☛ Prefácio à obra O positivismo no Brasil, de João Camilo de Oliveira Torres (1943).
I
1. Em qualquer parte do mundo civilizado, poderia parecer absurda ou extemporânea a ativa preocupação com o Positivismo. A filosofia de Augusto Comte já está definitivamente superada, tornando-se uma espécie de relíquia histórica abandonada no vasto museu do pensamento especulativo que pertence integralmente ao passado. No Brasil, porém, tudo que diz respeito ao Positivismo interessa a um círculo bastante considerável de idólatras do criador do culto da humanidade. Ainda subsiste, entre nós, em reduzido grupo de primários e de pessoas pouco informadas a respeito do movimento de ideias, a ingênua convicção de que filosofia é sinônimo de Positivismo. Não exagero ao afirmar isso, pois há alguns anos atrás, discutindo certo tema com um antigo aluno da Escola Politécnica, percebi claramente que o meu interlocutor interpretava qualquer referência exata à filosofia como noção ou conceito baseado no sistema positivista.
2. É claro que tive
a impressão de estar perante um monstro diluviano, um autêntico representante
da pré-história especulativa que tivesse conservado milagrosamente a vida
apesar do acúmulo de inúmeras estratificações, mas a verdade é que se tratava
de um cidadão prestante, muito vivaz e coerente nas suas afirmativas. Não se
pode, entretanto, negar que o Positivismo encontrou no Brasil um competidor à
sua altura nas modernas correntes neotomistas. A figura simpática de Jacques
Maritain passou a exercer, dentro de círculos bastante fechados, uma atração
tão forte quanto a do admirador de Clotilde de Vaux. Generaliza-se assim a
falsa convicção de que optar entre o Positivismo e o Tomismo é uma contingência
inevitável para todo aquele que se tortura em encontrar caminho na selva
selvagem dos sistemas e doutrinas filosóficas.
3. Eis por que um
livro sobre o Positivismo ainda pode ser considerado no Brasil acontecimento da
atualidade... literária. Há muito tempo se fazia sentir a necessidade de um
trabalho que, estudando as fontes do comtismo entre nós, demonstrasse o seu
sentido social, político e ideológico para uma comunidade bisonha e incipiente
em matéria de aventuras especulativas. Esse trabalho deveria oferecer-nos como
conclusão uma espécie de balanço das ideias positivistas, em que ficasse
demonstrada a disparidade entre a real importância do comtismo e a sua incrível
difusão por essas longínquas plagas.
4. A reflexão
crítica sobre o sistema positivista impõe-nos a conclusão aparentemente
paradoxal de que todo esse imenso arcabouço doutrinário se inspirava em uma
secreta aspiração à economia do pensamento. O filósofo Augusto Comte revelou
sempre a intenção de esquematizar, de reduzir as linhas do edifício da sabedoria,
de descobrir as leis simples e exatas que revelassem a estrutura do pensamento
científico. Essa preocupação, através de toda a vasta obra do filósofo francês,
se concretizou sobretudo no empenho evidente de forjar um método que permitisse
solução adequada para grande número de problemas. O método positivista agiria como
uma chave mágica, como um “abre-te, Sésamo” perante as muralhas impenetráveis
que guardavam os tesouros da sabedoria fabulosa e milenária. A principal
vantagem, porém, consistia em que o seu detentor estava livre dos terríveis
esforços e canseiras para atingir os píncaros onde repousa a verdade eterna.
5. O Positivismo
dispunha, portanto, de um receituário, de algumas fórmulas milagrosas que
poupavam ao pensamento o desperdício de uma energia bastante útil para a
conservação e o aperfeiçoamento da vida. Considerava-se, também, a situação dos
que não gostam de embaraçar-se com a sobrecarga da meditação trabalhosa e
profunda, dos que desejam soluções nítidas e insofismáveis para problemas
intrincados, dos que acreditam na razão científica como suprema instância para
o julgamento definitivo de todas as querelas que atormentavam espíritos
teológicos ou metafísicos. O Positivismo pertence, pois, a um período histórico
em que era possível elaborar sistemas de caráter enciclopédico, vastas sumas
que compendiavam o saber do tempo e sínteses harmoniosas dos diferentes ramos
ou disciplinas científicas. Tratava-se de uma filosofia em que as soluções eram
mais abundantes do que as alternativas problemáticas. Os iniciados adquiriam
facilmente um método infalível, e aprendiam com singular rapidez e exatidão a
remoer fórmulas já preparadas com a paciência fecunda dos bovinos. A pesquisa
laboriosa e demorada não se tornava mais necessária, pois existia um sistema
que continha todas as ciências, e que previa o seu desenvolvimento possível.
6. Não há exemplo
igual, na história do pensamento, de semelhante hostilidade ao progresso, à
evolução necessária das ideias e dos conceitos. A estagnação intelectual é o objetivo
verdadeiro do comtismo. É uma filosofia de águas paradas, em que a inércia e a
paralisação encontram a sua consagração definitiva. Nada mais contrário às
teorias dinâmicas, como as compreendiam Hegel e Bergson, por exemplo, pois o
Positivismo desconhece o werden
germânico e o élan vital, encerrando-se dentro de uma
doutrina fechada, sem janelas para as perspectivas infinitas, para os
horizontes livres em que surgem os primeiros clarões de uma nova aurora. Aderir
ao comtismo é encerrar-se em uma prisão onde a luz não penetra, é renunciar à
mudança, à dúvida, ao jogo imprevisto das ideias, à surpresa e alegria da
descoberta. Ser positivista é uma forma deselegante e retardatária de
hibernação intelectual, de incompreensível apego a uma concepção do mundo em
que o estático sobreleva o dinâmico, o passado determina o futuro e a ciência
se mumifica em uma fase pouco brilhante de seu extraordinário progresso.
7. A noção
positivista do progresso está consubstanciada na lei dos três estados que,
segundo Augusto Comte, domina toda a filosofia das ciências e toda a
sociologia. Essa lei, que foi formulada por Comte, Stuart Mill e Spencer na
Inglaterra e por Mach e Avenarius na Alemanha, constitui um símbolo caricatural
da evolução, uma dessas interpretações tendenciosas do curso histórico do
pensamento criador que só poderia encontrar abrigo em mentalidade fanática e
avessa à observação desinteressada. A crítica de Max Scheler [1] fere um
ponto básico quando assinala que o pensamento teológico, metafísico e positivo não
constituem fases sucessivas da evolução científica, mas formas essenciais,
permanentes, ligadas à essência do espírito humano. O filósofo alemão conclui o
seu admirável ensaio sobre a lei dos três estados, afirmando que é da harmonia
entre os valores religiosos, metafísicos e científicos (e não da hipertrofia ou
desenvolvimento unilateral de cada um deles) que resultará a perfeita
organização da cultura em uma comunidade livre.
Nota 1: Moralia, Der Neue Geist-Verlag, Dr. Peter Reinhold, Leipzig, 1923. V. capítulo: Ueber die positivistische Geschichtsphilosophie des Wissens.
8. Não me parece,
entretanto, que Max Scheler tenha apreendido a verdadeira debilidade do sistema
positivista, o erro essencial de que todos os outros são apenas corolários ou
manifestações secundárias. A principal falha da filosofia comtista foi a
ingênua ilusão de que era possível e necessário lançar os fundamentos de um
autêntico humanismo científico. Os críticos modernos que, à feição do
biologista Julian Huxley, do romancista Wells e do poeta Paul Valéry, se
referem frequentemente a sólido corpo de doutrinas, que constituiria uma
espécie de reserva inesgotável do espírito contemporâneo, sob o nome de
“humanismo científico”, desconhecem forçosamente os seus compromissos teóricos
com a doutrina de Augusto Comte. Pois bem, é nas páginas compactas e massudas
do Cours de philosophie positive,
sobretudo nos dois últimos volumes, que encontraremos o primeiro esboço dessa
teoria que procurou nos resultados da investigação científica os valores
absolutos para servirem de fundamento à interpretação do homem e do seu
destino. O humanismo científico é a consequência natural da sociologia de Comte.
Ele pressupõe que a ciência possa fornecer a solução de todos os problemas que
se relacionam com os valores antropológicos, a situação do homem no mundo, as
questões econômicas e sociais, os conflitos decorrentes de uma adaptação
imperfeita e os choques produzidos pela oposição das raças e pela luta das
tendências.
9. O pensador inglês
Whitehead afirma que o desenvolvimento das ciências naturais, depois do século
XVII, foi excluindo gradualmente a concepção primitiva do mundo baseado no
sentido comum[2].
O sentido comum, entretanto, até os nossos dias, domina a vida cotidiana,
prevalece nos mercados, nos campos onde se praticam os esportes, nos tribunais
e em todas as relações entre os homens. Ainda conserva a sua importância na
arte, na literatura e constitui o pressuposto das concepções e teorias
humanistas. Existe assim uma contradição inevitável entre o humanismo e a
ciência em geral. As ideias de Whitehead a esse respeito são insuspeitas, pois
se trata de um matemático e de um físico de renome mundial.
Nota 2: Naturaleza y vida, Instituto de Filosofia, Buenos Aires, 1941.
10. A verdade, porém,
é que as ciências não podem fornecer os princípios fundamentais de uma
filosofia humanista, porque elas não apresentam as condições de estabilidade,
de segurança e de intemporalidade que o humanismo requer. O conhecimento
científico não tem, segundo observa Gonseth[3], caráter
predicativo, isto é, não possui nenhuma certeza que se possa considerar como
inalterável pelo progresso posterior do saber. Basear o humanismo nos
princípios e leis científicas é construir em areia movediça, é erguer um
edifício em alicerces instáveis, constantemente renovados. Uma teoria humanista
fundamentada na mecânica newtoniana, no evolucionismo de Darwin e Spencer ou na
relatividade de Einstein apresentaria todos os característicos de uma concepção
utópica e inaplicável aos problemas antropológicos.
Nota 3: L’Unité de la Connaissance Scientifique, Travaux du IX Congrès International de Philosophie, Hermann & Cie., Éditeurs, 1937.
11. O humanismo só
pode apoiar-se em princípios absolutos, em valores eternos ou concepções que
excluam qualquer concessão às ideias relativistas do naturalismo filosófico e
do ceticismo teórico. Daí a íntima conexão entre os sistemas religiosos e as
doutrinas humanistas de caráter real e autêntico. A história demonstra que só
vingaram aquelas doutrinas animadas por disposição ou atitude eminentemente
religiosa, por uma concepção do mundo de natureza espiritual e mística. Não se
quer dizer com isso que tais crenças sejam verdadeiras ou que se apoiem em
argumentos irrefragáveis, mas é certo que elas fornecem o fermento
insubstituível, a energia perseverante e vitalizadora, sem a qual as ideias-forças
que comandam o destino do homem perdem a sua significação, reduzem-se a
símbolos mortos, desprovidos de qualquer substância interior.
12. A tentativa
positivista de construir os fundamentos de um humanismo em que os valores
científicos adquirem sentido absoluto e predicativo não poderia subsistir por
ser evidentemente artificial, absurda e contraditória. Ela se baseia no falso
pressuposto de que a ciência substituiu definitivamente o período religioso e
metafísico da humanidade. A verdade, porém, é que o conhecimento positivo assume,
nesse sistema filosófico, o aspecto de um ritual mágico, o efeito milagroso de
uma prática misteriosa que operasse transformações profundas na natureza
humana. O estado positivo realiza, nessa última fase, não uma substituição
necessária, mas uma espécie de síntese incomparável dos estados teológico e
metafísico que encontrariam na ciência o instrumento prodigioso da salvação
eterna da humanidade.
II
13. A síntese
subjetiva de Augusto Comte revela ambição desmesurada que nenhum pensador atual
ousaria sustentar com seriedade. É curioso verificar que essa preocupação com
os problemas éticos, essa noção de que todas as ciências devem se organizar ao
redor da ideia central de humanidade tenham surgido no espírito do filósofo
depois da mais séria crise que atravessou em sua vida. Observa-se, após esse
período de desequilíbrio mental declarado, o regresso do pensador positivo às
concepções mais humanas, de sentido eminentemente afetivo, verificando-se nele
um surto imperioso de necessidades religiosas e místicas há muito tempo
recalcadas pela adesão incondicional aos métodos de investigação objetiva. A
síntese subjetiva caracteriza, assim, a nova fase do sistema positivista em que
o humanismo científico adquire o feitio de uma religião teórica desprovida de
qualquer conceito do sobrenatural, e impregnada de ideias ainda pouco
elaboradas sobre os problemas sociológicos, sobre a necessidade de restauração
do feudalismo católico, sobre os principais característicos do regime dogmático
e do culto que permitiriam a mais completa reorganização das instituições
políticas e sociais.
14. O que há de
admirável, nesse segundo período da sistemática positivista, é a atividade
desenvolvida por Comte, a sua energia maravilhosa, a sua vocação mística
despertada pelo amor de Clotilde de Vaux que se confundia com o culto exaltado
da própria humanidade. Nessa fase da filosofia positivista há uma
extraordinária fusão de ideias lúcidas com propósitos absurdos e tendências
inegavelmente mórbidas. O plano dos nove sacramentos, por exemplo, que incluem
a apresentação, a iniciação, a admissão, a orientação, o casamento, a madureza,
a reclusão, a transformação e a incorporação, está longe de revelar um estado
de equilíbrio mental ainda que pouco satisfatório. Não será necessário recordar
o calendário comtista, o catecismo, onde os preceitos da nova religião revestem
o aspecto de dogmas do cristianismo, a teoria da imortalidade subjetiva, a
doutrina dos números sagrados, a bandeira, as divisas e as comemorações do
culto positivista para se impor a conclusão de que o filósofo francês sofreu
durante muito tempo os efeitos da grave perturbação psíquica que o abalou tão
profundamente.
15. A religião
constitui, assim, no sistema positivista, uma sublimação inevitável das
tendências metafísicas cuidadosamente recalcadas. A metafísica, já condenada ao
inferno na religião de Comte, encontrou um digno substituto nesse culto da
humanidade imortal. Foi o único recurso para dar vazão aos impulsos que
atormentavam o pensador, suscitando nele tenaz insatisfação diante da própria
obra e o desejo veemente de acrescentar-lhe um complemento grandioso. A nova
dogmática, introduzida nessa segunda fase do sistema positivista, proporcionava
ao seu criador extraordinária liberdade de movimentos, verdadeira ruptura de
compromissos assumidos com o regime da investigação objetiva, com o seco
intelectualismo das afirmações subordinadas à experiência e à verificação
experimental. Ainda que Comte procurasse, por todas as formas, demonstrar que a
filosofia positiva se apresentava como perfeita unidade, e que não havia
nenhuma diferença essencial entre a primeira e a segunda parte da sua obra, é
inegável que o espírito científico nada tem de comum com a teoria do Grande
Ser, a doutrina dos Anjos da Guarda e a restauração do culto da Virgem Mãe.
16. Cabe aqui,
entretanto, a observação de que Augusto Comte sempre compreendeu a ciência de
modo bastante especial. Os antecedentes teóricos da idolatria pela humanidade
podem ser encontrados nas suas concepções algo cabalísticas e extravagantes da finalidade
do conhecimento científico. A ciência, segundo o criador da lei dos três
estados, tem qualquer coisa de puritana, de formalista e de ridiculamente
abstêmia. Ela conserva-se reservada e isenta dos contatos vulgares, renunciando
aos instrumentos, como o microscópio, eminentemente suspeitos e inaptos para
qualquer pesquisa séria. As suas leis autênticas são insuscetíveis de qualquer
transformação ou progresso, pois resistem como a rocha viva aos embates das
ondas agitadas por teorias e programas supostamente inovadores. As observações
astronômicas que pretendem ultrapassar os limites do sistema solar para atingir
o universo não apresentam realmente nenhuma importância. A análise espectral da
constituição química dos corpos celestes só poderá embair os ingênuos que
acreditam no que não veem e veem o que acreditam. A famosa descoberta de Le
Verrier poderia interessar exclusivamente aos habitantes de Uranus, assim como
as admiráveis teorias óticas de Fresnel denunciam uma representação retrógrada
e inadmissível do que significa a verdadeira ciência.
17. Augusto Comte
submeteu os cientistas a uma espécie de rigorosa dieta, a um regime de poupança
e de racionamento intelectual em que a curiosidade pródiga era profligada como
um feio vício de que deveriam se envergonhar. A indagação das causas primárias
era considerada o mais pernicioso erro metafísico. A estrutura íntima dos
fenômenos escapava a qualquer possibilidade de pesquisa bem orientada, e seria
condenado pelo menos ao purgatório positivista quem se preocupasse em
investigar a origem dos fatos, a causa ativa da sua produção. A ciência, pois,
assume na obra de Comte uma feição singular, estranha e incompatível com a
noção de progresso, com o próprio conceito que faziam dela predecessores e
contemporâneos do pensador francês. Não era, pois, somente o futuro que viria
invalidar as suas afirmações sobre o espírito e o destino do conhecimento, mas
o passado e o presente opunham categórico desmentido a essa teoria de fundo
intolerante que se baseava em uma visão puramente pessoal dos fenômenos e das
leis que os regem.
18. Não se pode
negar, entretanto, que Comte atribuía ao seu sistema filosófico um sentido
positivo, isto é, científico. Ele julgava que a sociologia, a política, a moral
e a religião da humanidade eram demonstráveis como teoremas e se revestiam da
certeza objetiva dos postulados lógicos. Mas na verdade a filosofia positivista
não era ciência, não tinha caráter assertórico, apodítico ou predicativo.
Constitui, assim, uma das falhas fundamentais do Positivismo essa confusão
maliciosamente estabelecida entre hipótese especulativa e fato científico.
Julgar que proposições meramente prováveis se confundem com a realidade
objetiva, suscetível de verificação experimental, revela uma disposição de
espírito fronteiriça do fanatismo e da alucinação. A síntese subjetiva, como
observa Artur Murphy[4], seria,
quando muito, uma parte da filosofia suscetível de transformar-se em ciência,
constituindo fase intermediária no longo processus
que se realiza entre a primeira e a segunda. A prestidigitação comtista reside
principalmente em atribuir à pura especulação e à simples hipótese o sentido de
aquisições definitivas do conhecimento.
Nota 4: “A Critique of Positivism”, publicado nos “Travaux du IX Congrès International de Philosophie”.
19. A infidelidade do
Positivismo, a que se referiu há pouco tempo Joaquim Xirau[5],
consiste precisamente nesse jogo suspeito de fazer passar por ciência o que tem
caráter de suposição arbitrária e de ponto de vista pessoal. Mas o comtismo é
infiel também aos próprios princípios fundamentais por ele adotados. A
afirmação de que somente o “dado é real”, que, segundo Carnap, constitui o
axioma básico da filosofia positiva, foi compreendida por esta como um
princípio correspondente à hipótese naturalista de que a sensação é a única
realidade em que se apoia o processo do conhecimento. Essa redução da realidade
a um conjunto de sensações denuncia irremediável tendência para o relativismo
cético, a fragmentação da experiência concreta em átomos psíquicos e a adesão a
um idealismo disfarçado que não ousa dizer o seu próprio nome. O conceito de
fenômeno, de acordo com a mesma técnica, é limitado a certas manifestações
privilegiadas, tem significação restritiva e só abrange, portanto, uma parte da
realidade considerada como objeto legítimo do conhecimento científico.
Nota 5: La fenomenologia de Husserl, Editorial Losada, B. Aires, 1941.
20. O Positivismo
desconhece a realidade das essências e dos valores que nada representam para
esse sistema apegado a uma noção limitativa do próprio fenômeno. Daí a sua
caracterização definitiva como uma espécie de sensualismo fenomênico que exclui
do seu contexto doutrinário qualquer preocupação com a substância real, com a
crítica do espírito humano sob o ponto de vista criador e dinâmico. A ausência
de um sistema axiológico (teoria dos valores) e a incapacidade de admitir a
elaboração contínua de ideias e essências como o centro de toda atividade espiritual
obrigaram o comtismo à situação pouco invejável de operar exclusivamente com os
dados fenomênicos, isto é, com um grupo reduzido de fenômenos concretos.
21. Na primeira lição
do Cours de philosophie positive
encontra-se a declaração de que é necessário fundar uma nova especialidade que
se dedique ao estudo das generalidades científicas. O comtismo tinha, pois, por
finalidade fazer cessar a influência deletéria das especializações exageradas,
criar condições favoráveis ao aparecimento de sábios que se dedicassem, por uma
educação conveniente e sem se deixar atrair pelo cultivo especial de um ramo
particular da filosofia ou da ciência, a determinar o espírito das diferentes
disciplinas do conhecimento. Cabia a essa geração privilegiada o ensejo de descobrir
as relações entre as diversas ciências, de investigar os seus princípios
comuns, dentro da mais estrita obediência às máximas fundamentais do método
positivo. O que se pretendia, portanto, era uma organização geral do mundo
científico que permitisse incorporar cada nova descoberta ao sistema comum, de
forma a não permitir nunca que a atenção dada aos pormenores impedisse a visão
do conjunto.
22. Eis a advertência
de Comte ao iniciar o seu célebre curso, cujo objetivo se resumia no
desenvolvimento amplo dessa ideia fundamental. O programa positivista seguiu,
de fato, essas linhas inicialmente traçadas, mas o resultado da aplicação do
método foi uma síntese geral das ciências que se apoia em um enciclopedismo
superficial e obsoleto. Nada mais estéril do que cultivar generalidades
científicas, baseando a disciplina positiva em uma série de princípios cujos
elos são na maioria das ocasiões meramente formais ou fictícios. Essa
disciplina positiva presume a unidade de todos os ramos do saber, mas o que ela
obtém, realmente, é um mistifório doutrinário, uma perfeita colcha de retalhos,
onde a variedade das cores e dos tecidos assombra pelo mau gosto e pela
incoerência aparente. É a vitória de um ecletismo científico que provoca,
necessariamente, a atitude cética, a dúvida pertinaz e a indiferença à
filosofia. A leitura da obra de Comte suscita ainda certa admiração pela sua
habilidade em extrair da ciência do seu tempo elementos valiosos para uma
síntese positiva, mas a esterilidade desse sistema se revela plenamente na obra
dos discípulos servis, dos imitadores destituídos de talento que esmoem os
produtos do mestre sem obter deles qualquer espécie de substância ou vitamina
espiritual.
23. Não há cientista
algum de verdadeiro mérito que se tenha formado na escola do Positivismo.
Nenhum físico, químico, sociólogo ou mesmo filósofo de excepcional valor que
recebesse, através do sistema comtista, sua iniciação no mundo das ideias e do
raciocínio especulativo. Assim como do marxismo não saiu nenhum economista,
sociólogo, filósofo ou historiador que se pudesse ombrear com os grandes
cultores dessas especialidades, o Positivismo revelou-se incapaz de produzir
outro gênero de adeptos a não ser a legião dos repetidores passivos, dos
especialistas em generalidades que nada conhecem a fundo, dos humanitários
pedantes e dos crentes mais ou menos automatizados nas fórmulas vazias de uma
religião onde não há traço algum do poder divino.
24. A adesão ao
comtismo implica a renúncia absoluta a qualquer manifestação de originalidade,
pois não existe outro sistema filosófico que ofereça tão escassa margem à
imaginação, ao senso estético e à necessidade de poesia. Tudo nessa filosofia é
rígido, hirto, inteiramente fechado aos surtos espontâneos da existência, à
compreensão da natureza humana com os seus conflitos, as suas contradições
inevitáveis e a sua sede permanente de liberdade. O ar não penetra no recinto
apertado onde se reúnem os oficiantes estranhos dessa religião da humanidade
que desconhece inteiramente o homem, e que tudo fez para destruir nele o
direito à alegria, à vida espontânea a ao espírito criador.
III
25. Havia no
Positivismo, entretanto, o germe de uma especulação vigorosa e saudável. Apesar
desse germe não se ter desenvolvido, é forçoso admitir que a valorização do
fenômeno e do dado empírico representava reação sadia contra os excessos
metafísicos da filosofia da natureza, e contra as ficções mais ou menos
inoperantes do idealismo abstrato. O regresso às formas elementares da
experiência foi inicialmente condição essencial da purificação das fontes de
onde brotava o pensamento desinteressado. Agiu como poderoso antídoto contra as
tentativas de envenenamento da vida e dos valores da existência que a dialética
abstrusa do sistema hegeliano, o racionalismo estéril da crítica de Kant e as
elucubrações espinosistas de Schelling tinham empreendido com êxito assombroso
no mundo filosófico daquela época. O Positivismo surgiu, assim, naquele período
de crise aguda em que o pensamento ameaçava converter-se em um jogo de
abstrações mais ou menos brilhantes, em um torneio de conceitos e ideias puras,
esvaziadas preliminarmente de qualquer substância que, em virtude do peso
específico, pudesse servir de obstáculo aos contínuos voos metafísicos.
26. A filosofia, por
efeito do gênio de Augusto Comte, passava a viver ao ar livre, inoculando nas
suas veias cansadas o sangue novo das ciências. Era um rejuvenescimento
completo, uma integração absoluta da atividade especulativa no ser objetivo, na
estrutura da experiência concreta. As construções ideais foram substituídas por
fatos, dados positivos e fenômenos. Dispunha-se de um terreno sólido onde
assentar o edifício da nova filosofia que procurava um contato estreito com a
realidade, tão íntimo quanto a fusão dos dois corpos atraídos por irresistível afinidade
eletiva. Suprimia-se, assim, de um só golpe, a absurda separação entre a
natureza e o pensamento que tinha constituído a maior tortura dos
representantes das escolas filosóficas anteriores.
27. Augusto Comte não
poderia jamais acreditar na possibilidade de deduzir o mundo e a natureza de
princípios apriorísticos abstratos. Ele não se aventuraria nunca a retirar do
próprio espírito os elementos formadores do universo. A sua hostilidade a
qualquer tentativa de evasão do real livrou-o de se entregar à sedução dos
sistemas compactos e inteiriços, como o de Hegel e o de Kant, em que a
abstração prevalece tiranicamente sobre a experiência. Não procurou nunca
recorrer ao método dedutivo para atingir o cerne da realidade, como aconteceu
com os grandes pensadores do início do século XIX. É certo até que jamais se
preocupou com os problemas do raciocínio puro e da lógica abstrata. Sentiu
desde logo que sua vocação não era a metafísica, nem a dialética
transcendental, pois o terreno firme das ciências experimentais e das
matemáticas fornecia os dados insubstituíveis ao pensamento filosófico.
28. É necessário
acentuar, entretanto, que o Positivismo não conseguiu atingir a plenitude do
concreto e do real. Ele permaneceu à margem do rio em que o ser fluía como uma
corrente silenciosa e ininterrupta. As categorias ontológicas nada representam
para o naturalismo relativista de Comte. Tudo se reduz, em última análise, ao
“fato” simples, isolado e significativo por si mesmo. Não há lugar para outras
formas da realidade, tão legítimas como os fenômenos ou, melhor, como o
conjunto limitado de manifestações naturais que o filósofo considerava
privilegiadas e autênticas. A realidade era somente natural, não havendo
nenhuma alusão ao plano das essências e dos valores. Os conceitos ideais da
lógica, que não se confundem com os fatos e que são irredutíveis às sensações,
não figuram nos quadros estreitos em que o Positivismo pretendeu encaixar todas
as modalidades do ser e da consciência.
29. Acontece frequentemente
que a crítica ao Positivismo se satisfaz em assinalar essas limitações e falhas
da doutrina, esquecendo-se, porém, de referir o erro fundamental de que provêm
todos os outros desvios da teoria comtista. Na verdade o Positivismo não
constitui propriamente um sistema filosófico. O seu criador não pode ser
considerado como verdadeiro filósofo. Ele era antes de tudo especialista de
matemáticas e ciências físicas, interessado em arquitetar hipóteses baseadas
nas generalizações que partiam de fatos ou de leis empíricas. O domínio da física
era o campo principal da teoria positiva, tornando-se mais tarde, segundo a
profecia de Comte, o fundamento do sistema total de especulações humanas.
Trata-se, portanto, de uma espécie de “fisicalismo” radical como seria
denominado posteriormente pelos pensadores germânicos. A própria sociologia
figurava na classificação das ciências como autêntica física social.
30. As grandes épocas
da história, afirma o autor do célebre Discours
sur l'esprit positif, se sucedem umas às outras de acordo com leis invariáveis.
A doutrina que descobrir essas leis inflexíveis exercerá no futuro uma
verdadeira ditadura espiritual. O que interessava ao comtismo acima de tudo, em
determinada fase da sua evolução doutrinária, era explicar os enigmas do
passado. O instrumento que serviria a essa prodigiosa decifração não seria
fornecido pela história, mas exclusivamente pela sociologia. Augusto Comte não
acreditava, entretanto, que a sociologia dinâmica estivesse em condições de
resolver grande parte dos problemas suscitados pela evolução da humanidade. Ele
confiava, apesar disso, no progresso do espírito positivo que tornaria possível
pouco a pouco remover a maioria das nossas dificuldades presentes.
31. O que parece
certo, porém, não se conhecendo pelo menos qualquer contestação séria a esta
convicção, é que em nenhuma dessas afirmações se vislumbrará a mais leve
influência do ponto de vista filosófico. Antes pelo contrário, em toda a obra
de Comte o que transparece é a sua singular inaptidão para a filosofia. Não se
deve responsabilizar por isso a tradição racionalista do pensamento francês,
pois encontraremos em Descartes acentuada vocação especulativa unida ao mais
alto pendor para a investigação e a crítica científicas. Em Augusto Comte,
porém, a linguagem adquire fortes tonalidades e ressonâncias imprevistas quando
o escritor se dedica aos temas da sociologia, da moral e da religião positivas.
Não fala aqui o filósofo, mas o ideólogo e o profeta. O tom geral de tais
páginas não é o da argumentação serena e substanciosa, pois prevalece nessa
parte da obra de Comte o mais decidido empenho em forçar as portas de um
recinto onde não há lugar para o espírito positivo. As páginas sobre a estática
e a dinâmica social, a filosofia da história, a religião e a ética revelam uma
extraordinária fusão do ponto de vista científico e utópico, das concepções
ideológicas e empiristas, da serena segurança dos princípios positivos com o
irresistível arrebatamento dos transportes proféticos e das exaltações
místicas.
32. Não há em toda a
obra de Augusto Comte nenhuma página que se possa classificar como filosófica
no sentido clássico e eterno dessa palavra. Nada que lembre Platão, Espinosa,
Hegel ou o próprio Descartes. O estilo desse pensador enciclopédico
apresenta-se frequentemente sem nenhum brilho, descozido e quase amorfo. A sua linguagem
é em geral arrastada, trôpega e destituída de flexibilidade. Não há maior
tortura do que a obrigação de percorrer essas páginas maciças, onde não existe
o mais ligeiro vestígio de sentimento poético, mesmo quando o autor se deixa
empolgar pela paixão ideológica e se entusiasma com as perspectivas mágicas de
um futuro completamente dominado pela filosofia positiva.
33. O pensamento
comtista é sempre denso, pesado e excessivamente confiante nos recursos de que
dispõe. Não é um raciocínio torturado como o de Pascal, cheio de dúvidas e
hesitações. Nunca lembraria o ímpeto dionisíaco de um Nietzsche, a força
obscura e misteriosa de um Kirkegaard, ou a elaboração contraditória embora
viva e espontânea de um Unamuno. Tudo em Comte é medido, mas segundo um estalão
que serve mais às exigências do espírito mediano do que às audaciosas
arremetidas do gênio verdadeiramente criador. Nenhuma necessidade de superação
dos dados concretos da experiência, satisfazendo-se, por isso mesmo, com a
posse tranquila da certeza científica que é a negação mais categórica possível
da vacilação e da dúvida filosófica. O seu gosto pelo dogma estático, as
tendências do seu temperamento conservador, antirrevolucionário por excelência,
deixaram marca bem visível nesse sistema especulativo.
34. Eis por que uma
das preocupações mais constantes do criador da filosofia positiva foi conceber
um método que poupasse aos seus inúmeros adeptos o esforço de pensar por si
próprios. A finalidade do método positivo era a economia do pensamento, era a
elaboração de fórmulas e de princípios que proporcionassem soluções prévias
para todos os problemas, sem que se tornasse nunca necessário uma revisão
dessas normas fundamentais. O que caracteriza o método comtista é o feitio dogmático
e inflexível de suas premissas. Trata-se de uma forma permanente da crítica
científica, robustecida pela convicção de que a experiência e o passado
contribuem para a sua justificação definitiva. Não é propriamente um método
filosófico, pois a sua estrutura e os seus fundamentos são ou procuram ser
rigorosamente objetivos. Na realidade, o que interessava a Comte era aplicar a
crítica científica aos problemas que tinham sido tratados, até àquela época, do
ponto de vista puramente especulativo.
35. É essa a razão
por que os homens de ciência em geral simpatizam consciente ou inconscientemente
com o Positivismo. Frequentemente verificamos que um investigador dedicado ao
seu laboratório, sem qualquer interesse pela filosofia, admite como válidas
certas afirmações que se integram em um comtismo subconsciente e acrítico. O
Positivismo constitui, assim, a metafísica dos cientistas que não são capazes
de pensar filosoficamente, que nunca procurariam, por si mesmos, refletir sobre
o sentido e a finalidade do conhecimento, que jamais indagaram se existe alguma
coisa além dos fatos e de sua interpretação teórica, e se seria lícito submeter
a experiência a um julgamento que exigisse a comprovação de sua autenticidade.
A ausência de espírito crítico, tão comum mesmo entre cientistas de valor
indiscutível, facilita a adesão a um credo filosófico que impõe aos adeptos a
renúncia a qualquer espécie de autonomia intelectual.
36. O cientista
geralmente não se preocupa em estender a sua investigação até os fundamentos da
realidade. Ele se detém perante as fronteiras do irracional e do incognoscível
que surge como um domínio vedado à pesquisa, onde os conceitos e as leis
empíricas não encontram nenhuma aplicação concreta. Mas não é só isso, pois o
homem de laboratório considera frequentemente como irracional e incognoscível
aquilo que não se reduz aos termos naturais da experiência. Na própria noção de
fenômeno, o cientista, ao contrário do filósofo, não percebe a forma ou
modalidade do ser, o aspecto qualitativo e particular que interessa sobretudo à
especulação. A ontologia nada tem de comum com o ponto de vista científico,
embora toda a construção elaborada pelo conhecimento se ressinta dessa falha
fundamental que imprime ao portentoso labor da inteligência uma feição precária
e eminentemente transitória.
37. A filosofia tem
por objetivo precisamente essa tarefa que a ciência não é capaz de realizar. Ao
filósofo interessa no fenômeno a manifestação qualitativa, temporal e unívoca.
O seu empenho é surpreender o traço que distingue, a expressão única que fixa
um momento entre todos os outros, o sinal decisivo e revelador da realidade no
que ela tem de mais íntimo e de mais profundo ao mesmo tempo. Eis por que o
método científico nunca bastará ao verdadeiro filósofo, cuja imperiosa vocação
exige qualquer coisa de mais penetrante, um instrumento talvez imperfeito, mas
que possa ser manejado livremente, sem subordinação a compromissos
escravizadores com uma técnica rígida e inflexível como o raciocínio
matemático.
IV
38. Seria
interessante indagar, ao concluir essas reflexões sobre um sistema filosófico
definitivamente superado, se ainda subsistem no pensamento moderno traços da
grande influência exercida pelo Positivismo durante o século XIX. É necessário
distinguir, antes de qualquer outra consideração, a influência manifesta e
patente do comtismo, da sua ação subterrânea, indireta ou ocultamente exercida.
Existem diversos positivistas, sobretudo nos meios científicos, que desconhecem
inteiramente a sua filiação doutrinária e que, caso fossem interpelados,
procurariam desmenti-la. Tudo isso vem confirmar, sem sombra de dúvida, que o
comtismo é a metafísica espontaneamente adotada pelos homens de ciência alheios
à orientação filosófica definida e consciente.
39. Entre as
correntes atuais da filosofia, a doutrina que parece manter relações mais
evidentes com o sistema de Augusto Comte é inquestionavelmente o neopositivismo.
Pode ocorrer até, aos menos informados, que a escola de Viena nada mais
represente do que uma tentativa de restauração dos princípios e ideias do
pensador francês. Essa impressão, entretanto seria completamente falsa. Segundo
as observações históricas de Otto Neurath, publicadas na revista oficial da
escola neopositivista[6], o
círculo de Viena prende-se tradicionalmente a Mach, Poincaré, Einstein, Frege,
Russell e Wittgenstein. O nome de Augusto Comte não é citado entre esses
antecessores ilustres. A simples verificação das principais teses do neopositivismo
revela, também, que não existe nenhuma identidade substancial entre as concepções
do pensador francês e as teorias revolucionárias do moderno empirismo lógico.
Nota 6: Erkenntnis, Erster Band. Heft 2-4. Herausgegeben von Rudolf Carnap und Hans Reinchenbach. Felix Meiner Verlag in Leipzig, 1930.
40. O Positivismo
contemporâneo dedica-se sobretudo à complexa tarefa de esclarecer os conceitos
lógicos da linguagem científica, suprimindo qualquer resíduo metafísico na filosofia
e submetendo todas as proposições à minuciosa análise de seu fundo empírico.
Entre esses três objetivos básicos, somente o segundo encontraria precedente
histórico no sistema comtista. É verdade que a identificação entre sentido e
verificabilidade se baseia na crença, também comum ao espírito da filosofia de
Augusto Comte, de que uma proposição só é exata na medida em que seja
suscetível de demonstração objetiva ou experimental. A ausência dessa
verificabilidade torna, portanto, as proposições metafísicas inteiramente
destituídas de sentido. Não há nenhum paradoxo em se afirmar que o filósofo
francês reconheceria nessa tese neopositivista uma confirmação de suas próprias
ideias. Seria provável também que a tese sobre a necessidade do conhecimento legítimo
basear-se no que é diretamente dado, na experiência imediata, naquilo que é
percebido, verificado e apreendido ao primeiro contato, lisonjeasse o
temperamento dogmático do criador do sistema positivista.
41. A importância
dessa comparação, entretanto, não deve ser exagerada, pois o atual empirismo
lógico inspira-se em outras fontes, sobretudo nas concepções da física moderna,
na teoria da relatividade, na mecânica quântica, na interpretação estatística e
probabilista das leis naturais. Trata-se de um movimento que pretende reduzir a
filosofia à análise lógica da linguagem, condenando as proposições metafísicas
como vazias de sentido e desprovidas do lastro empírico que distingue os
enunciados verdadeiros. A hostilidade à metafísica do Positivismo clássico não
se pode comparar a essa aversão sistemática, a essa condenação absoluta e
inapelável que nega ao adversário o direito elementar à existência. Os
problemas metafísicos passam a figurar como ficções verbais, como jogo de
palavras absurdas e conceitos desconexos.
42. Na filosofia
comtista a metafísica é fase preparatória, constitui a introdução ao espírito
positivo. Ela é substituída por um estado mais sólido, por um regime
intelectual em que a ciência fornece solução adequada aos principais problemas
da humanidade. De acordo com o Positivismo, porém, manifesta-se no estado
metafísico o germe de um movimento transfigurador que só adquiriria plena
expansão na fase definitiva da evolução filosófica. O fato de Comte admitir
transição entre o estado metafísico e o estado positivo demonstra que o
primeiro encerrava condições determinantes e produtoras do segundo. É
necessário acentuar que o pensador considerava a própria história, através de
suas diferentes épocas, a melhor ilustração da forma por que se verificou essa
progressiva substituição de círculos culturais na ordem temporal. Nada disso
encontraremos na doutrina do empirismo lógico, pois, segundo os seus principais
representantes, as questões metafísicas não existem, são pseudoproblemas que
surgiram na inteligência humana como ilusões perniciosas provocadas por sons
inarticulados, por vozes incoerentes que simulam proposições racionais e
significativas.
43. Segundo o
comtismo a metafísica, embora superada, fez parte integrante da evolução
histórica, associou-se a um período da civilização que correspondia à
adolescência do espírito humano, enquanto o estado teológico foi a sua infância
e o estado positivo será a maturidade plena. É inegável que os metafísicos se
enganam ao opor à penetração da mentalidade positiva os obstáculos da
incompreensão e do despeito, a amargura saudosista de uma geração que já
cumpriu a finalidade de seu destino histórico. Mas a esse período transitório
correspondeu, sem dúvida, o exercício de uma ditadura intelectual, de uma
ascendência psicológica que ainda projeta, em várias instituições políticas e
princípios sociais, a larga sombra de uma autoridade incontrastável. No neopositivismo
a metafísica assume às vezes os característicos de pura metáfora, de símbolo
poético a que não corresponde nenhuma realidade objetiva, de linguagem sibilina
e complicada que excede os limites da compreensão racional. Na sintaxe lógica a
que se reduz, segundo Carnap, a estrutura da verdadeira filosofia, as
proposições metafísicas figurariam como solecismos imperdoáveis, como cincadas
gramaticais ou violação indesculpável das regras a que obedece o idioma de
povos civilizados.
44. A especulação é
assim substituída por uma lógica formal, cujo método se satisfaz com a análise
dos conceitos semânticos. Essa concepção da filosofia não reconhece nos
exercícios metafísicos senão uma atividade estéril, como a do moinho que
triturasse vento. De acordo com Augusto Comte, no famoso Discours sur l'esprit positif, a especulação metafísica tenta
explicar a natureza íntima dos seres, a origem e finalidade de todas as coisas,
a forma fundamental por que se produzem os fenômenos. Utiliza-se nessa
explicação de abstrações ou entidades, provindo daí o seu característico de
ontologia. Segundo os membros do círculo de Viena, metafísica ou ontologia nada
exprime a não ser o jogo confuso de imagens e palavras ocas, nada tenta
produzir a não ser discussões ou logomaquias intermináveis que se desenvolvem
sempre ao redor de uma suspeitíssima realidade supra e infrafenomênica.
45. Entre as contribuições
efetivas do Positivismo, está, sem dúvida, a sociologia do conhecimento que,
afirma o já citado Max Scheler no seu ensaio sobre a lei dos três estados,
estuda as conexões entre o espírito, a moral, a divisão do trabalho, o
sentimento de cooperação de uma comunidade ativa, constituída social e
politicamente, e a estrutura da filosofia, da ciência, suas instituições,
escolas ou organizações que tenham por objetivo influir diretamente na evolução
do saber. A investigação das relações existentes entre a sociedade e o
conhecimento, entre a organização social e os produtos da cultura, da ciência e
da filosofia, encontrou em Comte um autêntico precursor, um vigoroso pioneiro
que abriu caminho para esse brilhante grupo de especialistas como Scheler, Weber,
Landsberg e Sombart. O primeiro deles cita, juntamente com outros exemplos que
demonstram a possibilidade da nova disciplina, a pesquisa das relações
necessárias entre a teoria mecanista da alma e da natureza e o crescente
desenvolvimento da técnica industrial na sociedade moderna. Sombart refere-se a
um certo tipo de convívio social, predominante do século XVIII, que foi
fortemente influenciado pela física newtoniana.
46. A sociologia de
Augusto Comte revelou que as associações possíveis do “social” com o “cognitivo”
constituem pelo menos um capítulo do futuro tratado sobre as relações do homem
com o meio e a natureza. Não é necessário, entretanto, recorrer à interpretação
da obra especializada do pensador, pois a própria existência da filosofia
positiva só se justifica através da possibilidade de sua ação constante, de sua
influência multiforme sobre as diretrizes da civilização e da cultura política.
Examinando a exposição da lei dos três estados, observa-se que o progresso da
sociedade está indissoluvelmente ligado à preponderância de ideias, sentimentos
e noções que caracterizam o espírito teológico, metafísico e positivo.
47. A verdadeira
fonte, porém, da sociologia do conhecimento na obra de Comte deve ser buscada
em sua interpretação das relações da filosofia com a ciência. Como se sabe,
para esse pensador a especulação só se torna legítima quando versa sobre
generalidades científicas. Ora, o que se observa com certeza absoluta é que a
filosofia positiva adquire cada vez mais sentido e finalidade sociais, transformando-se
em instrumento ativo do progresso e da ordem nas instituições. Sob esse
aspecto, portanto, a filosofia científica serve à sociedade, influi diretamente
sobre o curso histórico, determinando as circunstâncias que permitem a
segurança, a estabilidade, e o equilíbrio das relações humanas. Não pode haver,
portanto, base mais sólida para elaboração das principais teses da sociologia
do conhecimento.
48. É certo, porém,
que a teoria de Augusto Comte sobre os elos indissolúveis que prendem a ciência
à filosofia não poderá subsistir perante a crítica moderna. O que parece
necessário é distinguir o domínio específico de ambas, embora as suas relações
amistosas e profundas constituam segura garantia da evolução crescente do
conhecimento. A ciência tem por objetivo a investigação do real sob o ponto de
vista quantitativo, enquanto a filosofia procura valorizar a qualidade, o traço
essencial e único que caracteriza o fenômeno em si mesmo. Seria erro grosseiro
atribuir à especulação a finalidade restrita de lidar com ideias, conceitos,
essências e valores. É necessário afirmar com vigor que cabe também à filosofa
definir e caracterizar o fenômeno. Ao filósofo compete a tarefa de investigar
as coisas, os objetos e os seres em geral. A esterilidade dos sistemas atuais
provém em grande parte do esquecimento completo desse dever elementar do
pensador de esclarecer a sua posição perante os fatos concretos e singulares. A
afirmação de Augusto Comte de que toda proposição que não se pode reduzir
estritamente ao mero enunciado de um sucesso particular ou geral não pode
oferecer sentido efetivo e inteligível (frase que parece ter saído da pena de
um dos fanáticos representantes do empirismo lógico) exprime dentro de certos
limites uma verdade indestrutível.
49. A filosofia
fornece a interpretação teórica das coisas, embora se atenha às suas formas
puramente qualitativas. Existe, portanto, uma especulação que procura
interpretar e compreender os objetos: é esse o sentido autêntico da malsinada
ontologia. A integração da filosofia no domínio dos fatos, sem perder de vista
sua missão relativamente às essências e aos valores, tornou o pensamento
atividade sadia, poderosa e renovadora. O filósofo se decidiu a penetrar as
fronteiras do ser, violando todas as convenções e preconceitos que impediam de
entrar em contato com os fenômenos. O resultado de tudo isso foi o alargamento
das perspectivas estreitas da especulação, o surto de novas formas da
realidade, a descoberta de camadas e planos ontológicos até agora dissimulados
pela deliberada falsificação dos propósitos da experiência.
50. O Positivismo
acredita que o destino da filosofia científica seja apresentar todos os
fenômenos como casos particulares de um único fato geral: a gravitação, por
exemplo. É possível que essa finalidade se adapte perfeitamente aos objetivos
do conhecimento científico. Mas não se pode negar que violenta o curso natural
da especulação. A filosofia, ao contrário do que propõe o esquema positivista,
pretende alargar o domínio dos fatos, enriquecendo a realidade com a descoberta
de aspectos desconhecidos, de múltiplas manifestações concretas do ser e da
existência. A ciência deve talvez tornar-se um sistema unitário e monista, mas
a filosofia não perderá nunca o feitio de especulação pluralista que se opõe à
derivação das formas ou modalidades do real de uma substância originária e
primitiva. O filósofo, ao contrário do cientista, não dispõe de um método
perfeitamente estruturado que permita reduzir a realidade a um quadro único de
relações quantitativas, pois o que caracteriza a especulação, em última
análise, é a decisão de perambular por vários caminhos, é a atividade errante
do vagabundo que desconhece os prazeres da habitação confortável e que não
troca a sua liberdade por nenhuma das prisões douradas, construídas
laboriosamente pelos sistemas fechados como o Positivismo ortodoxo e
conservador.
51. Tentei em largos
traços, realizar o balanço do Positivismo sob o ponto de vista da filosofia
atual. O meu trabalho, entretanto, se restringiu à crítica deliberada e consciente
dos fundamentos de um sistema que se tornou em simples negação do pensamento
livre. É verdade, porém, que os argumentos aqui expostos não seriam
considerados como autênticas razões por um discípulo de Augusto Comte. Reside
nisso precisamente o único valor dessas reflexões apressadas, pois a crítica ao
Positivismo sempre aceitou, como base de discussão, as premissas ou princípios
implícitos no sistema debatido. Esse balanço, pelo contrário, procurou ignorar
qualquer compromisso, ou fazer qualquer concessão que presumisse transigência
inicial com os postulados fundamentais da escola comtista. Acredito que,
procedendo assim, tenha correspondido, de certa maneira, à expectativa do autor
deste livro que me confiou a grave incumbência de consumar uma tarefa
perfeitamente realizável por ele mesmo.
52. O seu livro, como
os leitores verificarão, representa o mais completo trabalho de síntese, já
publicado entre nós, do movimento positivista no Brasil. O autor não pretendeu
expor teoricamente a doutrina, mas revelar a sua projeção política e social em
uma comunidade que sempre permaneceu indiferente à criação filosófica.
Constitui de fato um problema interessante indagar as razões e causas da
difusão do Positivismo nas camadas intelectuais do nosso país. Dada a aversão
congênita do brasileiro por tudo que se refere ao raciocínio especulativo,
existia de fato um enigma no triunfo desse sistema um verdadeiro mistério capaz
de desafiar a argúcia de sagazes pesquisadores. O sr. João Camilo conseguiu
revelar alguns aspectos curiosos desse desconcertante problema.
53. E demonstrou
claramente que as causas da vulgarização do comtismo residem muito mais nas
falhas da nossa formação intelectual, do que nas perfeições ou vantagens de uma
teoria bastante inferior à grandeza de seus propósitos. Esta obra apresenta-se
assim como uma reportagem do Positivismo, escrita com a desenvoltura e a graça
pitoresca de um profissional da imprensa forrado de cultura filosófica.
54. Acredito
sinceramente que este livro provoque ampla curiosidade em nosso meio, pois ele
encerra rigorosa incitação ao debate e à reflexão crítica sobre um tema que não
perdeu ainda para os brasileiros o interesse e a sedução da atualidade.
FIM
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