Farias Brito
☛ O mundo interior (1914), §3.
∭
Quando falamos do caráter provisório da obra dos psicólogos modernos, queremos com isto dizer que essa obra é artificial, obra de experiência, tendente a fazer o exame e a verificação de uma certa ideia e de um certo método de antemão estabelecidos, e não obra de consciência, fundada na observação dos fatos, sem preocupação de sistema e sem outro intuito, a não ser a descoberta da verdade. É a verdade que constitui o destino próprio da consciência; e todo o conhecimento ou sistema de ideias que não se fundar na verdade, passará: poderá chegar a organizar-se e conquistar sectários e mesmo exercer influência e domínio, mas jamais conseguirá adquirir o caráter de permanência. Permanente é só a verdade. A psicologia moderna, inspirada da física e da química, dominada pela ideia de introduzir no mundo psíquico a experimentação e o cálculo; preocupada pela ideia de medir as sensações, de determinar o equivalente mecânico da consciência, mostra-se profundamente viciada em seu pensamento fundamental, procura conciliar ideias incompatíveis, violenta a significação real de conceitos já positivamente reconhecidos e claramente delimitados. Sua obra, se bem que vasta e complexa, não é senão uma aventura audaciosa, no intuito de explicar o espírito pela matéria, o consciente pelo inconsciente. E do trabalho imenso que tem levado a efeito, de análise e de crítica, muita coisa é decerto valiosa, mas em regra, somente no que se refere à obra de demolição que há sido realizada. Mas quanto às tentativas de reconstrução, que hão sido empreendidas, são sempre parciais, hipotéticas, e no seu conjunto inaceitáveis. É que todo esse trabalho imenso tem sido feito sem uma concepção diretora fundamental, sem um pensamento firme do fim a que se tem em vista chegar, e em geral por processos impróprios e mesmo absurdos. Esta obra havia de passar. E o caráter provisório das suas soluções, como a improcedência ou ineficácia radical dos métodos em que se funda, é coisa já reconhecida e proclamada pelos seus próprios representantes.
Para dar, porém, aos fatos evidência irresistível, tratemos de precisar com todo o rigor o conceito da psicologia, em sua significação real e fundamental, não dessa psicologia dos sábios, quando se esforçam por indicar os meios para fazer a medida da fenomenalidade psíquica, ou quando trabalham por “construir a consciência como quem edifica uma casa com tijolos”, na linguagem de James; psicologia provisória, artificial e falsa; mas da psicologia verdadeira, dessa que se propõe interpretar nas suas inúmeras manifestações essa energia estranha que reside em nós, que sente e se emociona, que pensa e reflete, sonha e deseja, e é também capaz de refletir a imagem do universo. Que vem a ser essa psicologia?
Eu chamo psicologia a ciência do espírito, e entendo por espírito a energia que sente e conhece, e se manifesta, em nós mesmos, como consciência, e é capaz, pelos nossos órgãos, de sentir, pensar e agir. É essa energia em nós uma manifestação particular da matéria? Pouco importa. Nessa manifestação particular a matéria adquire caracteres especiais que a constituem um princípio à parte sui generis, que é o ponto de partida para uma série de fenômenos que são essencialmente distintos dos fenômenos da matéria, pelo menos, considerada esta em suas manifestações exteriores. Sob esse ponto de vista, tanto importa considerar o espírito como uma substância independente, ligada apenas acidentalmente à matéria, como considerá-lo como fenômeno da matéria, ou mesmo como simples epifenômeno. De toda a forma há no espírito modalidades especiais da realidade, um poder agente e real, vivo e concreto, que não somente sofre a ação dos elementos exteriores, como ao mesmo tempo é capaz de agir sobre eles: um princípio vivo de ação, capaz de modificar, embora em proporções infinitamente pequenas, compreende-se, a ordem da natureza, capaz de dominar-se, capaz de exercer domínio sobre as coisas: uma força criadora, que não só tem a faculdade de emocionar-se em face do poder soberano da natureza, como ainda, de criar alguma coisa de novo, aumentando sob certo ponto de vista e relativamente, as proporções da realidade pelas produções e pelas maravilhas da arte. Ora, esse poder agente e real, esse princípio vivo de ação, essa força criadora, não poderá deixar de ser objeto de ciência, e é o que mais interessa ao nosso conhecimento. Há, pois, uma ciência desse poder agente e real, desse princípio vivo de ação e dessa força criadora, uma ciência do espírito. E essa ciência tendo o seu objeto próprio e essencialmente distinto do objeto de todas as outras ciências, é única em seu gênero, com seus princípios e com seu método próprio e também com suas aplicações particulares. E assim é, qualquer que seja a concepção que se adote quanto à significação real do espírito; ou seja este compreendido como substância distinta, ou como modalidade da matéria, ou ainda como simples epifenômeno. Por onde se vê que a psicologia como ciência do espírito não depende da intuição particular do indivíduo, permanecendo com seus caracteres próprios, seja o indivíduo materialista, espiritualista, fenomenista, ou o que quer que seja, tratando-se por conseguinte de uma concepção que fica em esfera superior às divergências dos sistemas. Também os sistemas em filosofia, como em tudo o mais, são simples coordenações de conceitos, pontos de vista gerais para a classificação das ideias. E as concepções, em geral, dadas as diferenças de época e de meio, são sempre as mesmas, e bem interpretadas as coisas, as divergências, ainda as mais radicais, são mais aparentes que reais, e os debates mais violentos versam, antes, sobre questões de palavras que sobre questões de ideias. Há, sim, erros, como combinações artificiais, destinadas unicamente a produzir efeito, sem nenhum intuito de verdade; e a maior parte dos sistemas não passa disto. Mas nestes mesmos, a menos que se trate de obras propositalmente paradoxais ou absurdas, feitas no intuito de causar escândalo ou tirar partido da sandice humana; ou de divagações ineptas de espíritos imbecis ou desequilibrados — nestes mesmos, digo, considerados em suas linhas capitais, repetem-se os mesmos princípios e insiste-se sobre os mesmos conceitos. E em geral o que muda entre os sistemas é unicamente o processo de coordenação e o método geral de sistematização das ideias, como a técnica particular de que cada um procura servir-se. No fundo todos reconhecem os nossos deveres fundamentais e a significação racional da existência; todos reconhecem a soberania do espírito e rendem culto à verdade. E há sempre na obra comum e tradicional do pensamento humano um certo conjunto de ideias, umas tantas linhas capitais e fundamentais, que todos adotam, nem poderiam deixar de adotar. É o que poderia chamar-se a ossatura do organismo do conhecimento, a massa de que se fazem os sistemas, sendo que, dados estes elementos fundamentais, cada um levanta a seu modo o monumento. Dessa ossatura do organismo do conhecimento, dessa massa primordial com que se vai sucessivamente construindo e aperfeiçoando o edifício das ideias e da civilização, o elemento mais essencial, a base de toda a construção, o princípio dos princípios, é precisamente o conceito do espírito. E pode dizer-se, deste modo, que a ciência do espírito é a ciência das ciências.
O espírito não é somente a base do edifício do pensamento, o princípio dos princípios: é também fato que resiste a toda a dúvida, verdade que desafia o capricho mais desordenado dos céticos. E negá-lo é coisa que, só por si, envolve absurdo, porque negar é ato da consciência e a consciência é fenômeno do espírito. Negar o espírito é negar-se, e negar-se é dizer: eu sou e não sou. O espírito é, pois, o princípio dos princípios e a verdade das verdades, o fundamento de toda a realidade e a base de todo o conhecimento.
Terá sido, não obstante, a ciência do espírito, a última a se constituir no desenvolvimento do pensamento? E será ainda a mais imperfeita de todas as ciências? Para os partidários da psicologia científica, esta ciência é coisa recentíssima, e começou somente quando a psicologia, libertando-se das especulações filosóficas, foi encaminhada na direção do método experimental. Todo o trabalho anterior fundado na introspecção é inútil e vão, obra de fantasia. E como o que há, sob o ponto de vista do método experimental, são ainda somente tentativas de experimentação, conjeturas mais ou menos ousadas, trabalhos fragmentados, sem orientação segura e sem organização regular, segue-se daí que a psicologia não é ainda uma ciência, mas apenas um conjunto informe de observações e de hipóteses, em estado caótico, sem orientação, nem sistema, mundo em via de formação, no qual difícil, senão impossível, será por enquanto introduzir a ordem. Descrições, simples descrições de fenômenos, sem cogitar das leis a que obedecem — eis a situação atual da psicologia. Diz James:
Nós ignoramos até os termos entre os quais as leis fundamentais — que não temos — deveriam estabelecer relações. Será isto uma ciência? É a mui justa esperança que se tem. Mas existe apenas a matéria de que será preciso extrair a ciência. Porque decerto passa-se alguma coisa cada vez que a um certo estado cerebral corresponde um estado de consciência. Mas que é que se passa? Aquele que nos der uma resposta a esta questão começará a ciência psicológica; e sua descoberta fará empalidecer todas as nossas. (William James, Précis de psychologie, Epílogo. Trad. de Baudin e Bertier. Paris: Marcel Rivière, 1912.]
Poder-se-á prever quando terá de aparecer o fundador da psicologia? James não desespera. Diz ele:
Até o presente, a psicologia continua sempre no estado em que se achavam a física, antes de Galileu e da descoberta das leis do movimento, e a química, antes de Lavoisier e da descoberta da lei de conservação da massa. Os Galileu e os Lavoisier da psicologia serão, em verdade, bem grandes homens, quando vierem? (Idem)
Não se deixa aqui perceber uma certa nota desoladora nas palavras finais? É certo, entretanto, que William James deve ser classificado, entre os contemporâneos, como psicólogo de fé; e ele próprio, por seu esforço mesmo, dá prova segura de sua confiança no futuro da ciência. Outros negam, em absoluto, a possibilidade da psicologia como ciência independente. E é bem conhecida a respeito a atitude do positivismo de Augusto Comte, como a do criticismo de Kant; e estes dois sistemas ainda exercem influência.
Entretanto, se a psicologia é a ciência do espírito, se é a ciência nascida dessa exigência universal que veio a encontrar sua expressão mais precisa na fórmula socrática “conhece-te a ti mesmo”, compreende-se que esta ciência existe desde que se apresentou em face da natureza um ser pensante, e por conseguinte, desde que existe o homem. Pode dizer-se que é a mais velha das ciências. E com a primeira impressão que fez vibrar uma consciência, começaram as suas primeiras manifestações, e quase que poderia dizer-se: começou a compreensão de suas primeiras leis; e com as primeiras ações que foram determinadas por ideias, começaram as primeiras aplicações práticas desta ciência. E existiu sem dúvida psicologia, antes de existir matemática, antes de existir física ou química, porque pensar, só por si, é já fazer teoria psíquica, e agir, só por si, é já fazer dessa teoria aplicações práticas. A psicologia é uma ciência intuitiva e concreta, uma espécie de visão interior consubstancial com o sujeito, e deste modo não é somente conhecimento, mas energia e vida. Todas as outras ciências são fenomenais, porque estudam apenas modalidades exteriores da existência, aparências da realidade. A psicologia estuda a realidade em si mesma, o ser em seu mistério interior, em sua significação mais íntima e profunda, numa palavra, o ser consciente de si mesmo. Compreende-se que com o conhecimento de si mesmo há modificação interna no ser pensante. Esse conhecimento é incorporado ao organismo, e torna-se energia viva. Não se resolve, pois, em conceitos ou generalização de princípios, mas em intuição da vida e em governo de si mesmo. Nisto claramente se vê não somente a distinção essencial que existe entre a ciência do espírito e as ciências da natureza, como ao mesmo tempo se fazem patentes o alto valor moral e a significação prática da primeira. As ciências da natureza, ou mais precisamente as ciências da matéria, são realmente, como pretende o pragmatismo, e como sustenta, por seu lado, Bergson, e com Bergson todos os representantes atuais da reação antiintelectualista, instrumentos de ação. Mas é preciso reconhecer que há, além das ciências da matéria, a ciência do espírito; e esta última é, não instrumento de ação, mas instrumento de governo. O destino do homem, como o destino do espírito em geral, é aperfeiçoar-se, e dar a maior extensão possível às suas energias, e alcançar em todas as manifestações de sua atividade o mais alto grau de desenvolvimento; numa palavra: é dominar. Mas é preciso distinguir duas espécies de domínio: o domínio do homem sobre a natureza e o domínio do homem sobre si mesmo. O primeiro alcança-se pelas ciências da matéria; o segundo, pela ciência do espírito ou pela psicologia. Mas se um destes dois domínios deve ter preponderância sobre o outro, decerto é ao domínio do homem sobre si mesmo que cabe este privilégio, pois é daí que dependem a disciplina e a ordem, e tais são as condições essenciais e fundamentais de todo o progresso, como de todo o desenvolvimento. Por onde se vê que a psicologia não é somente a primeira e mais importante de todas as ciências sob o ponto de vista teórico, como é ao mesmo tempo a mais alta e a mais essencial sob o ponto de vista prático. E foi também a primeira ciência que se constituiu, pois existe desde que apareceu no mundo um ser pensante, um ser capaz de refletir sobre si mesmo e de agir determinado por ideias.
FIM
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