terça-feira, 5 de junho de 2012

A origem religiosa da cultura


Vicente Ferreira da Silva

 Notas ao fim do texto.

Grande parte das pretensões de conhecimento do mundo atual estriba-se no pressuposto da essência irrelativa e separada das coisas. Assim como percebemos os objetos descontínuos e segregados, fechados em si mesmos numa espécie de atomismo representacional, assim de fato eles existiriam. As ideias e as coisas gozariam de uma vida livre e absoluta, de uma vida sui juris no espaço e no tempo. Entretanto, como sabemos, desde o criticismo kantiano e as investigações do Idealismo do século passado e como é renovadamente afiançado no pensamento hodierno, o ente, em sua totalidade, consiste sempre no fruto de uma desocultação transcendental que o configura em seu ser próprio. Todo objeto é em suma um objeto constituído, interpretado, desenhado em sua índole derradeira. Em consequência, o ser desses objetos e de todos os objetos de conhecimento possível origina-se de uma convergência de categoria configuradora que os recorta e individualiza no campo do cognoscível. O ser desses objetos assim como o dos demais entes oferecidos ao nosso conhecimento promana de uma dotação de sentido transcendental (Sinngebung), que instaura seu tipo de manifestação. O ente nasce dessa dotação de sentido, todas as coisas são tributárias de uma iluminação projetiva, não existindo de maneira alguma como realidades espúrias e irrelativas. Podemos advertir outrossim que os objetos intramundanos, as coisas que encontramos, das mais nímias às mais aparatosas, são traçadas em seu ser variável como um espaço de conexões significativas ou uma totalidade de sentidos para uma inteligência. Esses significados guardam em si uma trama de relações internas, um caráter referencial que nos adverte acerca da solidariedade de estilo dos entes revelados num determinado mundo. Encontramos na obra de Johann G. Fichte o esforço de construção da gênese transcendental das categorias que configuram as representações básicas do homem ocidental. Para Fichte, as representações em que vivemos, e que constituem o nosso mundo, originam-se do sentido teleológico que dá a razão última da índole e da forma dessas representações. O mundo do ente, ou como os idealistas preferiam dizer, o Vorstellung Welt torna-se um sistema de formas coerentemente traçadas, um organismo onde as partes revelam o estilo imperante do todo.

Uma das representações fundamentais que encontramos no mundo e que em absoluto não pode ser conhecida em seu ser-separado ou isolado é a própria representação humana, a própria autognosia pessoal. Acontece que esta representação do nosso mais íntimo ser, a esfera de conotações e significados subordinados à nossa gnosia pessoal e social, tem o mesmo destino de todas as outras representações, a saber, a de ser um campo des-fechado por um projeto desocultante.

Nesse sentido não podemos pensar isoladamente, fora do contexto da nossa cultura, a nossa consciência ou o ente humano sendo formas de ser emergentes e determinadas por condições a priori de manifestações inerentes ao nosso ciclo histórico.

O aspecto importante destas considerações, no que tange à compreensão dos fenômenos e sua incidência sobre o fato cultural, assenta na eventualidade de que segundo as ideias acima desenvolvidas o homem não pode ser posto como uma natureza indelével ou um ponto fixo diante das hierofanias históricas do divino. Não seria portanto legítimo interpretar a instância mítico-religiosa a partir das aspirações fixas ou pretensamente naturais da alma humana, ou ainda de qualquer fundo psicológico julgado invariável. 

A primordialidade do fenômeno religioso na definição e configuração do personagem histórico-cultural parece constituir a formulação especulativamente mais legítima dos fatos. É a tese que encontramos exposta por Hegel em suas Lições sobre a filosofia da religião: “Da mesma forma que o conteúdo divino se determina, determina-se o outro polo do espírito subjetivo-humano que possui esse conhecimento. O princípio segundo o qual Deus se determina para os homens, é também o princípio que determina o homem em seu Espírito. Um deus perverso, um deus da natureza, tem por correlato homens maus, sensoriais, não-livres; o puro conceito de Deus, o Deus espiritual tem por correlato o espírito livre e incorpóreo e realmente consciente de Deus. A representação que o homem possui de Deus corresponde à que possui de si mesmo, de sua liberdade.”(1) Jamais encontraria qualquer fundamento filosófico a tentativa de reduzir as formações mítico-religiosas e a pura instância do divino a presumidas projeções de substratos psíquicos ou antropológicos, substratos considerados independentes ou casualmente determinantes. Com Karl Kerenyi contestamos a validez de qualquer tentativa de construir a esfera mítico-religiosa a partir de extratos psicológicos, de derivar o mítico do não-mítico, assim como, em geral, a ontologia moderna veda a passagem do não-vivo para o vivo, do não-psíquico para o psíquico e assim por diante.

O tema do nosso ensaio é justamente o da origem religiosa das culturas, da causalidade das potências ou hierofanias divinas na plasmação dos fenômenos culturais e inclusive na configuração do nosso próprio ser. Em nosso horizonte cultural e intelectual as vozes que se pronunciam a favor dessa tese são cada vez mais numerosas e autorizadas. Leiamos em corroboração estas palavras do eminente historiador da Antiguidade, Franz Altheim: “E apesar de tudo constitui a religião um dos maiores e incomparáveis desígnios da vida histórica. Ela pertence às forças que criaram mundos e os mantiveram em constante movimento. Quase nada existe no domínio humano que não se originasse de raízes religiosas e não fosse formado por motivações religiosas.”(2) 

Destarte, se a cultura e o próprio personagem cultural e seu estatuto ontológico básico se manifestam como universos deflagrados por uma fascinação ontológica primordial, podemos concluir que o agente humano não é um campo neutro do ponto de vista religioso, um ente avulso e fechado em si mesmo e que subsequentemente pudesse relacionar-se com a esfera do divino. Qualquer autognosia humana já traz em si o selo de uma pertinência religiosa. Portanto, somos nós mesmos, no uso e gozo de nossas faculdades, emoções e aspirações, todas elas geneticamente ligadas à nossa matriz religiosa ocidental, que pensamos ilusoriamente relacionarmo-nos livremente com qualquer possibilidade religiosa. Esta ilusória disponibilidade de opção religiosa é também vivida pelo homem atual que se julga apto para as mais exóticas conversões e militâncias religiosas. Assim, desenvolve-se o interesse pelas religiões primitivas e pelas ondas de entusiasmo das práticas místicas mais excêntricas. Mas é sempre o homem cristão-ocidental, com sua alma naturaliter christiana que se defronta extrinsecamente com os emblemas numinosos e os numina de outros mundos. O átomo solto de uma cultura, que nasceu e se plasmou em seu âmbito, tenta sem qualquer transfiguração essencial emigrar para outros cadinhos mítico-religiosos sem dar-se conta de que o credo religioso não é matéria de opção, mas sim de uma infinita transformação.

A resolução do homem no plexo de seus desempenhos próprios e a consideração desses desempenhos como uma esfera de ações possíveis, deflagrada pelo assédio iluminante do Ser, permite a elaboração de uma nova doutrina da incidência cultural do fenômeno religioso. Deus ou os deuses não se apresentariam mais como representações ou polos de um conhecimento humano possível, de um culto ou de uma latria, que versasse sobre uma dimensão transcendente. Ao contrário: o próprio homem, o protagonista eventual de uma cena histórica, já se apresenta como algo de posto e de aberto por uma Ergriffenheit religiosa. (Frobenius) 

O homem não pode opor-se epistemologicamente ao divino, como um sujeito a um objeto, desde que ele mesmo está-aí como algo des-fechado por um oferecer mítico-religioso. Entre as possibilidades, formas ou entes desdobrados no mural do Ser encontramos o protagonista humano, consciência emergente de uma afirmação universal e toda ela reportável aos poderes ponenciais-mitológicos. Os elementos fundamentais desta concepção foram explicitamente formulados, pela primeira vez, na obra de Schelling Introdução à filosofia da mitologia. “No processo mitológico”, diz Schelling, “o homem não se refere às coisas, mas às potências, que se erguem no interior da consciência e às impulsões, às quais ela obedece. O processo teogônico que dá origem à mitologia é um processo subjetivo, unicamente na medida em que se desenrola na consciência e se manifesta pela formação de representações; mas as causas e consequentemente os objetos dessas representações são as potências teogônicas reais e em si, sob a influência das quais a consciência é primitivamente aquela-que-põe-Deus. O conteúdo do processo é formado não por potências simplesmente representadas, mas pelas próprias potências que criam a consciência e, sendo esta o último elo da natureza, criam a própria natureza, e são por consequência potências reais.”(3) 

Vemos afirmada nestas linhas a eclosão simultânea da consciência e da natureza, isto é da totalidade do ente, através das potências que põem Deus, dessas forças desocultantes inerentes ao processo mitológico. Os desempenhos humanos se apresentam no mesmo nível das outras formações intramundanas e estão expostas ao mundo segundo a mesma lei das outras possibilidades.

Em consequência, todas as possibilidades ou representações promanam do mesmo domínio projetivo e possuem, portanto, o mesmo caráter ou estilo cultural. Eis porque Heidegger, em seu ensaio sobre a essência da técnica, se esquiva a qualquer explicação antropológica ou subjetiva da técnica, que a reduziria a um simples produto da mente ou do trabalho humano. Para Heidegger a técnica é uma das modalidades da Alétheia, da verdade do Ser, que condiciona reciprocamente a consciência trabalhadora e o mundo manipulável por esta consciência. Se o mundo não se tivesse revelado como um campo infinitamente poroso de caminhos instrumentais, a operação técnico-trabalhadora, a operação da subjetividade não se teria empolgado na construtividade infinita de uma civilização técnico-industrial. Antropogenia e cosmogonia aparecem como termos indissolúveis de uma mesma revelação transcendental.

Nesta ordem de considerações, a dimensão do sagrado começa a ser determinada não mais na relação do ens creatum com o ens increatum ou na relação do contingente diante do absoluto, mas no aprofundamento da dimensão prototípica ou fundante do divino. Os deuses ou Deus manifestam-se como Origens — as palavras de Kerenyi — Origens de todo originado, de todas as possibilidades e valores encarnados ou encarnáveis na história. A experiência morfogenética do divino se esclarece no pensamento do aspecto puramente des-fechante do Ser, na abertura ou manifestação original do mundo. O aspecto ou forma de cada coisa, o estranho e inquietante perfil do ente remete-nos às potências projetivas e reveladoras da estranha face das coisas.

A mesma experiência adverte-nos que no fenômeno mítico-religioso, na hierofania dos deuses, irrompe um poder transcendental-constitutivo, uma iluminação projetiva da totalidade do ente. Queremos destacar em nossas considerações precipuamente o aspecto constitutivo ou des-velante, isto é, o aspecto transcendental das potências superiores. Como sabemos, o conceito do processo transcendental, na doutrina do idealismo clássico, equivale a reabsorção do objeto de conhecimento no próprio processo do conhecer. O objeto seria “constituído” pelo aparato epistemológico do homem e imanente a ele. O aspecto transcendental se efetiva no transcender a alteridade do objeto conhecido. De maneira análoga e paralela, mas agora na dimensão de uma filosofia metaconscienciológica, estaríamos diante da possibilidade de uma reabsorção da totalidade do ente no processo morfogenético das epifanias divinas. Todas as eventualidades ônticas seriam transcendidas em seu Ser avulso e relativo e fundadas a partir da força iluminante da desocultação mítico-religiosa. Contudo, a transcendência absoluta de Deus ou dos deuses equivale à absoluta excedência da matriz originante sobre as formas e desempenhos in-fusos na cena histórica. O poder manifestante do divino transcende e enquanto transcende é transcendente a todo manifestado. 

Esta a tese que já encontramos plenamente determinada na obra de Schelling — Filosofia da arte — sob o título de “A Universalidade e a Infinitude constituem o caráter da verdadeira mitologia”: “Segundo o exposto no parágrafo 34 [a verdadeira mitologia] só é possível na medida em que está desenvolvida em sua totalidade, e enquanto representa o universo prototípico. Neste, não só todas as coisas, senão todas as relações das coisas existem ao mesmo tempo como possibilidades absolutas; o mesmo deve ocorrer na mitologia enquanto universalidade. Mas como no universo em si, no mundo prototípico, do qual a mitologia é representação imediata, passado e futuro se identificam, o mesmo deve ocorrer na mitologia. Não só deve representar o presente e o passado, como também deve abarcar o futuro; tem que estar adaptada ou adequar-se de antemão, como por uma antecipação profética, a situações futuras e aos infinitos processos do tempo, isto é, deve ser infinita. Esta infinitude expressa-se diante do intelecto, afirmando que nenhuma inteligência é capaz de desenvolvê-la totalmente, que nela existe uma possibilidade infinita de estabelecer sempre novas relações.”(4)

Devemos reconhecer, entretanto, que na tradição religiosa de onde proveio a nossa cultura, a componente culminante ou transcendente de Deus suplantou e ocultou totalmente o processo propriamente des-velante da religião. Este aspecto entretanto foi também altamente ressaltado por Schelling ao aludir ao caráter poético absoluto do sagrado, isto é, à sua natureza de poesia em si. No fenômeno do culto e da cena devocional, que costumamos designar pelo termo de rito, transparece claramente essa função inaugural da presença divina, na medida em que a festa ritual constitui uma re-instalação na história e no tempo plasmador absoluto. De qualquer maneira, o traço marcante da filosofia religiosa que estamos apresentando, procura surpreender o divino na experiência de um Poder Fascinante-trascendental que abre e inaugura poeticamente um mundo. Essa função superior da mitologia compreendida como “a abertura de um regime de Fascinação” traduz a capacidade genético-transcendental da incidência histórico-cultural do divino. Eis porque Kerenyi com razão afirma que os deuses são Origens absolutas. Cada manifestação divina constitui uma Seins Offenbarung, um Weltaspekt, um universo inteiro de ações, formas e desempenhos possíveis. Neste sentido pelo menos é que o grande helenista e filósofo da religião, Walter Otto, interpreta o fenômeno religioso: “Em todo mito original revela-se um deus com seu mundo vivo. Pois Deus, como quer que se distinga de seus pares ou seja denominado, nunca é uma potências singular, mas sempre o inteiro ser do mundo numa revelação que lhe é própria.”(5) O pensamento religioso de Walter Otto é da mais alta significação para a elaboração de perspectivas filosóficas como as que estamos analisando, podendo mesmo se afirmar que foi ele quem mais contribuiu para a eclosão de novas ideias. 

Segundo a sua concepção não podemos apelar, pretendendo fundamentar e explicar o aparecimento da religião e da cultura, para um conjunto de aspirações, necessidades e ideais humanos, pois essas forças em sua modalidade histórica já supõem em aberto o espaço de sua manifestação. Finalidades, ideais, necessidades, sonhos, já são Einzel-formen eins Gesamtstils des Lebens, desempenhos intramundanos, que supõem e pressupõem uma dotação de sentido prévio. 

Esta dotação de sentido é o resultado emergente de uma epifania do divino, daquela poesia em si e por si de que falava Schelling: “A epifania majestosa”, diz-nos Walter Otto, “em cujo quadro o homem recebe a sua própria imagem e irradia também a partir de si mesmo aquele Todo em movimento que denominamos o estilo total da vida. No começo está sempre Deus.”(6) Em consequência, a Manifestação mítico-divina que estiliza e põe em movimento um ciclo histórico, de todas as coisas reais ou atuantes, é a mais real ou atuante (von allem wirklichen, das Wirklichste). Não só o divino ou o mito formador da cultura e da história absorve em si a realidade de todo o real, que nada mais é que sua expressão, mas também a atuação de Todo o atuante. A verdadeira atividade ou produtividade, a autêntica capacidade de criação pertence exclusivamente, segundo Otto, à Erscheinung der Gottheit; dela depende o grande ato criador (no sentido transcendental-projetivo) que desenha todas as formações particulares de uma cultura. Nada no mundo teria demonstrado, através do tempo, uma tal capacidade criadora ou produtiva, no sentido de possibilitante do possível, como das Bild der Göttlichen. A revelação do divino é o fenômeno originante de uma forma vital, revelação determinada na acepção frobesiana de uma Ergriffenheit. Quando Walter Otto afirma que “no começo está sempre Deus”, não devemos imaginar esta revelação como uma ideia subjetiva, um pensamento humano, pois, como vimos, a própria imagem do homem com suas forças e possibilidades é determinada ab alio pela Offenbarung do divino.

“O que denominamos cultura”, diz Otto, “é dependente em sua figura total de um Mito dominante, que é inseparável do Mito do divino. Com a criação desse Mito constitui-se um povo e uma cultura, que anteriormente careciam de existência.”(7) O homem e a natureza são, pois, capítulos especiais dessa revelação total, pois “Immer steht, am Anfang der Gott”. Ideias em tudo e por tudo iguais às expressadas por Schelling em toda a sua obra. No pensamento de Otto a experiência do processo religioso é traduzida na experiência de uma protoforma absolutamente fundante, de um poder projetivo primeiro, em sentido heideggeriano. A abertura desse mundo através da parusia divina não diz respeito unicamente a um aquém-mundo, em exclusão de um além. Fazendo alusão à realidade transmundana como feudo de uma desocultação de igual índole, podemos reportar-nos ao conceito de mundo no pensamento de M. Heidegger.

Lemos na Carta sobre o humanismo: “ ‘Mundo’, na expressão ‘estar-no-mundo’, não significa de nenhuma maneira o ente terrestre em contraposição ao celeste, nem mesmo ‘mundano’ contraposto a ‘espiritual’. ‘Mundo’ não significa nessa acepção algum ente ou qualquer domínio do ente, mas sim a abertura do Ser (die Offenheit des Seins).”(8) Procurando interpretar o sentido da meditação sobre o fenômeno do mundo e afastando falsas interpretações diz-nos Walter Bröcker em seu opúsculo Dialectik, Positivismus, Antropologie, p. 99: “O mundo não significa aqui o Universo, mas um horizonte que circunda o homem e dentro do qual pode encontrar qualquer ente, constituindo esse horizonte o que possibilita a maneira e o tipo do encontro.”(9) 

Portanto, nesta concepção de mundo como abertura do Ser, tanto as noções de um “aquém” como a de um “além” estariam subordinadas à própria noção de mundo: a desocultação abrangeria esses dois reinos em seus próprios fundamentos. Quando atribuímos ao assédio mítico-poético do divino a irrupção de um mundo, nos referíamos evidentemente ao des-velamento da totalidade do ente, ou das possibilidades terrestres ou celestes que se tornam disponíveis no dealbar de uma cultura. Deus ou os deuses são os princípios fundantes no sentido de desentranhar do sigilo do oculto todos os níveis e possibilidades do mundo. Walter Otto afirma que o que se debruça sobre o protagonista histórico nas epifanias originantes, não é qualquer poder recôndito ou incognoscível, mas sim “o próprio mundo como forma divina, como profusão de formações divinas”. Alude, sem dúvida, à ideia de mundo como co-implicando em si o sistema global revelado. As hierofanias míticas se manifestam como princípios des-fechantes que dão razão ao fundo e à forma de todo um ciclo de vida. A experiência filosófico-religiosa assim obtida expressa a mais plena incursão nas raízes transcendentais e des-velantes de todo o acontecer histórico. 

É o que podemos inferir destas palavras significativas de Mircea Eliade que citamos como conclusão deste trabalho: “É fácil compreender que o momento religioso envolve em si o momento cosmogônico; o sagrado revela a realidade absoluta e possibilita com isto uma orientação; fundamenta em consequência o mundo, no sentido de que fixa os limites e erige uma ordem mundial.”(10) 

Notas
(1) G. W. F. Hehel, Die Naturreligion, Vorlesungen über die Philosophie der Religion, zweiter Teil, ertes Kapitel, hrsg. G. Lasson, Leipzig, 1927, p. 7.
(2) F. Alhteim, Der Unbesiegte Gott, col. “Rowohlts Deutsche Enzyklopädie”, 35, Hamburgo, 1960, p. 7.
(3) F. W. J. Schelling, Introduction à la philosophie de la mythologie, trad. F. Jankélévitch, Ed. Montaigne, Paris, 1946, pp. 249-250.
(4) F. W. J. Schelling, Filosofía del arte, trad. E. Tabernig, Ed. Nova, Buenos Aires, 1949, p. 61.
(5) W. F. Otto, Théophanie, “Der Geist der Alt Griechischen Religion”, col. “Rowolts deutsche enzyklopädie”, 15, Hamburgo, 1956, pp. 21-22.
(6) W. F. Otto, Dionysios, “Mythos und Kultus, zweite Auf.”, ed. V. Klostermann, Frankfurt, s. data, col. Frankfurter Studien zur Religion und Kultur der Antike, Band IV, p. 30.
(7) Ibid., p. 31.
(8) Cf. Heidegger, Brief über der Humanismus, in: Platons Lehre von der Wahrheit, hrsg. Ernesto Grassi, Reihe Probleme und Hinweise, Band 5, Berna, 1954, p. 100.
(9) Walter Bröcker, Dialectik, Positivismus, Mythologie, Ed. V. Klostermann, Frankfurt, 1958, p. 99.
(10) M. Eliade, Das Heilige und das Profane, “Von Wesen der Religionen”, col. Rowohlts deutsche enzyklopädie, 31, 1960.

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