quarta-feira, 6 de junho de 2012

Cartas a Monte Alverne

Gonçalves de Magalhães & Araújo Porto-Alegre

 Edição original de Roberto Lopes. São Paulo: Conselho Estadual de Cultura, 1962.


 Para situar Frei Francisco do Monte Alverne na história da filosofia no Brasil, sobretudo do ponto de vista da recepção de ideias modernas, ainda na primeira década do século XIX, ver também seu Discurso Preliminar, disponível em:





PRIMEIRA CARTA
Meu respeitável Padre Mestre
Paris, 27 de abril, 1832.

Se a primeira que lhe escrevi não foi entregue, esta o será. Eu aqui vou indo nos meus trabalhos, formando uma biblioteca de cópias dos melhores autores de todas as escolas; e munido de alguma coisa mais que possa aprender, pretendo o mais cedo possível abraçá-lo, lançar-me no seio de meus patrícios; e se acaso a ambição, esse abutre que rói as entranhas da sociedade, não tiver lançado por terra os laços que ligam o Brasil.

Nas domingas da quaresma tenho frequentado Notre-Dame para ouvir a prédica. Um ar hipócrita, uma declamação amaneirada, enfim um círculo de ideias místicas, são os caracteres dos pregadores de hoje. Eu quisera encostar-me ao mármore e perguntar-lhe: tu que ouviste os sons de Bossuet e seus contemporâneos, informa-me se eles oravam assim? A consciência, essa mola que a razão move, me respondeu não.

Quando eu saí daí, dizia-se que a Religião tinha caído e que havia missa em francês, etc., etc.. Aqui os templos estão cheios de povo da primeira e terceira classe, e ali se vai receber as mais doces impressões da Religião já pela liturgia, já pelo harmonioso canto dos fiéis, enfim, meu Padre Mestre, é doce ouvir a Igreja. L’abbé Châtel com a sua missa em francês só durou um segundo, e aqui é olhado como um ímpio, e depravado mesmo por aqueles que não são da Igreja, e isso é muito efêmero que acabará com a noite da morte.

Rogo-lhe de me recomendar saudoso ao muito respeitável nosso Reitor. Cheio de respeito tenho a honra de ser
De Vossa Caridade
amigo admirador
Manuel de Araújo Porto-Alegre

P.S. Eu não ouso a tanto de exigir letras da Vossa Caridade, eu só desejo saber se goza saúde, pois é o interesse dos jovens brasileiros.


SEGUNDA CARTA
Ilmo. Revmo. Sr. Padre Mestre Monte Alverne
Paris, 20 de janeiro de 1834.

Nem por me achar aqui, rodeado de tantos monumentos, de tantas coisas raras, de tantos professores, me esqueço um só dia do meu mestre, do meu amigo a quem devo, sem lisonja, uma parte do meu saber, e se não tenho escrito há mais tempo, não por esquecimento o fiz, mas sim por não querer importuná-lo com inúteis linhas. Agora oferece-me feliz momento, e aproveitando-me do bom portador (o Sr. Dr. Araújo), lhe darei sucintas notícias do que tenho visto. Não espere que eu fale da parte física de Paris, quero dizer, sobre os templos góticos da meia-idade, sobre os arcos de triunfo, sobre colunas de bronze e sobre palácios grandíssimos e sobre outras coisas deste gênero que demandariam não cartas, mas livros. Falarei do espírito literário que hoje domina este povo tão amigo do novo.

Os poetas estão aqui empenhados em explorar a mina da meia-idade, fatigados com as ideias antigas, e não podendo quase marchar na estrada de Racine e Corneille e Voltaire, eles calcam todas as leis da unidade tão recomendadas pelos antigos; as novas tragédias não têm um lugar fixo, nem tempo marcado, podem durar um ano e mais; o caráter dessas composições é muitas vezes horrível, pavoroso, feroz, melancólico, frenético e religioso. Os assassínios, os envenenamentos, os incestos são prodigalizados às mãos largas, mas nem por isso deixam de ter pedaços sublimes. Os principais trágicos são De Laragotine, Alexandre Dumas, Victor Hugo. Esses poetas chamam-se românticos; eu tenho visto representar as principais dessas peças. No chamado Teatro Francês só se representam os clássicos, Racine, Corneille, Voltaire, Ducis e Molière aí são aplaudidos com entusiasmo. O primeiro ator é Ligier que, sem ser Talma, me tem feito tremer; há outro, também grande, cuja voz é um trovão sonoro, e melhores são George na tragédia e Mars na comédia, ambas notabilidades vivas.

No dia 15 deste mês, por ser aniversário de Molière, representaram-se algumas de suas comédias e no fim de todos os cômicos com palmas e coroas de louro coroaram o busto do grande homem, que se achava sobre a cena, cerimônia esta que se faz todos os anos.

Aqui só não estuda quem não quer, mas, em abono da verdade, todas as salas, que são largas e espaçosas e feitas em semicírculo, acham-se sempre apinhadas; o grego antigo e moderno, o hebraico, o siríaco, o armênio, o turco, o indostano e quantas línguas vivas há aí vivas e mortas são aqui ensinadas. Há cadeiras só para explicar Dante, Tucídides, Voltaire, Locke etc. etc. etc.. Há cadeiras para todas as ciências e para as divisões e subdivisões de todas as ciências. O Cousin ainda está em viagem, e acaba de publicar um livro sobre o ensino na Alemanha e na Prússia [1], obra esta de bastante utilidade; não sei se já lá chegaria a tradução de Reid por Mr. Jouffroy com notas de Royer-Collard e uma tradução de Dugald Stewart pelo mesmo e assim como a tradução de Kant que, quando as leio, me lembro do Padre Mestre.

Eu estou estudando Direito e sigo um curso de Química do célebre Thénard e outro de Economia Política do sucessor de J. B. Say. Os cursos são desde manhã até a noite e de tal maneira dispostos que se pode seguir a todos porque um começa às 8 e acaba às 9, outro começa às 9 e acaba às 10 horas e são só duas vezes por semana, e outros uma só vez cada um e em todos os dias há mais de cinco em cada Academia.

Aqui chegou um obelisco do Egito, presente que fez Ibraim Paxá à França. No dia de sua chegada, o sábio Saint-Hilaire, que estava num barco sobre o Sena, caiu neste rio; um marinheiro o salvou, e teve por este serviço o hábito da Legião de Honra. Poucos dias depois este mesmo marinheiro morreu afogado neste rio.

Adeus, Padre Mestre. Dê recomendações ao Sr. Reitor, e não se esqueça de mim que serei sempre seu amigo. Aceite lembranças do Sales [2], do Araújo [3] e do seu discípulo Alexandre [4] que já fez seu exame de bacharel em Letras e ficou aprovado. Mande lembranças suas que me serão gratas. Adeus, até um dia.

Do seu discípulo e amigo
Domingos José Gonçalves de Magalhães

P.S. Não repare na letra, que escrevo esta às 2 horas da noite, e em noite de inverno.

Nota 1: A obra a que se refere Magalhães foi publicada em Paris no ano anterior, em um volume: De l'instruction publique dans quelques pays de l'Allemagne, particulièrement en Prusse.

Nota 2: Francisco de Sales Torres Homem, Visconde de Inhomirim (1812-1876). Aparecerá algumas vezes nas cartas simplesmente como "Torres"... 

Nota 3, do Editor atual: Manuel de Araújo Porto-Alegre, discípulo de Debret, que acompanhara o mestre no seu retorno do Rio de Janeiro a Paris, em 1831.

Nota 4, do Editor atual: Ex-aluno de Monte Alverne (também referido como "Pinheiro"), este Alexandre Pinheiro estudava em Paris sob a responsabilidade tutelar de Magalhães. Sobre este ponto, ver L. A. Cerqueira, Gonçalves de Magalhães como Fundador da Filosofia Brasileira, §26: disponível em: http://textosdefilosofiabrasileira.blogspot.com/2009/04/goncalves-de-magalhaes-como-fundador-da.html.


TERCEIRA CARTA
Meu Padre Mestre.
Paris, 25 de janeiro de 1834.

Foi cheio de um vivo prazer que recebi as suas estimáveis letras e este prazer foi tão mágico por ser acompanhado pelo meu amigo Domingos, mas veja o que são azares. No mesmo dia em que Magalhães chega, devia eu partir para o norte da França na intenção de restabelecer a minha saúde; esta contrariedade devia afligir-me, e assim foi; mas na viagem achei um novo encanto qual o da esperança; à proporção que me afastava de Paris cresciam as saudades, e à proporção que me aproximava, aumentava o prazer de ver um amigo que tanto estimo e de quem conheço o coração nobre e ardente.

A sua cartinha foi saboreada nas margens do Meuse, ali com a saudade no peito e a imaginação na pátria, pareceu-me ouvi-lo em S. Francisco de Paula a quebrar a moeda de oiro, e o sangue a correr em flocos, ali, enfim, tudo vi, tudo chorei, e tudo saboreei; eu só vivo da reminiscência, e se essa faculdade faltasse, era o ente mais desgraçado da terra.

Rogo-lhe de me recomendar ao nosso estimável Reitor, ao Padre Mestre Frei Henrique e aceite o coração de um artista que se confessa ser
de Vossa Caridade
discípulo respeitoso e grato amigo
Araújo Porto-Alegre

P.S. O seu retrato sai na grande obra de Mr. Debret junto com as mais notabilidades da pátria, eu creio que adicionado a um monumento estará mais próximo ao lugar distinto que lhe compete.


QUARTA CARTA
Ilmo. e Revmo. Sr. Padre Mestre Monte Alverne.
Paris, 8 de março de 1834.

Não há muito que lhe escrevi, e de novo o faço para ver se deste modo posso ao menos desparecer minhas saudades, já que dessa terra querida um só amigo não se lembra de me enviar alguns regozijos numa folha de papel. Agora que traço estas linhas, acho-me em companhia do nosso amigo Araújo e acabamos de falar a respeito de V. Revma. E devo participar-lhe: Mr. Debret está publicando uma obra sobre o Brasil na qual se dará conta de todas as coisas notáveis, não só dos estabelecimentos, ciências e artes, como também uma coleção de retratos dos homens célebres em todos os ramos [1]; o Araújo deve fornecer estes retratos, e como os seus discípulos não se esquecem do seu mestre e amigo, aí teremos o gosto de vê-lo retratado dando assim honra à Pátria, e o que falar aos invejosos. Tenho pois que pedir-lhe, em nome da Pátria e dos amigos, que V. Revma. olhe para o fim que tiveram os sermões do nosso Padre Mestre Sampaio, e que não basta para a posteridade um retrato, um nome; é preciso mais; é preciso que o Padre Mestre pula os seus sermões, que fizeram as delícias daqueles que o ouviram, e trate de os publicar. O que é um, ou dois contos de réis, quando se trata da glória e posteridade? Não serão eles comprados? Que importa; há muitas bibliotecas no Brasil; que se depositem aí, e eles chegarão um dia à posteridade.

Passando agora à Filosofia, lhe direi que Mr. Jouffroy está publicando suas lições de Direito Natural; eu tenho assistido a elas e posso assegurar-lhe que são muito filosóficas; ele desenvolveu da maneira mais clara e precisa o sistema de Espinosa, assim como o ceticismo e o misticismo; ele se mostra digno sucessor de Royer-Collard e ótimo discípulo de Cousin. Se estas lições aí aparecerem, não as deixe de comprar. Oh, a propósito! O Edme Ponelle é o maior charlatão que tenho visto; aqui ele é mestre-escola; falo dele para que V. Revma. o desterre de sua estante, dê venda, ou queime e nunca fale nele. Se V. Revma. quiser, não se descuide em compor o seu tratado de lógica e se tivesse (...) na matéria, diria que V. Revma. (...) Perdoe-me estes borrões, que eu não tenho tempo de copiar esta carta, o portador não admite espera. Aceite lembranças do nosso amigo Sales e do seu discípulo Pinheiro que aqui estuda bastante e trata de ser homem.

Seu verdadeiro amigo e obrigado discípulo
Domingos José Gonçalves de Magalhães

N.B. Desculpe toda a ruindade desta escrita. Não creia, meu Padre Mestre, que me esqueça de Vossa Caridade e aceite sempre o coração deste que o ama e respeita.
Araújo Porto-Alegre

Nota 1: (...) A obra de que falam tanto Magalhães quanto Porto-Alegre é  Voyage Pittoresque et Historique au Brésil, ou Séjour d'un Artiste au  Brésil, depuis 1816, jusqu'en 1831 inclusivement, que começou a sair do prelo de Didot, em Paris, no ano de 1834.



Quinta Carta
Meu caro Mestre e Amigo.
Paris, 22 de julho de 1834.

Há muito que me queixo de não ter recebido uma só carta de V. Revma. não sei por que fatalidade, não posso crer que o Padre Mestre se tenha assim esquecido daquele que tanto o estima e que procura por todos os meios fazer-se credor de sua lembrança, mas agora me lembro que assaz tem que cuidar do ensino da mocidade e que o tempo lhe falta; mas lembre-se também o Padre Mestre que eu sou moço, que fui seu discípulo, e que ainda necessito de suas lições, e que em duas palavras, que me envie, bastante terei que meditar.

Na carta passada participei-lhe que o seu retrato vai aparecer em uma grande obra que Mr. Debret publica neste momento, no número das notabilidades do Brasil; já é um gigantesco passo para a posteridade. Agora lhe envio esta carta, pela qual ficará sabendo que está nomeado membro do Instituto Histórico de França [1]; eu e o Araújo, já que fomos nomeados para ele, tratamos logo de o propor. Esta sociedade sábia contém tudo que há de mais célebre em França e no mundo, como poderá ver pela lista impressa à margem da carta, que o Instituto lhe remete. Seu nome gravado nos anais desta sociedade não tem de morrer; com a posteridade firme diante dos olhos, pode agora marchar no caminho difícil da imortalidade, em que tem colhido tantos louros. Antes que eu diga mais... dê-me um abraço... sim, dê-me um abraço, eu estou aí... cheio de transporte, cheio de prazer.

O Padre Mestre agora responderá ao Instituto, agradecendo a nomeação; mandará também uma coleção dos sermões, que tem impresso em diferentes tempos, e peço que faça uma memória que enviará quando puder, sobre o estado da filosofia no Brasil, quer sobre a influência, que ela tem exercido nos costumes, governo, etc. ou sobre a maneira por que ela tem sido ensinada, disposição do espírito do povo para receber já este ou aquele sistema; enfim o Padre Mestre melhor saberá fazer do que [eu] dizer. O Araújo já fez uma memória sobre o estado das Artes no Brasil, onde mostrou grande talento e vistas profundas na sua arte; agora parte ele para a Itália e lá o teremos para a glória da Pátria. Eu estou concluindo uma história da literatura na Brasil desde a sua origem até os nossos dias [2], para isto foi-me preciso entregar-me a sério estudo de algumas obras antigas que encontrei na biblioteca real (que quanto a livros portugueses é bem pobre).

Agora novamente lhe peço que trate quanto antes em publicar alguns dos seus excelentes sermões, que para serem considerados como monumentos de eloquência e de língua portuguesa, só lhes faltam pequenos toques nas frases, que no transporte de sublime entusiasmo escapam; para isso o Padre Mestre pode ver o glossário das palavras portuguesas que vem nas memórias da Academia de Lisboa (o nosso amigo cônego Januário [3] tem essa obra), aí o Padre Mestre achará tudo o que necessário para poder corrigir algum galicismo. Sim, faça isto, e depois mande seu nome à posteridade na frente de um livro. Eu desejava possuir não muitos, mas um só conto de réis para fazer à minha custa este serviço à minha Pátria e ao meu Amigo, mas pois eu não tenho, o Padre Mestre o fará, o Padre Mestre que está nesta dívida para com a Pátria e para com os seus amigos; pouca será a despesa; e quem fala de despesa quando se trata da glória própria e da Pátria? Nada mais tenho que dizer. O Padre Mestre sabe se o estimo, e ficará sabendo se é um desejo vão e estéril que nos anima e ao Araújo em propagar o seu nome e a sua glória. Adeus, meu caro amigo! Adeus, meu caro mestre! Adeus, até um dia; e praza ao céu que breve chegue.

O seu amigo e discípulo
Domingos José Gonçalves de Magalhães

P.S. Lembranças ao Sr. Reitor, ao Padre Mestre Frei Henrique e a todos os mais amigos. Aceite lembranças do Pinheiro, do Sales, do João Manuel Pereira. Padre Mestre, faz-me o favor de mandar entregar por alguma pessoa a carta que junto lhe remeto para meu Pai, Rua Senhor dos Passos.

Nota 1: O Instituto Histórico de França foi fundado em Paris a 24 de dezembro de 1833 e a carta, em que o secretário, Eugênio Monglave, anuncia a Monte Alverne sua nomeação, é de vinte de julho de 1834 e diz que a deve "sur la présentation de M. M. D. J. Gonçalves de Magalhães et Araújo Porto-Alegre, vos compatriotes"...

Nota 2, do Editor atual: Texto que saiu publicado na Niterói, Revista Brasiliense - Ciências, Letras, e Artes, nº 1, sob o título Ensaio sobre a História da Literatura do Brasil - Estudo Preliminar (Paris, 1836). Disponível em: http://textosdefilosofiabrasileira.blogspot.com/2012/05/discurso-sobre-historia-da-literatura.html.

Nota 3, do Editor atual: Cônego Januário da Cunha Barbosa, cofundador do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (1838), e seu primeiro secretário perpétuo. Seu Discurso de Fundação do IHGB está disponível em: https://textosdefilosofiabrasileira.blogspot.com/2019/01/discurso-de-fundacao-do-instituto.html.


Sexta carta
Meu caro e respeitado Mestre.
Paris, 25 de julho, 1834.

O nosso bom Domingos na sua carta fala-lhe por mim também; ela retrata nossas consciências, e expressa os nossos votos de amor e amizade.

Ontem foi lido o meu trabalho sobre o estado das artes no Brasil; e agradeço à generosidade francesa dos aplausos que lhe fizeram, bem certo que este meio anima, porque eu conheço a insuficiência das minhas ideias e a minha infâmia nos conhecimentos da minha arte.

Mande-nos alguma coisa quando lhe sobejar tempo, e pode estar certo que a tradução há de ser boa, porque o nosso secretário, além de saber muitas línguas e a nossa, esteve muito tempo no Brasil, e é o tradutor do Caramuru e do Gonzaga [1].

Eu estou com um novo trabalho para apresentar à minha classe sobre a marcha que ela deve seguir no estudo das Boas Artes.

Eu não encaro as artes como deleite, mas sim como coisa necessária. A arte é o ideal, o ideal é o sublime do pensamento e este não pode representar senão a imagem da ideia predominante, ou lado para onde pende a filosofia. As produções de arte que tiveram grande voga em seu tempo são as representantes da ideia do tempo, ideia que conquistou o império da inteligência. Quando a filosofia de Condillac e Helvetius predominava, as artes não produziram nada de nobre e grandioso; eram Vênus, Martes, Cupidos, poucas produções sacras; claro está que o Sensualismo invadia a sociedade, e os artistas, devendo seguir o gosto desta, lhe apresentavam simulacros de suas ideias.

Na Revolução Francesa, era a Grécia e Roma, e hoje que há oscilação de ideias, cada um pende para o seu lado; ora, é verdade que no meio deste turbilhão em que gira a inteligência, o bom senso, se nutrindo das luzes emanadas pelo choque destas massas intelectuais, vai marchando e com ele o progresso da humanidade; eis aqui, meu caro Padre Mestre, o ponto de vista no meu quadro das artes, creio que a história destas deve ser encarada da maneira seguinte: História das Boas Artes, seu florescimento e decadência, e o porquê levantaram e caíram; aí virá o seu desenvolvimento e relação ao caráter nacional; influência da natureza e dos costumes do país sobre elas; revoluções na maneira de imitação, e prejuízos das escolas; relação dos contornos com as ideias, biografias e crítica das obras dos artistas.

Quando para lá voltar, eu lhe submeterei algumas ideias que tenho sobre o desenvolvimento destes pontos e espero receber as suas lições, porque pintar é filosofar, e o gênio do Padre Mestre penetra ao fundo a natureza, e a minha arte está em contato com esta nossa mãe.

Padre Mestre, o nosso São Carlos [2] corrigiu o seu poema e entregou-o a um amigo. O nosso Sampaio morreu, e o seu nome inda resta naqueles que o ouviram. Esta nossa passagem sobre a terra é de tempo limitado. A glória da nossa pátria está unida à de seus filhos, entenda-me, Padre Mestre, e eu direi como o Domingos: “mande o seu nome à posteridade na frente de um livro”.

Adeus, meu querido amigo e respeitável patrício; escreva-me para Roma, que eu nestes vinte dias deixo Paris e a França, e creio que farei uma volta à Grécia, quero ver o Parnaso e a Castália, quero respirar o ar daquela sagrada atmosfera, quero ver as rochas e as planícies que foram vistas por Platão e Aristides.

Adeus, meu Padre Mestre, conte com a saudade de quem lhe estima prosperidade e glória.
De V. Revma.
Amigo
Araújo Porto-Alegre

P.S. Recomenda-me ao nosso Reitor e ao nosso Provincial Frei Henrique.

Nota 1: Francisco Eugênio Garay Monglave é o nome completo do secretário perpétuo do Instituto Histórico da França, de que foi ele um dos principais fundadores. Monglave esteve no Brasil servindo no exército de D. Pedro I. Já em 1819 estivera em Portugal participando do movimento constitucional. É a Monglave que se deve a tradução do Caramuru [de Santa Rita Durão] e das Líricas de Gonzaga...

Nota 2:  Frei Francisco de São Carlos, franciscano carioca, nascido em 1763 e falecido em 1829. Os contemporâneos tinham por ele grande estima e veneração, sobretudo grande admiração pelo seu estro poético...


Sétima Carta
Meu Padre Mestre.
Paris, 20 de setembro, 1834.

Antes de deixar Paris não quero faltar com o meu dever, participando-lhe que no dia 4 de outubro partirei para Roma e creio que em companhia do meu amigo Magalhães, o qual separou-se do pequeno Pinheiro por estar cansado de insultos quotidianos: se a natureza nos dá ruins disposições e a ela se adicionam circunstâncias, e o fruto de uma má educação, o homem se desenvolve na carreira do mal com passos de gigante; assim este pequeno se desenvolve.

Meu Padre Mestre, só a prudência do Domingos era capaz de resistir às infâmias de semelhante menino que, não por ignorância, mas de acinte as praticava; se isto tivesse sido comigo, eu tinha lhe quebrado a cabeça com um pau, porque não sofro que se me insulte por diante e por trás sem outra razão mais do que dar bons conselhos e querer de alguma maneira, delicadamente, obrigar que se estude, quando se vem para isso.

Eu auguro mal do menino, porque ele tem tomado más amizades e essas o têm seduzido a praticar coisas que se afastam do bom senso de sua idade. V. Revma. conhece que a ação praticada pelo jovem na escala de sua vida é olhada em relação ao seu pouco juízo e experiência, enquanto que a mesma coisa, feita por um adulto, se torna mais grave; todas as idades têm seus perdões, mas neste menino não tem, porque com dezoito anos sabe-se que, levar (lançar?) em rosto os benefícios e denegrir uma reputação intacta, é criminoso.

O Domingos consultou muita gente antes de dar um passo, e todos aprovaram seu procedimento e estou certo que o pai do menino, que me disse ser um homem de siso, há de aprovar, pois que ele não desejará que sua delicadeza sofra, pois que o menino até declarou que ele não era seu pai, mas sim padrasto, e que este dinheiro era da sua legítima, e que era uma asneira grande que ele fazia, que seu padrasto não podia gastar o que era seu; e enfim, meu Padre Mestre, atirou com um pouco de dinheiro na cara do Domingos!!! E este ficou imóvel.

Desde esse dia uma profunda melancolia se tem apoderado do Magalhães, e eu para evitar uma morte de amigo, que adoro, quero que ele vá comigo, ele pode fazer essa viagem, não lhe é penoso, e no entanto, acompanhado de amizade poderá apagar de dia em dia tanta mágoa, pois eu o vejo num estado miserável de magreza e debilidade.

Para lhe dizer o estado do pequeno é que, depois desta ação, um só brasileiro capaz não o vê, já antes disso todos antipatizavam com ele por seu modo soberbo, e esquisito, só gostando de berlindas, e figuras, ora isto em rapazes não vai bem, etc., etc.

De Roma lhe escreveremos e lhe peço de me recomendar ao nosso Revmo. Sr. Reitor e vice-Reitor, ao Revmo. Sr. Frei Zeferino e mais amigos.

Aceite o coração de um artista que o respeita e estima.
Sou de V. Revma.
amigo sincero
Araújo Porto-Alegre

P.S. Pode-nos escrever pela Legação de Paris, que em oito dias as cartas vão a Roma. Efetivamente, partimos no dia 30 deste mês, às 7 horas da manhã; veremos a Suíça, o reino lombardo, veneziano, os Estados sardos, e ficaremos em Florença, pátria de Miguel Ângelo e Vinci.
Adeus, meu querido Padre Mestre.


Oitava carta
Meu Amigo e meu Mestre.
Roma, 15 de janeiro, 1835.

Como V. Revma. possui um coração capaz de todo o entusiasmo, capaz do mais subido sentimento, a ele me dirijo para julgar do prazer que me causaria o entrar na antiga capital do mundo, na terra clássica do cristianismo, na terra aquecida com o bafo da Providência, e assinalada por tantos prodígios. Seu coração só poderia revelar o transporte do meu contentamento ao receber nesse mesmo dia, já para mim de júbilo, a preciosa carta, que me veio anunciar uma amizade, que sobremaneira exalta a minha sensibilidade, e meu orgulho, e me faria crer que eu possuo um grande mérito independente da estima e da consideração dos amigos, se a voz da consciência não me reprimisse. Que poderei dizer sobre o seu estilo? Eu reconheci nele o meu Mestre e se em nome de outro a recebesse, o tacharia de plagiário.

O Padre Mestre me aconselha que eu tome aqui um título acadêmico, e diz que para o mundo isto é necessário, seja; fácil me seria obedecer-lhe nesse ponto se me não faltasse dinheiro até para as primeiras necessidades da vida, que moro, e como em casa, do nosso Ministro, o Sr. Rocha [1], o mais o meu caro amigo Araújo me fornece, pois que eu deixei a pensão do Sr. Pinheiro, por motivos de honra, que prezo mais que tudo, e nem podia obrar doutro jeito. Um título nenhuma consideração dá a quem não sabe, nem aumenta o mérito de quem sabe. Ninguém ainda se ocupou de saber se Voltaire, Racine, Platão, Descartes eram doutores por alguma Academia, nem lá se diz o Doutor Monte Alverne, o Doutor Paula Sousa [2], o Doutor Caldas [3] etc., mas se diz o Doutor Meireles, o Doutor etc. etc. etc., que nós conhecemos; não faltam doutores no Brasil sem ciência, como comendadores sem mérito. Eu trato de estudar e escrever, e se nada fizer de importante que me leve à posteridade, não há de ser o título que me recomendará a ela.

Pergunta-me o Padre Mestre qual é o interesse que pode inspirar a alguns dos seus amigos, eu lhe respondo: que é o amor da glória da Pátria e a pura amizade, não como a entende Helvetius, e seus discípulos, mas como a entendem aqueles que, dando ao egoísmo o que lhe pertence, reservam os nobres sentimentos da alma ao apanágio da virtude e do justo.

Grata me foi a notícia de que se consagra ao aperfeiçoamento de seus belos sermões; quanto às considerações de seu êxito não o devem de nenhum modo impedir que os publique; tome como um dever, uma missão a que não pode resistir. Cante o Libera me, Domine quem não pode fazer outra coisa. O Padre Mestre, porém, é chamado a outro destino.

Não me admira que ache a sua Lógica imperfeita, o espírito humano se desenvolve todos os dias e de grau em grau marcha à perfectibilidade, que faz desesperar os vaidosos e aos cegos de entendimento; mas mesmo assim não creio que o Padre Mestre não a possa pôr em relação com a Filosofia do tempo, o Ecletismo que no Brasil deve quanto antes ser plantado para que a mocidade aprenda a não dizer blasfêmias contra Deus e os homens. Por falta de Ecletismo um ex-Ministro disse que não havia no Brasil necessidade de escolas de Filosofia e Retórica; outro, que ainda governa, em uma portaria disse que as artes não precisam de proteção; um charlatão quis achar a alma no cadinho, um matemático olha com desprezo para um poeta etc. etc.. Mas eu tenho esperanças no futuro; o império da mediocridade há de cair, mas à condição de uma luta consciente, sem o que governará ainda por algum tempo os espíritos; convém, pois, que nos armemos não com punhais, mas com os brandões da sabedoria e ao seu clarão desaparecerão as trevas.

O nosso amigo Araújo se recomenda a V. Revma. e lhe escreverá pelo correio seguinte para ter sempre notícias nossas. Não lhe dou notícias do Alexandre porque dele nada quero saber; assaz o sofri um ano em atenção a seu pai; seu caráter fica acima de toda pintura. Eu só espero cartas de meu pai para saber se ficarei aqui mais algum tempo, ou se voltarei; se o não fiz logo que em Paris me separei do Alexandre, foi por me achar tão molestado moral e fisicamente que o Araújo, receando que eu morresse no mar, me impediu a viagem e trouxe-me para a Itália [4].

Padre Mestre me fará o favor de mandar entregar esta cartinha a meu Pai; a outra que é para o Sr. Pinheiro, ou a mande entregar por pessoa segura a seu irmão, [ou] a porá no correio, riscando a linha, que diz — À mercê do Sr. J. A. Pinheiro. Lembranças ao Sr. Reitor.

Seu discípulo e amigo
Domingos José Gonçalves de Magalhães

Nota 1: Este Sr. Rocha, tão modestamente enunciado, nada menos era que o grande José Joaquim Rocha, uma das figuras mais ilustres da nossa independência (...) Grande amigo do Cônego Januário Barbosa, Gonçalves Ledo, Sampaio, depois da violenta dissolução da Constituinte, em 12 de novembro de 1823, foi com os três Andradas e mais patriotas exilado para a Franca. Depois de regressado ao Brasil, a Regência o nomeou Enviado Extraordinário e Plenipotenciário em Paris (...) Em 1834, surgindo a delicada crise com a Santa Sé devido à nomeação do padre Dr. Antônio Maria de Moura para bispo do Rio de Janeiro, foi José Joaquim Rocha transferido para Roma e deu ao caso a mais conciliadora e nobre solução. Tornou ao Brasil, agora para sempre, em 1838. Doente e cego, morreu na mais extrema pobreza (...) É a esse homem extraordinário que tanto Magalhães como Porto-Alegre devem os mais extremados favores...

Nota 2: Paula Sousa é o Senador Francisco de Paula Sousa e Melo...

Nota 3: O Padre Antônio Pereira de Sousa Caldas nasceu no Rio, tomou ordens em Roma, depois de ter feito os estudos em Portugal, e veio para o Brasil com a família real, em 1808. Era homem de rara inteligência, vastíssima cultura, com dons poéticos apreciáveis e extraordinários dotes de orador. Foi dos maiores pregadores de seu tempo...

Nota 4: Na difícil situação em que se encontrava Porto-Alegre, em Paris, cogitava de regressar ao Brasil. Foi então que lá apareceram Antônio Carlos e Luís de Menezes. Este lhe ofereceu vinte mil francos para ir acabar os estudos na Itália. Porto-Alegre aceitou apenas quatro mil e levou ainda consigo Magalhães em situação, como sabemos, bastante precária tanto moral como fisicamente.


NONA CARTA
Meu caro Padre Mestre.
Roma, 5 de fevereiro, 1835.

Logo que cheguei a Roma o Domingos me entregou duas cartas suas que muito me encheram de prazer e o Padre Mestre diz que sente a vida declinar; e eu, sinto as forças duplicarem-se-lhe; tanta energia, tanta erudição em uma carta mostram o dedo de gigante.

Padre Mestre, quando se apresentar Girodet e Alverne, então se poderá dizer que o orador vale o pintor ou este aquele; mas eu (... tura) ignoram, que apenas principio a estender um braço para apalpar, e medir o terreno por onde me estenderei, e poderia equiparar-me a um frondoso coqueiro, abundante de frutos gigantescos e belos de forma, nutrido do mais belo suco da natureza e compacto com a força dos anos?

Padre Mestre, há em mim uma escala que me obriga a medir os elogios que se me fazem, e veja se eles abundam em quantidade, porém, um deles, é [o] elogio do meu coração pela pátria, sim, por ela farei o que puder, apesar que a pintura e mais artes se cultivam nessa terra como plantas exóticas e o Governo as conserva em estufa, onde se morrerão se uma mão forte as não soltar para que a nação veja.

O coração (...) falo; mas assim quando se olha para um povo, que devia ser feliz e não é, o coração rasga-se quando se olha para outro povo, que nasceu para as artes e as não cultiva, é necessário deixar o Brasil para conhecer esta verdade; entre nós todos são poetas, o escravo canta ao som da marimba e improvisam os (seresteiros?) da mesma maneira; todos amam a pintura sem a terem visto, vem do que Mr. (...) disse em Paris que a cabeça de todos os brasileiros era de artista, mas que nela faltava o órgão da ordem e da autoridade; eu creio que os nossos governantes têm esse órgão em demasiada expressão; porque as protuberâncias do gênio nada são sem eles.

Há dois dias que principiei o meu Cristo e não sei o que farei dele, a falar a verdade, quando eu leio o Correio Oficial, dá-me vontade de morrer na Europa, mas logo me vem certa força mais forte que eu mesmo, lava-me da imaginação tantas ideias negras — é a esperança, e a esperança é longa!...

Depois do meu Cristo não sei o que farei, porque fazer um quadro, onde vão-se grandes despesas, sem fim algum, não sei de que vale. Padre Mestre, quando os pais brigam, os filhos perdem-lhe o amor; quando um governo é vicioso os súditos o abominam, e quando ele não tem sistema, não há futuro para o cidadão, na minha posição vejo um Aureliano alegar com justiça na Câmara dos Senadores, que a nação não podia dar-me uma pensão; e vejo este mesmo homem fazer outras a estudantes de São Paulo e mandar à custa da caixa da Legação de Paris um menino de treze anos e meio; se quer ser justo seja, mas não sovina, os cofres da nação eram sagrados, mas eu não me recordava que um baixo, o tal, sevandija de D. Pedro, diria que as artes e ciências não precisam desta animação porque aqueles que a elas se dão com bom comportamento sempre acham meios de subir, temia, então, os estudantes de São Paulo e o menino de Paris são homens desmoralizados; a primeira parte da nota é do oficial maior da Secretaria e esta segunda é do Aureliano, o que lança pós nos olhos dos carneiros que os vê tosquiando, ora isto, que inda no Brasil há quem creia em borboletas que tomam a cor da planta em que se nutrem. Paciência, a mediocridade impera, a mediocridade governa, a ignorância a segue, e o gênio morre; somos filhos dos portugueses, e em alguma coisa nos parecemos com nossos pais!

Adeus, meu Padre Mestre, até cedo, que lá o abraçaremos e formaremos uma família forte, um mundo de artistas para preservar o cutelo da ignorância e da intriga manejado pela inveja; em atacadas formas, eu sairei a campo com o meu lápis fazendo caricaturas a dois vinténs; Padre Mestre, esta qualidade de sátira é tida pelo árabe e pelo alemão, também pelo nacional, e eu conheço a sua influência.

A sua carta última me serviu de itinerário na via Ápia e lhe assevero que as suas tradições coincidem com o lugar, muitos por aqui olham, e não veem de longe como o Padre Mestre.

O Sr. Juvêncio lhe entregará esta relíquia de São Francisco, recebida por mim no mosteiro de Assis, e lhe assevero que fiz esta peregrinação com a ideia em Vossa Caridade e minha mãe, que ambos são Franciscos, nome também de meu pai. O embrulho de pó foi-me dado pelo geral do Convento, são as cinzas que rodeavam o corpo de S. Francisco, distribua com o nosso Reitor e o nosso amável Padre Mestre Frei Henrique e o resto faça o que quiser.

Aceite o coração de seu discípulo, que o venera e respeita quanto o ama, e que só deseja de o abraçar na bela pátria, que corre parelhas com os países mais pitorescos do mundo.

Adeus.
Araújo Porto-Alegre

P.S. O Domingos tem feito diamantes em poesia e se recomenda como eu.


DÉCIMA CARTA
Meu Mestre e meu Amigo Monte Alverne.
Roma, 23 de fevereiro de 1835.

Volto de uma excursão que com o Araújo e mais algumas pessoas fizemos fora de Roma; fui ver Albano estirada cinco léguas distante de Roma; a cidade é assaz pitoresca; atravessando a via Ápia, encontrei o túmulo dos Curiáceos um tanto arruinado pelo tempo, continuando cheguei ao lago de Albano em meio de uma montanha, e que fora outrora um vulcão; passei a Genzano, vila pouco considerável e bela e vi o lago de Nemi chamado espelho de Diana, e aí achei alguns fragmentos do templo desta deusa. Fui depois a Frascati, subi as ruínas de Tusculum onde ainda se vê a casa de Cícero, o teatro, o depósito de água, e algumas ruas calçadas e muitas ruínas; este lugar inspira respeito religioso. Em Tivoli vi o templo de Sibila, e a quinta de Mecenas, de Adriano, e outras ruínas. Tivoli é o lugar mais pitoresco de Roma. Nesta excursão gastei alguns dias e ontem entrei de novo na cidade eterna. Fizemos a viagem a pé como artistas, e conversando continuamente, cem vezes falamos sobre o Padre Mestre.

Tendo diante dos olhos a sua carta de 4 de novembro do ano passado, escrita com aquela graça natural e cheia de benignos cumprimentos com que sempre me procura honrar, eu, não podendo pagar-lhe esta dívida com moeda de igual quilate, contento-me de ser vencido com a generosidade do Mestre, e assim devia ser para que em tudo o Mestre exceda ao discípulo. O que sinto é não achar-me agora em Paris para ouvir a leitura da sua resposta ao Instituto; certamente eu não perderia este belo monumento, por ser um dos membros assíduos. Como, porém, para lá escrevi, espero receber informações do efeito que produziria.

Folguei com a resolução de imprimir os seus sermões, e me felicito de o ter animado para fazer à nossa glória literária um tão rico presente. Faz bem de retirar-se para o seu convento para tratar de sua saúde, o ar livre e o sossego de espírito lhe são convenientes, é bom descansar depois de tão árduas fadigas, e cobrar forças para nova empresa. Quanto ao meu hieróglifo, como não sei ao que se refere na minha carta, nem dela tenha cópia, não poderei explicá-lo, mas em lá chegando o farei. Sobre a obra de Mr. Debret lhe direi que é muito volumosa, e dispendiosa, e ela tem o título de Viagem Pitoresca ao Brasil; publica-se por cadernos, com estampas de florestas, dos índios, dos costumes do Brasil, e nos últimos cadernos virão os retratos dos homens célebres. Assim é impossível terem-se retratos separados.

O Araújo escreve a sua viagem à Itália e pretende publicá-la, no que muito bem [faz] pois que é muito bem escrita e cheia de conhecimento de sua arte; de mim nada posso dizer por não fazer minha própria sátira, não faltarão alguns vadios, invejosos do pouquinho que sei, que se encarreguem disso. Eu só desejo voltar para a minha pátria, tenho algumas ideias e quero pô-las sobre papel, e só para isso trabalho. Eu sinto não poder falar ao coração de todos os brasileiros, eu lhes diria a todos os momentos que é tempo de trabalhar e de escrever; a vadiação entre nós é grande e excede a tudo o que se pode dizer; ela é a causa de tanta vaidade, e de tanta crítica ignorante, que envergonha.

Com esta o Padre Mestre ficará sabendo que recebi as suas cartas. Se falar com o Padre Mestre João Soares diga-lhe de minha parte que eu não lhe escrevo enquanto ele a mim não escrever; ao Martins o mesmo, assaz lhes tenho escrito; eles não têm o direito de me acusarem pois que o primeiro nem uma só carta me tem mandado, e o segundo está bem pago de suas duas cartinhas com letras de cartaz; contudo dê-lhes lembranças minhas, e diga-lhes que sejam menos preguiçosos. Lembranças ao Padre Mestre Frei Henrique, e ao nosso Reitor, ao Padre Mestre Frei Henrique, e ao nosso Reitor, ao Padre Diniz e aos amigos.

Seu discípulo e amigo
Domingos José Gonçalves de Magalhães

P.S. O portador é o Sr. Rocha, filho do nosso Ministro nesta corte. Se com ele falar, lhe dará longas notícias sobre isto. Escrevendo ao Sales para Paris, mandei-lhe lembranças suas; ao Alexandre, porém, como nem desejo vê-lo nem dele receber notícias para me não lembrar dos insultos passados, não lhe mandei, e peço que me desculpe. Dir-lhe-ei mais que o Araújo está fazendo um grande quadro para levar para essa corte, espero que seja uma obra-prima, atento ao seu prodigioso talento; oxalá o saibam aproveitar, ou ao menos animar, mas desgraçadamente essa gente a respeito de artes está muito bárbara. Temos sido apresentados a quase todos os Príncipes, Duques de Roma, e aos embaixadores das Cortes estrangeiras, e por conseguinte temos assistido aos bailes destes senhores; em Florença, a célebre Catalani apresentou-nos, entre outras pessoas notáveis, à ex-rainha de Nápoles, irmã de Napoleão, e com ela conversamos.


UNDÉCIMA CARTA
Meu Mestre e Amigo.
Paris, 27 de novembro de 1835. [1]

Soube por uma carta do Martins que V. Revma. se retirara para o seu convento, em consequência da sua vista estragada pelas contínuas vigílias e estudos [2]; o mal não é só para o Padre Mestre, a mocidade perdeu um grande mestre. Ora pois, possa esse retiro ser profícuo à sua glória, possa ele dar-lhe ocasião de coordenar as suas obras-primas de eloquência cristã, para que a posteridade não diga de V. Revma. o mesmo que de outros se diz.

Aqui chegou de Nápoles o Araújo, e desgraçadamente se acha bem doente de uma inflamação na garganta com algumas feridinhas, e febre e por esta ração talvez deixe de falar no Congresso Europeu convocado em Paris neste mês pelo Instituto Histórico, onde ele se deveria achar para tratar da Arquitetura cristã, principalmente no Brasil. Eu também estava disposto a ler um trabalho sobre a História da Literatura no Brasil, trabalho este que está terminado, mas que devendo traduzir para poder aparecer num Congresso Europeu composto de sábios de todos os países, não me resta tempo para isso.

Tornemos ao primeiro ponto. Tenho tomado informações sobre impressão de obras. Não mande de nenhum modo seus sermões ao Aillaud  que é um L.... Ele há de pedir quatro vezes mais caro que os outros. O Padre pode mandar imprimir dois volumes de sermões por mil francos, isto é, 250 mil réis, e eu me encarrego disto. Mande-me os sermões e uma ordem para receber o dinheiro, que o resto eu cá farei, creio que vale a pena [3]. O Padre Mestre está lá e saberá quando serei mudado primeiro do que eu, assim, com a maior brevidade poderá mandar. Se quiser que seus livros vão encadernados, mande-me outro tanto; se exceder alguma coisa eu lhe farei saber. Pode contar 500 francos para cada volume de 350 páginas a 400, em oitavo, como o Cousin, tirando-se 500 exemplares. Perdoe-me o eu não poder ser mais extenso desta vez. A pressa não me dá lugar para mais. Aceite o coração do

Amigo e discípulo
D. J. G. de Magalhães

P.S. O Torres e o Araújo se recomendam a V. Revma. Encarecidamente lhe peço, e espero receber o favor com a maior brevidade, de enviar-me a biografia do São Carlos, e a sua; pode enviar-me a primeira pelo primeiro paquete, não é necessário que seja muito longa. Não se esqueça, não se esqueça, é o maior favor que me pode por ora fazer. Outra de Sampaio, outra do Rodovalho, destes dois últimos pode fazer uma biografia crítica sobre suas obras.

Nota 1: A nomeação de Magalhães para a nossa Legação em Paris não o encontrou na Itália, como frequentes vezes se lê. O retorno à França deu-se independente disso...

Nota 2: "Monte Alverne continuou a lecionar até o fim do ano de 1836. A um requerimento seu ao Vigário Capitular, o reitor do Seminário, Pe. Joaquim da Soledade Pereira, enviou o seguinte atestado: 'Atesto que do livro dos recibos dos Empregados deste Seminário consta que o Revdo. Suplicante examinou em Teologia a quarenta estudantes, dois em 1830, e sete em 1831, todos nove seus discípulos; mais trinta e um desde 1832 até o fim de 1836, discípulos do Revdo. falecido Padre Mestre Parma; em Filosofia, oitenta, todos seus discípulos, desde 1830 até o fim de 1835, somando cento e vinte todos os exames', apud Roberto Lopes, Monte Alverne, pregador imperial, Vozes, 1958, pág. 88.

Nota 3: Afinal, as Obras oratórias saíram aqui mesmo no Brasil pela editora Laemmert, situada na Rua dos Inválidos e que era, na opinião dos viajantes Kidder-Fletcher "a mais adiantada".


DUODÉCIMA CARTA
Meu Mestre e Amigo.
Paris, 29 de janeiro de 1836. [1]

Há bom tempo que sofro a privação de notícias de V. Revma., não cessando eu de escrever-lhe; porém, longe de acusá-lo, como sei que a mais útil trabalho entrega sua existência, eu o desculpo; basta consolar-me que de mim se lembra às vezes.

O tradutor de Herder acaba de publicar um poema sobre Napoleão; não lhe falta gênio, porém o seu poema, escrito como as legendas da meia-idade, sem episódios, mais parece uma coleção de cânticos líricos de um trovador, que um poema épico. O desejo de ser original tem impelido muitos poetas modernos à extravagância. Há dois anos publicou ele outro poema em prosa com o título de Ahasvérus; pretende ele que esse poema seja a epopeia do gênero humano, realizando desta arte a ideia que na tradução de Herder ele apresenta. Se desejar ler esta obra, dirija-se a meu pai, e entre os livros que no ano passado para lá enviei, o achará; é um só volume encadernado, tendo o dorso de marroquim preto; com estes sinais o achará mais facilmente.

Depois de um certo tempo é a minha [vida] assaz laboriosa; continuamente escrevo, já na Legação, já no meu gabinete. A História da Literatura no Brasil seriamente me ocupa, desespero com a falta de documentos. Como brevemente espero que saia o primeiro número da Revista Brasileira [2], de que eu, o Torres, e o Araújo somos os autores, lá verá V. Revma. um ensaio. Lancei-me inteiramente na poesia religiosa. Espero também dar à luz este ano um volume, tanto que me chegue a nova de aumento de ordenado como requeri.

De novo lhe peço que não se esqueça de enviar os seus sermões para aqui se imprimirem. Quatro mil francos apenas bastam para dois belos volumes impressos em luxo. Eu insisto sobre isso porque não quero que se perca este monumento de glória de nossa pátria; quando tão poucos escrevem, fora triste que aqueles que o fazem, não deixem sinais de si.

Se puder enviar-me as biografias de São Carlos, do Sampaio, e algumas notícias sobre Frei Santa Rita Durão, autor do Caramuru, grande serviço fará a seu amigo. Se quiser escrever um artigo sobre a filosofia, poderá enviar-nos, que nós o imprimiremos na revista. E se me é dado indicar-lhe uma ideia, fora útil um artigo no qual se mostrasse a necessidade de reforma do ensino da filosofia no Brasil, tendo esta feito imensos progressos depois de Locke, e não estando em dia a que aí se ensina, com a luz espalhada por Kant e pela escola.

Mr. Cousin acaba de publicar o seu curso de 1818, vi hoje mesmo anunciado pelos jornais, e ainda não o li. A respeito dos cursos, só frequento este ano o de Economia Política não tendo tem[po] para outros; não falando o do inglês que me vem o mestre a casa.

O Araújo se recomenda a V. Revma. e o Torres o mesmo. Queira dar lembranças ao nosso Padre Mestre Frei Henrique, e diga ao Martins que não tenha medo de quebrar os dedos escrevendo-me, que nem sequer responde às minhas cartas. Quanto ao Padre Mestre João Soares, esse (bem lhe pode dizer), se por suas cartas julgasse de sua estima, terminaria convencido que já de mim se não lembra.

De V. Revma. discípulo
Amigo obrigado
D. J. Gonçalves de Magalhães
 
Nota 1: Não acreditamos que tenha sido esta a última carta que Magalhães escreveu a Monte Alverne, pois que se demorou na Europa até princípios de 1837, tendo chegado ao Brasil, com seu amigo Porto-Alegre, a 14 de maio daquele ano.

Nota 2: Trata-se da Niterói, Revista Brasiliense – Ciências, Letras, e Artes, que realmente saiu nesse ano. Infelizmente dela não se publicaram mais que dois volumes. O sucessor do Ministro Rocha [filho de José Joaquim Rocha], em Paris, o Conselheiro Luís Moutinho de Lima Álvares e Silva (1794-1863) era um homem rabugento, intratável...

FIM



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