sexta-feira, 6 de dezembro de 2013

A filosofia como saber pré-científico & supercientífico

Raimundo de Farias Brito




  Esta tese de Farias Brito remete a Tobias Barreto: “Ciência é o que se sabe, filosofia o que se procura saber. Uma não é mais do que um tesouro adquirido, a outra consiste na indagação, na ânsia de desvendar o enigma das coisas.”; in: Avulsos & Dispersos, §25: disponível em: http://textosdefilosofiabrasileira.blogspot.com/2011/03/avulsos-e-dispersos.html.                    




Entendendo-se por filosofia o conhecimento in fieri, e por ciência o conhecimento feito ou elaborado, é evidente que a filosofia é anterior à ciência, pois não se compreende que a coisa em elaboração possa ser posterior à coisa elaborada. E realmente, examinando-se atentamente a obra do pensamento, o que se verifica é isto mesmo: que vem em primeiro lugar a curiosidade de saber, o esforço pelo conhecimento, e só depois aparece como resultado mesmo desse esforço, o conhecimento; o qual, sendo organizado e sistematizado, constitui precisamente o que se chama ciência. Primeiro a filosofia como esforço pelo conhecimento; depois a ciência como resultado ou produto natural desse esforço — tal é o desenvolvimento lógico do pensamento, justificando-se assim plenamente a fórmula que adoto de filosofia pré-científica, para caracterizar a filosofia como paixão do conhecimento: fórmula cuja significação real consiste exatamente em pressupor que a filosofia é anterior à ciência, ou pelo menos deve ser considerada, em certo sentido, como sendo anterior à ciência. E esta anterioridade não é uma convenção ou uma pressuposição arbitrária: é um fato real e histórico. E este fato prova-se, além do mais que se poderia alegar, pela significação etimológica da palavra, pois, como é sabido, filosofia vem de philos e sophos, e significa, assim, etimologicamente, amor da ciência; expressão que se poderia substituir por esta outra: instinto, inclinação ou paixão da ciência; o que tudo equivale a dizer: o princípio mesmo gerador da ciência. E está bem visto que o princípio gerador não pode vir depois da coisa gerada. E prova-se ainda, com mais eficácia, o mesmo fato, pelo desenvolvimento histórico do pensamento, considerado em relação com a formação das ciências, pois é bem sabido que estas últimas não constituíam em começo disciplinas separadas; e faziam, ao contrário, parte do mesmo corpo de doutrinas; conjunto informe de especulações a que não se tinha ainda dado organização definitiva, e em que se tratava de tudo, desde as relações de ordem matemática ou astronômica, até as mais altas e mais complicadas manifestações do ser moral e psíquico. Tal era o estado dos conhecimentos humanos ainda no tempo dos gregos, na escola pitagórica, como na escola jônica e eleática; na escola atomística, como na escola platônico-aristotélica, nascida da inspiração de Sócrates; nas escolas epicurista e estóica, como ainda na escola de Alexandria, em Plotino, Proclo e mais representantes do sistema. Era o que se veio a chamar a nebulosa inicial do conhecimento científico, a ciência em via de elaboração e sistematização, o espírito humano investigando o desconhecido e preparando a ciência; era a filosofia, no mais vigoroso sentido do termo. E foi só pouco a pouco que deste todo informe se foram sucessivamente destacando as diferentes disciplinas científicas: a princípio a matemática, depois a astronomia, depois a física, por fim a química, a biologia, etc. E é para notar que as últimas são de criação bem recente. A química data de Lavoisier. A biologia data, como é sabido, de Bichat e Claude Bernard.

E vê-se assim, pela história, o que certamente não deixa de constituir uma prova decisiva, que a filosofia realmente precedeu à ciência. É uma questão de fato, e contra fato não se argumenta. E não será difícil mostrar que é esta a marcha regular e necessária das ideias. Nem se poderia conceber por outra forma o desenvolvimento lógico do pensamento. Mas há quem tire daí a conclusão de que a filosofia não tem mais razão de ser e se deve dar por terminado o seu papel, uma vez que já se acham constituídas as ciências. Era este o seu objetivo próprio. E alcançado este objetivo, a que vem cogitar mais de filosofia? Esta se transformou na ciência; e o que se transforma, deixa de ser. O que resta, pois, é unicamente a ciência. E é só da ciência que devemos agora cogitar; o que quer dizer de fato provado e verificado. Daí esta tese, em verdade paradoxal, aparentemente muito lógica: a filosofia não tem nenhum valor teórico e só pode hoje ser tomada em consideração historicamente; o que significa que só vale como fato do passado. É a opinião comum entre muitos sábios ou entre muitos que a si próprios se apregoam ruidosamente como sábios, entendendo-se por ciência uma como espécie de divindade nova de que são eles os profetas e reveladores. O positivismo, por exemplo, não tem outra ideia. E se bem que ainda mantenha a palavra filosofia, desde que limita o papel da filosofia que devera, por isso mesmo, chamar-se, positiva, a uma simples generalização das verdades mesmas da ciência; logo, por aí se vê que o que se propõe fazer é a substituição da filosofia pelas ciências! E o mesmo se pode dizer de todos os sistemas empíricos, como de todas as tentativas de filosofia científica em geral, quando se limita todo o conhecimento a experiência de laboratório e se adota como regra a subordinação de todo o saber humano ao critério exclusivo do peso e da medida como pretende, por exemplo, Le Dantec.

Tudo isto, entretanto, é falso. Constituídas as ciências, a filosofia não fica parada em seu desenvolvimento, nem dá por terminada a sua missão. Pelo contrário, recebe, das ciências mesmas, novo impulso. E continuando a investigar o desconhecido, não só poderá sempre dar lugar à criação de novas ciências, como além disto é levada por disposição natural e necessária, a lançar as bases de uma concepção do mundo, dando a interpretação do todo universal.

É a filosofia considerada neste último sentido que eu chamo filosofia supercientífica. E com esta expressão, quero dizer precisamente que a filosofia não pode contentar-se com as ciências e vai sempre além das ciências. E isto se explica facilmente: é que a ciência jamais poderá esgotar a realidade. Nem se deve acreditar que possa ir além da superfície das coisas. Também, por mais que se desenvolva o saber científico, a verdade é que para todos os lados se estende o desconhecido em proporção ilimitada. E há sempre pontos obscuros nas coisas mais claras, mistério no que se supõe conhecer com mais precisão e rigor; o que mostra a legitimidade da fórmula de Bourdeau — “a ciência é como um simples ponto luminoso no meio de uma noite infinita”. E em verdade o que se sabe está para o que se ignora como quase nada para o infinito. É que sabemos tão pouco, que em rigor podemos afirmar que ignoramos tudo. E em sua significação verdadeira, o certo é que tudo é para nós completamente desconhecido. De modo que não será exageração afirmar que é dentro do desconhecido que estamos, nos movemos e agirmos, sendo certo que o desconhecido nos envolve e nos penetra, pois não somente desconhecemos as coisas que nos cercam, como a nós mesmos nos desconhecemos. Por onde se vê o absurdo ou insensatez daqueles que imaginam, pela ciência, possuir toda a verdade. Estes apregoam-se pomposamente de sábios; e orgulhosos, porque aprenderam a fazer a decomposição de alguns corpos, determinando os elementos simples que os compõem, ou porque se acham habilitados a fazer a classificação de uns tantos organismos, alguns de proporções ínfimas, perceptíveis somente à luz de poderosos aparelhos, acreditam que já não há para eles mistérios, nem na vida, nem no pensamento, e tudo podem explicar, só porque se julgam autorizados a falar em nome da ciência. Alguns mostram-se neste sentido fantasticamente ingênuos, e só porque afirmam que a ciência se manifesta neste ou naquele sentido, que a ciência prova, que a ciência verifica e demonstra isto ou aquilo, imaginam que já não têm mais o que fazer, devendo todos submeter-se, sem mais qualquer observação ou réplica.

A ciência, entretanto, a ciência verdadeira e legítima, não tem destas pretensões insensatas. Reconhece que a realidade verdadeira lhe escapa, certa de que gira num campo limitado. Campo limitado, mas ainda assim, contaminado de obscuridades impenetráveis. Deste modo confessa que os mais graves problemas ficam além de seu domínio. E a verdade é que a ciência não pode abranger a esfera toda inteira do ser ou do real, e não conhece, em geral, deste, senão aspectos ou modalidades particulares. Deste modo, por mais que venha a desenvolver-se, ficará sempre um resto, e este resto é o todo ilimitado, para investigações de ordem filosófica. Também cada ciência liga-se ao desconhecido por certo lado, e não há nenhuma que não esteja em desenvolvimento contínuo. E isto significa que todas elas estão subordinadas à filosofia, ou que a tendência natural da filosofia é sempre exceder as ciências, fazendo destas precisamente, o instrumento próprio, ou o elemento cabal, como ponto de apoio, para as suas incursões na região do desconhecido. É assim que à filosofia pré-científica sucede a filosofia supercientífica. Esta última vem a ser a mesma coisa que a metafísica e tem por destino próprio fornecer uma interpretação da realidade, ou, a determinação do verdadeiro sentido da existência.

Eis aqui, em conclusão, como foi feita na Introdução de A base física do espírito, a síntese de meu pensamento sobre este assunto:


“Na formação natural e desenvolvimento necessário das ideias, vem em primeiro lugar a filosofia, que é a atividade mesma do espírito, que é o espírito interrogando a realidade, e elaborando o conhecimento, filosofia pré-científica, conhecimento in fieri, conhecimento em via de elaboração. Desta elaboração resultam as ciências. Mas as ciências não bastam, e o espírito, de fato, segue duas direções diferentes; uma que leva à ciência, outra que leva à metafísica. Quer dizer: especializando-se, a filosofia produz as ciências; mas generalizando em seguida o resultado das ciências, eleva-se daí a uma interpretação da realidade e funda a metafísica, filosofia supercientífica, totalização da experiência ou concepção do todo universal. É a concepção de que já Herbart nos dá uma ideia precisa, quando diz: ‘No pensamento a respeito do mundo e da humanidade, a força do espírito tende inevitavelmente para a metafísica que, semelhante às montanhas primordiais, forma a base vasta, profunda e invisível de todos os sonhos e de todas as aspirações humanas, e domina, ao mesmo tempo, com seus picos abruptos e raramente pressentidos todas as outras alturas e profundezas’ ”. (Farias Brito, A base física do espírito, Introdução III, VII)

FIM

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