terça-feira, 10 de setembro de 2013

Reflexões sobre o contexto do nascimento da filosofia brasileira sob o olhar da historicidade

Patrícia Frangelli Bugallo Lopes


Monografia de Graduação (2014)
Universidade Federal do Rio de Janeiro
Instituto de Filosofia e Ciências Sociais
Departamento de Filosofia
Centro de Filosofia Brasileira
Orientador: Professor Doutor Luiz Alberto Cerqueira

Palavras-chave: Ensino filosófico no Brasil; Nascimento da Filosofia Brasileira; Autoconsciência de um Povo.



Sumário

Introdução
Capítulo 1 - Filosofia como Autoconsciência
1.1 Possibilidade da autoconsciência de um povo
1.2 Contexto de formação da inteligência colonial luso-brasileira
1.3 A inteligência colonial luso-brasileira
Capítulo 2 - Nascimento da Filosofia Brasileira
2.1 Contexto de formação da inteligência brasileira
2.2 O primeiro filósofo brasileiro: Gonçalves de Magalhães
2.3 O segundo filósofo brasileiro: Tobias Barreto
2.3.1 O tradicionalismo como problema
Conclusão
Referências

Notas ao final do texto.




Introdução

Na história da filosofia, as datações, os autores, as ideias, os princípios que marcaram determinada época surgiram, às vezes como mudança de paradigma, às vezes como aperfeiçoamentos, proporcionando mudanças no modo de se fazer filosofia.

Considerando correto este raciocínio, a graduação me fez refletir sobre como estas transformações haviam ocorrido no Brasil, e questionamentos sobre datações, autores, ideias e princípios de uma filosofia brasileira, que somente começaram a ser saciados nas disciplinas História da Filosofia no Brasil I, II e III lecionadas pelo professor Dr. Luiz Alberto Cerqueira.

Um vasto campo de possibilidades, ou seja, de problemas filosóficos, começaram a surgir daquelas aulas, que me levaram a questionar a passagem de um pensamento colonial brasileiro alicerçado no aristotelismo medievo, e contido no método pedagógico jesuíta, para o pensamento moderno focado no cogito cartesiano.

Esta passagem parece representar certa mudança de princípio, pressuposto que vem sendo minuciosamente explorado pelo professor Cerqueira a partir das práticas jesuíticas no período colonial, passando pela teorização do nascimento da filosofia no Brasil no decorrer do século XIX, com Gonçalves de Magalhães, Tobias Barreto, Sílvio Romero e Farias Brito acerca da “crise cultural oitocentista (…) e da singularidade da crise estética brasileira como forma de expressão crítica” (CERQUEIRA, 2002, p. 203), culminando na Semana de Arte Moderna de 1922.

A mudança de princípio no Brasil refere-se a uma mudança no espirito de época (paradigma) que possibilita pensar para além de práticas e pensamentos oriundos de sujeitos pensantes circunscritos à orientação teológica.

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O cogito socrático inicia na tradição ocidental através do “conhece-te a ti mesmo” as formulações acerca “daquilo que sou” e “daquilo que devo ser”, ou seja, inaugura diversos campos do saber filosófico.

Esta monografia pretende realizar uma incursão sobre a filosofia passando por questionamentos oriundos do ensino filosófico, pois reconhece o homem como sujeito de conhecimento dentro de limites culturais como condição para o nascimento da filosofia no Brasil.

A ideia de limite cultural, através da percepção histórica como condicionante do ensino filosófico estará presente em diversos momentos deste trabalho, pois a hipótese que levantamos nesta monografia é a condição histórica enquanto colônia e a condição pós-emancipação política: o fazer pedagógico colonial representado pelo aristotelismo presente no método da Ratio Studiorum; a implantação de disciplinas científicas no ensino; o sentimento de identidade nacional que surgiu da emancipação política; em contrapartida, a conservação de práticas próprias do empreendimento colonial, a saber, a escravidão. São fatos que revelam os rumos que a filosofia tomou no Brasil.

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Segundo Almada, na abertura da Introdução de sua tese de doutorado A ideia de filosofia como ciência do espírito no Brasil [disponível em: https://textosdefilosofiabrasileira.blogspot.com/2017/01/ideia-de-filosofia-como-ciencia-do.html], “o advento da ciência dita moderna reconfigura o modo como o fazer filosófico era circunscrito ao credo oficial”. A exigência de uma atitude e de um discurso que a distanciasse da literatura e da religião a partir de uma metodologia própria passa a imperar e, desta maneira, a classificação daquilo que é obra filosófica também passa por mudanças.

Por defender essa condicionalidade entre ciência e filosofia é que esta monografia se propõe realizar mais uma leitura na caminhada em busca da ideia de filosofia no Brasil enquanto passagem, transformação e adaptação a um novo modo de operar o fazer filosófico no Brasil – agora sob o parâmetro moderno.

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Uma hipótese, que vimos observando enquanto líamos a tese de Almada, é sobre a própria caracterização de Gonçalves de Magalhães como primeiro filósofo, na medida em que este foi o primeiro a associar a necessidade de modernização literária à emancipação política da colônia, o que confere ao seu pensamento um significado moral.

O segundo filósofo reconhecido na escalada em busca de uma história da filosofia no Brasil é Tobias Barreto, no qual a ciência moderna é considerada detentora do método eficaz na esfera do conhecimento, de modo a delimitar com bastante precisão formulações sobre a inteligibilidade das leis da natureza e das leis da cultura a partir de releituras da obra de Kant (princípio kantiano de relatividade). Barreto introduziu no fazer filosófico brasileiro a prática do engajamento crítico sobre o pensar e o agir daqueles que não reconheciam, ou não combinavam o fazer real filosófico com a prática filosófica.

Sobre o terceiro filósofo, Farias Brito, pode-se afirmar que consolida o percurso de modernização filosófica no Brasil. Farias Brito reafirma o papel preponderante da ciência moderna enquanto transformadora da humanidade ao criar a ciência, os alicerces do método que pressupõem a observação, a teorização e a experimentação. A partir deste método, Farias Brito afirma que o domínio e o poder do homem sobre a natureza em prol às suas demandas tornaram-se substanciais – e inegáveis.

Sobre o fundamento do pensar destes três filósofos podemos perceber que o desejo, a crítica e a exaltação – respectivamente, acerca da ciência os tornaram legítimos na historiografia da Filosofia Brasileira enquanto precursores e fundadores da mudança de princípio acerca da filosofia moderna no Brasil, ou seja, a “assimilação do cogito cartesiano como princípio da filosofia moderna” (CERQUEIRA, 2011, p. 163) sob a base do aristotelismo e da conversão religiosa introduzida na formação cultural brasileira durante o domínio português.

Entretanto, se pensarmos que, anteriormente à concepção binômica “ciência e filosofia”, houve outras concepções binômicas eficazes aos anseios da humanidade, como exemplos: “literatura e filosofia” (era clássica) ou mesmo, “religião e filosofia” (era medieval), começamos a cogitar a possibilidade de terem havido outros filósofos brasileiros inseridos em outros moldes de se compreender o fazer filosófico.

No caso brasileiro, como já foi provado por Cerqueira em inúmeros artigos e em seu livro Filosofia brasileira — Ontogênese da consciência de si, o modo de fazer filosófico nasceu não da conciliação imediata entre ciência moderna e filosofia – o que poderia ser sugerido através da historiografia dos aceitos como filósofos brasileiros – mas sim do “conhece-te a ti mesmo” socrático na releitura da conversão religiosa de Padre Vieira, ou do nacionalismo da geração romântica, que através do espanto estético buscou a consciência de si enquanto povo brasileiro livre das amarras coloniais e expectante de um era imperial, tendo Gonçalves de Magalhães como escritor pioneiro – este que, para alguns críticos, não passou de um letrado.

No sentido de “modernizar” está incluído o seu par contrário, conservador e tradicional. Por um lado se considera como movimento, ação e transformação (verbo); por outro, em relação ao que, sendo, não deixa de ser (substantivo). O primeiro sentido abriga a noção de processo contínuo, enquanto o segundo parece congelado no tempo.

Da mesma maneira, retornando ao tempo do homem colonial trazido ou nascido em solo brasileiro, este influenciado e agente das práticas de dominação colonial portuguesa a fim de conquistar e usurpar as novas terras obtidas através das grandes navegações do século XV. Ele apresenta-se como um homem de ação, um homem prático, preocupado não com a consciência de si enquanto povo de uma terra nova, mas sim, preocupado com a sobrevivência na Terra, o existir no além mundo (o quanto suas ações o conduziram ao céu ou ao inferno) e o enriquecimento – contando que a Santa Sé e a Coroa Portuguesa recebessem as suas partes.

Esse homem concreto, se da elite/nobreza possuía alguma escolarização, se não da elite provavelmente seria iletrado, origina-se de uma base altamente religiosa e de difícil compreensão para aqueles nascidos sob a égide da ciência moderna questionadora. O provável homem que filosofa, letrado e passível de deixar uma obra, se morador da colônia teria dificuldade de propagar o seu pensar, pois não havia tipógrafo, jornais circulantes e livros reproduzidos no Brasil Colônia. O senso de unidade de colônia existia sobre a ótica cultural religiosa e sobre a necessidade de controlar as terras exploradas. Nascer no Brasil não representava ser brasileiro para aqueles que o dominavam, representava ser ou proprietário de terras portuguesas no novo continente ou trabalhador livre português em terras conquistadas, tanto que o fluxo de colonos e metropolitanos ocorria de maneira corriqueira e sem embargos ou leis proibitivas.

Neste ponto é interessante ressaltar que estamos pensando em um filosofar de origem europeia, negligenciando um filosofar indígena que foi efetivamente os primeiros habitantes das terras brasileiras, esse filosofar amplamente desconhecido e no qual suspendo proposições por me incluir no desconhecimento.

“Não ser brasileiro” é o foco principal para o entendimento do nascimento da filosofia no Brasil associado à mudança de princípio da modernização. A identidade surge então como uma questão primordial para o pertencimento de pessoas a um determinado solo e para o modo como elas passam a se relacionar com este solo – chamando de seu e refletindo sobre a maneira que irá controlá-lo, vivenciá-lo e construir suas vidas.

A noção de brasileiro surge dois séculos após o início da ocupação portuguesa nos movimentos emancipatórios pró-independência e efetiva-se com o mito do “grito do Ipiranga” de D. Pedro I, ou seja, a independência do Brasil.

A partir da posse do território, da importância de mantê-lo e da possibilidade da criação de regras e leis, ou seja, da liberdade política, econômica e cultural, o homem colonial começa a reformular a sua consciência de si, através do tripé que lhe deu suporte durante a era colonial – Deus e a sociedade do pater familias (centrada na figura do homem, do pai provedor da família) – e da noção modernizante de pátria que nasceria associada ainda aos portugueses devido à família real, porém de um imperador praticamente criado (assim como seus subordinados nobres e homens livre) em solo brasileiro.

O tripé Pai-Deus-Pátria influenciou e foi recrudescido, ou mesmo invocado, por literatos, musicistas e pintores de modo a criar uma esfera emancipatória e libertária para si e para o seu grupo representativo, e não a liberdade no sentido moral e ético moderno.

E neste ponto, o brilhantismo de Magalhães apresenta-se crucial ao deslocar o foco da praticidade da liberdade da pátria para o campo da reflexão sobre a liberdade moral do homem que é dono das riquezas de sua pátria. O filósofo faz de sua literatura um modo de refletir sobre o momento presente que sua pátria passava e de como a sua ação no mundo era capaz de transformar através de preceitos sobre a ação humana, ou seja, a filosofia moral. Nascendo assim uma crise estética como forma de experiência crítica.

Magalhães ainda que sensível ao processo de modernização que a Europa vivia devido à conscientização científica cujo processo fatalmente sua pátria também absorveria, ainda assim utilizava-se da matriz binômica da sua terra natal para refletir filosoficamente, o binômio literatura/filosofia.

O vanguardismo de Magalhães está representado na publicação, em 1836, de seu “Discurso sobre a história da literatura do Brasil”, na revista Nitheroy em conjunto com diversas figuras emblemáticas da era imperial no Brasil: C. M. D’Azevedo Coutinho (escrevendo sobre astronomia), F.S. Torres Homem (escrevendo sobre economia, escravidão e crédito público) e M. de Araújo Porto Alegre (escrevendo sobre música).

A revista Nitheroy reafirma em seu editorial chamado de “Ao leitor” o foco das suas discussões que claramente associa-se ao tripé Pai-Deus-Pátria supracitado:

“Economia política (progresso das nações); ciência, literatura nacional e artes (vivificam a inteligência, animam a indústria, glória e orgulho); amor e simpatia geral para tudo que é justo, santo, belo e útil; pátria marchar na estrada luminosa da civilização e tocar ao ponto de grandeza que a Providência lhe destina” (Nitheroy, Revista Brasiliense; edições disponíveis em: № 1 https://digital.bbm.usp.br/bitstream/bbm/6859/1/45000033223_Tomo%20primeiro%2c%20número%201.o.pdf; № 2 https://digital.bbm.usp.br/bitstream/bbm/6857/1/45000033224_Tomo%20primeiro%2c%20número%202.o.pdf).

Essa liberdade proclamada com a independência situa-se também no tempo e no espaço. Está associada à busca ampliada da independência política, mas principalmente econômica de uma elite de descendência portuguesa que desejava a manutenção de seu status quo.

Filosoficamente, Magalhães será interpretado na história como um filósofo crítico do aristotelismo português até então empregado no ensino jesuíta através do método pedagógico da Ratio Studiorum, porém, devido ao tripé observado, será interpretado como um crítico do ponto de vista conceitual, devido a sua conduta conciliatória de introduzir tanto a questão filosófica, do fundamento da consciência de si como pensamento (cogito cartesiano), quanto o método científico em reflexões à sua filosofia moral – impregnada de preceitos religiosos dogmáticos.

Na verdade, a filosofia de Magalhães foi uma tentativa de conciliar as leis da natureza observadas pela ciência sem, contudo, renunciar as leis de Deus dogmatizadas pelo cânone da Igreja Católica que estavam na base da cultura ocidental daquela época justificada por aproximadamente 1000 anos de domínio cultural religioso sobre os povos europeus durante parte da Antiguidade e da Idade Média, posto que:

“Tanto no Brasil como em Portugal, os primeiros autores oitocentistas que procuraram garantir a autonomia do pensamento filosófico assumiram o mesmo problema como a condição de entrada no compasso da história sem prejuízo da própria historicidade” (CERQUEIRA, 2001, p. 128).

Havia, então, uma contradição no homem emancipado no qual o limite para aquilo que ele “poderia ser ou era” e “devia ser ou era” mudava, mas a sua bagagem histórico-cultural o repreendia frente a essa ação de mudança no mundo.

Assim, a necessidade e a capacidade de provocar reformas institucionais com base no uso teórico da razão advindo da mudança de princípio tornavam o embate no sujeito pensante algo complexo de ser explicado por meio de argumentos lógicos ou apenas pela adoção do método científico e deste olhar modernizante sobre o mundo.

No campo político, o homem emancipado compreendia o uso teórico da razão e da liberdade a fim de atingir seus objetivos, entretanto no campo econômico, ou seja, no regime escravista, promover a liberdade representava para aquela elite, o fim do seu modo de vida e neste ponto, o empreendimento colonial devia ser mantido – reforçamos que neste ponto de vista, a contradição no homem emancipado pode ser interpretada como uma contradição em sua vida prática.

A escravidão possuía um respaldo filosófico (aristotelismo) e religioso (o homem negro não possuía alma) e para nós torna-se importante pensar o respaldo filosófico, no qual a noção de escravo provinha da concepção aristotélica da Política (ARISTÓTELES, 2004, p. 149-155) de que o mesmo seria incapaz de organizar suas ações a partir dos seus próprios fins, sendo vedada a ele a liberdade por não haver um uso útil, por sua natureza de obediência e inferioridade.

A condição humana da escravidão ia de encontro a essas concepções modernas que mais a frente necessitaria de mão de obra trabalhadora para consumir a produção industrializada.

O embate entre o sentido de liberdade e a manutenção do trabalho escravo; a noção de ser livre e o sentido de Deus Criador; a visão exploratória da natureza, sua dominação, mas também as leis sobre as quais a natureza subjuga o homem; tornou o fazer filosófico de Magalhães conciliador e classificado como representativo do movimento a favor de uma modernização conservadora.

Os próprios literatos da primeira e segunda geração romântica foram considerados como representativos do romantismo conservador, que pregava um nacionalismo ufanista na primeira fase, conciliando a presença de um deus controlador, um homem que contempla as obras do seu Criador, porém cada vez mais inserido numa nova concepção artística, que o proporciona uma nova estética, um novo sentir que conduzirá a um movimento romântico mais engajado na terceira geração, intercalado com obras do realismo e do naturalismo que surgem neste meio tempo já ao final do século XIX e início do século XX no Brasil.

Mas afinal, o homem constrói sua filosofia como vanguarda dos movimentos (algo prévio as mudanças na sociedade) ou no interior do próprio movimento (durante e após o efervescer da sociedade)?

Essas perguntas são retóricas e dependem de condicionantes culturais daquela sociedade. No Brasil, muitos foram os tempos e os espaços diferenciados, mas se pudéssemos apontar uma resposta para essa pergunta a partir do que será apresentado nesta monografia, diríamos que Magalhães estava no interior do próprio movimento, enquanto que Tobias Barreto foi vanguardista em diversos pontos de seu pensamento. Já Farias Brito por vezes filosofava como vanguarda e por vezes analisando o próprio movimento por dentro. Como afirmado, a pergunta é retórica, servindo apenas como exercício de reflexão.

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Alguns pontos cabem ainda serem apresentados nesta introdução sobre filósofos, comentadores, intelectuais, literatos, artistas ou simplesmente sujeitos pensantes, participantes da inteligência daquela época ou que sobressaem a sua própria época.

Todos os sujeitos pensantes podem, em princípio, tornar-se um filósofo, todavia filósofo reconhecido é aquele que soube transmitir seu sistema filosófico ao ponto de provocar no leitor ou ouvinte uma experiência de cognoscibilidade acerca da realidade, ou seja, foi capaz de compartilhar seu sistema filosófico com outros sujeitos pensantes.

É importante destacar aquilo que chamamos de sistema filosófico: a composição das diversas maneiras com as quais os sujeitos pensantes constroem e definem para si o arranjo de conceitos e sentenças lógicas, sistematizando-os de modo a permitir a compreensão, dar sentido, inteligibilidade e intencionalidade aos elementos que tornam a cognoscibilidade da realidade possível e plausível sob a égide de um modus operandi que modernamente ficou conhecido por método – método filosófico.

Como foi dito ao longo destes parágrafos, nem todos os sujeitos pensantes são filósofos, comentadores ou estão preocupados com a formulação de sistemas filosóficos, todavia estão envolvidos em debates a respeito da sociedade, do homem, da natureza, das artes, de conceitos e etc. A estes o senso comum classificam por intelectuais: sujeitos pensantes diretamente associados à relação de conhecimento alicerçado às bases sociais e que são capazes de formular argumentos que auxiliam na compreensão, manutenção e modificação da realidade.

Para pensarmos esses intelectuais realizamos uma profunda leitura do livro de Horácio Gonzalez denominado O que são intelectuais, publicado em 2001, e pertencente à coleção “Primeiros Passos” da editora brasiliense.

Esse livro, escrito para ser introdutório na questão, demonstra bem como o dito popular “nos pequenos potes encontramos as grandes fragrâncias” é verdadeiro. Nesse livro o autor trabalha as noções de intelectual maldito, precursor, revolucionário, populista, cosmopolita, orgânico, pertencente ao círculo do poder, para concluir que um intelectual poderá ser predominantemente qualquer um destes e diversos destes ao mesmo tempo.

Ser intelectual, diferentemente do filósofo, é um ofício:

“Seu trabalho consiste em ‘saber’ quando um marco cultural aprofunda ou enfraquece sua influência na sociedade. Quando guiará as consciências e quando mergulhará no esquecimento. O intelectual se dará ao luxo de poder banalizar o extraordinário ou festejar o cotidiano. De tornar estranho o que é habitual e longínquo o que é corriqueiro. Seja para conservar os valores existentes, seja para modifica-los, os intelectuais são um sinal escrito no espaço das lutas sociais. E, sem temor ao exagero, poderíamos melhor dizer: as lutas sociais se transcrevem nas sociedades contando com os intelectuais, no sentido mais abrangente do termo, como seus cronistas, seus estimuladores, seus escudeiros” (GONZALEZ, 2001, p. 33-34).

Ou seja, um intelectual é um sujeito pensante a serviço do seu tempo — engajado com tal momento, propicio a pender entre posições de manutenção da ordem vigente (status quo) e posições que desestabilizam essa ordem (revolucionário). Alguns filósofos como Sartre, Simone de Beauvoir, Adorno, Marx, engajaram-se nas lutas políticas e nas transformações sociais de suas épocas, o que não deve causar um espanto argumentativo, posto que, as classificações, padronizações e tipografias servem para auxiliar o entendimento das coisas e não para taxá-las e petrificá-las: pertence ao exercício da reflexão, auxiliam em comparações e tornam possível a comunicação, pois aproximam emissores e receptores, mas não são amálgamas nas quais os sujeitos pensantes devem ser trancafiados.

Estas diferenciações de cunho teórico são necessárias para o entendimento da proposta levantada por esta monografia: em verdade, cabe destacar que esta pesquisa está fortemente associada à ideia de homens concretos e paradigmas de época influenciando a educação e a conduta moral destes sujeitos. Ela está, inclusive, interessada nos aspectos temporais e espaciais pelos quais sujeitos pensantes passam a escolher e desenvolver conscientemente posturas e o fazer filosófico.

Assim, quando começamos a esquematizar a natureza dos sujeitos pensantes sob influência do aristotelismo presente no método pedagógico da Ratio Studiorum do Brasil colônia e as consequências deste método para o atraso da filosofia ente nós (como diria Tobias Barreto), havíamos pensado a expressão inteligência colonial luso-brasileira no sentido forte de delimitar o ato de refletir destes sujeitos pensantes, sejam eles filósofos, comentadores, intelectuais, literatos, artistas, nascidos portugueses ou descendentes destes, porém vivendo em solo colonial brasileiro.

Com a emancipação, esta inteligência passa a ser adjetivada como brasileira a fim de demonstrar o marco crucial da posse do território e a construção da noção de pátria. Sendo assim, o aparato conceitual concentra-se nas leituras realizadas de:

  1. Três estudos sobre a modernização do Brasil enquanto problema filosófico, elaborados pelo professor Cerqueira (2001, 2002; 2011); 
  2. O texto de Miguel Reale (1994) sobre a autoconsciência de um povo;  
  3. As críticas do filósofo brasileiro Tobias Barreto ao “atraso” da filosofia brasileira em seu texto de (1872): O atraso da filosofia entre nós; 
  4. Estudiosos da história do Brasil (LOPEZ e MOTA, 2008; MENARDI e AMARAL, 2006), da literatura brasileira (CEREJA e MAGALHÃES, 1995; ABAURRE e PONTARA, 2005) e da história da arte brasileira (PROENÇA, 2012) – que em conjunto permitiram explorar a crise relativa a esta passagem delicada e a crise estética enquanto experiência crítica.

Reforçamos que o objetivo desta monografia não é provar a existência ou não desta passagem, pois a prova já foi realizada nos longos estudos do prof. Cerqueira à frente do Centro de Filosofia Brasileira da UFRJ.

O propósito de adicionar a questão filosófica aqui apresentada à historicidade própria das questões políticas e culturais do país somadas à história da literatura, tem por finalidade compreender o próprio advento da filosofia brasileira enquanto alinhado a visão de que as ideias, o pensar, o modo de vida e a cultura florescem e se transformam a partir dos fatos político-culturais e espaciais onde isso é cultivado.

Com essas premissas, reforçamos que a proposta dessa monografia é apresentar mais uma reflexão sobre o nascimento da filosofia no Brasil a partir da crise estética como forma de experiência crítica envolvendo a autoconsciência de um povo.

Sendo assim, dedicaremos o Capítulo I à apresentação do problema em termos das premissas selecionadas nesta pesquisa filosófica e a formação histórica e cultural da inteligência colonial luso-brasileira. Já no Capítulo II pretendemos demonstrar a marcha da modernização e a formação da inteligência brasileira a partir do fomento de uma literatura nacional e a importância da liberdade política para a conscientização de um povo, finalizando o capítulo com a perspectiva de Tobias Barreto sobre o atraso da filosofia no Brasil.

Este texto de Barreto foi selecionado, primeiro por pertencer a um pioneiro da crítica engajada, considerado filósofo e intelectual legitimamente brasileiro. Segundo pela natureza exemplificadora da crítica de Barreto à produção filosófica feita no Brasil até então dissonante à marcha de modernização, exaltando a tradição em detrimento do momento de transição que ocorria no império brasileiro e que de certa maneira, caracterizará a modernização conservadora que ocorreu no período imperial e culminou no período da república – atingindo a contemporaneidade.


Capítulo 1
Filosofia como Autoconsciência

Um espírito de época é uma espécie de abstração composto por um campo de ideias oriundas de ações e pensamentos de figuras históricas que através de seus atos e escritos foram capazes de influenciar um determinado período, no qual fatos, circunstâncias, acontecimentos conseguiram a adesão ou o aceite dos grupos sociais a ponto de formar uma unidade espaço-temporal razoavelmente definida, ou ao menos, apontável.

Os mecanismos que formam essas características supostamente próprias dessas unidades espaço-temporais acabam por coagir os pormenores do período e devido a isso, apresentam-se como hegemônicos e são considerados como modelos mentais que auxiliam o entendimento dos fatos, mas que, em análises ou escalas reduzidas tendem a não ser tão firmes quanto parecem.

Iniciamos o primeiro capítulo com esta ressalva, pois, expressões como: “inteligência colonial” e “inteligência brasileira” pressupõem a definição de características próprias adequadas às figuras históricas que através de seus atos e escritos foram capazes de influenciar um determinado período atraindo adeptos e aceitação de grupos sociais formando uma unidade conceitual que distingue intelectuais de um período espaço-temporal colonial daqueles que se autodeterminariam ou seriam determinados como modernos.

A partir deste ponto a apresentação do problema filosófico da mudança ou passagem de um pensamento colonial brasileiro alicerçado no aristotelismo medievo contido no método pedagógico jesuíta para o pensamento moderno focado no cogito cartesiano com base na historicidade, na política e na cultura que possibilitou sujeitos pensantes escolherem dedicar-se a filosofia, começa a se expor de modo espinhoso – mesmo sabendo que o saber e a atividade intelectual são detentoras de grande poder – de certo modo esbarraremos em relações de hegemonia, emergência e subjugação de outras formas de se expressar, elaborar e vivenciar sistemas de pensamento.

Ressaltado o espinho de se desconsiderar essas outras formas, porém clarificando a existência delas, este capítulo está estruturado em: (a) a possibilidade da autoconsciência de um povo; (b) o contexto de formação da inteligência colonial luso-brasileira; e por último, (c) a inteligência colonial luso-brasileira em detrimento de uma nula ou inexprimível inteligência colonial brasileira.


1.1 Possibilidade da autoconsciência de um povo
Segundo Lopez e Mota, para pensar as origens do Brasil ou uma arqueologia do Brasil, seja ela com qual fundamento e objetivo for, seria necessário retornar aos povos nômades e a formação das primeiras sociedades indígenas em território atualmente pertencente ao Brasil. Todavia, para esta monografia, esse raciocínio talvez não se mostre como um argumento forte, pois, pensar as origens da filosofia do Brasil, filosofia esta de origem grega cuja filologia refere-se ao “amante do saber”, parece só fazer sentido se esta origem perpassar pela influência direta ou indireta de povos europeus que praticavam esse modelo de construir argumentos lógicos.

Essa premissa aponta para o estudo da história da assimilação de ideias e doutrinas filosóficas no Brasil o que foi realizado nos primeiros compêndios de filosofia brasileira conforme aponta Cerqueira, datando uma filosofia brasileira a reboque do que ocorria na Europa ou mesmo na América do Norte (eixos do pensamento ocidental) em detrimento ao desejo de Reale de que estes estudos voltassem o olhar sobre a história das influências e receptividade dessas ideias no país.

Contudo, o objetivo aqui presente é exercitar o problema da passagem de um pensamento colonial brasileiro alicerçado no aristotelismo medievo contido no método pedagógico jesuíta para o pensamento moderno focado no cogito cartesiano com base na historicidade, na política e na cultura que possibilitou sujeitos pensantes escolherem dedicar-se a filosofia., como um problema filosófico de mudança de princípio na cultura brasileira, responsável pela modificação do ser “colono” para o ser “brasileiro”, este que reflete sobre si enquanto indivíduo e também enquanto povo, à medida que começa a elaborar um pensar genuinamente brasileiro emancipado da tradição filosófica portuguesa como aponta Antônio Paim.

Para historiadores e cientistas sociais essa autoconsciência teria nascido das mudanças político-sociais da sociedade através de figuras históricas; mudanças de gestão política; tratados mercantis; guerras e rebeliões; etc., pois no âmbito da sociedade estas questões surgem como coletivas e formadoras de um espírito de época.

Na filosofia, essas questões coletivas podem provocar ânsias e estopins para mudanças emocionais, longas, lentas, graduais, difíceis e de outras naturezas, nos quais algum pensador é capaz de captá-las e expô-las em sistemas de argumentos e raciocínio que justificam àquelas situações.

Para Miguel Reale, não há filósofos precoces nascidos do imediatismo e sim formados no seio de uma cultura e de um agrupamento humano, pois a filosofia que é racionalidade, necessita da linguagem tanto para a expressão quanto para a codificação de conceitos e de argumentos sobre problemas diversos concretos e históricos relativos à vida, ao real, aos fatos, aos valores e etc.

O fazer filosófico, ou seja, o filosofar, reside na autoconsciência ao expressar — com o uso da razão — a si mesmo, desde o sentir e o querer incluindo a abstração do coletivo e da nação. Desta maneira, o filósofo é influenciado por seu meio cultural-ideológico demonstrado nas formas de expressão com as quais se comunica, e nos valores e variáveis que assume em seu sistema filosófico, que tendendo a uma “universalidade” não visa a “unanimidade” (A filosofia como autoconsciência de um povo. REALE, 1994, p. 2; disponível em: http://textosdefilosofiabrasileira.blogspot.com/2011/06/filosofia-como-autoconsciencia-de-um.html).

A figura do filósofo surge como um componente histórico da genialidade, pois o pensamento que tende a universalidade parte de problemas pensados e/ou vivenciados por ele enquanto ser histórico e Reale afirma que Platão ou Aristóteles não são reprodutíveis em qualquer uma das eras passadas, presentes ou futuras, pois seu modo mental não é capaz de ser reproduzido devido as circunstâncias do meio, valores culturais, estilo de vida diferenciados em cada um daqueles momentos históricos.

Ainda em Reale, a problemática da autoconsciência de si perpassa também sobre a autoconsciência de um povo ou nação enquanto entidades abstratas portadores de vieses sociológicos, econômicos, culturais, étnicos e até mesmo psíquicos, nos quais podemos distinguir uma singularidade, uma personalidade, um estilo, perante outras entidades abstratas de mesma natureza:

“Os processos culturais desenvolvem-se em uma interação dialética de múltiplas influências, correspondendo a tomada de posição filosófica ao natural desejo de unidade e de síntese ínsito nas virtualidades criadoras de um indivíduo ou de um povo” (REALE, 1994, p. 5).

Sendo essas premissas aceitas, Reale afirma que também será possível distinguir um estilo brasileiro de filosofar oriundo de uma dimensão nacional de processar as ideias nos quais quanto mais se teoriza mais se adquire historicidade.

Da mesma maneira, entre uma pluralidade de sistemas existentes no contexto nacional, um determinado modelo ou uma determinada concepção pode vir a dominar o campo filosófico, isto é, é aceito e passa a ser a tendência que marca o período – o chamado espírito de época ou paradigma nacional daquele período, quiçá extranacional. Um exemplo extranacional seria o estilo de filosofar cartesiano que dominou hegemonicamente através do método a filosofia moderna francesa no século XVII, tornando-se inclusive a referência sobre o racionalismo na Idade Moderna, superando as fronteiras nacionais ao provocar reações, debates e oposição aos seus escritos em diversos outros lugares entre eles, a colônia portuguesa Brasil.

Para Reale, a dificuldade em aceitar uma filosofia brasileira está no desconhecimento mútuo dos filósofos nacionais sobre outros filósofos também nacionais devido à existência de ilhas de pensamento e excesso de comentadores de obras estrangeiras. A história das ideias no Brasil poderia comentar menos e debruçar-se mais sobre as influências que condicionaram certa receptividade daquela obra estrangeira – e assim iniciar um intercurso de reflexão sobre a autoconsciência do povo brasileiro:
Pois bem, estamos agora, no Brasil, em busca da afirmação integral do nosso ser histórico; já revelamos a nossa arquitetura; já afirmamos o nosso romance; já vivemos altos momentos poéticos; já possuímos uma nobre tradição jurídica, e é mister que se reúna tudo isto e que tudo isto se expresse através de um pensamento embebido de nossas experiências (REALE,1994, p. 7).

Conclui-se então, a partir do exposto, que a presente pesquisa aceita as seguintes premissas:

  1. Existe um espírito de época ou paradigma;
  2. É possível afirmar uma filosofia brasileira, baseada na figura do filósofo e de seu estilo de filosofar;
  3. Faz-se necessário uma reflexão sobre a autoconsciência do povo brasileiro.


1.2 Contexto de formação da inteligência colonial luso-brasileira
O achamento do Brasil em 1500, por Pedro Álvares Cabral, resultado da expansão comercial e geográfica dos reinos cristãos da Europa, ocorreu no contexto dos tempos modernos, no qual os intelectuais europeus (entre eles filósofos) debruçavam-se sobre novos sistemas de pensamento capazes de abarcar as transformações pelas quais os agrupamentos humanos, o trabalho, a produção, a relação entre os grupos sociais começaram a passar.

Todavia, as terras além Europa e aqueles que iriam se fixar nelas não necessariamente estavam envolvidos nos debates intelectuais e filosóficos que mudariam a forma de ver o mundo na idade Moderna: as novas terras, o “Eldorado”, eram vastas áreas a serem exploradas em seus recursos naturais em prol ao enriquecimento e manutenção do estilo de vida europeu – considerando que Portugal era identificado como grande porto que trazia as benfeitorias do novo mundo e a existência de diversas Associações Comerciais estrangeiras financiando essas grandes expedições.

A colonização financiada pelo Rei D. João III iniciou-se me 1530, através da expedição de Martim Afonso de Sousa (“o Governador da Terra do Brasil”) fundador da primeira vila do Atlântico Sul – São Vicente em 1532. Esta expedição foi considerada bastante expansiva, o que fez D. João optar por legar à terra a terceiros formando as capitanias hereditárias e mesmo assim, das 12 capitanias, apenas 4 (São Vicente, Pernambuco, Ilhéus e Porto Seguro) cresceram efetivamente durante o século XVI.

O insucesso provocou a retomada das terras pela Coroa Portuguesa e a formação da “capitania de Sua Majestade” administrada diretamente por ela através do Governador-Geral Tomé de Sousa que, segundo Lopez e Mota,

“desembarcou na baía de Todos os Santos com seis padres jesuítas, encarregados de catequizar o ‘gentio’ e reformar os costumes dos colonos, entre os quais havia uma grande parcela de degredados e pessoas condenadas ao exílio. Iniciava-se para valer o povoamento da colônia luso-americana. Naquele mesmo ano, o primeiro governador-geral fundava a cidade de Salvador e construía a igreja, o paço de governo, a casa da câmara e cadeia, o pelourinho e a alfândega. Salvador foi a primeira capital da colônia portuguesa na América” (LOPEZ e MOTA, 2008, p. 72).

Esta introdução sobre a história da colonização portuguesa no Brasil visa relatar o quanto foi lenta o processo de ocupação como também demarcar o epicentro e importância de Salvador no processo de aportuguesamento das novas terras.

Na luta pela conquista de terras, recursos naturais, corpos e almas, a Igreja Católica Apostólica Romana, através dos jesuítas e missionários apresentou-se como o braço ideológico e apaziguador da Coroa portuguesa. Segundo Lopez e Mota, em 1570 a paisagem baiana estava povoada de engenhos de cana de açúcar, seus senhores e benefícios.

Nesse contexto torna-se visualizável, o que aponta Cerqueira com referência à filosofia no Brasil. A disciplina começou a ser ministrada através de cursos ainda no século XVI através do método pedagógico da Ratio Studiorum nos colégios pertencentes a Companhia de Jesus no atual estado da Bahia.

Em terras voltadas para a exploração comercial de suas riquezas, recentemente conquistadas e ainda em processo de ocupação lenta, qual o sentido do ensino de filosofia? É uma pergunta que pode ser feita. Sobre isso, resumindo dos estudos de Cerqueira, pode-se afirmar que pertencia à prática jesuítica da conversão e da catequização enquanto estratégia pedagógica de formação moral e qualificação de servidores para a Coroa e para a Igreja – relembrando que estava em vigência o Direito Divino dos Reis (reis “pela graça de Deus”).

Lopez e Mota são taxativos em afirmar que “desde os primórdios da colonização, a monarquia deu mostras de que manteria o controle sobre a vida religiosa dos habitantes do Novo Mundo sob sua jurisdição(LOPEZ e MOTA, 2008, p. 143), o que acarretaria o regime do Padroado e a instituição do bispado – este que na ausência do governador-geral assumia suas funções administrativas (como ocorreu no domínio holandês de Salvador em 1624-1625).

Os dízimos e outros tributos destinados à monarquia eram alocados para a sustentação do Colégio da Bahia através de um alvará promulgado em 1564, o que garantia os recursos necessários à obra missionária jesuítica. Segundo Lopez e Mota, o monopólio da educação — e, portanto, das consciências — mantido pelos jesuítas acabou por isolar o reino e as colônias das principais correntes de pensamento da Europa ocidental (LOPEZ e MOTA, 2008, p. 147), assim como as restrições literárias do Concílio de Trento que promulgou a primeira lista de livros proibidos, o “index librorum prohibitorum” em 1564. Os colégios jesuítas desencorajavam o engajamento de alunos e de professores às dúvidas quanto aos princípios e a autoridade filosóficos de São Tomás de Aquino e do aristotelismo português.

Cabe destacar que o processo de autoconsciência do povo português, ou seja, de se pensar em língua portuguesa, pensar em problemas filosóficos no âmbito da moral e da estética interna, datam de século XV. Todavia, a política oficial de propiciar a renovação cultural do reino, foi estabelecida pelo mesmo D. João III da “Capitania de Sua Majestade” (século XVI) ao fundar o Colégio das Artes de Coimbra sob as égides escolásticas do aristotelismo da Ratio Studiorum. Como afirma Cerqueira:

Devido ao monopólio jesuítico da instrução pública, esta orientação não foi seguida apenas em Coimbra, mas em todo o extenso reino português, inclusive no Brasil, desde o primeiro curso de filosofia em 1572 (no Colégio de Todos os Santos, Bahia), extinguindo-se com a reforma pombalina da Universidade em 1772. Constitui-se, assim, no Colégio das Artes da Universidade de Coimbra, um centro de irradiação de aristotelismo no Ocidente que se manteve ao longo de 200 anos” (CERQUEIRA, 2002, p. 49).

Essa configuração de mesclar um processo de autoconsciência do povo português à tradição de uma filosofia medieval aristotélica sob o olhar atento das doutrinas da Igreja e o método pedagógico do Ratio Studiorum, fomentavam o espírito de época que fora exportado para o Brasil como domínio territorial português – as elites que começavam a se organizar na colônia deviam manter a obediência moral e religiosa tanto a Coroa quanto a instituição religiosa que a amalgamava, a Igreja, representada por seus missionários da Companhia de Jesus.

Deste modo, Cerqueira afirma:

“a filosofia luso-brasileira é o passado no modo do ser brasileiro, cujos representantes históricos, a exemplo do Padre Antônio Vieira, SJ, são aqueles que fizeram seus estudos filosóficos nas instituições brasileiras de ensino sob o Ratio Studiorum, procurando fazer uso da razão de modo a transcender os limites da própria experiência, porém dentro dos limites do aristotelismo português” (CERQUEIRA, 2002, p. 67).

Esse viés filosófico é justificado pelo fato do Brasil ser uma colônia e estar subjugada aos interesses de sua metrópole Portugal, além do próprio movimento de expansão da cultura e o modo de ser português – não se deve ignorar que Portugal era a grande potência comercial do período (século XVI-XVII).

A autoconsciência portuguesa ou luso-brasileira a partir do apontado proveio de uma fina interpretação do aristotelismo como uma possibilidade do reconhecimento de si através da conversão religiosa. Analisando os escritos do português Padre Antônio Vieira, SJ (século XVII), influente missionário da Companhia de Jesus, que viveu grande parte de sua vida em Salvador (terras da “Capitania de Sua Majestade”) presenciando a invasão holandesa e os movimentos da Reforma e Contrarreforma em seus períodos na Europa, Cerqueira observa que o a conversão como interpretada por Vieira é um princípio de inteligência e liberdade, pois na conversão o ser humano percebe a sua própria existência como espírito e não apenas como corpo, no qual cita o próprio Viera (CERQUEIRA, 2002, p. 68): “que coisa é a conversão de uma alma senão entrar um homem dentro de si, e ver-se a si mesmo?”, ou seja, na conversão o ser humano convertido torna-se capaz de olhar para dentro de si e ter autoconsciência de si   mesmo enquanto uma alma para além do corpo.

O pensador Vieira, para além de missionário, mas com o intuito de catequização, fundamenta a ideia de autoconsciência de si enquanto princípio através de sermões, entre os mais importantes Cerqueira considera o sermão As Cinco Pedras da Funda de Davi (1673), em que Vieira assegura ser o fundamento da racionalidade do homem o conhecimento de si, a subjetividade, o mundo interior, enquanto dimensão existencial que permite fundar a ação neste mundo. Neste ponto a conversão seria o ato de sair do estado em que se encontra para entrar em si, na subjetividade, no mundo interior, e reconhecer-se como alma além do corpo, o que em seguida o encaminharia para o deslumbramento de Deus e os dogmas da Igreja.

A justificativa da conversão como possibilidade da consciência de si é realizada no domínio da lógica, das premissas e da argumentação filosófica, apesar dos seus fins serem religiosos. É devido a isto que se pode observar uma prática filosófica no Padre Antônio Vieira, assim como a literatura brasileira considera seus sermões como um legítimo representante da literatura do barroco português, por sua engenhosidade e teatralidade linguística, assim como a presença de conflitos entre os ideais antropocêntricos e os teocêntricos de um homem que expande sua razão, mas que deve manter seus valores de raiz medieval, defendidos pela Coroa e pela Igreja.

Se observarmos os escritos literários do período de dominação e influência portuguesa, ou seja, o período colono-imperial, veremos que as obras dos autores portugueses e brasileiros considerados do Quinhentismo, do Barroco e do Neoclassicismo, séculos XVI ao XVIII e início do XIX, expressam essa dualidade, tanto na escrita quanto na obra de arte, no qual o voo imaginativo encontrava-se restrito ora por uma vertente religiosa (Quinhentismo, Barroco), ora na busca de elementos de uma arte mais pura e academicista, voltadas as origens greco-romanas, porém não original (Neoclassicismo).

A barreira às novas ideias europeias, sejam elas literárias ou sistemas filosóficos, tornou-se aquilo que na literatura brasileira do século XIX (Romantismo, Realismo/ Naturalismo, Parnasianismo, Simbolismo, Pré-modernismo) será considerado o ranço tradicionalista – todavia devemos considerar que o longo período de dominação clara da Ratio Studiorum (pois apoiada claramente pela Coroa portuguesa durante 200 anos) e o aristotelismo associado a ela (CERQUEIRA, 2011); de importação de ideias, comportamento e estilo europeus voltados para uma elite exploratória aristocrática preocupada com a sua perpetuação econômica e política (status quo); consolidou um modo de se pensar e conceber as ideias – o que será amplamente criticado no âmbito das ideias filosóficas por Tobias Barreto em seu artigo Fatos do Espírito Humano, de 1869.

A partir do escrito acima sobre as influências do meio e a formação educacional da elite colonial no Brasil, podemos começar a esboçar quem seria o sujeito pensante brasileiro: um homem (uma vez que não eram permitido as mulheres a reflexão formal e escrita , nem outro afazer literalmente associado à palavra ofício – trabalho), este que, devido à natureza do domínio político vigente na época, acabaria por gerar uma inteligência colonial luso-brasileira [1] comprometida com valores morais religiosos; a manutenção do status quo; dos costumes de origem portuguesa ou europeia; com uma visão medieval sobre o trabalho sustentada por um regime escravista; com sistemas literato-filosóficos que justificassem os três pontos anteriores, sendo estes pormenorizados no próximo tópico.


1.3 A inteligência colonial luso-brasileira
Como foi descrito na introdução desta monografia, por “inteligência” compreendemos o conjunto de intelectuais, sejam eles pensadores, literatos, filósofos ou outros sujeitos pensantes, muitas vezes preocupados com a autoconsciência do seu povo ou nação, ou seja, preocupados em desenvolver análises explicativas ou criar noções compreensivas sobre o modo de ser do povo em que nasceu ou chama de seu. 

Defenderemos a seguir a ideia de que não existiria uma inteligência colonial brasileira e sim uma inteligência colonial luso-brasileira, pois os indivíduos que tinham acesso às letras pertenciam a uma elite lusitana nascida ou migrada para o Brasil, possuindo assim uma dupla identificação: portuguesa e brasileira = luso-brasileira.

Considerando o sujeito pensante uma pessoa não determinada pelo meio em que vive, todavia influenciada e condicionada por esse meio, observamos que uma inteligência colonial luso-brasileira estará condicionada pelos valores morais religiosos propagados pela educação jesuítica e pela fidelidade a Coroa portuguesa que fornece os subsídios e a estrutura política para a manutenção de seu status quo e perpetuação de uma condição parasitária.

Essa noção de moral e fidelidade como já foi explorado por Cerqueira pertencem ao âmbito dos primeiros voos filosóficos portugueses elaborados pela realeza de Avis e exemplificados na figura de D. Duarte, ainda no século XV, resquícios de um pensamento medieval voltado para a lógica da suserania e vassalagem.

Nos escritos de Vieira, a moral aparece como uma ferramenta para a autoconsciência de si nascida da conversão. O homem é dividido em duas partes, sendo uma natural e a outra a parte moral. Essas duas partes se complementam e se realizam no todo, no momento da conversão. Ao realizar uma escolha em converter-se, através de sua vontade e inteligência, o ser humano torna-se capaz de visualizar-se enquanto alma para além do corpo, onde corpo (a parte natural) possibilita a consciência de si.

Esse processo de modificação do ser humano e a argumentação sobre a necessidade da moral (do dever) como causa e fim em Vieira, é explicado por Cerqueira:

“Há, portanto, no homem, o modo (i) do ser, (…) e o modo (ii) do dever-ser, segundo a consciência de si, através da qual o homem se vê, desde a origem, muito obrigado pelo benefício da doação, isto é, não só em dívida como também agradecido pelo próprio ser-no-mundo, e reconhece a necessidade de acrescentar ao seu ser o dever como causa e fim de suas ações. Neste sentido, o viver, enquanto o ser-no-mundo, deixa de ser meramente uma função de poder para transformar-se num compromisso ontológico em função do dever como causa e fim das próprias ações. O dever como causa e fim, configurando uma causalidade final para além da indiferente causalidade mecânica, porque o fim, enquanto querido, move o indivíduo a empenhar sua inteligência e sua vontade nas próprias ações cujo penhor a resgatar é o direito real à independência da alma” (CERQUEIRA, 2002, p. 92-93).

Esse modo argumentativo é bastante sofisticado, original e representativo do sistema de pensamento vieiriano à medida que é possível observar o desenvolvimento das premissas e as conclusões as quais elas reforçam, demonstrando a influência do aristotelismo português e os fundamentos morais religiosos aos quais deveria propagar, entre eles o dever de cada ser humano, ou seja, a estratificação das funções sociais na colônia.

Sob influência deste exemplo de como pensar o mundo e aqueles pressupostos que deveriam ser conservados para que o dever-ser mantivesse o status quo e a estratificação das funções sociais na colônia, a inteligência colonial luso-brasileira estava mais dogmatizada que habilitada a contestar ou pensar a sua brasilidade [2].

Se pensarmos as causas para a superação desse dogmatismo no Brasil, veremos que o mesmo não está condicionado à expulsão dos jesuítas (1760, no Brasil) pelas reformas pombalinas em meados do século XVIII (1750-1777) que visava restabelecer o domínio das fronteiras brasileiras (Tratado de Madri) e o povoamento estratégico (estimular a miscigenação de índios e portugueses), assim como minimizar a educação de base religiosa na colônia e incentivar o cientificismo, pois a expulsão foi responsável pelo esfacelamento do ensino na colônia já que a unidade e seriação dos estudos foram substituídos pela fragmentação e a falta de um currículo regular, sob o nome de aulas régias (estabelecido pelo Alvará Régio de 1759) focadas em latim, grego, filosofia e retórica – e apesar da existência da filosofia, não devemos ficar animados porque a proposta do Alvará era simplificar os estudos, reduzindo as línguas clássicas e acrescentando mais língua portuguesa, assim como introduzir os temas científicos visando a formação superior. Na verdade, a reforma pombalina correspondeu a um primeiro esforço de laicização do ensino, ao instituir que o ensino laico encaminharia para a modernização e a introdução de ideias iluministas no Brasil. Nas palavras de Menardi e Amaral:

“Em substância, tal Alvará teve como significado central a tentativa de manter a continuidade de um trabalho pedagógico interrompido pela expulsão dos jesuítas. A educação jesuítica não mais convinha aos interesses comerciais emanados por Pombal, com seus conhecidos motivos e atos na tentativa de modernização de Portugal, que chegariam também as suas colônias. Assim sendo, as escolas da Companhia de Jesus que tinham por objetivo servir aos interesses da fé não atendiam aos anseios de Pombal em organizar a escola para servir aos interesses do Estado. (…) o Alvará de 1759 pode ser visto como o primeiro esforço no sentido da secularização das escolas portuguesas e de suas colônias, entendendo que somente um ensino, dirigido e mantido pelo poder secular, poderia corresponder aos fins da ordem civil. (…) As aulas régias instituídas por Pombal para substituir o ensino religioso constituíram, dessa forma, a primeira experiência de ensino promovido pelo Estado na história brasileira. A educação a partir de então, passou a ser uma questão de Estado. Desnecessário frisar que este sistema de ensino cuidado pelo Estado servia a uns poucos, em sua imensa maioria, filhos das incipientes elites coloniais. (…) Pedagogicamente, esta nova organização não representou um avanço. Mesmo exigindo novos métodos e novos livros, no latim a orientação era apenas de servir como instrumento de auxílio à língua portuguesa, o grego era indispensável a teólogos, advogados, artistas e médicos, a retórica não deveria ter seu uso restrito a cátedra. A filosofia ficou para bem mais tarde, mas efetivamente nada de novo aconteceu devido principalmente, às dificuldades quanto à falta de recursos e pessoal preparado” (MENARDI e AMARAL, 2006, p. 8-11).

A ressalva necessária refere-se à noção de “interesses do Estado”, pois devemos ter em mente que no período de Pombal, o Estado português era monarquista absolutista e o próprio Pombal era um déspota esclarecido, ou seja, reforçava a figura do rei absolutista, mas compreendia (e tinha formação iluminista) a importância da introdução dos valores iluministas para a modernização da economia, nascimento de uma indústria competitiva e reformulação de um comércio muito voltado para bens primários.

Entretanto a modernização da economia e a formação de uma classe de industriais deveria passar pela reformulação da elite e sua relação com o trabalho, posto que o processo produtivo industrial, desde a obtenção de matérias-primas até a obtenção do lucro final deveria ser mantido com a elite – esta que em Portugal e nas colônias era parasitaria e produtora do que hoje consideramos commodities.

Outro problema envolvendo a reformulação da elite consistia na relação colônias-metrópole, na qual haveria de ter um filtro acerca das ideias que envolvem: progresso e racionalidade nas colônias, pois dependendo do teor iluminista e da força de transformação política que essas ideias seriam capazes de provocar, gerariam as revoluções burguesas que ao fim do século XVIII pipocaram nos Estados Unidos (1776) e na França (1789), no qual neste último exemplo, causaria um colapso nas práticas remanescentes medievais como privilégios aristocrático-feudais e relações subservientes com a religião – o que em um Estado de regime absolutista não seria de bom grado.

A visão de modernização de Pombal estava balizada nas novas experiências de produção e comercialização das regiões de Flandres e as que nasciam na Inglaterra um tanto antes da culminância do boom industrial verificado entre 1760-1840 [3]. Todavia, esbarrava na elite aristocrática-parasitária portuguesa, sendo sua queda em 1777 inevitável, com a morte do Rei José I.

Seu senso de oportunidade, como afirmam Menardi e Amaral, possibilitou a reconstrução de Lisboa a partir do terremoto de 1755 e a reforma educacional com a expulsão dos jesuítas, assim como a substituição de importações com o intuito de fortalecer as manufaturas portuguesas na verdade visava o engrandecimento do poder do Estado absolutista.

Desse modo o que ocorre em Portugal é a penetração de um Iluminismo contido, trajado ao científico, limitado pelo poder da aristocracia e sufocado pela “tradição cultural da imitação, memorização e erudição literária” (MENARDI E AMARAL, 2006, p. 11).

O Iluminismo contido chegou ao Brasil também com o objetivo de engrandecimento do poder do Estado absolutista, porém na submissão aos interesses da metrópole ao preparar a elite luso-brasileira para a posse de cargos políticos e controle da produção de matérias-primas, ou seja, mais do mesmo, através do despotismo e benefícios individuais. Talvez seja possível afirmar a hipótese de que a colônia Brasil esteve a reboque: foi usada como argumento para a expulsão dos jesuítas, mas deixada a sua bem-aventurança no sentido educacional – visto que ocorreu a continuação do ensino ministrado por religiosos ao longo das décadas.

Todavia, a descoberta do ouro naquela que seria a Capitania de Minas Gerais (descoberta no final do século XVII, criação da capitania em 1720) começou a modificar o cenário colonial brasileiro: (1) o eixo litoral de colonização passou progressivamente para o interior deslocando o eixo demográfico para as capitanias meridionais; (2) intensificaram-se as correntes migratórias do reino trazendo profissionais liberais e homens livres para a colônia; (3) conflitos entre os nascidos no Brasil (paulistas bandeirantes) e os imigrantes portugueses (emboabas) pela posse e o direito de exploração das áreas auríferas descobertas trouxeram, pela via econômica e geopolítica, a primeira guerra de cunho identitário por recursos naturais na colônia (Guerra dos Emboabas).

Em meados do século XVIII a diminuição do ouro, mesclada com uma nova elite colonial que aos poucos se via mais brasileira que luso-brasileira com interesses próprios adversos à Coroa e mais consciente do seu papel central na economia da metrópole [4] fez florescer descontentamentos direcionados a Portugal que se tornaram inconfidências e nas palavras de Mota e Lopez (2008, p. 200): fizeram ferver ideias de reforma e de revolução, aprofundando a crise do sistema colonial”.
Conclui-se então, a partir do exposto que:

  1. Certas ideias foram recebidas, buscadas e assimiladas no Brasil colonial no intuito de formar ocupantes de cargos estratégicos para a Coroa portuguesa e controladores de matérias-primas, ou seja, uma elite exploradora pouco voltada para uma brasilidade.
  2. Formou-se na colônia Brasil uma inteligência colonial luso-brasileira esforçada em manter seu status quo;
  3. O ambiente educacional e de tutela não propiciaram o florescer de uma filosofia brasileira. 
  4. Os ventos de mudança começaram a surgir a partir do século XVIII através da intensificação da imigração de homens livres (de aventureiros a profissionais liberais) da metrópole para a colônia, como também da própria colônia em direção a Capitania de Minas Gerais em busca do ouro e enriquecimento.

A partir destas premissas e do exposto ao longo do subcapítulo, reforçamos que, a nosso ver, a expressão “inteligência colonial brasileira” é inadequada para se referir aos literatos, missionários produtores de arte, ou mesmo ao Padre Antônio Vieira, pois a identificação desta elite colonial se fazia à Portugal ou a duplicidade luso-brasileira.

Em termos de uma filosofia incipiente ou nula, reforçamos a concepção de Cerqueira sobre a produção escrita de Padre Antônio Vieira, acerca da qual considera:

“O fato de considerarmos digno de interesse filosófico (…) não quer dizer ipso facto que o consideramos um filósofo. Pelo contrário, se se justifica um interesse filosófico em seus textos, isto não se deve às questões nem aos problemas por ele suscitados no intuito de converter os homens à religiosidade cristã e católica, senão à universalidade de suas concepções ao pensar tais questões e problemas na perspectiva do aristotelismo português” (CERQUEIRA, 2002: 101-102).

Em termos do período colonial, os trabalhos de Vieira surgem como uma síntese do alcance do aristotelismo de origem medieval, herdada da tradição filosófica portuguesa, transmitida pela Ratio Studiorum (método pedagógico jesuítico) e interpretada no processo da consciência de si enquanto princípio na conversão religiosa (Igreja Católica Apostólica Romana).

Por fim, concluímos o mesmo que Cerqueira acerca da incipiência de uma filosofia brasileira no período colonial. A pergunta que nos fazemos é: como a filosofia veio a “nascer” ou “surgir” efetivamente no Brasil? Para Cerqueira, a filosofia brasileira nascerá efetivamente e somente no século XIX quando da superação do dogmatismo imposto pelo aristotelismo português, nascido da crise estética enquanto forma de experiência crítica.

Sobre essa questão nos debruçaremos no decorrer do segundo capítulo desta monografia.


CAPÍTULO 2
Nascimento da Filosofia Brasileira

Vimos no primeiro capítulo alguns argumentos a respeito da formação da inteligência colonial luso-brasileira e alguns motivos para esta expressão não ser adjetivada como inteligência colonial brasileira, assim como algumas razões para a dificuldade do nascimento de uma autoconsciência de povo e de certa maneira barreiras para o florescimento de um pensamento filosófico na colônia.

Todavia, hodiernamente, esta autoconsciência de povo e o florescer da filosofia estão vigentes em uma elite pensante e em jovens entusiastas, seja ela literária, filosófica e/ou científica. As perguntas, então, que compõem o cerne desta monografia se fazem: como se deu essa passagem, esse florescimento? Quais leitmotive estão envolvidos? Que figuras históricas auxiliaram nesse processo?

Parece-nos que esse turbilhão de perguntas pode ser condensado em um objetivo único, central: como ocorreu a passagem de um pensamento colonial brasileiro alicerçado no aristotelismo medievo contido no método pedagógico jesuíta para o pensamento moderno focado no cogito cartesiano com base na historicidade, na política e na cultura que possibilitou sujeitos pensantes escolherem dedicar-se a filosofia?

Esta interrogação acerca da passagem, a nosso ver, não possui um peso valorativo de progresso e evolução, apresenta em realidade um processo de aquisição de novos olhares, transformação do modo de vida e do modo de interpretar a vida, da elite que viu-se nacional.

Veremos ao longo deste capítulo que o pensar no Brasil no período pós-colonial do século XIX sempre esteve vinculado à elite e ousamos usar o vocábulo sempre, mesmo tendo em mente que “sempre”, “todo” e “nunca” compõem um conjunto de palavras que devem ser evitadas nos trabalhos científicos por representarem totalidades de difícil ou improvável comprovação. Apesar disso, o seu uso é extremamente representativo na composição acima. O sempre é efetivamente real [5].

Devido ao foco desta monografia, encontra-se estruturado em quatro partes: (a) o contexto de formação da Inteligência brasileira; (b) o primeiro filósofo: Gonçalves de Magalhães; (c) o segundo filósofo: Tobias Barreto – apresentando as três partes, o mesmo estilo de redação do primeiro capítulo; enquanto que (d) O tradicionalismo na perspectiva de Barreto: o atraso filosófico brasileiro expõe o exercício filosófico de ver o problema a partir da interpretação do precursor da crítica engajada filosófica no Brasil. 


2.1 Contexto de formação da inteligência brasileira
Argumentamos no primeiro capítulo dessa monografia o esforço de Marquês de Pombal em introduzir em Portugal e nos domínios portugueses as ideias iluministas respeitando o sistema político absolutista, ou seja, aquilo que ficou conhecido na história como despotismo esclarecido.

Como já foi mencionada, a descoberta do ouro (final do século XVII) e aquelas três modificações citadas no primeiro capítulo (interiorização, homens livres e conflitos territoriais) conjuntamente a formação de uma elite mineradora com filhos estudando numa Europa iluminista, fizeram surgir ebulições envolvendo noções de liberdade política e econômica na colônia (em prol a seus próprios interesses, pois a escravidão era um regime vigente e pouco questionado), em contrapartida, o processo de assimilação dessas ideias levou décadas para se materializar em produtos literários no Brasil, surgindo apenas no movimento romântico, no início do século XIX intensificado pela inusitada chegada da família real no Brasil, fugida da cólera napoleônica na Europa.

A vinda da família real portuguesa (1808) – a única monarquia a transferir-se para uma colônia – trazendo consigo um tipógrafo e liberando oficialmente o processo de editoração no Brasil, foi responsável por gerar um grande estimulo à atividade intelectual local.

Em outro trabalho (FRANGELLI, 2007, p. 59), comentamos que o prelo tipográfico e a liberação da imprensa informativa possibilitaram a multiplicação e a legalidade de jornais, responsáveis pela circulação de folhetos e panfletos desenvolvendo uma consciência política antes apequenada nos círculos políticos diretamente envolvidos a ela. A comunicação tornava-se pulsante e uma arma a favor ou contra o regime:

“Os periódicos não deixavam de indicar, o surgimento de uma até inédita preocupação coletiva em relação à política, no qual os acontecimentos diários tornavam-se públicos e convertiam-se em novidades, passando os artigos desses jornais a serem discutidos nos novos espaços de sociabilidade, que também se multiplicavam, dos cafés, das livrarias e da própria maçonaria (…) Espaços onde as novas concepções estendiam-se além da elite, que dominava o escrito, para atingir, pelo falar de boca, os indivíduos que se situavam nas bordas dos grupos privilegiados” (MACHADO e NEVES, 1999, p. 71).

Pode-se imaginar o impacto que a imprensa causou nesta cidade colonial. Por isso, para Mota e Lopez, o século XIX no Brasil começou com a chegada de D. João VI, pois a cidade do Rio de Janeiro – mais um precário porto que uma cidade, começou a se aparelhar a fim de abrigar a “nova capital do império luso-afro-brasileiro”:

“Com enormes dificuldades, tentou-se liquidar o passado colonial e criar um Estado-nação moderno. Fundou-se o Banco do Brasil, a Biblioteca Nacional, a Imprensa Nacional e, decalcada no modelo da ex-capital lisboeta, uma rede de órgãos governamentais. Porém... Exótica e pitoresca, a cidade do Rio de Janeiro, muito precariamente, tornou-se uma capital cosmopolita. Grande quantidade de pintores, artistas, escritores, comerciantes, diplomatas, financistas, jornalistas e um leque variado de profissionais deram um novo tom à vida social, política, econômica e artística no Brasil. A ex-colônia passou a beneficiar-se de intensa internacionalização, entrando no circuito mundial e livrando-se de alguns entraves do sistema colonial. (…) [começava a se formar] novas elites nativas, com suas lideranças formadas e cientes de seu papel nos negócios do Estado e nas relações internacionais” (MOTA e LOPEZ, 2008, p. 305-6).

A última frase deste fragmento alinha-se a nossa premissa sobre o florescer de uma autoconsciência de Brasil – ainda que voltada para os interesses de uma única classe, a elite escolarizada e detentora dos meios de produção – no sentido de que a tomada de consciência sobre o papel do seu lugar (Brasil) e da sua posição político-econômica (colônia ou metrópole?) começa a ser direcionada para a emancipação, a independência, ou seja, a liberdade política de gerir seus negócios, mesmo que sobre a égide de uma nobreza – a família imperial.

O período imperial capitaneado pelo português D. Pedro I demonstra a singularidade daquilo que é ser brasileiro: enquanto as independências das colônias inglesas, francesas e espanholas nas Américas ocorreram a partir de forças internas lideradas pelas elites coloniais, no Brasil – única colônia a tornar-se metrópole – sua independência ocorre como estratégia política da monarquia portuguesa de perpetuar-se na própria colônia.

Essa singularidade brasileira não reside apenas na permanência da corte portuguesa entre 1808 e 1821; ou na proclamação da independência por um de seus membros em 1822, mas também na manutenção do status quo das elites aristocráticas das capitanias litorâneas e interioranas quanto ao regime escravocrata, aos privilégios políticos coloniais e a economia voltada para a exportação que anacronicamente não conseguia visualizar a importância de uma solidificação da economia interna e do trabalho livre para o ingresso do Império na era industrial que estava por vir.

Na verdade se olharmos friamente para o Brasil Império, veremos uma extensa faixa territorial extremamente mal articulada no qual os núcleos das Capitanias mantinham pouco contato entre si, posto que sua articulação anteriormente era com a metrópole, passando a ser com privilégios à Inglaterra (devido a escolta inglesa por ocasião da fuga da família real) quando da abertura dos portos.

Podemos afirmar que o Império Brasileiro ainda não possuía uma identidade que possibilitasse distingui-la de Portugal enquanto ente independente – não havia uma definição do que era o Brasil. Machado e Neves chamam a atenção para esse fato quando citam Capistrano de Abreu, e sua análise bem sucedida sobre aquilo que aproximava os brasileiros e os campos a serem explorados a fim de evitar um esfacelamento do império. O Brasil, segundo Machado e Neves:

“não passava de uma coleção de 5 regiões etnograficamente distintas, em que apenas a língua e a religião comum atuavam no sentido de uma aproximação. Largos espaços por colonizar, paisagens diversas, hábitos estranhos, vida econômica fora dos grandes centros tendente a autarquias, comunicações precárias, ausência de vida social e de cultura escrita, tudo concorria para separar e distinguir. (…) No entanto, tinha como fatores de unidade, o entusiasmo estrepitoso pelas riquezas da terra e a aversão ao português” (MACHADO e NEVES, 1999. P. 97).

Compreendendo esse quadro não muito promissor, tanto Dom Pedro I quanto Dom Pedro II trouxeram para si (muito mais o primeiro do que o segundo) o sentido de identidade que a nação precisava, destacando-se entre outros, as seguintes ações: incentivo ao ufanismo e a composição de hinos, de proclamações e de poemas sobre o Brasil; a criação de musicais e peças teatrais em que o tema fosse o Brasil; com destaque para Dom Pedro I que em parceria com Evaristo da Veiga compôs o hino à independência. Aos poucos a elite apercebeu-se como pertencente a uma unidade maior, à parte de Portugal e para além de suas possessões.

É nesse contexto de afloramento da nacionalidade que movimentos artísticos literários nacionais são incentivados, nascendo assim o movimento romântico ou Romantismo no Brasil – a partir da estética europeia, todavia imprimindo sua própria marca ao priorizar elementos estéticos nacionais.

De certa maneira, os primeiros passos do romantismo brasileiro escapam daqueles ocorridos na Europa, posto que o cerne do movimento europeu provinha da burguesia que necessitava criar suas referências artísticas, definir padrões estéticos, nos quais se reconhe[cesse] e que o diferenci[asse] da nobreza deposta”, é nesse contexto que o romantismo busca “uma arte na qual [a burguesia] possa se reconhecer (ABAURRE e PONTARA, 2005, p. 212 e 217).

A primeira fase do movimento romântico brasileiro apesar de não possuir essa matriz burguesa, inspirava-se na Proclamação da Independência e no discurso da nacionalidade para buscar e criar símbolos nacionais. Para Abaurre e Pontara, estes elementos são: (a) a natureza exuberante a ser descoberta que deveria ser catalogada e retratada em pinturas para serem expostas na Europa (pertencente ao discurso científico do século XIX); e (b) os povos indígenas como os verdadeiros nativos (a ideia de que o nacional é o oriundo da terra):

“Jovens intelectuais, muitos deles educados e vivendo na Europa, entusiasmados com a independência política, abraçaram a missão de escrever os textos que apresentariam, para brasileiros e estrangeiros, a face do novo país independente” (ABAURRE e PONTARA, 2005: 238).

É neste contexto que surgiriam Araújo Porto Alegre e Domingos José Gonçalves de Magalhães, que vivendo ambos na França, pertenciam ao Grupo de Paris e criaram a publicação Nitheroy, Revista Brasiliense de Ciências, Letras e Artes em 1836, que objetivava divulgar e produzir textos de referência para a formação de uma intelligentsia brasileira. Abaurre e Pontara apontam:

“Em seu primeiro número, a revista trazia um importante texto, assinado por Gonçalves de Magalhães, intitulado Discurso sobre a História da Literatura do Brasil, em que se procurava demonstrar como, até 1808, a produção literária nacional tinha se limitado a importar temas, formas e valores portugueses. Segundo Gonçalves de Magalhães, a vinda do rei cria um contexto que revela a necessidade de os brasileiros reconhecerem o próprio país como uma nação. O modo de construir essa consciência era valorizar a cultura local. Era o momento, portanto, de trabalhar para definir literariamente os traços da nacionalidade. [...] Gonçalves de Magalhães é considerado o fundador do romantismo no Brasil, com a publicação de ‘Suspiros poéticos e saudades’, em 1836. Ornamentados com referências neoclássicas, os poemas desse livro afirmam uma crença no progresso da humanidade, no triunfo do belo, do santo e do justo pelo exercício da razão” (ABAURRE e PONTARA, 2005, p. 239).

Concordamos com Cerqueira, que devido à formação cultural brasileira, a mudança de princípio do aristotelismo para a filosofia moderna somente nasceria através de uma crise estética, isto é: a base de uma autoconsciência de si como povo somente poderia ter nascido da transformação estética, ou seja, literária e também na pintura, pois estas que eram fomentadas no Brasil.

Logo, essa necessidade de produzir elementos que justificassem o Brasil como uma nação única por meio da literatura (autoconsciência de si como povo no discurso do cientificismo) frente às demais nações impulsionou Gonçalves de Magalhães à filosofia. De fato, ele é considerado o primeiro filósofo brasileiro.


2.2 O primeiro filósofo: Gonçalves de Magalhães
O sistema filosófico de Domingos José Gonçalves de Magalhães apresenta aquilo que o prof. Cerqueira costuma observar em suas aulas como a contradição no homemem referência aos embates literários entre o filósofo e o literato José de Alencar.

Em verdade, a busca pela “essência” do que é brasileiro, encaminhou Gonçalves de Magalhães às análises sobre a produção colonial (como mencionado anteriormente) e também as ideias que constituíam o seu próprio ser e dos homens livres para a vida intelectual [6] de sua época, produzindo assim escritos que toleravam correntes de pensamentos opostos ou pouco conciliáveis do ponto de vista do estrangeiro, porém coerentes com a formação da elite nacional: a conversão religiosa e o cogito cartesiano. Nas palavras de Cerqueira:

“Se considerar-se que a expressão ‘consciência de si’ implica não só o conhecimento de si por si mesmo, mas também o conhecimento de si como objeto da observação alheia, poder-se-á concluir que a razão por que a conversão e o cogito não se confundem (o que, na verdade, significou um progresso) está em que (i) na conversão, a autoconsciência se caracteriza pela dependência de um fator externo, o pregador, enquanto que (ii) no Cogito, a autoconsciência se caracteriza pela independência em relação a qualquer fator externo, isto é, pelo seu caráter a priori” (CERQUEIRA, 2002, p. 105).

Na verdade, o que está em jogo é a noção de liberdade: com os escritos de Descartes sobre o cogito, o homem não necessita mais da intermediação de outro ser, ou seja, do pregador para criar hipóteses e leis sobre a existência humana e das coisas. Essa liberdade é que regerá o domínio do homem sobre as coisas na época moderna, e dentro do contexto da autoconsciência de um povo, a independência cultural da nação frente às demais.

Mas o que torna Gonçalves de Magalhães o primeiro filósofo brasileiro? Que a literatura brasileira o tenha elevado a fundador do movimento romântico não justifica tal pioneirismo. A sua primazia está naquilo que Cerqueira (2002, p. 114) afirma sobre a sua obra: Gonçalves de Magalhães é o primeiro brasileiro a assumir atitude teórica em face da filosofia moderna e a partir do aristotelismo constituinte de sua própria tradição filosófica”, ou seja, a partir de sua origem (pois nascido já no Brasil Império – 1811) Gonçalves de Magalhães reconheceu a si mesmo como brasileiro, portador de uma cultura que o diferenciava de habitantes de outras terras, e consciente de si buscou teorizar sobre a luz de sua formação cultural (literária e filosófica) as ideias de seu tempo.

A conciliação de ideias promovidas por Gonçalves de Magalhães [7] em seus escritos foram tão amplamente aceitas pela inteligência brasileira que sua obra é considerada como originária de um pensamento moderno-conservador no Brasil e um marco do período imperial (sua morte ocorreu no ano de 1882).

Entretanto, de fato, no final do século XIX, diversas matrizes literárias conviviam demonstrando posicionamentos diferentes frente a uma nação múltipla brasileira: (a) a terceira geração romântica começa a produzir uma poesia social turbulenta e sentimental preocupada com a liberdade e a escravidão; (b) os realistas e naturalistas criam críticas e denúncias sobre a miséria e o progresso, críticas estas extremamente objetivas e calcinantes a respeito das contradições da sociedade calcadas no cientificismo; enquanto que (c) os parnasianos perseguiam a perfeição da forma interpretando a arte pela arte, ou seja, uma arte voltada para a própria arte e não as mazelas da sociedade; e (d) os simbolistas buscavam uma visão mais holística e sensorial do mundo muitas vezes trazendo à tona o lado pouco explorado literariamente do homem e da natureza, o que culminaria no aprofundamento filosófico existencial desta forma poética [8].

Dentro deste turbilhão de posicionamentos e do progressivo cientificismo da escrita literária brasileira, surge o segundo filósofo brasileiro Tobias Barreto de Menezes (1839-1889) como um crítico à filosofia de Gonçalves de Magalhães e ao espírito moderno-conservador daquele período histórico cuja redação reflete o calcinante processo do Realismo literário brasileiro.


2.3 O segundo filósofo: Tobias Barreto
Tobias Barreto estava engajado em desnudar essa inteligência brasileira moderno-conservadora, retirando do processo de autoconscientização o sobrenatural, ou seja, a conversão, pensando a liberdade sob o viés da revolução científica (possuidora de lei ou necessidade) e da oposição a uma concepção mecânica da natureza. É a partir da “doutrina da cultura como antítese da natureza (CERQUEIRA, 2002, p. 179) que o filósofo propõe uma oposição à doutrina de conciliação de Gonçalves de Magalhães.

Para Tobias Barreto, o método das ciências naturais é considerado inadequado para a análise do homem, pois o modelo de explicação das ciências naturais por focar-se na relação causa e efeito não é facilmente aplicável às ações humanas: a ação de um homem ocorre pela vontade livre dele mesmo, todavia nem sempre resultará naquilo que havia planejado como resultado daquela ação (isto é, causa e efeito necessários). Em outras palavras: apesar de possuir leis (necessidade) essa vontade livre não obedece às mesmas leis da causalidade da natureza, no qual uma determinada causa origina um determinado efeito.

Essa vontade livre no sentido de independente de causas externas representaria o fundamento da cultura enquanto agente de mudança do natural. A liberdade do homem é então um “fato de consciência” (CERQUEIRA, 2002, p. 185) porque próprio do homem e de sua vontade livre de agir que permite a autorregulação, sujeitando a sua vontade às normas e aos seus próprios objetivos.

Novamente devemos fazer a pergunta: por que Tobias Barreto é considerado o segundo filósofo brasileiro? Não basta afirmar que o seu pensamento contrapôs-se ao sistema filosófico de Gonçalves de Magalhães. Situado em um contexto de afirmação da filosofia (esta já presente nos bancos escolares) no qual toma para si o exame dos escritos de seu tempo de autores brasileiros e estrangeiros, Tobias Barreto inaugura a crítica filosófica engajada no Brasil influenciando movimentos literários e filosóficos que se materializariam na Semana de Arte Moderna de 1922, assim como estaria presente posteriormente no Manifesto da Poesia Pau-Brasil de Oswald de Andrade escrito em 1924 e no Manifesto Antropofágico também de Andrade escrito em 1928 com o intuito de deglutir, ruminar e digerir as ideias literato-filosóficas das vanguardas europeias construindo, recriando e refazendo-as para além da estética, ou seja, de um movimento artístico, atingindo um pensar literato-filosófico brasileiro, aos moldes do que Reale propôs como autoconsciência do povo brasileiro, e Cerqueira denomina mudança de princípio estabelecida pela consciência de si sob a filosofia moderna do cogito cartesiano, e que culminaria numa longa crise estética responsável pela experiência crítica no qual efetivar-se-ia a mudança de princípio.

Sobre o estilo de escrita e as críticas de Tobias Barreto à inteligência brasileira moderno-conservadora, dedicaremos o próximo subcapítulo.

A partir do exposto conclui-se que:

  1. A chegada da família imperial e a independência proclamada por um português acarretou singularidades a formação de uma inteligência brasileira;
  2. A necessidade de símbolos nacionais propiciou o surgimento de uma inteligência brasileira, tendo esta letrados como a sua origem;
  3. Esta mesma necessidade fez surgir o primeiro filósofo brasileiro e precursor do movimento literário romântico: Gonçalves de Magalhães – corroborando a hipótese de Cerqueira (2002) sobre a importância da questão estética e da natureza peculiar do amalgamento literato-filosófico a respeito da autoconsciência de si e de povo;
  4. O advento da modernização (cientificismo) transformou o espaço imperial, modificando parte da cultura, da economia, da sociedade e etc.; 
  5. As transformações estéticas do século XIX ocasionadas pelo cientificismo criaram as condições para o surgimento da primeira crítica filosófica brasileira feita por um brasileiro e concomitantemente, o segundo filósofo: Tobias Barreto.

Observamos no decorrer deste tópico que a inteligência brasileira, esta que consideramos genuinamente brasileira, formou-se a partir da noção de continuum, ou seja, do resultado das práticas jesuíticas de um Brasil colonial subjugado a Portugal; pela construção de uma singularidade a partir dos símbolos nacionais e do fomento de uma literatura brasileira no século XIX no interior de um Brasil independente e imperial – o que na filosofia faria surgir Gonçalves de Magalhães, o primeiro filósofo genuinamente brasileiro, determinante na mudança cultural daquele período.

Desenvolveu-se também neste tópico a hipótese de que o pulsar do pensamento brasileiro do século XIX retratado na literatura nacional deste período criou condicionantes para o surgimento da primeira crítica filosófica [9], isto é, do segundo filósofo brasileiro: Tobias Barreto, este que se posicionou contrário à inteligência brasileira moderno-conservadora. As ideias deste filósofo tiveram grande ressonância e assim como os movimentos literários do século XIX no Brasil, prepararam o terreno para uma grande cisão das artes brasileiras. Apesar de não ser objeto deste estudo, essas ideias se materializaram na Semana de Arte Moderna de 1922 e movimentos posteriores a ela.

De certa maneira, devido as peculiaridades sócio-históricas e culturais brasileiras, longos trezentos anos (1500 a 1836 em diante) de amalgamento literato-filosófico foram necessários para o florescer da filosofia no país.

Concluído este ponto no capítulo, passaremos ao próximo no qual visamos apresentar a crítica de Tobias Barreto, filósofo supracitado, que expõe diversos argumentos sobre o atraso da filosofia brasileira através de uma escrita bastante contundente e no momento histórico em que as mudanças estavam ocorrendo. Tobias Barreto foi particularmente escolhido devido a sua importância na História da Filosofia no Brasil.


2.3.1 O tradicionalismo como problema
Finalizando este segundo capítulo, passaremos ao exercício filosófico da apresentação e observação de alguns pontos presentes no texto de Tobias Barreto, denominado O Atraso da Filosofia entre Nós, sobre a necessidade da mudança paradigmática tradicional-moderna em que o filósofo supracitado expõe diversos argumentos contrários ao livro de filosofia de José Soriano de Sousa intitulado Lições de filosofia elementar de 1871. Sobre ele, nos agrada bastante a descrição elaborada por Cerqueira:

“Muito se tem insistido numa imagem excêntrica de Tobias Barreto de Menezes (1839-1889): o mulato desabusado, formado pela Escola de Direito do Recife, que, ainda em 1875, no interior de Pernambuco, tornou-se redator e editor (eventualmente também o tipógrafo) de um jornal literário em alemão, cujo público acabava sendo ninguém, senão ele mesmo” (CERQUEIRA, 2002, p. 178).

O “mulato desabusado” de escrita ácida e visionária, segundo Cerqueira, foi o grande responsável através de suas críticas em jornais e embates filosóficos pela consolidação do processo de modernização da cultura brasileira [10], sendo provavelmente um dos precursores do movimento artístico antropofágico de Oswald de Andrade ao compreender a necessidade de deglutir a filosofia estrangeira, estudá-la criticamente com a finalidade de trilhar novos pontos de vista e projetar algo novo, autônomo, rechaçando a imitação, repetição e a subalternidade.

O artigo O Atraso da Filosofia entre Nós foi publicado por Tobias Barreto no Jornal de Recife em 1872 [disponível em: http://textosdefilosofiabrasileira.blogspot.com/2010/06/o-atraso-da-filosofia-entre-nos.html], no estilo de resenha crítica, pois visa apresentar uma série de argumentos e julgamentos de valor – negativos – sobre o livro de filosofia de José Soriano de Sousa intitulado Lições de filosofia elementar.

O artigo foi dividido em três partes — devido a isso, também repartimos a exposição em três partes — nos quais longas notas de fim de página desenvolvem assuntos paralelos, adendos e comentários.

O estilo do texto de Tobias Barreto, os argumentos sobre o atraso da filosofia brasileira e as críticas aos escritos de Sousa serão explorados a seguir.

Em um primeiro momento, pensa-se que o texto de Tobias Barreto é difamatório. Há o uso estilístico de adjetivos negativos [11] considerados “politicamente incorretos” nos dias atuais que o tornam confuso em seu objetivo: um leitor não familiarizado com o estilo dos escritos do século XIX acharia que o texto seria apenas uma forma de ataque a um desafeto que, em anos anteriores, ao concorrerem a uma vaga no Ginásio Pernambucano (1867), no qual somente havia os dois como candidatos, Sousa saiu vitorioso.

Todavia, os questionamentos de Tobias Barreto, ao longo de seu texto, se referem ao conteúdo da obra, classificado como desatualizada em vistas à demanda da ciência moderna. A crítica recai sobre o caráter tomista, acabado e ilógico de partes da obra de Sousa, apesar do título do livro fazer referência às questões elementares da própria filosofia.

Barreto define a obra de Sousa como uma “defesa de princípios evidentemente mortos”, uma obra sem frutos de “mais completo jejum de tudo que alimenta o espírito da época” com o objetivo de “fabricar no Recife o melhor contraveneno das ideias perigosas”, na medida em que a obra apresenta uma série de argumentos – algumas vezes demonstrados com erros lógicos grosseiros – contra o espírito de época do século XIX calcado nos princípios da ciência europeia.

Para o crítico, a obra de Sousa representava um último suspiro, ou mesmo, uma tentativa de - em um país de poucos leitores e desta maneira pouquíssimos críticos, escravocrata (Lei Áurea, 1888) e conservador, no qual Igreja e Estado ainda não se apresentavam separados – manter uma espécie de status quo. O próprio Barreto reflete sobre a possibilidade de a obra prestar “um certo serviço à causa da Igreja”, esta que vinha sendo questionada na Europa desde o movimento Renascentista, porém no Brasil, parecia não possuir grandes opositores.

Conforme argumentado por Barreto, Sousa parte de uma visão turva sobre os pontos filosóficos refletidos pela ciência moderna, julgando que esta: debatia-se sobre a questão naturalismo versus sobrenaturalismo; razão versus fé; ateísmo versus Teologia; e ignorando que a ciência moderna ao cientificar a religião, vinha modificando até mesmo o conceito e as ideias sobre a mesma.

Por último, nesta Parte I do artigo, Barreto aponta o modo filosófico de Sousa como antagônico em si mesmo: suas ideias são acabadas, fechadas e impostas à medida que as supõem como “indubitáveis e superiores a qualquer análise”. Esse modo filosófico tenta obstruir o debate e o diálogo próprios da natureza da filosofia.

Na Parte II, Barreto inicia sua crítica alertando para o abuso do uso linguístico do argumento de autoridade feito por Sousa, de modo a mostrar o alinhamento do mesmo ao tomismo, porém destacando a atitude de submissão do escritor ao em vez de uma atitude de dúvida, diálogo e questionadora de ideias filosóficas – quase sempre atitudes esperadas de um filósofo. De certa maneira, Barreto continuava questionando o fazer filosófico de Sousa e a seu estatuto de “autoridade” enquanto filósofo – até mesmo suas motivações escriturais.

Essas motivações escriturais, consideradas “uma certa dose de cálculo e simulação” tinha por objetivo agradar a Igreja e o Império brasileiro, autentificada pela dedicatória do livro direcionada ao Papa e ao Imperador D. Pedro II, ou seja, as “duas metades de Deus”.

Se a atitude filosófica de Sousa apresentava-se em suspensão devido a antifilosofia que praticava, Barreto passa a questionar a falta de visão do espírito de época do autor pelo fato do mesmo ser médico – e por isso mesmo – praticante de uma ciência.

A relação que Barreto estabelece é entre a prática do dia-a-dia de médico e as ideias que surgem dessa prática – considerando que o filósofo-questionador apresenta-se como um afiliado do experimento e da experiência como possibilitadora de conhecimento – de certa maneira ele está considerando que o fazer contínuo e o aprimoramento da medicina poderiam possibilitar uma abertura de pensamento e posterior dúvida sobre as ideias filosóficas defendidas por Sousa.

No decorrer da Parte II, Barreto apresenta as ideias de Augusto Comte e afiliados como a “mais inquietante” da época moderna, pois problematiza “a própria essência e limites da filosofia”, ao afastarem a metafísica e auxiliarem a filosofia moderna a descer “de sua antiga torre de marfim”, indicando a filosofia como àquela que orienta as demais ciências, aprendendo com elas e compreendendo o sentido de cada uma.

É interessante observar o quanto as ideias de Comte parecem ter fascinado Barreto. O positivismo, décadas mais adiante, demonstraria um caminho bastante próximo da religião ao adotar como rituais, alguns métodos científicos e também práticas de seitas antigas.

Nesta Parte II, Barreto vai demonstrar algumas incongruências no texto de Sousa, erros impróprios para um professor de filosofia, representada na frase “Daqui se infere a existência da metafísica”.

Barreto afirma que a existência ou não da metafísica não é a questão em si, mas se a mesma poderia ser considerada uma ciência possuidora de um objeto “certo e determinado (...) se ela nos instrui de alguma coisa que não é dado às outras” conhecerem.

Acredita-se que no século XIX, observado o impacto causado pelo advento da ciência expressa no modelo positivista, caracterizando a época moderna, Barreto estava convencido que a filosofia era uma espécie de ciência, e logo suas partes também seriam dadas a conhecer através dos objetos, do conteúdo que atendia e não apenas dos objetivos contidos na sua proposta.

O que pode ser percebido é que, novamente, o escritor Sousa é criticado pela sua má adequação e estagnação filosófica, representada pelas ideias e pela maneira como as defende – na visão de Barreto.

A Parte III apresenta-se mais longa que as anteriores, considerando-se o texto e suas respectivas notas. Diversas críticas anteriores são retomadas a respeito do continuo uso de doutrinas convencionais de base escolástica; assim como a incontestabilidade que o autor dá a suas teorias, ignorando até mesmo as controvérsias existentes nos debates entorno dos conceitos de lei e do apriorismo; todavia um argumento crucial sobre os erros filosóficos de Sousa e a sua estagnação são exemplificadas através da teoria da indução.

Barreto demonstra que Sousa não compreendeu bem a diferença entre o método dedutivo e indutivo – e muito menos a supremacia da teoria indutiva frente à outra. Na verdade, o empirismo de Barreto é que afirma essa supremacia.

Cabe neste ponto transcrever o problema como foi apresentado por Barreto, na Parte III de seu texto:

“O Dr. Soriano revelou não conhecer o fundo e o alcance da questão. E oxalá que tudo fosse isso. Ele mostrou ainda mais que não sabe raciocinar, mesmo sobre coisas para as quais já existem, por assim dizer, argumentos feitos e armazenados. Tratando de indução, o filósofo pergunta se o raciocínio dedutivo e o indutivo serão essencialmente distintos; se o silogismo diferirá radicalmente da indução. E depois de referir alguns caracteres, por onde há quem responda afirmativamente, assim se exprime: 'Mas se bem considerarmos, veremos que a diferença daqueles dois processos está mais na forma do que na essência. Porquanto é certo que o silogismo, sendo um processo geral de raciocinar, nenhum raciocínio pode ficar fora dele' ”.

Sousa, como apresentado por Barreto, irá reduzir a indução ao silogismo, afirmando que apenas este último existe enquanto operação mental.

Neste ponto, devemos destacar que há um erro básico de raciocínio. A teoria da indução afirma, basicamente, que mentalmente atribuímos a um grupo características que estão sendo observadas de maneira constante em diversos indivíduos daquele grupo, ou seja, atribuímos ao gênero o que vem sendo observado de forma constante nas espécies que compõem aquele gênero.

A teoria da indução irá requerer uma crença na repetição daquela característica, enquanto que a teoria da dedução partirá de juízos e princípios tidos como universais.

Barreto, por adotar o empirismo, considera que esses juízos universais são adquiridos via indução – observação do regime da natureza – e julga que a dedução baseada em verdades a priori e conceitos racionais “não vem mais a propósito” no contexto e debates filosóficos do século XIX. Posteriormente, ainda na Parte III, afirmará que:

“a vida humana, a vida espiritual, é quase toda feita de crenças, quase toda baseada em induções. A nossa própria existência, da qual, segundo a maioria dos filósofos, temos um conhecimento direto e imediato por meio da consciência, é objeto de indução”.

Todavia, cabe destacar que hodiernamente, e mesmo no decorrer do século XIX, tanto a teoria da indução quanto a teoria da dedução eram e são praticadas sem comentários a sua natureza despropositada.

Basicamente, uma das teorias parte da observação do objeto e a outra parte do estabelecimento de princípios sobre o objeto, ou seja, a hipótese. Ambas são teorias aplicadas na ciência e cada uma a seu modo obtém resultados através da operação mental que realizam.

Tobias Barreto finaliza a publicação do artigo criticando os chamados “produtos intelectuais” brasileiros que, ou são tidos como bons e acabados em si, ou julgados ruins devido ao caráter daquele que escreveu a obra. E conclui, terminando o artigo, com uma longa nota de fim sobre aquilo que é considerado literatura no Brasil, no final do século XIX: poemas e romances.  As produções intelectuais sejam elas ciência, filosofia, poema, teatro, romance, música e até mesmo pintura – que em países como a Alemanha compõem o quadro literário nacional, no Brasil são desconsideradas. Para exemplificar o dito acima, destacamos:

“Qualquer moço que não sabe história, porque, diz ele, em seu tempo não se dava no Colégio das Artes; que não sabe filosofia, porque nunca teve gosto pelo Charma [12]; que não avança uma palavra sobre a crítica religiosa, porque é católico de lei; que não sabe mesmo pronunciar-se com desembaraço a respeito das concepções musicais, porque é negócio estranho ao seu mister e ao muito poderá repetir que Carlos Gomes deitou abaixo todos os maestros etc., esse moço, assim bem cultivado, tem coragem de dizer que só sabe e só gosta de literatura... É horrível!”.

Torna-se interessante observar que, em 1872, ou seja, 142 anos atrás, a finalização da crítica de Barreto possa ser transmigrada para os dias atuais. No desenrolar do texto supra- resenhado observamos a preocupação de Barreto em refletir sobre si enquanto indivíduo e também enquanto povo, à medida que elabora um pensar genuinamente brasileiro emancipado da tradição filosófica instalada no Brasil por Portugal (aristotelismo português) e deglutido de leituras sobre o cientificismo e a filosofia alemã em proveito ao entendimento da necessidade da marcha de modernização brasileira, perfazendo aquilo que desenvolvemos no primeiro capítulo desta monografia e repetimos ao fim deste: a necessidade de refletir sobre si enquanto indivíduo e também enquanto povo, à medida que elabora um pensar genuinamente brasileiro com vistas ao universal e a busca de sua identidade, pensar este emancipado da tradição filosófica portuguesa e crítico de sua própria filosofia.


Conclusão

O fascínio pelo Brasil e aquilo que é propriamente brasileiro permeiam o meu interesse pela pesquisa seja ela científica ou filosófica, há algum tempo.

No âmago das argumentações elaboradas nesta monografia impulsionadas pelas palavras: mudanças, rompimentos, passagens e transformações, encontra-se um profundo questionamento sobre o presente e a projeção de um futuro de Brasil – esse, reflexo de seu passado, complexo nos entroncamentos do tempo, e realizado a cada dia a partir de cada brasileiro.

A noção de Brasil é extremamente abstrata e o interesse por estas bases – ou mesmo um olhar sobre nós mesmos – parece um desafio pouco atraente aos alunos de filosofia, posto que o número de trabalhos na temática “Brasil” é reduzido em comparação ao de autores ou problemas filosóficos de origem estranha ao nosso meio. 

Em entrevista à Revista Ciência & Vida Filosofia, № 42 (2009), sob o título “Apesar dos preconceitos”, o prof. Cerqueira afirma que o modelo de formação restrito, ou seja, a base curricular da filosofia ministrada nos diversos cursos pelo país dificulta o despertar deste interesse.

Essa base curricular cujo foco é o estudo de autores estrangeiros, preferencialmente europeus, implica numa visão encurtada sobre o estudo da filosofia, ou mesmo eurocêntrica, subjugada, pouco livre. Essa formação parece pretender criar um entusiasta dos comentários – um comentador – em vez de um pensador dos problemas universais ou fundamentais da humanidade – o filósofo.

É neste ponto crucial que a presente monografia pretendeu lançar mais uma reflexão sobre a formação do pensamento filosófico brasileiro. Considerando a maneira como foi escrito, decidimos finalizá-lo sem retomar a problemática como um todo na conclusão, pois representaria um processo de repetição dos elementos já trabalhados.

Em diversos estudos e também nesta entrevista, Cerqueira aponta para essa formação restrita a partir dos fatos históricos que se remetem as escolas jesuíticas (período colonial) até a constituição da universidade (no século XX), nos quais o modelo de reconhecimento dos autores alienígenas e do comentador é originário. Todavia, este modelo aplicado à colônia fazia sentido – éramos povos colonizados, “destinados” à repetição e subalternidade.

Gonçalves de Magalhães, ao propor a renovação literária brasileira em seu Suspiros poéticos e saudades, considerado o primeiro manifesto pró- romantismo, buscava na criação de símbolos nacionais e no reconhecimento de seu passado, os caminhos para um futuro mais autônomo do pensar no e para o Brasil. Porém, este pensar estava datado e fora o primeiro – ou seja, atingiu seus objetivos naquele contexto histórico do período imperial.

Posteriormente, a constatação da manutenção do “culto ao comentador” ressurgiu no final do século XIX com os escritos contestatórios do filósofo Tobias Barreto e materializou-se em produtos literários e artísticos no início do século XX através da Semana de Arte Moderna de 1922. O processo de autoconsciência de si e de povo enquanto (a) reconhecimento de suas origens, (b) importância do intercâmbio de ideias e (c) projeção de um futuro mais autônomo estão escritos no Manifesto da Poesia Pau-Brasil de 1924 e no Manifesto Antropofágico de 1928, ambos produzidos por Oswald de Andrade.

A matriz humanística e literária brasileira; a formação histórico-espacial de colonização e da educação; e a construção social do país de valorização do estrangeiro; ou seja, alguns aspectos da composição cultural do Brasil, desde os primórdios incrustadas na mentalidade da inteligência brasileira, pareciam encaminhá-lo para uma subalternidade científica e artística, todavia, também permitiu o surgimento de críticos que se lançaram no caminho oposto: o caminho de “conhecer-a-ti-mesmo” e de reconhecimento de pertencer a uma nação diferente das demais.

Concluímos o mesmo que Cerqueira, em sua referida entrevista, acerca da importância dos estudos produzidos no CEFIB (Centro de Filosofia Brasileira), da existência de disciplinas universitárias sobre a História da Filosofia no Brasil e da necessidade de se criar uma verdadeira comunidade filosófica brasileira, culminando em uma sugestão aos estudantes interessados na filosofia do país:

“nas comunidades verdadeiramente filosóficas, a exemplo da Filosofia alemã, os autores se encontram ligados entre si em função de uma vivência comum de problemas universais dentro da mesma cultura, e que no Brasil não há esse tipo de situação, com participação em problemas filosóficos, simplesmente porque a visão dos problemas vivenciados como sendo problemas universais, que é a origem das ideias filosóficas, se encontra fora da própria cultura. Ora, é evidente que sem uma disciplina como História da Filosofia no Brasil jamais conseguiremos configurar, em nossos cursos, uma verdadeira comunidade filosófica brasileira. Nossa experiência no CEFIB tem demonstrado que, independentemente do que move alguém a se interessar pela formação filosófica, o estudo da história da ideia de Filosofia no Brasil só contribui para que ele veja com maior clareza a sua própria condição como sujeito pensante (…) Eu recomendo a todo o interessado em estudar Filosofia no Brasil que não dê ouvidos a preconceitos nem se deixe impressionar pelo dogmatismo dos que negam a ideia de uma Filosofia Brasileira”.


Notas
[1] Identificada em sua matriz – portuguesa, porém nascida em solo brasileiro.

[2] Talvez fosse ingênuo imaginar que uma elite preocupada com a manutenção de seu status quo no interior de uma sociedade escravizada, e sem acesso às letras, desenvolve-se um posicionamento contra o dogmatismo – este que auxiliava na manutenção da sua ordem de poder.

[3] Optamos por um período elástico devido às controvérsias de historiadores sobre a efetividade da primeira revolução industrial e a sua sucessora, a segunda revolução industrial (1850-1870).

[4] Não devemos esquecer que os filhos da elite colonial terminavam seus estudos na Europa – um continente que nesse período fervilhava com as ideias iluministas. Provas desta transferência de conhecimento é a presença da arquitetura e da arte neoclássica nas cidades mineiras.

[5] A expressão “saber é poder” possui conotações mais intensas no período imperial por causa dos aspectos socioeconômicos do império.

[6] Essa observação é importante, pois Gonçalves de Magalhães possuía plena consciência do homem brasileiro que ele pretendia atingir com seus escritos.

[7] Doutrina da Conciliação – como ficou conhecido o seu sistema filosófico.

[8] Essa ressalva mostra-se importante, pois, todos esses movimentos literários refletem a crise política brasileira que culminaria: (a) na deposição do imperador Dom Pedro II e a instituição da República; e (b) na abolição da escravatura impulsionada pelas elites citadinas do sudeste que necessitavam da circulação de capitais e também da aceitação da abolição pela elite aristocrática rural devido à pressão estabelecida pelos ingleses (principais compradores de suas commodities).

[9] Primeira crítica: BARRETO, Tobias. Fatos do espírito humano, 1869. Versão atual baseada na edição de Paulo Mercadante e Antônio Paim (BARRETO, Tobias. Estudos de Filosofia. In: Obras completas. Rio de Janeiro: Record/INL, 1990, p. 83-93). Disponível em: http://textosdefilosofiabrasileira.blogspot.com.br/2013/02/fatos-do-espirito-humano.html.

[10] Deve-se ter em mente que a filosofia também é um arcabouço da cultura brasileira.

[11] Como exemplo, o primeiro parágrafo da primeira parte do artigo: “reagir contra o século e esbofetear a civilização moderna” (BARRETO, 1872, p. 1; grifo nosso).

[12] Compêndio de Antoine Charma intitulado “Questões de Filosofia” traduzido por Antonio Herculano de Souza Bandeira em 1860 – professor de Direito da Faculdade de Direito de Recife onde Barreto concluiu seu curso superior.


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