARRETO, A ciência da alma ainda e sempre contestada, II, 31) Ou seja, a consciência humana não tem um caráter objetivo, pois se encontra fora dos limites da percepção, exige uma nova forma de pesquisa e comprovação de seus fatos, que não tente reduzi-los a aspectos formais por meio de leis gerais, tal empreitada somente seria possível considerando que por sua própria natureza a consciência é um fim em si mesmo, dessa forma assume aspectos diversos e indeterminados.
Tobias assume, que o eu substancial é uma intuição da consciência, porém não como entendiam os teóricos da psicologia experimental do século XIX, que concebiam a consciência como uma abertura ao mundo interior, por meio do qual seria possível a explicação da realidade, na mesma medida em que os sentidos são uma abertura para observação e pesquisa do mundo exterior. O que importa para Tobias é responder se quando o indivíduo que pensa sobre si mesmo, encontra as respostas que procura?
Não há fenômeno mais vulgar do que ver o psicólogo entrar, como ele diz, no fundo de seu ser, a fim de buscar a base de todo conhecimento humano. Nesse intuito, é natural que ele simule duvidar de tudo, exceto o pensamento. Pelo menos é este o sentido do famoso, bem que estéril, cogito ergo sum. Tenhamos porém coragem para proclamá-lo desde já: estas fórmulas vazias não aguentam uma análise severa. (BARRETO, A ciência da alma ainda e sempre contestada, III, 35)
De acordo com Tobias, o astrônomo, consegue entender e explicar com clareza o movimento dos astros, inclusive prevendo com antecedência determinados acontecimentos com exatidão, este tipo de ciência mecânica não pode ser desconsiderada como um meio de explicação da realidade, considerando que apresentam substanciais resultados práticos que melhoram a vida das pessoas. Até por que a psicologia não dá conta de responder as questões interiores da consciência como tamanha exatidão, em parte isso se deve ao erro de tentar pesquisar os fatos interiores, utilizando os mesmos métodos, caracterizados pelas ciências naturais, assim se dedicam a sistematizar qualquer sinal de repetições comuns, na tentativa de estabelecer leis gerais[76]. Tal empreitada segundo ele apenas foi capaz de reconhecer algumas faculdades pelas quais foi possível se ter a noção de uma inteligência e de uma vontade. No entanto, não é pela falta de materialidade dos fatos da consciência que eles são incapazes de serem ordenados cientificamente, nem mesmo pela impossibilidade deles serem observados de maneira regular:
Querer achar na consciência do indivíduo o reflexo de todas as modalidades da espécie é uma pretensão quimérica. A psicologia me parece condenada, por sua natureza, a não ter um voto sequer no grande conselho das ciências. Basta advertir que ela é impotente para fornecer os mais simples dados de uma previsão. Ora, uma ciência de fatos naturais, imprevidente, é coisa que não acha apoio na razão de um homem despreocupado. (BARRETO, A ciência da alma ainda e sempre contestada, V, 84-85; disponível em: http://textosdefilosofiabrasileira.blogspot.com/2010/12/ciencia-da-alma-ainda-e-sempre.html)
Nota 76: Idem: “ninguém concebe uma ciência, dita experimental, que ponha de lado, sob o pretexto de raridade, negócios da sua alçada” (BARRETO, idem, IV, 64).
A possibilidade de um estudo científico da consciência, capaz de categorizar e dar conhecimento seguro de seus fatos internos é uma questão que fica em aberto no pensamento de Tobias Barreto. O eu como substância causal é uma evidência da própria consciência de si, mas ao reconhecer isto, Tobias reconhece também à impossibilidade de comprovação dessa afirmação pelos meios científicos de seu tempo, porém, não determina como impossível que em algum momento surja uma ciência da consciência a partir de um método próprio que seja capaz de revelar com clareza, mais sobre a suas propriedades.
Assim a primeira causa reconhecida pelo indivíduo é ele mesmo, ainda antes de ter alguma ideia das necessidades impostas pela natureza, apesar de estar submetido a elas desde seu nascimento. O ser humano é em primeira instância intelecto, pelo qual toda existência é constatada, mas sendo ele causa, não é apenas um receptáculo de ideias, assim como sua missão não é o simples acumulo de conhecimento, pois tem em si mesmo a capacidade de deliberar sobre os movimentos do seu próprio corpo, organizar suas ações em vista de um objetivo por si mesmo traçado, escolher o que é melhor para si e decidir sobre sua própria vida.
Uma vez definida o que é consciência no pensamento de Tobias Barreto, retornamos ao problema inicial, da conciliação entre alma e corpo ou consciência e matéria.
Ao contrário dos espiritualistas, Tobias não faz uma distinção entre corpo e espírito. A partir da sua interpretação do monismo de Ludwig Noiré, ele define que o eu é ao mesmo tempo corpo e alma, vontade e força. Como alma ele é, e como corpo ele aparece. Os sentidos do corpo não são apenas meios pelos quais a razão capta os fenômenos e se distingue deles, mas são partes constitutivas da vida humana. Os sentidos fazem parte do complexo mecanismo do conhecimento, sendo as portas de entrada dos dados, mais nem por isso são menos importantes que as faculdades que os interpretam. Há uma diferença crucial entre, consciência e corpo, uma vez que a substância dos dados internos da consciência é diferente da substância material do corpo, mas ambas as substâncias são aspectos diferentes de um mesmo indivíduo, que é capaz de reconhecer a si mesmo de diferentes modos, pois é através das experiências do corpo que o indivíduo forma sua individualidade, aprende, expressa suas vontades, ensina, bem como se emociona, constata sua existência e liberdade[77]. Com isto, sem a experiência de um corpo até a constatação da consciência estaria comprometida. No entanto, as volições próprias do corpo, apesar de igualmente comporem o eu, representam um nível instintivo mais primitivo da natureza humana, que deve ser controlado pelo uso prático da razão, por meio das regras morais.
Nota 77: Cf. Tobias Barreto, Glosas heterodoxas a um dos motes do dia, ou variações antissociológicas, Parte IV. Disponível em: http://textosdefilosofiabrasileira.blogspot.com.br/2012/07/glosas-heterodoxas-um-dos-motes-do-dia_26.html. Acesso: 03/07/2015.
O ser humano é então, governado por duas causas, a primeira é ele mesmo, a segunda é a natureza, porém é certo afirmar que pela própria disposição da consciência, ela esteja em oposição às causas da natureza contrárias as suas próprias vontades.
A filosofia tradicional aponta causas para os fenômenos, a modernidade as distinguiu em causas, atrações e motivos, Tobias entende que “tudo é causa e motivo ao mesmo tempo. Como causa, aparece: como motivo, existe nos seres mesmos.” Com isso ele afasta qualquer possibilidade de determinismo como “puro mecanismo” mas tudo que se move o faz por motivo e causa simultaneamente. Essa lei da motivação, não afasta a possibilidade da ação livre. Tobias então concorda com Kant:
Isto é claríssimo; porém não é tudo. Kant ainda diz que não podemos saber a priori quanto contribui o mecanismo da natureza para a realização de qualquer intuito final, que nela exista, nem até onde chega o modo de explicação mecânica dos seus fenômenos, e que por isso as ciências naturais têm o dever de levar o mais longe possível esta mesma explicação. Mas também logo assegura que o simples mecanismo não é suficiente para dar a razão dos produtos orgânicos, isto é, que em relação à forma dos organismos há sempre um resto mecanicamente inexplicável. [78]
Nota 78: Glosas heterodoxas, III, 44. Disponível em: http://textosdefilosofiabrasileira.blogspot.com.br/2012/07/glosas-heterodoxas-um-dos-motes-do-dia_26.html. Consulta: 19/01/2016.
Com isso, entendemos que toda manifestação, todo fenômeno é ao mesmo tempo produto da consciência e ação de uma causa externa, sem que seja possível determinar em que medida é uma ação da natureza e em que medida é uma disposição humana. Aqui está superado o dualismo entre alma e corpo, as propriedades do corpo e da alma, são apenas modos do próprio eu, que é único e inteiro e não dual ou fragmentado.
Ainda contra a ideia de um determinismo natural, Tobias concebe que a liberdade empírica é um fato evidente da consciência, que para ser reconhecido como tal não carece “que se tome partido das impossíveis incursões espiritualistas pela definição dos fatos interiores.” Pois, a consciência substancial apenas é evidente como causa de si mesma, a partir da liberdade experimental. Para constatar isso basta que o indivíduo se reconheça realizando sua própria vontade, optando por algo ou pelo o seu contrário sem que nenhuma causa externa que o obrigue a uma escolha determinada[79]. Assim o eu que se reconhece agindo e assim constata sua própria existência, apenas o faz por que é livre, sabe que age, pois age por si mesmo, de outro modo sua ação seria apenas uma determinação imanente e a constatação de si como consciência privada, como tendo uma identidade própria seria impossível.
Nota 79: Glosas heterodoxas, II, 17: “A liberdade empírica é um fato de consciência; para reconhecê-lo não há mister de tomar o partido de um espiritualismo fantástico e impossível. Que o homem pode o que quer é uma verdade experimental; e tanto basta para traçar a linha de separação entre duas ordens de fenômenos, que pertencem a um mesmo tronco, mas não se reduzem a um só ramo”. Disponível em: http://textosdefilosofiabrasileira.blogspot.com.br/2012/07/glosas-heterodoxas-um-dos-motes-do-dia_26.html. Consulta: 20/01/2016.
Ele então entende a liberdade a partir de dois graus distintos: o primeiro é o da liberdade experimental, que é auto evidenciada, consiste no fato do indivíduo poder agir de um modo ou de modo contrário por si mesmo, independente de qualquer causa estranha, sendo fato comprovado através da própria experiência de si mesmo. O segundo é o grau moral da liberdade, que consiste no compromisso de agir conforme suas motivações para o bem comum.
A pessoa tolhida do grau mínimo de liberdade é rebaixada da sua condição humana, está incapacitada de se desenvolver como ser humano e condenada a viver submetida a causas externas. O valor da vida humana em princípio é determinado pela capacidade natural e própria que o ser humano tem de autodetermina-se, por ser a liberdade inseparável da própria constatação da consciência de si como causa, ou mesmo neste caso da consciência de si como ser humano. O valor da vida não é um valor quantitativo ou qualitativo, uma vez que a liberdade não é uma simples qualidade atribuída, bem como não existem critérios capazes de lhe atribuir um preço, trata-se de um valor intangível, uma vez que as propriedades da consciência compõe uma categoria de dados absolutamente diferentes das categorias encontradas no mundo externo, conforme já argumentado. Essa condição própria do ser humano o coloca em um lugar de destaque em meio a toda natureza, o ser humano tem seu valor em si mesmo.
Porém, o fato da liberdade empírica ser objeto de constatação imediata, não esclarece, por exemplo, se o que o humano quer é resultado necessário de sua própria organização ou se é resultado de uma organização mecânica que existe nele mesmo, no caso, de suas motivações serem influenciadas e assim determinadas por causas externas[80]. Erroneamente os espiritualistas entendiam que os motivos são causas mecânicas que sucedem os efeitos, bem como ocorre no mundo físico, certos de que todo esforço, ação, volição são precedidas por motivos[81].
Nota 80: Glosas heterodoxas, II, 17: “Se, porém, o que ele quer é sempre o resultado necessário da sua organização, é um ponto este que, sendo admitido, como aliás o admito, não traz todavia luz alguma para a solução do problema; porquanto, nem destrói o fato da liberdade empírica, objeto de observação imediata, nem deixa esclarecido que a dependência, em que o homem se acha, da sua organização seja realmente de natureza mecânica”. Disponível em: http://textosdefilosofiabrasileira.blogspot.com.br/2012/07/glosas-heterodoxas-um-dos-motes-do-dia_26.html. Consulta: 20/01/2016.
Nota 81: Glosas heterodoxas, II, 20: “E não é exato que a todo e qualquer esforço consciente, a toda volição e ação, precedem certos motivos? Ou há um esforço imotivado, puramente espontâneo, que existe de si mesmo e por si mesmo?” Disponível em: http://textosdefilosofiabrasileira.blogspot.com.br/2012/07/glosas-heterodoxas-um-dos-motes-do-dia_26.html. Consulta: 20/01/2016.
Essa ideia que Tobias concebe como lei da motivação, fez com que alguns teóricos sugerissem que a liberdade só seria possível caso não fosse determinada por nenhum motivo. Posição que ele recusa radicalmente, uma vez que se a liberdade é considerada um capricho irracional, e o ato livre é praticado sem motivo, temos um mundo em que toda ordem só é possível se considerada a existência de uma causa eficiente única, associando assim a ideia de liberdade à confusão, desarmonia e desordem, constando facilmente que a vontade não é livre. Com isso, se justificava que a liberdade era antítese da ordem social. Tobias chama a atenção para o fato de que os atos imotivados devem ser associados à desordem mental, ao mau funcionamento da razão, ou mesmo aos casos que por ira ou qualquer outra emoção alguém perde a razão e age instintivamente, de toda forma, a ação imotivada é uma exceção no comportamento humano[82].
Nota 82: Glosas heterodoxas, II, 25: “Mas esses atos são justamente aqueles que os psiquiatras designam como característicos de qualquer perturbação mental”. Disponível em: http://textosdefilosofiabrasileira.blogspot.com.br/2012/07/glosas-heterodoxas-um-dos-motes-do-dia_26.html. Consulta: 20/01/2016.
Na filosofia de Tobias a motivação é necessária para o uso normal da liberdade. A ideia de que a liberdade é contrária à motivação da vontade, nasce da compreensão de que a ação se distingui da vontade, ainda é a lógica do dualismo, que entende que a realidade é distinta da razão. Mas, Tobias concebe que agir de maneira motivada, significa agir racionalmente, obedecendo a si mesmo. Quando por meio da razão o indivíduo pondera os motivos que o solicitam a agir, delibera sobre eles e dessa forma age de maneira programada, não é uma causa estranha que age, mas o próprio intelecto que opera de maneira independente, não havendo maior prova da existência mesma da liberdade.
O pensamento de Tobias busca conciliar a ideia de liberdade com a ordem social, contrariando a teoria hobbesiana e maquiavélica de que a liberdade é fonte de desordem social. Seu pensamento também contraria os defensores do determinismo, que buscavam observar e categorizar qualquer sinal de regularidade dos atos humanos em leis gerais, com o objetivo de justificar uma ordem transcendente que harmoniza as relações:
Com efeito, se a liberdade é alguma coisa, ela consiste na capacidade que tem o homem de realizar um plano por ele mesmo traçado, de atingir um alvo, que ele mesmo se propõe. Eu não sei, nem cabe aqui indagar, se o conceito da finalidade deve ou não ser inscrito na tábua das categorias, segundo a doutrina de Kant; mas esse conceito, que nada significa no mundo físico, tem toda significação no mundo psicológico. A causalidade da natureza e a causalidade da vontade não têm o mesmo caráter. Assim, ao passo que as causas naturais se traduzem num por que, a causa voluntária se exprime num para quê. A ideia deste fim aparece como motivo, e os motivos, já nós vimos, não excluem a liberdade. (BARRETO, Glosas heterodoxas, IV, 58)
Aqui novamente Tobias se dedica a reforçar o caráter distinto das propriedades da consciência em relação às propriedades do corpo, a causalidade da vontade é finalista, enquanto a causalidade natural é eficiente, e neste campo uma é contraria a outra, assim o exercício da liberdade no meio da natureza é como “adquirir o hábito de nadar contra as correntes”. Na natureza pende sempre de alguma forma ordenada por uma razão estranha, ao mesmo tempo em que a vida do ser humano consiste em se libertar desse pendor, buscando determinar-se por seus próprios meios.
A liberdade por si mesma, não faz com que os seres humanos (desconsiderando os casos de exceção já citados), hajam de forma desordenada, disputando espaço e poder por meio do uso da força, como animais selvagens, mas muito ao contrário, todo desenvolvimento civil necessita ter por pressuposto a liberdade, que de forma nenhuma excluí as leis civis e nem é por elas excluída. O respeito ao princípio fundamental da liberdade, garante ao ser humano a sua dignidade, possibilitando seu desenvolvimento como ele mesmo, por que é fazendo uso da liberdade que ele forma sua própria identidade, de outra maneira serviria apenas a vontade de outros, perdendo suas potencialidades propriamente humanas.
Assim ele responde a um dilema comum na modernidade que era a dificuldade de conciliação entre e ideia de liberdade e as leis civis como forma de manutenção da ordem social, considerando o caráter negativo da lei como limite para vontade livre. Para ele sempre que a lei representar os desejos populares de sua geração, articulando formas de tornar a sociedade harmônica, pacífica e livre, as leis não serão nunca contrárias à liberdade. Uma vez que toda vontade livremente gerada tem por causa um motivo, construído no intelecto a partir de julgamentos e reflexões internas, o indivíduo tem o dever de agir sempre para o bem da sociedade, considerando o princípio básico da manutenção da liberdade, como primeiro valor fundamental a ser defendido.
Claramente esta compreensão de Tobias é uma recepção do pensamento kantiano, ao conceber a dignidade humana em primeira análise, como uma condição natural fundada na possibilidade da autodeterminação como característica fundamental do ser humano, o que o define como um fim em si mesmo. A principal diferença talvez seja a de que Kant defende a dignidade humana tendo por base a razão pura, enquanto Tobias considera o ser humano a partir de uma concepção holística, incluindo as influências da cultura, que determinam em alguma mediada à ideia que o indivíduo tem de si mesmo. Esta condição própria da liberdade tão necessária ao desenvolvimento humano é, portanto, intrínseca e inalienável. Porém a pura constatação formal deste fato da consciência, não foi o suficiente para defender a dignidade humana como direito.
Assim, se o primeiro fato da consciência humana é o eu, este, apenas pode falar algo sobre si mesmo com precisão, através da identidade que forma na experiência com a cultura na qual está envolvido e é instruído, pois é na cultura que se formam todas as características pessoais e é a partir dos valores construídos nela que o indivíduo pode determinar a si mesmo.
3.3 A CULTURA COMO ANTÍTESE DA NATUREZA
Repetindo Victor Cousin, Magalhães defendeu que a condição seguinte ao estado de natureza do ser humano é a criação do culto, para compreender a religião natural e guardá-la, assim como se cria a arte para dar forma a beleza natural e conservá-la. Essa defesa é fundamentada em sua explicação de que, como criatura de Deus, o indivíduo moral segue a sua natureza e para conservá-la se dedica ao culto religioso, como maneira de sistematizar e apreciar com regularidade as verdades constatadas a partir da natureza, como meio de estar sempre atualizado acerca dos princípios que o regulam. A natureza aqui é considerada como uma mecânica regular que age em favor do todo através de determinadas leis gerais, que pela experiência da necessidade determina as ações humanas para que se conformem a justiça de Deus. A ação moral seria então, a perfeita adequação da vontade humana à vontade de Deus e suas disposições divinas, cumprindo com seus deveres sem requerer benefícios próprios.
Já Tobias Barreto, refuta essa defesa, argumentando que “os limites da moral (…) são sempre posteriores a um estado de ilimitação e irregularidade, que no todo, ou em parte, é o primitivo estado natural. Logo, seguir a natureza, em vez de ser o fundamento da moral, pelo contrário é a fonte última de toda imoralidade”[83]. Como exemplo prático de sua defesa, ele faz a seguinte observação:
Se alguém hoje ainda ousa repetir com Aristóteles que há homens nascidos para escravos, não vejo motivo de estranheza. Sim, é natural a existência da escravidão; há até espécies de formigas, como a polyerga rubescens, que são escravocratas; porém é cultural que a escravidão não exista. [84]
Nota 83: Idem, IV, 75. Disponível em: http://textosdefilosofiabrasileira.blogspot.com.br/2012/07/glosas-heterodoxas-um-dos-motes-do-dia_26.html. Consulta: 21/01/2016.
Nota 84: Idem, IV, 68.
Ele assente que na natureza existe certa regularidade, como por exemplo, é fato, que uma pessoa fisicamente mais forte leve vantagem sobre uma pessoa mais fraca, a-submetendo conforme sua vontade pelo corpo, assim como no caso dos estudos modernos com formigas da espécie Pheidole Westwood, que também pode nos servir de exemplo, pois se dividem em castas distintas, operários e soltados, o que determina essa divisão é a pura natureza, que regula os processos eletroquímicos e genéticos que operam como um sistema de forças agindo para manutenção do equilíbrio natural, determinando as funções sociais de cada formiga em seu coletivo. No caso do ser humano, pelo aspecto da razão, reconhecemos que todos têm de igual forma as propriedades características da humanidade em geral, que os diferenciam dos demais animais, como a capacidade de autodeterminação, por exemplo. Negá-las em alguma medida ou em algum momento é o mesmo que destituir as pessoas da condição de seres humanos, rebaixando-as ao seu nível mais básico de existência, que é o nível da natureza biológica e assim da determinação mecânica, em que as ações são determinas por uma forma básica de organização, instintiva e animalesca. Nesse caso, a experiência da necessidade pelo corpo é absolutamente negativa do ponto de vista moral, por que enfim, o que a natureza faz é colocar uns contra os outros em uma luta constante pela sobrevivência, o que configura um estado irracional da existência. A natureza para Tobias não serve de parâmetro para uma reflexão confiável sobre o desenvolvimento dos princípios morais, muito ao contrário, ele a considera como fonte última da imoralidade. Esta é a argumentação de Tobias, contra o cerne da doutrina moral dos espiritualistas, que consiste na conciliação da liberdade como autodeterminação e da vontade divina como presciência dos fatos.
A sua crítica ao determinismo moderado de Magalhães é a primeira parte de um amplo pensamento sobre a cultura. Os limites da ação humana são construídos com base nos valores da cultura e repassados a todos como regras morais, uma vez que o humano não se reduz a pura sensibilidade, cumprindo apenas com que lhe é determinado por natureza como já indicamos. Cabe ao ser humana criar suas próprias leis, conforme os princípios construídos na cultura. Enquanto para Magalhães existem dois tipos de vontade, que se aplicavam aos dois grupos distintos da sociedade brasileira, uma vontade natural que é universal e guia a todos com justiça, como no caso do negro escravizado, e a vontade livre que corresponde ao sujeito que age de maneira justa por si mesmo, se conformando a vontade natural, como no caso dos cidadãos livres.
No pensamento de Tobias, a natureza é entendida como causa segundo uma mecânica imanente à natureza, distintamente do intelecto que é causa de si mesmo, considerando a sua capacidade de escolher conforme sua própria vontade. Considerando isso a cultura contrariamente a natureza é o ambiente de formação do indivíduo, ao mesmo tempo em que é também formada pelo indivíduo que age sobre ela numa constante troca de valores, interpretações, conhecimentos... Etc. Pensando assim, se existe uma sociedade de homens livres e outra de homens não livres, e mesmo se o indivíduo escravizado aparenta ser inferior ao senhor nos mais diversos aspectos da vida civilizada, deve-se não por outra razão, se não ao do acúmulo histórico de miséria. Tobias concebe que este é o pior dos problemas brasileiros, o acúmulo de miséria da maior parte do povo, que leva a falta de integração e a consequente falta de mobilização contra as opressões vividas.
O fato de um indivíduo encontrar-se subjugado à vontade de outro durante toda sua vida, ou mesmo durante a maior parte de sua vida, faz com que ele não entenda a si mesmo a partir de sua dignidade própria, uma vez que o valor da sua vida é quando muito o preço, pago por seu dono. Aqui não se salva nem mesmo, a ideia jesuíta, de que era pelo corpo que o indivíduo padecia da escravidão, supondo que seu espírito permaneceria livre. Ao que Tobias se contrapõe argumentando, que uma vez a pessoa submetida pelo corpo, não existe forma de sua consciência permanecer livre, pois o sujeito passa a entender a si mesmo dentro de uma lógica de servidão e inferioridade, não consegue pensar por si mesmo fora dos grilhões obediência. Assim, ele sugere pioneiramente a necessidade de se pesquisar os danos psicológicos causados pela violência contínua, nesse caso a violência não tem efeitos apenas físicos, como as marcas deixadas pelos maus tratos em formas de cicatrizes, mas também consequências incomensuráveis para o espírito, como a perda da autoestima e o entendimento de si mesmo como incapaz e submisso por natureza. Isso no âmbito da consciência privada, mas no âmbito da cultura, criasse os estigmas de inferioridade, como a ideia de que o negro é intelectualmente inferior, esteticamente feio, incapaz de pensar por si... Etc. Conceitos que persistem de alguma forma ainda hoje na sociedade brasileira.
A cultura, assim explicada é necessariamente antítese da natureza, enquanto a natureza é regular e evolui através de determinadas leis ou mesmo de forma indeterminada, como podemos citar as catástrofes inesperadas, mas que compõe uma dinâmica própria e prevista de destruição e construção, a cultural ao contrário está em constante mudança, avançando imprevisivelmente conforme a interferência dos intelectos, no meio social na construção propriamente humana das relações e estruturas sociais, fundadas no desenvolvimento das relações por meio da atividade intelectual, o que faz com que o caminho do desenvolvimento moral positivo seja o afastamento cada vez maior das determinações da natureza, para assumir os valores e modos construídos na cultura. Assim, se é natural que haja a escravidão, cada um tem o dever de transformar essa realidade natural através da construção coletiva da cultura, buscando sua abolição de todo meio social, trata-se do seu compromisso com toda a espécie humana da qual faz parte.
3.4 A CULTURA COMO FATOR DA DIGNIDADE HUMANA
Tobias olhou a sua volta e constou o tortuoso ambiente social brasileiro do século XIX, em que seres humanos eram privados da liberdade e submetidos a trabalhos forçados, perdendo suas características próprias de seres humanos, usados unicamente como ferramentas de trabalho braçal. E então concebe que o simples reconhecimento teórico de um valor da vida humana fundado na consciência de si como causa, não era suficiente para alterar a realidade dos valores morais no Brasil. Era preciso fazer uma discussão ética do valor da vida humana, construindo uma ideia de dignidade que abarcasse a sociedade como meio de proteção do valor da vida humana em si mesmo.
Tobias propõe um pensamento que extrapola o formalismo do imperativo categórico. Segundo ele era preciso pensar a moral, como regras próprias de ação prática do intelecto, mas considerando o seu desenvolvimento na cultura, que é relativo aos contextos e valores. Enquanto para Kant a moral se orienta por imperativos objetivos e universais, para Tobias os valores morais transcendem as puras concepções do intelecto, pois são construídos coletivamente a partir das interferências dos espíritos na cultura e da recepção particular que cada um tem a respeito do que é compartilhado no meio, além dos problemas particulares que cada geração encontra e tem que apresentar soluções diversas, muitas das quais seriam altamente condenáveis pela geração anterior. Assim, o dever moral não é obtido por uma regra universal intuída do próprio intelecto, mas ao contrário é uma representação das vontades e necessidades individuais e coletivas empregadas e acumuladas em forma de conhecimento, regras, princípios, exemplos... Etc. Enfim, conjuntos de ideias gerais que são repassadas de geração em geração instruindo os indivíduos e formando seus valores. Porém, não de maneira estática e regular como o andar da natureza, o processo de construção da cultura é contínuo e mutável.
No âmbito da razão pura kantiana a dignidade humana é fundamentada nas ideias de igualdade e liberdade, entendidas assim como fatos internos do intelecto, justificativa pela qual a maior parte das legislações ocidentais ainda consideram a liberdade e a igualdade como princípios de dignidade. A igualdade de que tratamos aqui, consiste na consideração de que, assim como eu reconheço a mim como causa, entendo que todos os meus semelhantes tem a mesma capacidade, com isso devo agir para com eles de tal forma, como se estivesse agindo para comigo mesmo, reconhecendo os meus semelhantes como iguais, a partir de um conceito geral de humanidade. De igual modo a liberdade de que Kant fala, consiste no que Tobias interpretou como liberdade experimental, alicerçada na evidência de que o ser humano delibera por si mesmo, independente de qualquer causa ou motivação externa como já referimos. Citando por exemplo, a Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948, como inspiração para elaboração da maior parte das constituições e tratados internacionais das nações ocidentais, podemos considerar que após mais de dois séculos da morte de Kant, a Organização das Nações Unidas-ONU consagrou sua teoria como sendo a principal referência conceitual sobre a dignidade humana no mundo ocidental:
Todos os homens nascem livres e iguais em dignidade e direitos. São dotados de razão e consciência e devem agir em relação uns aos outros com espírito de fraternidade.
Podemos considerar então, que ainda na atualidade o conceito preponderante sobre de dignidade humana inclui as ideias de liberdade, igualdade e paz. No nível da consciência como propôs Kant. Tobias aceita essa argumentação, porém sendo coerente com sua a linha de argumentação, ele sugere que, se as propriedades dos dados internos da consciência e assim podemos considerar a igualdade e a liberdade, uma vez que não são conhecimentos adquiridos a partir da experiência externa, mas de uma intuição própria, da reflexão sobre si mesmo, não podem ser entendidas em suas finalidades práticas da mesma forma que as concebemos como fato interno da consciência. O fato de que todos os seres humanos têm em igual medida a capacidade de determinar a si, não faz com que todos necessariamente sejam ou tenham que ser iguais socialmente ou em suas disposições e capacidades. Assim nos instrui Tobias:
Mas antes de tudo, que a liberdade e a igualdade são contraditórias e repelem-se mutuamente não milita dúvida. A liberdade é um direito, que tende a traduzir-se no fato, um princípio de vida, uma condição de progresso e desenvolvimento; a igualdade, porém, não é um fato, nem um direito, nem um princípio, nem uma condição; é, quando muito, um postulado da razão, ou, antes, do sentimento. A liberdade é alguma coisa, de que o homem pode dizer: eu sou!...; A igualdade alguma coisa, de que ele somente diz: quem me dera ser!... A liberdade entregue a si mesma, à sua própria ação, produz naturalmente a desigualdade, da mesma forma que a igualdade, tomada como princípio prático, naturalmente produz a escravidão. A liberdade é aquele estado no qual o homem pode empregar tanto as suas próprias como as forças da natureza ambiente, nos limites da possibilidade, para atingir um alvo, que ele mesmo escolhe. Onde, pois, o indivíduo é perturbado no uso de suas forças, e a respeito das ações que não se opõem à liberdade dos outros, nem às necessidades sociais, é sujeito a uma tutela, aí não existe liberdade, nem civil, nem política, nem de outra qualquer espécie. A igualdade é aquele estado da vida pública no qual não se confere ao indivíduo predicado algum particular, como não se lhe confere particular encargo. Igual independência de todos, ou igual sujeição de todos. O mais alto grau imaginável de igualdade — o comunismo —, porque ele pressupõe a opressão de todas as inclinações naturais, é também o mais alto grau da servidão. A realização da liberdade satisfaz ao mais nobre impulso do coração e da consciência humana; a realização da igualdade só pode satisfazer ao mais baixo dos sentimentos: a inveja. Que uma e outra não se harmonizam, que são exclusivas e repugnantes entre si, prova-o de sobra a revolução francesa, que, tendo começado em nome da liberdade, degenerou no fanatismo da igualdade, e reduziu-se ao absurdo nas mãos de um déspota. O povo francês assemelhou-se então a uma cidade que se submerge, só ficando de pé uma torre enorme, no meio do lago imenso: a figura de Napoleão! Estava assim, da melhor forma, o ideal de Mirabeau: la monarchie sur la surface égale. Os indivíduos, ou os povos, que esquecem a liberdade por amor da igualdade, são semelhantes ao cão da fábula, que larga o pedaço de carne que tem na boca pela sombra que vê na água do rio.” (BARRETO, Um discurso em mangas de camisa, 11; disponível em: http://textosdefilosofiabrasileira.blogspot.com/2014/07/um-discurso-em-mangas-de-camisa.html)
Portanto, no âmbito da cultura, fora da constatação interna de si mesmo, a igualdade não sustenta a mesma evidência, pois a partir do momento que cada um é deixado para viver livremente, agindo mesmo conforme sua própria vontade tem em curso o desenvolvimento de uma sociedade diversa, múltipla em seus amplos aspectos e isso não é algo negativo, nem fonte de caos ou desordem. Nesse sentido o que ainda resta da noção de igualdade é o seu aspecto interno, ou seja, a constatação intrínseca de que cada ser humano possui a real capacidade de autodeterminasse que deve ser respeitada como valor absoluto, porém, tentar exportar a igualdade como evidência tal como a entendemos, como um princípio da consciência, para os âmbitos sociais, políticos ou éticos, por exemplo, faz com que o princípio fundamental da liberdade desapareça. O entendimento de que todos são essencialmente iguais e assim devem viver de maneira igual, se desenvolver de maneira igual, acessar bens e serviços de maneira igual... Etc. Representa um risco para a dignidade humana entendida a partir da autodeterminação:
Debemur morti nos nostraque é um bonito princípio este da igualdade perante a morte, porém ainda mais estéril que o axioma democrático da igualdade perante a lei, e como tal só tem um sentido no pórtico dos cemitérios. Fora daí, dentro das raias da vida, no vasto laboratório das ideias e das ações, a dupla categoria de grandes e pequenos homens é a expressão de um fato que nenhum sofisma poderá jamais destruir. [85]
Nota 85: Cf. Tobias Barreto, Glosas heterodoxas, I, 10.
A desigualdade que se experimenta durante a vida é resultado da ação da consciência livre do ser humano na cultura, de outro modo seria, apenas se cada um negasse a sua própria dignidade em função de uma igualdade ideal, abrindo mão de si mesmo e da sua humanidade.
O que se seguiu a libertação dos escravos no Brasil, ilustra bem o que Tobias Barreto denuncia como sofisma democrático da igualdade. No ano de 1888 teve fim a escravidão no Brasil, e a partir dai os ex-escravos formalmente eram considerados iguais perante a lei, no entanto, a lei de fato se aplicava a eles de maneira igual? A lei se aplica aos descendentes das vítimas de 400 anos de escravidão no Brasil, da mesma forma que se aplica aos descendentes dos colonos ou dos senhores? No âmbito do direito o que é esta igualdade perante a lei? Rui Barbosa apresenta uma compreensão sobre essas questões, que expressão bem o que Tobias Barreto defendeu um tempo antes:
A regra da igualdade não consiste senão em quinhoar desigualmente aos desiguais, na medida em que se desigualam. Nesta desigualdade social, proporcionada à desigualdade natural, é que se acha a verdadeira lei da igualdade... Tratar com desigualdade a iguais, ou a desiguais com igualdade, seria desigualdade flagrante, e não igualdade real. (BARBOSA, 1999, p. 26)
A igualdade em seu sentido estrito de isonomia total, como princípio desenvolvido na cultura, representa um imediato risco à dignidade humana como a entendemos. O que fica claro pelo próprio exemplo do escravo recém-liberto, uma vez que o puro reconhecimento de que ele é igual perante a lei e, portanto, dispõem de todos os direitos dos antigos senhores, não faz com que ele passe a entender a si mesmo imediatamente como igual e livre, da mesma forma que não faz com que imediatamente ele tenha condições iguais de desenvolvimento, não apaga os estigmas sociais de inferioridade e enfim faça o que fizer ele e seus descendentes estarão em uma desvantagem de 400 anos em relação aos antigos senhores. Como bem entendeu Rui Barbosa, para a plena afirmação da dignidade humana como direito seria necessário que o direito, revê-se o conceito de igualdade perante a lei e passasse a considerar os desiguais na medida de sua desigualdade, buscando assim entender não apenas a condições gerais, mas as condições relativas aos contextos e aos grupos sociais, avaliando suas necessidades a partir do que lhes impede de ter um desenvolvimento digno.
Ainda usando o exemplo do escravo recém-liberto, entendemos que ao invés do simples reconhecimento de sua igualdade perante a lei, deveria ter havido um plano de resgate da autoestima, da consciência livre e da afirmação positiva da população negra no Brasil, como forma de restituir a dignidade roubada dessas pessoas.
Ao se dedicar à investigação dessas distinções sociais e suas consequências, Tobias buscou entender qual a fonte do mau moral. Por que, para ele já estava claro que a dignidade humana em seu caráter formal é revogável pelas convenções sociais, para comprovar esta afirmação, basta citarmos o dilema gerado pela Constituição de 1824, ao desconsiderar a condição serviu do escravo, ao mesmo tempo em que reconheceu a existência de um valor da vida em si e a liberdade como direito intrínseco e inalienável, a escravidão, portanto, continuou legalmente instituída. Este formalismo denunciado por Tobias fica ainda mais evidente na resolução apresentada por Magalhães, que reconhece a escravidão como um mal social que atenta contra as aspirações próprias do espírito, no entanto, encontra subterfúgios para justificar a prática da escravidão no contexto brasileiro na construção de seu pensamento moral. Em si mesmas todas as qualidades que caracterizam os humanos podem ser revogadas através do uso da força física, mas não é moral que tal condição seja aceita pela sociedade, pois atenta contra o grau mínimo da liberdade. Com isso, entendemos que para a garantia do valor da vida humana do ponto de vista social, não basta a formulação de um conceito universalmente válido, é preciso entender o conceito de forma relativa aos contextos da cultura, pois é evidente que existiam seres humanos vivendo em condições análogas a dos animais de trabalho, rebaixados de sua condição essencial, completamente privados de sua liberdade, e que o puro reconhecimento da liberdade e da igualdade perante a lei como direito, não foram suficientes para fazer a sociedade brasileira avançar positivamente na garantia da dignidade.
Portanto, para definir de maneira satisfatória o valor da vida, é preciso reconhecer que não é suficiente analisá-lo a partir de uma ideia geral do ser humano alicerçada no plano transcendental, ainda que o-fazendo consigamos definir com clareza e universalidade suas faculdades próprias, ou pela pura evidência da sua essência particular, mas é necessário também reconhecer as múltiplas características que o determinam em suas relações sociais, como o acumulo de valores e conhecimentos que a sociedade instruí aos seus diferentes membros de forma diferente:
Como a mais importante forma de eliminação consciente das anomalias da vida social, que é a verdadeira vida do homem, podemos ainda falar, e eu já tenho por vezes falado, de uma seleção jurídica, a que se pode adicionar a seleção religiosa, moral, intelectual e estética, todas as quais constituem um processo geral de depuração, o grande processo da cultura humana. E, destarte, a sociedade, que é o domínio de tais seleções, pode bem ser definida: um sistema de forças que lutam contra a própria luta pela vida. (BARRETO, Glosas heterodoxas, IV, 62)
A desordem social decorre de anomalias, heranças da natureza selvagem do ser humano, a qual a sociedade a partir das suas instituições e postulados, tenta se desligar. Assim, por exemplo, ao reconhecer a lei do mais forte, que é uma lei da natureza, como sendo uma lei injusta, o ser humano busca novas bases para organizar leis mais justas capazes de corrigir a equivocada lei da natureza. Esse processo de aperfeiçoamento da sociedade é contínuo.
Com isso, Tobias entende que o caminho para o reconhecimento legal da dignidade humana é a ação em favor da mudança dos valores da sociedade através da interferência premeditada na cultura, o que seria o exercício do segundo grau da liberdade, que é o comprometimento moral do uso da liberdade. Tal posição se opõe as proposições do darwinismo social, que defendia a existência de uma regulação social baseada nos princípios da seleção natural, ou seja, relegar os miseráveis a sua própria miséria, deixando morrer de fome os que não conseguissem alimentos por si mesmos, o que Tobias denuncia como um erro. Sendo o ser humano dotado de razão e de dignidade, reconhecendo igualmente o mesmo valor em seu semelhante, como pode deixa-lo a sua própria sorte? Como já explicado antes, a forma de organização da natureza, incluindo a seleção natural não condiz com as disposições racionais propriamente humanas. A natureza é então, a fonte de todo mau e para superar este mau, é necessário que a sociedade assuma o que Tobias chamou de “um sistema de forças combatentes contra o próprio combate pela vida”, assim a cultura tem por objetivo corrigir a natureza.
Na contramão da seleção natural, existe um processo geral da cultura que tende a uma seleção artificial, buscando eliminar da sociedade os modos próprios da natureza, que uma vez categorizados como regulares, refletem irregularidade sociais diversas.[86] Em alguma instância podemos sugerir a inspiração no homem selvagem proposto por Rousseau, pois se analisarmos o progresso histórico da humanidade, deste ponto de vista a evolução humana no percurso histórico desde a vida primitiva a sociedade moderna, verificaremos o quanto o ser humano se afastou daquilo que era por natureza e assumiu modos artificiais com objetivo de melhorar as condições de sua vida.
Nota 86: “Nada, porém, mais desponderado. Ser natural não livra de ser ilógico, falso e inconveniente. As coisas que são naturalmente regulares, isto é, que estão de acordo com as leis da natureza, tornam-se pela mor parte outras tantas irregularidades sociais; e como o processo geral da cultura, inclusive o processo do direito, consiste na eliminação destas últimas, daí o antagonismo entre a seleção artística da sociedade e as leis da seleção natural.” (BARRETO, Glosas heterodoxas, IV, 67)
Se a natureza opera infligindo às pessoas a experiência da necessidade, razão pela qual os indivíduos se opõem uns contra os outros na luta natural pela sobrevivência, a cultura ao contrário deve construir condições favoráveis para harmonizar as disputas naturais e criar mecanismos de organização social capazes de gerar progresso e paz[87].
Nota 87: “Do mesmo modo, é um resultado natural da luta pela vida que haja grandes e pequenos, fortes e fracos, ricos e pobres, em atitude hostil uns aos outros; o trabalho cultural consiste, porém, na harmonização dessas divergências, medindo a todos por uma só bitola”. (BARRETO, Glosas heterodoxas, IV, 70)
A cultura é construída a partir da luta pela afirmação de ideias que são absorvidas pela sociedade, através das disputas de opinião e forças que rivalizam visando afirmar proposições para o avanço social perante determinado ponto de vista, como uma geração faz ao criticar os costumes e modos da outra. No contexto da cultura a dignidade humana é uma conquista e não uma evidência. A dignidade humana como direito, tem um sentido protetivo, buscando estabelecer uma condição mínima para que ninguém seja rebaixado de sua condição humana essencial. Tobias entende o direito como sendo da seguinte maneira:
No imenso mecanismo humano, o direito figura também, por assim dizer, como uma das peças de torcer e ajeitar, em proveito da sociedade, o homem da natureza. Ele é, pois, antes de tudo, uma disciplina social, isto é, uma disciplina que a sociedade se impõe a si mesma, na pessoa de seus membros, como meio de atingir ao fim supremo (e o direito só tem este) da convivência harmônica de todos os associados. (BARRETO, Sobre uma nova intuição do direito; disponível em: http://textosdefilosofiabrasileira.blogspot.com/2009/05/sobre-uma-nova-intuicao-do-direito-1881.html)
O direito de que Tobias trata não é somente o direito aplicado pelo poder judiciário e concebido pelo legislador, o direito para ele tem uma dimensão social mais profunda. Ao reconhecê-lo como o “conjunto das condições existenciais e evolucionais da sociedade, coativamente asseguradas”, ele está falando de uma consciência coletiva que assume determinados princípios e conhecimentos, que são absorvidos pelas gerações, a partir de suas experiências com as culturas onde vivem e de tempos em tempos se renova em um avançar contínuo dos conceitos. É o caso, por exemplo, dos movimentos sociais que historicamente lutam pelo reconhecimento de seus direitos sociais, como no caso dos negros, mulheres, pessoas com deficiência... Etc. O direito é, portanto o conjunto dos valores de uma determinada tradição reconhecidos pela maioria como sendo os mais corretos, assim consecutivamente também reconhecidos pelo poder legalmente instituído como normas ou como políticas[88].
Nota 88: “Tranquilizai-vos pois: se há aqui algum segredo, esse segredo não é para vós; é para aqueles que têm a orelha longa e fina, que no simples ato da livre respiração, que na sístole e diástole do coração do povo percebem sempre um como fluxo e refluxo do mar, que vem engoli-los; é para aqueles, em cuja opinião o menor esforço para sair-se deste sono de abatimento e miséria, é um plano de amotinados, assim como o sangue, que borbulha e jorra impetuoso, pode ser também um revolucionário, na opinião do punhal; é para aqueles, enfim, que tendo boas razões de unirem-se a nós, de estarem conosco, não se dignam, todavia, de aparecer aqui, pelo receio que lhes inspira o contato dos lázaros políticos, quais somos todos nós, os homens do trabalho e não do emprego público, os deserdados da pátria, os excluídos do seu banquete, mas que, a despeito de tudo, guardamos ainda uma esperança no peito e uma seta na aljava!... É para esses, sim, que o exercício de um direito pode tomar as proporções de um fenômeno perigoso, de uma nuvem tenebrosa, que esconde no bojo alguma tempestade. Quanto a nós, porém, não nos incomodemos por isso; e quanto a eles, deixemo-los conjeturarem o que lhes aprouver e prossigamos em nossa marcha.” (BARRETO, Um discurso em mangas de camisa, 4; disponível em: http://textosdefilosofiabrasileira.blogspot.com.br/2014/07/um-discurso-em-mangas-de-camisa.html)
O direito assim pensado é extensivo a todos na sociedade, porém somente será efetivamente assegurado, quando os indivíduos e os grupos sociais tiverem suas necessidades particulares representadas como valores. Ou seja, o desenvolvimento histórico dos valores e conceitos da cultura devem atender as demandas dos mais diversos grupos sociais, buscando o bem estar e a justiça para todos, mas levando em consideração as particularidades de cada movimento, que tem necessidades e reinvindicações muito específicas, como consequência do acumulo de experiências passadas. A cultura é então “a antítese da natureza, no sentido de que ela importa uma mudança do natural, no sentido de fazê-lo belo e bom”[89], se assim é, o direito é a principal ferramenta de ação do cidadão dentro da cultura.
Nota 89: Cf. Tobias Barreto, Sobre uma nova intuição do direito, VI, 144; disponível em: http://textosdefilosofiabrasileira.blogspot.com.br/2009/05/sobre-uma-nova-intuicao-do-direito-1881.html.
Com isso, o segundo grau de dignidade humana que reconhecemos no pensamento de Tobias, é o grau ético, em que o indivíduo constrói seu valor na cultura por meio da afirmação dos seus direitos como garantias para o seu desenvolvimento social saudável. Tobias então afirma a relativização dos valores éticos, que variam conforme avançam as gerações e a defesa dos direitos. Então, apesar dos valores éticos não serem objetivamente determinados por uma única causa e variarem conforme os contextos eles têm por critério primeiro a dignidade humana na forma da autodeterminação, como um valor fundamental e irrevogável, em segundo têm por critério o compromisso com o desenvolvimento social positivo. Já o valor moral da vida humana, depende dos valores que o indivíduo assume para si na sociedade e ao mesmo tempo o compromisso social que o indivíduo assume:
O que mais salta aos olhos, o que mais fere as vistas do observador, o fenômeno mais saliente da vida municipal, que bem se pode chamar o expoente da vida geral do país, é a falta de coesão social, o desagregamento dos indivíduos, alguma coisa que os reduz ao estado de isolamento absoluto, de átomos inorgânicos, quase podia dizer, de poeira impalpável e estéril. Entre nós, o que há de organizado é o Estado, não é a Nação; é o governo, é a administração, por seus altos funcionários na corte, por seus sub-rogados nas províncias, por seus ínfimos caudatários nos municípios; não é o povo, o qual permanece amorfo e dissolvido, sem outro liame entre si a não ser a comunhão da língua, dos maus costumes e do servilismo. [90]
Nota 90: Cf. Tobias Barreto, Um discurso em mangas de camisa, 7; disponível em: http://textosdefilosofiabrasileira.blogspot.com.br/2014/07/um-discurso-em-mangas-de-camisa.html.
A consciência de si como povo, corresponde ao nível moral da dignidade humana. Aquele que busca assumir desenvolver os valores culturais, sendo um ativo na luta por direitos e na mudança positiva do meio social, age em prol de si mesmo e dos demais, confere a sua vida um valor social específico, dessa forma aquele que contribui para o bem da sociedade de maneira significativa, se destaca como exemplo de virtude.
Com base nessa breve introdução ao pensamento de Tobias Barreto, no presente capítulo buscamos esclarecer como o conceito de dignidade humana amadureceu na filosofia brasileira a partir da segunda metade do século XIX, como preâmbulo da universalização dos direitos civis no Brasil, da libertação dos escravos e da proclamação da república, revelando um entendimento sobre dignidade humana ainda hoje relevante para a cultura nacional.
Conclusão
Nosso trabalho consistiu no empenho de discutir o problema acerca da falta de conteúdos mínimos sobre o conceito de dignidade humana na filosofia brasileira. Assim, voltamos à investigação para o século XIX, por entendermos que foi um período sine qua non na história brasileira, quanto ao avanço da ideia de ser humano. Essa singularidade pode ser constatada a partir de fatos históricos, como: a vinda da corte portuguesa para cidade do Rio de Janeiro, a independência do Brasil, a abolição da escravidão e a proclamação da república. Entendemos que cada um desses fatos estão interligados a uma mudança significativa na forma de pensar, que teve início no final do século XVIII com as revoltas armadas e se estendeu durante todo século XIX. Como nos mostra a história da filosofia brasileira, esteve em curso durante o período um deliberado esforço de modernização das ideias e da cultura brasileira, que pretendemos abordar ainda que brevemente neste trabalho.
Assim, como questão inicial, assumimos: o que é isso dignidade humana? Apresentando o problema dentro de referências atuais, principalmente da área jurídica, em que o tema tem ganhado maior destaque. Após toda reflexão apresentada, concluímos que a perspectiva moderna de dignidade humana que se desenvolveu no Brasil, foi legada sobre tudo pelo pensamento oitocentista, do qual destacamos alguns representantes neste estudo. Contudo, os pensadores brasileiros do século XIX, com maior destaque para Tobias Barreto, não ficaram restritos a meros comentários, nem a adaptações de teorias externas; ao contrário, fizeram uso da tradição para lançar uma nova forma de pensar os problemas nacionais.
A dignidade humana foi concebida pela primeira vez como um valor intrínseco à vida humana na Constituição 1824. É o que se depreende do texto do Artigo 179, que afirma a segurança individual como direito inviolável; ou seja, a vida humana é considerada um valor em si mesmo. Porém, apesar dessa moderna concepção que avança em vários sentidos em relação à ideia de essência humana legada pela tradição escolástica, os escravos permaneceram sem nenhum direito, podendo o senhor dispor da sua vida conforme sua vontade de maneira absoluta. Essa discrepância de valores, entre a vida do escravo e a vida do cidadão, gerou um dilema que durou até o final do segundo reinado. Legalmente, a vida humana possuía um valor inviolável; no entanto, na prática se permitiu a escravidão de seres humanos sem nenhuma oposição.
Ao abordar a questão do valor da vida humana, Gonçalves de Magalhães no empenho da modernização, se volta à ideia do ser humano como imagem e semelhança do Criador, e desse modo surge o primeiro nível da dignidade em seu pensamento, que é o de reconhecer em si mesmo as qualidades divinas. Essa consciência faz com que o indivíduo tenha a capacidade de se desenvolver de maneira livre e autônoma. O segundo nível da dignidade é o moral, em que o indivíduo virtuoso, se compromete com o todo, sem auferir benefícios próprios, mas apenas pelo seu compromisso com a justiça universal.
Mas é Tobias Barreto quem nos oferece uma visão contemporânea sobre a dignidade humana, inclusive abordando o tema na área do direito. Tobias concebe a dignidade em dois graus: o primeiro consiste na compreensão de si como causa, considerando que o primeiro fato da consciência é o eu, que é capaz de autodeterminar-se. Essa capacidade propriamente humana de autodeterminação é o que faz dele um fim em si mesmo, como concebe Kant. Influenciado por ele, Tobias, entende que o valor da vida humana é em si intrínseco e inalienável. No entanto, Tobias avança, apontando que o simples reconhecimento formal de um valor da vida humana, não faz com que essa evidência assim constatada seja garantida como direito fundamental.
O segundo grau da dignidade, portanto, é o grau ético, na medida em que o respeito à individualidade de cada, do ponto de vista interno de sua autonomia e autodeterminação, não sobrevive sem o recurso a forças externas que o impeçam de tornar-se indiferente à sua relação com outro, tornando-o assim uma vítima da própria natureza.
Dos dois graus de dignidade humana explorados no texto, o que cabe como resposta à questão inicial, é que a dignidade humana tem um sentido absoluto se considerada como fato interno da consciência, pela evidência da capacidade sui generis de autodeterminação do ser humano. No entanto, como direito, a dignidade humana não pode render-se ao sofisma democrático da igualdade, como supôs Kant, e assim ainda os sistemas jurídicos, buscando postulados universais, normas gerais que se apliquem de maneira isonômica a diferentes contextos, tudo isso com base na compreensão da igualdade entre todos os indivíduos racionais. Tobias, ao contrário, entende que fora do âmbito da consciência a dignidade não tem um valor igual, e para constatar isso basta considerar as realidade das divisões sociais em que os indivíduos ocupam diferentes posições por diferentes razões. No caso da escravidão, e suas consequências psíquicas e sociais, até mesmo o valor intrínseco à vida humana pode em alguma medida ser revogado através da subjugação física, assim, no cotidiano da vida prática, a igualdade em relação ao valor da vida não é uma evidência necessária; quando muito, o que se torna evidente é a contradição entre liberdade e igualdade, uma vez que uma sociedade livre se desenvolve de maneira desigual, sem que isso signifique que é desordenada.
Porém, ainda na atualidade, como tentamos mostrar, os textos legais e o sistema judiciário ocidental, consideram a dignidade humana fundamentada nos princípios de liberdade e igualdade perante a lei. Considerando a dificuldade inerente ao uso da dignidade humana como princípio formal do direito, na atribuição de sentenças ou decisões que envolvem o valor da vida humana, podemos concordar com Tobias de que no âmbito da cultura o conceito é diverso e relativo. A dignidade humana no meio social é conquistada por meio das lutas sociais pela afirmação de direitos sociais, que garantam sempre o exercício da liberdade em primeiro lugar e correspondam às necessidades que cada grupo social traz consigo historicamente.
Assim concluímos que, a dificuldade de se definir conteúdos mínimos para salvaguardar a dignidade humana do estigma de um conceito vazio de significado e incapaz de responder com clareza os problemas contemporâneos, se deve ao fato do conceito ainda ser pensado conforme o método kantiano. Dessa forma, se insiste na tentativa de chegar se a uma definição universal e válida da dignidade humana como um princípio moral, ainda alicerçada na ideia de igualdade, o que só faz algum sentido prático na análise da consciência privada. Com isso, é preciso pensar o valor da vida referente aos diferentes contextos, a lei nunca atingirá a todos da mesma forma, pois cada grupo social, e cada indivíduo em particular, traz consigo um acúmulo histórico de experiências que lhe determinam necessidades muito específicas.
REFERÊNCIAS
ALBUQUERQUE, Wlamyra R. de (2006). Uma história do negro no Brasil. Salvador/Brasília: Centro de Estudos Afro-Orientais & Fundação Cultural Palmares.
ALMADA, L. & CERQUEIRA, L. A alma e o cérebro: as origens do debate acerca da Psicologia científica no Brasil, Instituto de Psicologia UERJ, Rio de Janeiro, v. 10, n. 3 (2010). Disponível em: http://www.e-publicacoes.uerj.br/index.php/revispsi/article/view/8935/6824 Acessado em: 19/01/2016.
BARRETO, Tobias (1926). Vários escritos. Disponível em: https://archive.org/details/TobiasBarretoObrasCompletas06EstudosDeDireitoVol.1/Tobias%20Barreto%20-%20Varios%20Escriptos.
BARRETO, Tobias (1977). Estudos de filosofia. Org., introdução e notas de Paulo Mercadante e Antônio Paim. São Paulo: Grijalbo/MEC.
BARRETO, Tobias (1990a). Estudos de Filosofia. Introdução e notas de Paulo Mercadante e Antônio Paim. Biobibliografia de Luiz Antônio Barreto. Rio de Janeiro: Record/INL.
BARROSO, Luís Roberto (2010). Dignidade da pessoa humana no direito constitucional contemporâneo: natureza jurídica, conteúdos mínimos e critérios de aplicação. Mimeografado. Disponível em: <http://www.luisrobertobarroso.com.br/wp-content/uploads/2010/12/Dignidade_texto-base_11dez2010.pdf>. Acesso: 23/01/2016.
BARBOSA, Rui. Oração aos Moços. Edição popular oganizada por Adriano da Gama Kury. Rio de Janeiro, 5ª edição, Casa de Rui Barbosa, 1999.
BONAVIDES, Paulo (2000). A evolução constitucional do Brasil. Estudos Avançados. São Paulo, v. 14, n. 40, p.165.
CERQUEIRA, L. A. (2001). A modernização como problema filosófico. Impulso. Piracicaba: UNIMEP, p. 125-136.
CERQUEIRA, L. A. (2002). Filosofia brasileira – Ontogênese da consciência de si. Petrópolis: Vozes.
CERQUEIRA, L. A. (2004). Gonçalves de Magalhães como fundador da filosofia brasileira. In: Fatos do espírito humano, de D. J. Gonçalves de Magalhães. Petrópolis: Vozes/Academia Brasileira de Letras, p. 11-43.
CERQUEIRA, L. A. (2011). A ideia de filosofia no Brasil. Revista Filosófica de Coimbra, n. 39 p. 163-192.
CERQUEIRA, L. A. (2011a). “Scientia media e a moderna concepção de liberdade: um estudo de filosofia brasileira”. Síntese – Revista de Filosofia, Belo Horizonte, v. 38, nº 121, pp. 271-288.
CERQUEIRA, L. A. (2011b). O ético e o estético: a ideia de cultura ética como problema. Revista Estudos Filosóficos, nº 7, São João del-Rei, UFSJ, p. 268-281.
CERQUEIRA, L. A. (2013). Liberdade e modernização no Brasil. Educação e Filosofia, Uberlândia, EDUFU, vol. 27, nº 54, p. 597-630.
CERQUEIRA, L. A. (2015). Modernização no Brasil, ou O falseamento do compromisso ético com o modo do ser moderno. Tese para progressão à titularidade na UFRJ (71 páginas).
CONSTANT, B. (2005) Escritos de política. Trad. de Eduardo brandão. Introd. e notas de Célia N. Galvão Quirino. São Paulo: Martins Fontes.
DESCARTES, R. (2002). Princípios da filosofia. Tradução de Guido Antônio de Almeida (org.) et alia. Rio de Janeiro: UFRJ.
DESCARTES, R. (1962). Obra escolhida. Tradução de J. Guinsburg e Bento Prado Júnior. São Paulo: Difusão Europeia do Livro.
FRAGOSO, João Luís (2000). O império escravista e a república dos plantadores. In: LINHARES, M. Y. (org.). História geral do Brasil. Rio de Janeiro: Elsevier.
HOBBES, Th. (1998). Do cidadão. Tradução, apresentação e notas de Renato Janine Ribeiro. São Paulo: Martins Fontes.
JANEIRA, A. L. (1991). “As ciências nas academias portuguesas”. Revista da Sociedade Brasileira de História da Ciência, 5.
KANT, I. (1985). Crítica da razão pura. Trad. de Manuela Pinto dos Santos e Alexandre Fradique Morujão. Introdução e notas de Alexandre Fradique Morujão. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian.
KANT, I. (2007). Fundamentação da metafísica dos costumes. Tradução de Paulo Quintela. Lisboa: Edições 70.
LOCKE, J. (1978). Segundo tratado do governo. Tradução de E. Jacy Monteiro. São Paulo: Abril.
LYNCH, C. E. C (2010). O poder moderador na constituição de 1824 e no anteprojeto Borges de Medeiros de 1933: Um estudo de direito comparado. Brasília:
Declaração Universal dos Direitos Humanos, ONU, 1948.
MAGALHÃES, D. J. Gonçalves de (2001). Discurso sobre o objeto e importância da filosofia. In: Factos do espírito humano, Apêndice. Organização e estudo introdutório por L. A. Cerqueira. Lisboa: INCM.
MAGALHÃES, D. J. Gonçalves de (2004). Fatos do espírito humano. Em Apêndice: Discurso sobre a história da literatura do Brasil; Filosofia da religião. Organização e estudo introdutório por L. A. Cerqueira. Petrópolis: Vozes.
Madrid. Universidad Complutense, 1973, traduzido do espanhol por Marcus Cláudio Acqua Viva. APUD. FERREIRA Filho, Manoel G. et. alli. Liberdades Públicas. São Paulo, Ed. Saraiva, 1978.
MARQUES, A. H. O. (1997). História de Portugal: do Renascimento às revoluções liberais. Lisboa: Presença.
MONTEIRO, Nuno Gonçalo (2005). O 'Ethos' Nobiliárquico no final do Antigo Regime: poder simbólico, império e imaginário social, Revista almanack braziliense, 2, p. 4-20.
OLIVEIRA, Luis da Silva Pereira (1806). Privilégios da nobreza, e fidalguia de Portugal. Lisboa: João Rodrigues Neves. Disponível em: <https://archive.org/details/privilegiosdanob00olivuoft>. Acesso: 20/12/2015.
PIVA, P. J. L & Tamizari, F. (2010) Benjamin Constant e a liberdade rousseauísta. Cadernos de Ética e Filosofia Política (USP), v. 16, p. 188-207.
ROUSSEAU, Jean-Jacques (2001). Discurso sobre a origem da desigualdade entre os homens. Portal Domínio Público. Disponível em: <http://www.dominiopublico.gov.br/download/texto/cv000053.pdf> Acesso: 14/07/2015.
ROUSSEAU, Jean-Jacques (2002). Do contrato social. Portal Domínio Público. Disponível em: <http://www.dominiopublico.gov.br/download/texto/cv00014a.pdf> Acesso: 14/07/2015.
VERDENAL, René (1974). O espiritualismo francês de Maine de Biran a Hamelin. In: CHATELET, F. (org.). História da filosofia - ideias, doutrinas, vol. 6. Rio de Janeiro: Zahar, p. 35-60.
VIEIRA, Antônio. Sermões (2000-2001). Organização de Alcir Pécora (02 vols.). São Paulo: Hedra.
Nenhum comentário:
Postar um comentário