sexta-feira, 6 de dezembro de 2013

A filosofia de Bergson

Farias Brito

In: BRITO, R. de FARIAS. O mundo interior, §37-§45. Uberlândia: EDUFU, 2013, p. 204-237.


Filosofia e ciência

É corrente hoje dominadora identificar a ciência e a filosofia. A filosofia será então a ciência mesma, com esta condição apenas — que na filosofia a ciência é consolidada, formando, por assim dizer, um todo orgânico. Quer isto dizer: a filosofia é a ciência generalizada e sistematizada, o conhecimento completamente unificado, conforme a fórmula de Spencer. É a orientação do positivismo, como da filosofia científica em geral. Todo o esforço do filósofo deverá neste caso consistir unicamente no seguinte: “em abraçar numa grande síntese os resultados das ciências particulares”. Bergson opõe-se radicalmente a esta ideia. No seu sistema, filosofia e ciência são duas formas inteiramente distintas do conhecimento, cada uma com seus caracteres próprios, derivadas de duas fontes distintas, a ciência derivada da inteligência, a filosofia derivada da intuição. Diz ele:

“Decerto o filósofo foi durante muito tempo aquele que possuía a ciência universal; e ainda hoje que a multiplicidade das ciências particulares, a diversidade e a complexidade dos métodos, a massa enorme dos fatos coligidos tornam impossível a acumulação de todos os conhecimentos humanos num só espírito, o filósofo continua a ser o homem da ciência universal; e se é certo que não pode tudo saber, pelo menos deve ter-se posto em condições de tudo poder aprender”.[1]

Mas segue-se daí, pergunta o filósofo, que tenha a filosofia por missão particular apoderar-se da ciência feita, levá-las a graus crescentes de generalidade, e encaminhar-se, de condensação em condensação, ao que se veio a chamar a unificação do saber? “Permiti-me achar estranho”, responde logo de pronto, “que seja em nome da ciência e em sinal de respeito pela ciência que se nos proponha esta concepção da filosofia: nada conheço mais deprimente para a ciência e mais injurioso para o sábio”. [2]

Bergson observa em seguida que injuriosa para a ciência, esta concepção seria ainda mais injuriosa para a filosofia. E assim forçoso é reconhecer, porque se o sábio é obrigado a parar em certo ponto na via da generalização e da síntese, aí deve igualmente parar o que a experiência objetiva e o raciocínio seguro nos permitem avançar. Mas neste caso, pretendendo ir mais longe na mesma direção, a filosofia não nos colocaria sistematicamente no arbitrário, ou pelo menos no hipotético? E será esta a sua missão? Gira então a filosofia exclusivamente na região do arbítrio e das hipóteses? Mas não equivale isto a dizer que gira na região da banalidade, ou pelo menos que tem por domínio a fantasia? Explica assim, Bergson:

“Fazer da filosofia um conjunto de generalidades, excedendo a generalização científica, é querer que o filósofo se contente com o plausível e que a probabilidade lhe baste. Sei bem que para a maior parte daqueles que seguem de longe nossas discussões, nosso domínio é com efeito o do simples possível, ou, quando muito, o do provável. Dir-se-ia que a filosofia começa onde termina a certeza. Mas quem quereria igual situação para a filosofia? Sem dúvida nem tudo é igualmente verificado, nem verificável no que uma filosofia nos traz, e é da essência do método filosófico exigir que em dados momentos e sobre determinados pontos, o espírito aceite certos riscos. Mas o filósofo não corre estes riscos senão porque adquiriu uma segurança e porque há coisas de que se sente inabalavelmente certo: e tornar-nos-á, por nossa vez, certos, na proporção em que nos souber comunicar a força que bebeu na intuição”.[3]

A filosofia não é, pois, uma síntese das ciências particulares. Este ponto é decisivo na teoria de Bergson, e se é verdade que ela invade muitas vezes o terreno da ciência e abraça numa visão mais simples os mesmos objetos de que a ciência se ocupa, não quer isto dizer que consolide a ciência, nem tampouco que dê maior amplitude à mesma visão da ciência. Sua significação é outra, sendo falsa a ideia de que a filosofia age “intensificando a ciência ou levando os resultados da ciência a um mais alto grau de generalidade”. O que é forçoso reconhecer é que há duas maneiras de conhecer, filosofia e ciência, o que se explica pelo fato de que a experiência se apresenta sob dois aspectos diferentes: de um lado, “sob forma de fatos que se justapõem a fatos, que se repetem amiudadamente, que se medem de mais perto, que se desenvolvem enfim no sentido da multiplicidade distinta e da especialidade”; de outro lado, “sob forma de uma penetração recíproca que é pura duração, refratária à lei e à medida.” Explica Bergson:

“Nos dois casos experiência significa consciência; mas no primeiro a consciência desenvolve-se para fora, e exterioriza-se em relação a si mesma na exata medida em que percebe coisas exteriores umas às outras; no segundo entra em si mesma, concentra-se, aprofunda-se. E sondando assim sua própria profundeza, não se deve compreender que penetra mais fundo no interior da matéria, da vida, da realidade em geral? Poder-se-ia contestá-lo, se a consciência se acrescentasse à matéria como um acidente; mas tal hipótese, sob qualquer aspecto que se considere, é absurda ou falsa, contraditória consigo mesma e contraditória com os fatos. Poder-se-ia contestá-lo ainda, se a consciência humana, conquanto aparentada com uma consciência mais alta e mais vasta, tivesse sido colocada de parte, e se o homem se tivesse de manter num canto da natureza como uma criança em penitência. Mas não! a matéria e a vida que enchem o mundo, estão também em nós; as forças que trabalham em todas as coisas, nós as sentimos em nós; qualquer que seja a essência do que é e do que se faz, nós participamos de tudo. Penetremos então no interior de nós mesmos: quanto mais profundo for o ponto a que tivermos chegado, mais forte será o impulso que nos levará à superfície. A intuição filosófica é este contato, a filosofia é este impulso”.[4]

A ciência, sendo destinada a servir como instrumento da ação, tem por objeto a realidade que se desenvolve no espaço. Mas esta, assim considerada exteriormente, só pode ser conhecida na superfície. Além disto, estando em movimento perpétuo, sobre ela só pode alcançar a inteligência vistas imóveis, não podendo “entrar no que se faz, seguir o que se move, apreender o vir-a-ser que é a vida mesma das coisas”. Fica, por isto, a ciência como obra que é da inteligência, sujeita a limites insuperáveis. Mas começa a partir daí o papel da filosofia que dispõe de uma fonte nova — a intuição. Mas “a intuição comporta muitos graus de intensidade; por isto comporta a filosofia muitos graus de profundeza”. Assim parte da superfície e vai ao fundo das coisas. Considera, não momentos da duração, mas a duração mesma, não vistas instantâneas sobre o movimento, mas o movimento mesmo na “fluidez contínua do tempo real que corre indivisível”. Isto significa que a filosofia considera não simplesmente as modalidades acidentais da realidade, mas a realidade mesma. Ora, o ser que é real, verdadeiramente real, é o ser vivo. A filosofia tem, pois, por objeto a vida. “Nada de estados inertes”, diz Bergson, “nada de coisas mortas; nada senão a mobilidade de que é feita a estabilidade da vida.” “Uma visão”, acrescenta ele, “em que a realidade aparece como contínua e individual está sobre o caminho que leva à intuição filosófica.”

Para subir à intuição não é, entretanto, necessário exceder o domínio dos sentidos e da consciência. Assim imaginara Kant. Por isto,

“depois de ter provado, por argumentos decisivos, que nenhum esforço dialético nos introduzirá jamais no além, e que uma metafísica eficaz seria necessariamente uma metafísica intuitiva, acrescentou que essa intuição nos falta e que esta metafísica é impossível [...] Ela o seria com efeito, se não houvesse outro tempo, nem outras mudanças além das que Kant percebeu; porque não é permitido a ninguém colocar-se fora do tempo, nem perceber outra coisa além da mudança. Mas o tempo em que nos achamos colocados, a mudança de que nos damos o espetáculo, são um tempo e uma mudança que nossos sentidos e nossa consciência reduziram à poeira para facilitar nossa ação sobre as coisas. Desfaçamos o que eles fizeram, liguemos nossa percepção a suas origens, e teremos um conhecimento de outro gênero sem ter necessidade de recorrer a faculdades novas”.[5]

Mas esse conhecimento vem também dos sentidos e da consciência e até pode dizer-se que a consciência é seu domínio próprio. Assim poder-se-á firmar: a ciência tem por objeto a realidade tal como se manifesta fora de nós no espaço; a filosofia tem por objeto a realidade tal como a sentimos em nossa própria consciência. E como a consciência é propriedade da vida, devemos daí concluir que tem por objetivo a vida. E a filosofia assim compreendida tem no pensamento de Bergson, o mais alto destino. Diz ele:

“As satisfações que a arte não dará senão a privilegiados da natureza e da fortuna, e de longe em longe somente, a filosofia, assim entendida, nos forneceria a todos, a todo o momento, reinsuflando a vida aos fantasmas que nos cercam e revivificando-nos a nós mesmos. Por aí tornar-se-ia ela complementar da ciência, na prática como na especulação. Com suas aplicações que não visam senão a comodidade da existência, a ciência promete-nos o bem-estar, e, quando muito, o prazer. Mas a filosofia poderia dar-nos a alegria”.[6]


O ponto de vista fundamental do bergsonismo

Tal é a filosofia, segundo Bergson. Vejamos agora como debaixo do ponto de vista desta filosofia se deve interpretar a realidade.

A este propósito Gillouin, em seu estudo sobre Bergson, procurando apresentar em poucas linhas uma ideia geral de seu sistema, sintetiza-o, concentrando-o de modo preciso nas quatro teses seguintes:

1a. Há outra espécie de conhecimento além do conhecimento científico: o conhecimento filosófico; há outro meio de conhecimento além da inteligência: a intuição.
2a. A inteligência, limitada de uma parte ao mundo dos fenômenos e julgando-se de outra parte com atribuição sobre todo ele, dá-se ao mesmo tempo muito e muito pouco: em seu domínio próprio que é a matéria, ela toca no absoluto, como a intuição no seu que é a vida: fora de seu domínio ela agita-se no vácuo. A antiga oposição do fenômeno e do ser é vencida, resolvendo-se em continuidade: seja pelo pensamento, seja pela intuição, nós vivemos no absoluto, mais ou menos profundamente, conforme dele somos dignos.
3a. Abolido definitivamente o ideal de uma ciência estática universal, é restaurada no universo a duração, em primeiro lugar no universo da intuição (vida e alma), e em seguida, por solidariedade com o mesmo, no universo do pensamento (matéria).
4a. Com a duração é restaurada também a liberdade que lhe é idêntica. O determinismo deve ser considerado como um método excelente, aliás em certos limites, impotente além destes limites, e ruinoso se chega a ser transformado em doutrina sobre o fundo das coisas.[7]

Para fazer, porém, do verdadeiro pensamento de Bergson, um juízo mais perfeito e mais seguro, convém examinar suas ideias um pouco mais detalhadamente.


Dados imediatos da consciência

É concepção mui comum na filosofia moderna, principalmente a partir de Kant, que nosso conhecimento das coisas só é possível através de certas ideias ou formas derivadas da constituição mesma de nosso espírito. Determinar estas formas ou ideias, as formas puras da intuição e as categorias do juízo — tal foi precisamente o fim que se propôs Kant na Crítica da razão pura; e toda a filosofia daí derivada não tem tido por objeto outro tema. Assim Schopenhauer, assim Schultze, assim Erhardt, etc., e de modo ainda mais sistemático Renouvier. Bergson, porém, desloca o eixo do problema do conhecimento e põe uma questão nova. Não basta indagar se o conhecimento das coisas depende da constituição de nosso espírito; é preciso verificar se o conhecimento do eu e da consciência, por sua vez, não sofre a influência das coisas. Esta influência é considerável, no pensar de Bergson. E desse fato resultam as maiores dificuldades para a interpretação da verdadeira significação do espírito, porque desenvolvendo-se no espaço, tudo o que se refere à matéria, é também no espaço que imaginamos desenvolver-se o espírito. Daí a tendência tão comum para envolver também o espírito nas operações da matéria; daí a tendência para explicar a intensidade pela extensão, a qualidade pela quantidade, a liberdade pela necessidade: o que importa levantar uma porção de questões insolúveis, que só podem dar lugar a discussões estéreis e intermináveis. Torna-se, pois, necessário esclarecer essas questões, pondo-as em seus devidos termos. Tal é o ponto de vista de Bergson com relação aos dados imediatos da consciência.

Para estudar o eu em sua pureza original, é indispensável considerá-lo em si mesmo, em sua significação própria, isolados os seus elementos e feita a eliminação de certas formas que reveste, originadas diretamente do mundo exterior. Assim purificados, quais são os elementos constitutivos do espírito, ou segundo a fórmula consagrada, quais são os dados imediatos da consciência? Bergson resolve: são os estados psicológicos e estes têm por caráter próprio o seguinte: em primeiro lugar, isolados uns dos outros e considerados como unidades distintas, são mais ou menos intensos; em seguida, considerados em sua multiplicidade, desenvolvem-se no tempo, constituem a duração; por fim, considerados em suas relações entre si, enquanto uma certa unidade se conserva através de sua multiplicidade, determinam-se uns aos outros. “Intensidade, duração, determinação voluntária”, conclui por conseguinte Bergson, “eis as três ideias que se tratava de purificar, desembaraçando-as de tudo o que devem à intrusão do mundo sensível e, para dar ao fato expressão mais completa, à obsessão da ideia do espaço”.[8] Daí as três questões de que se ocupa Bergson em sua obra Ensaio sobre os dados imediatos da consciência: intensidade, multiplicidade e organização dos estados psicológicos.



Intensidade dos estados psicológicos

“Quanto mais descemos nas profundezas da consciência”, diz Bergson, “menos temos o direito de tratar os fatos psicológicos como coisas que se justapõem.” Na consciência não há, pois, justaposição, e isto é o que se verifica por um exame profundo dos fatos, se bem que um exame superficial possa dar a aparência do contrário. Também no filósofo da duração dir-se-ia que uma das notas características do pensamento é esta: que, para apreender, em sua pureza original, o fenômeno psíquico, não basta considerar a superfície, é necessário, por assim dizer, penetrar no coração das coisas. E é assim que Bergson, propondo-se fazer a determinação dos dados imediatos da consciência, é pelos sentimentos profundos que começa a sua análise. Deste modo começa chamando a atenção para certos casos excepcionais em que se experimenta uma alegria ou uma tristeza intensas, sem nenhuma intervenção de qualquer sintoma físico. Verifica-se aí que a alegria, desde os seus mais baixos graus, sempre se nos apresenta como uma espécie de orientação na direção do futuro. E à proporção que a alegria cresce, essa orientação faz-se com mais prontidão e com menos esforço, até que na alegria extrema, “nossas percepções e nossas lembranças adquirem uma qualidade indefinível, comparável a um calor ou a uma luz, e tão nova que, em certos momentos, transportando-nos, sentimo-nos como que maravilhados de ser”.[9] A tristeza, ao contrário, correspondendo, do mesmo modo que a alegria, em seus diversos graus, a mudanças qualitativas, apresenta-se-nos como uma orientação, não na direção do futuro, mas na direção do passado. E nossas sensações e nossas ideias cada vez se tornam mais pobres, à proporção que a tristeza cresce, como se os horizontes de nossa visão se fossem apertando, e como se o futuro se nos apresentasse “como de alguma sorte fechado”. E por fim na tristeza extrema, sentimos como que “uma impressão de aniquilamento que nos leva a aspirar ao nada”. É assim que “cada nova desgraça, fazendo-nos compreender a inutilidade da luta, nos causa um prazer amargo”. Depois, passa o autor a considerar o sentimento estético, o esforço muscular, a atenção e a tensão, as emoções violentas, as sensações afetivas, as sensações representativas. Examina em seguida as sensações de calor e de luz e daí passa, por transição natural, para a crítica da psicofísica. A conclusão geral de todo esse minucioso estudo consiste exatamente nisto: que os fatos psíquicos, considerados em si mesmos, se resolvem em pura duração e são assim sem nenhuma relação com o espaço. Seria, pois, absurdo pretender explicá-los pelo espaço ou como coisa que se apresenta no espaço. Tais fatos formam uma heterogeneidade puramente qualitativa, sem quantidade; e deste modo não se justapõem como as coisas exteriores, nem podem aumentar ou diminuir de extensão ou de volume, se bem que, individualizando-se por fusão e penetração se organizem como energia, devendo ser compreendidos como princípios de ação.

Como se explica então que usualmente se considerem os fatos psíquicos como coisas suscetíveis de aumento ou diminuição, dizendo-se de um sentimento, de uma sensação, de uma emoção, que pode ser maior ou menor? Ora, aumentar ou diminuir, ser maior ou menor, significa, no sentido rigoroso dos termos, ocupar maior ou menor espaço. E se os fatos psíquicos não ocupam espaço, como se compreende que possam ser maiores ou menores, ou que sejam suscetíveis de aumento ou diminuição? Em verdade não o são. Mas em geral não se entende assim e, no uso comum da linguagem, aplicam-se também aos fatos psíquicos as categorias matemáticas, somente rigorosamente legítimas, tratando-se dos fatos exteriores. “Admite-se, de ordinário”, diz Bergson, “que os estados de consciência, sensações, sentimentos, paixões, esforços, são suscetíveis de crescer e diminuir; alguns asseguram, até, que uma sensação pode ser dita duas, três, quatro vezes mais intensa que outra sensação da mesma natureza [...] É a tese dos psicofísicos”.[10] Obedecemos nisto a uma tendência quase insuperável e esta tendência explica-se pelo fato de que nossas ideias sobre os fatos psíquicos, por uma espécie de compromisso inevitável do espírito, são influenciadas pelas ideias que temos das coisas, e como estas sempre se nos apresentam no espaço, é também no espaço que somos levados a apreciar os fatos psíquicos, como se fossem projetados simbolicamente fora de nós. Esta influência não nos leva, porém, ao ponto de confundir uma coisa com a outra; tanto assim que não dizemos das sensações, dos sentimentos, das emoções, etc., que possam ter maior ou menor extensão, mas unicamente que podem ter maior ou menor intensidade; e intensidade é coisa essencialmente diferente de extensão.

E estudando, em sua significação própria, a fenomenalidade psíquica, devemos colocar-nos em plano ainda mais elevado, considerando essa fenomenalidade independentemente de toda e qualquer influência exterior. Assim se faz necessário e sem isto qualquer interpretação que se venha a dar dos fatos, não poderá deixar de ser viciosa. Quando estudamos as coisas, fazemos abstração da consciência e consideramo-las unicamente em sua significação externa e em seus efeitos suscetíveis de medida. Assim, quando estudamos os fatos de consciência, devemos considerá-los somente em sua significação interna e como se pudessem ser imaginados sem nenhuma relação com a realidade exterior. Esta última atitude é mais difícil, pela impossibilidade em que estamos de colocar-nos fora do espaço; mas é necessária, porque de outra forma não nos será possível apreender, em sua significação real, a verdadeira natureza de tais fatos. Colocando-nos, porém, neste ponto de vista, por uma visão mais profunda das coisas e por um esforço mais enérgico do espírito, vê-se que os fatos psíquicos são pura sucessão sem extensão, e se podem ser ditos mais ou menos intensos, por isto não se deve entender que sejam maiores ou menores, mas unicamente que estão sujeitos a variações sucessivas, em correspondência com as coisas a que se referem ou de que são o efeito necessário. Mas essas variações não são quantitativas, mas qualitativas. Cada fato psíquico é assim apenas o sinal qualitativo da quantidade que se apresenta lá fora; mas não tem extensão, nas mesmas condições que a extensão não tem qualidade. “A grandeza, fora de nós”, diz Bergson, “não é intensiva; a intensidade, dentro de nós, não tem grandeza”.[11]

Intensidade e grandeza são, pois, fatos irredutíveis, se bem que se toquem e sejam, de certo modo, inseparáveis. Seria, assim, absurdo pretender explicar uma coisa pela outra: o que importa a condenação, não somente da psicofísica que pretende medir a sensação pela excitação, como igualmente da psicologia da associação que pretende resolver o extenso em elementos inextensos, ou constituir o físico por composição de elementos psíquicos.



Multiplicidade dos estados psicológicos

Todo o número, segundo Bergson, consiste numa coleção de unidades, ou, para falar com mais precisão, “o número é a síntese do um e do múltiplo”. Isto concorda com a concepção comum e ordinária segundo a qual a unidade é o princípio gerador do número. Mas por unidade deve entender-ser uma coisa, uma extensão, uma grandeza determinada, pouco importa que essa coisa, que essa extensão, que essa grandeza determinada, por sua vez, encerre uma coleção de unidades de outra ordem, ou pelo menos, de unidades menores: o que significa que a unidade é um todo de proporções definidas; mas esse todo é sempre relativo, de maneira que a unidade que serve para formar um certo número, por si mesma, pode representar outro número, proveniente de unidades de natureza diferente. De toda a forma, porém, não se compreende número senão pela adição de unidades, isto é, pela coexistência de coisas de proporções definidas. Ora, quando se diz coisa de proporções definidas, diz-se coisa ocupando um espaço determinado, e esta, repetida ou multiplicada, de modo a formar um número, não se compreende senão sendo repetido ou multiplicado o espaço que ocupa. De maneira que número é multiplicidade, e multiplicidade é coexistência ou simultaneidade, e coexistência ou simultaneidade é muitas coisas, cada uma ocupando o seu lugar no espaço. Vê-se, pois, que a ideia do número, como a da extensão, deriva imediatamente, da noção do espaço e não se compreende senão em relação com a noção do espaço: o que significa que a ordem matemática é exclusivamente a ordem do espaço, tanto sob seu aspecto geométrico (extensão), quanto sob seu aspecto aritmético (número); quer num, quer noutro sentido, deriva do espaço, e só tem aplicação, tratando-se das coisas que se apresentam no espaço.

Esta concepção impõe-se com evidência irresistível, considerando-se a ordem matemática sob seu aspecto geométrico. É assim que se define mesmo a geometria a ciência da extensão e por extensão entende-se um espaço limitado. De toda a forma as relações geométricas são sempre referentes ao espaço. Não é, porém, tão fácil fazer aplicação desta ideia à ordem aritmética; tanto assim que há quem faça originar-se o número, não da noção do espaço, mas da do tempo; Kant, por exemplo. “A aritmética”, diz Kant, “forma os seus conceitos de número pela adição sucessiva das unidades no tempo”.[12]

Mas há neste modo de pensar uma ilusão manifesta. É que se confunde o número, em si mesmo, referente às coisas que se apresentam fora de nós no espaço, com o ato de contar que é uma operação do espírito. É somente esta última que se realiza no tempo. O número deriva da multiplicidade, e sobre esta nenhuma influência exercem ou podem exercer as operações realizadas em nós, e por conseguinte, nenhuma influência exerce o ato de contar. É como se justificam certas fórmulas muito decisivas de Bergson. “Toda a ideia clara do número”, diz ele, “implica uma visão no espaço.” E tratando de distinguir a parte exata do subjetivo e do objetivo na ideia do número, acrescenta:

“O que pertence propriamente ao espírito é o processo indivisível pelo qual fixa ele sucessivamente sua atenção sobre as diversas partes de um espaço dado; mas as partes assim, isoladas, conservam-se para acrescentarem-se a outras e, uma vez adicionadas entre si, prestam-se a uma decomposição qualquer: são, pois, rigorosamente, partes do espaço, e o espaço é a matéria com que o espírito constrói o número, o meio em que o espírito o coloca”.[13]

O número, como a extensão, deriva, pois, exclusivamente do espaço, e só tem aplicação tratando-se das coisas que se apresentam no espaço, isto é, dos corpos. As coisas são múltiplas; é por isto que existe o número. Este corresponde a uma propriedade das coisas. Contar é distribuir corpos no espaço. É a isto que se prende o princípio da impenetrabilidade da matéria. E quando dizemos que dois corpos não podem ocupar o mesmo lugar no espaço, não damos expressão a um fato de observação empírica, obedecemos a uma necessidade lógica, porque a palavra dois, só por si, já encerra a distinção de dois lugares no espaço. Ora, nós sabemos que os atos psicológicos são independentes do espaço, resolvendo-se numa heterogeneidade puramente qualitativa, ou em pura sucessão sem quantidade. Como se compreende então que contamos os nossos sentimentos, as nossas emoções e paixões, numa palavra, os fatos psíquicos, nas mesmas condições que contamos os corpos no espaço? É o que se deve explicar, mais uma vez, como resultado da influência que exerce o conhecimento das coisas sobre os fatos do eu e da consciência. Os sentimentos, as sensações, as ideias são coisas que “se penetram umas as outras e que, cada uma de seu lado, ocupam a alma toda inteira”. Isto quer dizer que aos fatos psicológicos não se aplica o princípio da impenetrabilidade e isto significa que não podem ser distribuídos no espaço; logo, que não podem ser contados. “A impenetrabilidade”, diz Bergson, “faz sua entrada ao mesmo tempo que o número.” Os fatos psicológicos penetram-se; logo, não lhes pode ser aplicável o número. É o que será forçoso reconhecer, considerando-se a fenomenalidade psíquica em si mesma. Mas o espírito não se submete a isto e tendo necessidade de calcular essa fenomenalidade, uma vez que não a pode calcular em si mesma, faz, por assim dizer, a sua projeção no espaço, e representa-a por “unidades homogêneas que ocupando lugares distintos no espaço, já não se penetram”. Aplica-se assim o número aos fatos de consciência; mas, em verdade, o que se conta são, não esses fatos, mas unicamente a sua representação simbólica no espaço. Há assim, segundo Bergson, duas espécies de multiplicidade: a dos objetos materiais que formam um número imediatamente, e a dos fatos de consciência que não poderia tomar o aspecto de um número sem o intermediário de uma representação simbólica, em que intervém necessariamente o espaço. Essa representação simbólica modifica sem dúvida as condições normais da percepção interna. Para estudar esta, portanto, em sua significação própria, é necessário considerá-la em si mesma e por conseguinte, como coisa inacessível a toda a representação numérica. Bergson, lembra a esse propósito o que se passa, quando consideramos os fenômenos psicológicos em relação com a extensão. Diz ele:

“A sensação representativa, considerada em si mesma, é qualidade pura; mas, vista através da extensão, esta qualidade torna-se quantidade em certo sentido: é o que se chama intensidade. Assim a projeção que fazemos de nossos estados psíquicos no espaço para transformá-los numa multiplicidade distinta, deve influir sobre esses estados mesmos, e dar-lhes na consciência refletida uma forma nova que não lhes atribuía a percepção imediata”.[14]

É assim que aplicamos o número à fenomenalidade psíquica, e desenvolvendo-se esta exclusivamente no tempo, fazemos deste “um meio homogêneo em que nossos fatos de consciência se alinham, se justapõem como se estivessem no espaço e formassem uma multiplicidade distinta”.[15] Mas o número quando aplicado a esses fenômenos difere certamente do número em seu sentido rigorosamente matemático, isto é, do número quando aplicado aos corpos no espaço, tanto quanto a intensidade difere da extensão.

Para tornar isto bem patente, estudando os fenômenos psíquicos em si próprios, independentemente de toda e qualquer influência externa, Bergson propõe esta medida:

“Imaginemos que a consciência consiga isolar-se totalmente do mundo exterior, concentrando-se, por um vigoroso esforço de imaginação, em si mesma. Nesta situação, ponhamos-lhe a seguinte questão: a multiplicidade de nossos estados de consciência tem a menor analogia com a multiplicidade das unidades de um número? Isto equivale a dizer: a verdadeira duração tem a menor relação com o espaço? [...] É uma questão esta que só pode ser elucidada por um estudo direto das ideias de espaço e de tempo, em suas relações recíprocas”.[16]
Bergson passa assim a estudar estas duas ideias, submetendo-as a um exame profundo e, ao que lhe parece, decisivo. Vejamos em que consistem as soluções que propõe.


O espaço e a duração

Ao que nos diz Bergson, não se deve ligar grande importância à questão da realidade absoluta do espaço: tanto importaria perguntar se o espaço está ou não no espaço. O que há é isto: que os nossos sentidos percebem as qualidades dos corpos e o espaço com elas: a dificuldade consiste em saber se a extensão é apenas um aspecto das qualidades das coisas — uma qualidade da qualidade —, ou se as coisas sendo inextensas por essência, junta-se-lhes depois por necessidade do espírito, o espaço, tendo este, porém, sua existência própria e podendo subsistir sem elas. Na primeira hipótese o espaço seria apenas uma abstração; na segunda, uma realidade tão sólida quanto as coisas ou as sensações mesmas. Diz Bergson:

“É a Kant que se deve a fórmula precisa desta última concepção: a teoria que Kant desenvolve na Estética Transcendental consiste em dotar o espaço de uma existência independente de seu conteúdo, em declarar isolável de direito o que separamos de fato, não se devendo ver na extensão uma abstração como as outras. Neste sentido a concepção kantiana do espaço difere menos do que se imagina da crença popular. Longe de abalar nossa fé na realidade do espaço, Kant determinou o seu sentido preciso e mesmo apresentou a sua justificação”.[17]

E a solução dada por Kant, ao que sustenta Bergson, não parece que tenha sido seriamente contestada por quem quer que seja. Deve-se, ao contrário, reconhecer que se impôs a quase todos os autores que vieram depois a se ocupar do assunto, nativistas ou empiristas. E aqueles mesmos que à primeira vista parece que a ela se opõem, como Lotze, como Bain, como Wundt,

“reconhecem que as sensações são inextensivas e estabelecem assim, à maneira de Kant, uma distinção radical entre a matéria da representação e sua forma. O que resulta das ideias de Lotze, de Bain, e da conciliação tentada por Wundt é que as sensações pelas quais chegamos a formar a noção do espaço são, de si mesmas, inextensas e simplesmente qualitativas: a extensão resultaria de sua síntese, como a água da combinação de dois gases”.[18]

Mas para que esta síntese se opere, indispensável é que intervenha o espírito. Sem esta intervenção tudo seria inexplicável. Há, pois, na formação da ideia do espaço, tal como a explicam os empiristas, como originada da coexistência de sensações inextensas, necessariamente um ato do espírito. E “esse ato sui generis”, diz Bergson, “assemelha-se muito ao que Kant chama uma forma a priori da sensibilidade”.

Procurando em seguida caracterizar de modo mais significativo esse ato do espírito, que aliás encerra a sua concepção própria, Bergson explica que ele consiste essencialmente na intuição, ou antes, na concepção de um meio vácuo homogêneo. Diz ele:

“Não há outra definição possível do espaço: é o que nos permite distinguir, uma de outra, muitas sensações idênticas e simultâneas: é, pois, uma diferenciação distinta da diferenciação qualitativa, e, por conseguinte, uma realidade sem qualidade”.[19]

Há, pois, duas realidades, uma homogênea, a do espaço, outra heterogênea, a das qualidades sensíveis. É pela primeira, claramente percebida da inteligência, segundo Bergson, que nos pomos em condições de distinguir, de contar, de abstrair e talvez também de falar. Mas tudo o que se distingue pertence à realidade sensível. No espaço mesmo não há nenhuma distinção a fazer e é por isto mesmo que Bergson o chama realidade homogênea. “Se o espaço, porém, deve definir-se como homogêneo”, acrescenta ele, “inversamente todo o meio homogêneo e indefinido deve ser espaço”.[20] Não se concebe assim que sejam admitidas duas formas do homogêneo, uma vez que para isto seria necessário que se caracterizassem por qualidades diferentes, e o que constitui o homogêneo é a ausência de qualidade. É certo, entretanto, que, em geral, admite-se outro meio homogêneo, o tempo, desenvolvendo-se assim o homogêneo em duas modalidades, a da coexistência (o espaço), e a da sucessão (o tempo). Bergson sustenta que o tempo assim concebido não é senão um conceito bastardo devido à intrusão da ideia do espaço no domínio da consciência pura. Quando assim imaginamos o tempo como um meio homogêneo, análogo ao espaço, somos dominados pela influência que exerce a concepção deste último, e cedemos a um preconceito, ou mais precisamente a um hábito quase invencível. Interpretamos a sucessão em termos de extensão. “Projetamos o tempo no espaço e exprimimos a duração em extensão, tomando a sucessão para nós a forma de uma linha contínua ou de uma cadeia cujas partes se tocam sem se penetrar”.[21]

Para dar deste fato uma ideia mais precisa, Bergson recorre a uma imagem. Diz ele:

“Figuremos uma linha reta indefinida, e sobre esta linha um ponto material A que se desloca. Se este ponto tivesse consciência de si mesmo, havia de sentir-se mudar, uma vez que se move: perceberia uma sucessão; mas esta sucessão revestiria para ele a forma de uma linha? Sim, sem dúvida, mas com a condição de que pudesse elevar-se, de alguma sorte, acima dessa linha, de modo a perceber simultaneamente os pontos justapostos: mas, fazendo assim, formaria a ideia do espaço, e é no espaço que veria o desenvolvimento das mudanças que sofre, não na pura duração”.[22]

É exatamente esta a situação daqueles que interpretam o tempo como um meio homogêneo. É que pretendendo explicar a sucessão, colocam-se no espaço, e imaginam o tempo como uma extensão a duas dimensões; mas em verdade os estados que se sucedem em nossa consciência não se justapõem, não formam portanto uma linha: “acrescentam-se dinamicamente uns aos outros, organizam-se entre si como fazem as notas sucessivas de uma melodia pela qual nos deixamos embalar”.[23] Numa palavra: a duração seria, para uma consciência que a considerasse, fazendo abstração total do espaço, “uma sucessão de mudanças qualitativas que se fundem, que se penetram, sem contornos precisos, sem nenhuma tendência a se exteriorizar, umas em relação às outras, sem nenhum parentesco com o número: seria a heterogeneidade pura”.[24]

Tal modo de conceber a duração leva a supor que só se pode cogitar de duração, tratando-se da consciência. Mas as coisas também duram. E até dever-se-á reconhecer que no mundo tudo dura, pois tudo aí se move e por conseguinte resolve-se em sucessão e mudança. O tempo oferece neste caso todas as aparências de um meio homogêneo, e neste meio não somente se distinguem momentos exteriores uns aos outros, como os corpos no espaço, mas ainda percebe-se o movimento que é, por assim dizer, o seu sinal palpável e visível. É deste modo, segundo Bergson, que o tempo entra nas fórmulas da mecânica, nos cálculos do astrônomo, e até do físico, sob forma de quantidade. “Calcula-se a velocidade do movimento”, diz ele, “e isto implica que o tempo é também uma grandeza”.[25] Há assim, além da duração interna, sucessão que se resolve em concentração dos estados de consciência no eu, uma duração externa, o tempo que entra nos cálculos do astrônomo e se divide em períodos sucessivos, compreendendo o presente, o passado e o futuro: este é uma grandeza suscetível de medida e de cálculo... Forçoso é, pois, daí concluir que o tempo é também uma grandeza homogênea como o espaço. É ainda, segundo Bergson, uma ilusão que se dissipará com um exame atento. E para prová-lo imagina, como exemplo, seguir com os olhos, sobre o quadrante de um relógio, o movimento da agulha em correspondência com as oscilações do pêndulo. Dever-se-á supor neste caso que o observador fez a medida da sucessão; mas não acontece assim. Diz Bergson:

“Eu não faço a medida da duração [...] limito-me a contar simultaneidades, o que é bem diferente. Fora de mim no espaço, não há senão uma posição única da agulha e do pêndulo, porque das posições passadas nada resta. Dentro de mim, dá-se um processo de organização ou de penetração mútua dos estados de consciência, e é isto que constitui a verdadeira duração. É porque duro desta maneira que me represento o que chamo as oscilações passadas do pêndulo, ao mesmo tempo que percebo a oscilação presente”.[26]

Observa em seguida o filósofo que, suprimindo-se por um instante o eu que pensa estas oscilações ditas sucessivas, não haverá jamais senão uma única oscilação, ou antes, uma única posição do pêndulo, o que importa a negação de toda a duração. Suprimam-se ao contrário o pêndulo e suas oscilações: não restará senão a duração heterogênea do eu, sem momentos exteriores uns aos outros, sem relação com o número. “Assim”, conclui ele, “em nosso eu há sucessão sem exterioridade recíproca; fora do eu, exterioridade recíproca sem sucessão”.[27]

Considerada em relação às coisas exteriores, a duração existe, mas somente para uma consciência que conserve a lembrança dos momentos passados. De toda a forma duração é sempre organização e penetração e nunca justaposição, e se, não obstante, pode ser calculada e medida, explica-se isto pelo fato de que o tempo é projetado exteriormente, apresentando-se como uma quarta dimensão do espaço, pois é como se deve compreender essa concepção usual, mas anômala de um tempo homogêneo. Tratando de separar no processo complexo pelo qual se forma essa concepção, a parte exata do real e do imaginário, eis aqui como conclui Bergson:

“Há um espaço real sem duração, mas onde fenômenos aparecem e desaparecem simultaneamente com os nossos estados de consciência. Há uma duração real, cujos momentos heterogêneos se penetram, mas de que cada momento pode ser aproximado de um estado do mundo exterior que é seu contemporâneo, separando-se dos outros momentos por esta aproximação mesma. Da comparação destas duas realidades nasce uma representação simbólica da duração, tirada do espaço. A duração toma assim a forma ilusória de um meio homogêneo e o traço de união entre esses dois termos, espaço e duração, é a simultaneidade”.[28]

A simultaneidade poderia então definir-se, nos termos de Bergson — a interseção do tempo com o espaço.


O movimento

O movimento poder-se-ia dizer que é a forma real e visível da sucessão. Bergson, o chama “símbolo vivo de uma duração em aparência homogênea”. É que quando se fala em movimento, imagina-se um móvel no espaço e pensa-se somente na sucessão das diferentes posições ocupadas pelo móvel. Confunde-se assim o movimento com o espaço percorrido, e fazendo-se a medida desse espaço, entende-se fazer a medida do movimento mesmo. Este torna-se então, por sua vez, coisa homogênea e divisível, nas mesmas condições que o espaço. Mas em verdade o que se mede e divide é somente o espaço, e isto é possível, uma vez que as posições sucessivas do móvel, de fato, ocupam espaço. A passagem de uma posição a outra, em si mesma, é duração, e como tal só tem realidade para uma consciência que recorde, umas depois das outras, as diferentes posições. Deste modo escapa, por completo, ao espaço. Bergson conclui daí que o movimento não é uma coisa, mas um progresso. “O movimento”, diz ele, “enquanto passagem de um ponto a outro, é uma síntese mental, um processo psíquico, e, por conseguinte, inextenso”.[29] Estão no espaço somente as diferentes posições ocupadas pelo móvel, e destas percebe-se somente a do momento imediatamente presente, sendo que as anteriores só se explicam como sendo conservadas numa consciência como memória; e se esta consciência forma a ideia do movimento é porque faz a síntese das diferentes posições. Esta síntese é obra do espírito e como tal não ocupa espaço. O movimento é, pois, inextenso; logo, indivisível; logo, inacessível a todo o cálculo, como a toda a medida. Mas como se mede o espaço percorrido, deixa-se de lado o movimento como síntese mental e considera-se somente esse espaço. Confunde-se uma coisa com outra, fazendo-se, por sua vez, a projeção do movimento no espaço. É desta confusão que resultam, segundo Bergson, os sofismas da escola de Eleia. É que fazendo-se do movimento uma realidade homogênea como o espaço, daí resulta que como o espaço, torna-se ele, divisível ao infinito. Um espaço não poderia então ser atravessado, porque para isto seria necessário atravessar uma infinidade de partes, o que não se concebe. Aquiles não poderia passar a tartaruga, segundo o clássico exemplo figurado por Zenão. Mas o movimento é indivisível. Cada passo de Aquiles é como tal um todo simples, indivisível. Deste modo, a soma de seus passos breve excederá os da tartaruga: o que seria impossível se o movimento fosse homogêneo e por conseguinte divisível ao infinito, como imaginava Zenão. Zenão confunde o movimento com o espaço e é nisto que consiste o sofisma de seu argumento. “O movimento está na duração e a duração está fora do espaço”, diz Bergson. Por conseguinte, para que o movimento possa vencer uma distância, não é necessário que se imponha um limite à divisibilidade do espaço: basta que se distingam as posições simultâneas do móvel e as passagens de uma posição a outra. As primeiras ocupam realmente espaço; as segundas não, porque são duração em vez de extensão, qualidade em vez de quantidade. Diz o filósofo:

“Medir a velocidade de um móvel é simplesmente constatar uma simultaneidade; introduzir esta velocidade nos cálculos é empregar um meio cômodo para prever uma simultaneidade. Também a matemática fica no seu papel enquanto se ocupa de determinar as posições simultâneas de Aquiles e da tartaruga num momento dado, ou quando admite a priori o encontro dos dois móveis em um ponto X, encontro que é, ele próprio, uma simultaneidade. Mas excede esse papel quando pretende reconstituir o que tem lugar no intervalo de duas simultaneidades, cujo número indefinidamente crescente devia advertir-lhe que não se faz movimento com a imobilidade, nem tempo com o espaço. Numa palavra: assim como na duração não há de homogêneo senão o que não dura, isto é, o espaço, onde se alinham as simultaneidades, assim o elemento homogêneo do movimento é o que menos lhe pertence, isto é, a imobilidade”.[30]

Para ilustrar essa teoria Bergson argumenta com os dados positivos da ciência e chamando a atenção sobre o papel das considerações de tempo, de movimento e velocidade em mecânica e astronomia, observa que se a mecânica não retém do tempo senão a simultaneidade, também não retém do movimento mesmo senão a imobilidade. Assim admitindo-se que tudo no mundo passasse a se mover, duas, três, quatro ou mais vezes mais rapidamente, por isto não seria preciso mudar em coisa alguma as fórmulas da mecânica. É que essas fórmulas só consideram as simultaneidades sucessivas. Quanto aos intervalos entre estas simultaneidades sucessivas, quanto à duração, quanto ao movimento propriamente dito, ficam fora das equações, diz Bergson. É que a duração e o movimento, acrescenta ele, são sínteses mentais e não coisas. E as diferentes posições do móvel no espaço podem ser imaginadas como constituindo uma linha, mas o movimento mesmo nada tem de comum com essa linha. Estas diferentes posições, resolvendo-se em espaço, podem ser calculadas e representadas numericamente; mas a duração mesma é indivisível e não tem momentos idênticos ou exteriores uns aos outros. É, por conseguinte, essencialmente heterogênea consigo mesma, indistinta e sem analogia com o número.

Bergson deduz daí as duas conclusões que se seguem:

Primeira: Só o espaço é homogêneo. As coisas situadas no espaço constituem uma multiplicidade distinta e toda a multiplicidade distinta obtém-se por desdobramento no espaço. Não há, assim, no espaço, nem duração, nem mesmo sucessão, no sentido preciso em que a consciência se serve destas palavras: cada um dos estados ditos sucessivos do mundo exterior existe isoladamente, e sua multiplicidade não tem realidade senão para uma consciência capaz, em primeiro lugar, de os conservar, e, em seguida, de os justapor, exteriorizando-os em relação uns aos outros. E se essa consciência os conserva, é porque estes diversos estados do mundo exterior dão lugar a fatos de consciência que se penetram, que se organizam insensivelmente em conjunto, e ligam o passado ao presente por efeito dessa solidariedade mesma. E se os exterioriza, uns em relação aos outros, é porque, pensando em seguida em sua distinção radical (um tendo cessado de ser quando outro aparece), percebe-os sob forma de multiplicidade distinta; o que equivale a alinhá-los conjuntamente no espaço, onde cada um existia separadamente. O espaço empregado para este uso é precisamente o que se chama tempo homogêneo.
Segunda: A multiplicidade dos estados de consciência, considerada em sua pureza original, não apresenta nenhuma semelhança com a multiplicidade distinta que forma um número. É uma multiplicidade puramente qualitativa sem quantidade. Há, assim, duas espécies de multiplicidade, dois sentidos possíveis da palavra distinguir, duas concepções, uma quantitativa, outra qualitativa, da diferença entre o mesmo e o outro.

E vê-se, por estas duas conclusões que, submetendo a um rigoroso exame a ideia do movimento, Bergson não tinha em vista senão tornar mais precisa a sua concepção do espaço e da duração.


O eu e sua sombra

A ideia do movimento interpretado como síntese mental leva-nos naturalmente à consideração da consciência ou do eu. O movimento é uma síntese mental. Isto significa talvez que na natureza tudo é imóvel, e somos nós que aí introduzimos o movimento, consolidando subjetivamente na consciência os momentos sucessivos de nossa visão exterior. Esta concepção é ousada. Mas os fatos de certo modo a confirmam. Realmente, se não existisse a memória, ser-nos-ia impossível representar o movimento, porque das posições sucessivas do móvel só a última ficaria presente ao espírito. Todas as posições anteriores desapareceriam no passado, e isto, não existindo a memória, seria equivalente a dizer que desapareceriam no nada. Justifica-se assim a fórmula um tanto estranha de Bergson quando diz: do movimento só percebemos a imobilidade, nas mesmas condições que da sucessão só percebemos a simultaneidade. É, contudo, certo que representamos o movimento. E se se trata de um corpo luminoso deslocando-se com rapidez, o movimento pode tomar a aparência de uma linha de fogo no espaço, como acontece no caso das estrelas cadentes. Como se explica isto? É que a consciência faz a síntese das posições sucessivas do corpo luminoso. Ora, é somente a posição imediatamente presente desse corpo que corresponde a um fato externo. É só em relação a essa posição que a consciência entra em contato com os corpos. É como se deve interpretar o pensamento de Bergson, quando diz: “nosso eu toca no mundo exterior somente por sua superfície”.[31] Há assim na representação do movimento um elemento externo: é a percepção da última posição do móvel. Tudo o mais é memória. E isto, na doutrina de Bergson, significa: tudo o mais vem do espírito. O que vem, pois, da realidade exterior, como elemento constitutivo do movimento, é unicamente a última posição do móvel; logo, a posição de um ou mais corpos no espaço; logo, a representação simultânea; logo, a imobilidade. De onde resulta que é a consciência que introduz o movimento no mundo.

Resta saber em que consiste a consciência mesma. Esta consiste na organização dinâmica dos estados psicológicos, estados que, como se sabe, são somente sucessivos, sem extensão; cuja organização, por conseguinte, dá-se somente por fusão e penetração, e não por justaposição; o que significa que não ocupam espaço. A consciência não ocupa, pois, espaço. Logo, é imóvel, uma vez que não se concebe o movimento, senão tratando-se de corpos no espaço. É, entretanto, da consciência que deriva todo o movimento no espaço e é pelo movimento que ela procura tudo explicar, sem excetuar os seus próprios fenômenos.

A consciência é o eu. E tal é a existência de que temos mais certeza, pois é a única que conhecemos diretamente e, por conseguinte, de modo mais íntimo e profundo. Indagando-se, porém, da significação real dessa existência, vê-se que consiste unicamente em sucessão de estados ou mudanças. “Sensações, sentimentos, volições, representações — eis as modificações entre as quais se divide minha existência e que lhe dão sua cor própria. Eu mudo, pois, incessantemente”[32], diz Bergson. E assim dizendo acrescenta não residir a mudança simplesmente na passagem de um estado a outro.

“Acredita-se que cada estado, considerado à parte, fica o que é durante todo o tempo em que se produz. Mas um ligeiro esforço de atenção mostrará que não há afecção, representação, volição que se não modifique a todo o momento. E se um estado da alma deixasse de mudar, sua duração cessaria de correr [...] A verdade é que mudamos incessantemente e todo o estado psicológico, de si mesmo, é já mudança”.[33]

Ora, se toda a realidade da consciência consiste em sucessão ou mudança de estados, segue-se daí que apesar de mudar incessantemente, ela permanece sempre a mesma. É que não se trata de uma coisa, de um fato determinado, mas de uma corrente, de um fluxo contínuo; e esta corrente, este fluxo, se bem que a todo o momento mude de cor, todavia não se interrompe, e nunca se quebra: forma um todo indivisível e persiste sempre o mesmo em sua sucessão de mudanças. Isto significa que a essência da consciência consiste na duração. É assim que o filósofo acentua, de modo decisivo, que, considerando-se a vida psicológica tal como se desenvolve através dos símbolos que a encobrem, verifica-se que o tempo é a sua matéria própria. Acrescenta ele:

“E não há matéria mais resistente nem mais substancial. Porque nossa duração não é um instante substituindo um instante. Se assim fosse, não haveria senão o presente; não haveria o prolongamento do passado no atual, não haveria evolução, não haveria a duração concreta. A duração é o progresso contínuo do passado que engole o presente e se torna mais intenso avançando. E desde que o passado cresce incessantemente, também indefinidamente se conserva”.[34]

Considerada em relação à sucessão dos estados psicológicos, a duração é isto mesmo. Mas também, assim compreendida, só se pode concebê-la, tratando-se da consciência. Neste sentido pode dizer-se que as coisas não duram, a não ser para uma consciência que conserve a memória do seu passado. “Duração, significa invenção, criação de formas, elaboração contínua do absolutamente novo.” E isto não se verifica no mundo material, onde domina a necessidade. Aí a sucessão é repetição. É por isto que no mundo material a previsão é possível. É que aí toda a sucessão se resolve em desdobramento no espaço. Contudo é certo que o universo dura. É certo que com o universo duram todas as coisas que dele fazem parte. Logo, todas as coisas duram; logo, há duração até para os corpos fora de nós no espaço. Sim, porém ainda em relação a esses corpos, a duração no verdadeiro sentido da palavra, a duração real e concreta, só se compreende, admitindo-se para as coisas, para os corpos fora da consciência, um modo de existir análogo ao nosso.

Assim é, segundo Bergson, tratando-se dos sistemas naturais que só podem ser verdadeiramente interpretados, fazendo-se a sua reintegração no todo; não, tratando-se dos objetos que são delimitados por nossa percepção e que não são senão indicações de que a consciência se serve para encaminhar a ação. Esses são como “caminhos que a consciência prepara, pela percepção, na confusão e no embaraçamento do real” e sua individualidade é artificial, não orgânica. Os sistemas naturais, não: só se podem compreender como organismos. Por conseguinte, se duram, é que neles o passado coexiste com o presente e forma uma só e mesma coisa com ele, como acontece na consciência. É uma conclusão esta que se impõe por força da analogia. Mas não poderemos verificar essa conclusão, uma vez que não podemos entrar na consciência das coisas. De maneira que para estudar a duração só há um meio, é considerar, em si mesmo, o escoamento, o fluxo contínuo da consciência. E no escoamento, no fluxo contínuo da consciência, duração é organização dinâmica de estados sucessivos. Pode-se assim dizer que do tempo nada se perde porque o passado é presente no presente; ou melhor, o presente não é senão o passado agindo.

Esse passado agindo no presente — eis o que se chama, em sua significação mais profunda, a consciência ou o eu. É uma força viva, uma energia contínua. E essa energia, essa força, como no-la mostra a experiência, só se compreende ligada a um organismo; mas não se deve explicar como função desse organismo. Pelo contrário: o organismo não é senão um instrumento de que ela se serve para agir sobre a matéria. E neste sentido pode-se dizer que é ela mesma que o produz, isto obscuramente, inconscientemente e, por conseguinte, de modo para nós impenetrável, por ação do instinto, nas mesmas condições que produz, por ação da inteligência, aparelhos artificiais para aumentar o seu poder de percepção e ação, e de que se serve, como se fossem um prolongamento de seu instrumento natural que é o organismo mesmo.

Na consciência ou no eu duração é organização, desenvolvimento, progresso. Mas nesta organização, neste desenvolvimento, neste progresso, tudo se explica por penetração, por fusão, por identificação. E cada concepção, cada ideia que a consciência adquire tem a sua vida própria. “Cada uma de nossas ideias”, diz Bergson, “vive à maneira de uma célula num organismo e tudo o que modifica o estado geral do eu, igualmente a modifica. Mas enquanto a célula ocupa um ponto determinado do organismo, uma ideia verdadeiramente nossa enche nosso eu todo inteiro”.[35] Temos, entretanto, frequentemente ideias que não são incorporadas à massa dos nossos estados de consciência. “Estas são como folhas mortas sobre a água de um tanque”.[36] Nosso eu é constituído somente pelo que aí fica vivo e ativo; logo, somente pelo que perdura do passado.

Tal é o eu verdadeiro, o eu profundo, esse que Bergson interpreta definindo-o como uma heterogeneidade puramente qualitativa, sem extensão, nem quantidade; que não ocupa espaço, e no qual, por conseguinte, não se pode verificar nenhuma distinção, nem simultaneidade. Esse eu só pode ser conhecido por visão interior, por intuição e sentimento, e é constituído pela fusão e penetração dos estados psicológicos. “Mas fundindo-se umas nas outras”, diz Bergson, “as nossas sensações retêm alguma coisa da exterioridade recíproca que caracteriza objetivamente as suas causas”.[37] Forma-se assim, além da vida psicológica real e concreta, uma vida psicológica superficial, aparente. É como se o espaço dentro do qual vivemos e pensamos e pelo qual nos deixamos possuir de modo absoluto, fizesse invasão no domínio da consciência pura. Há então uma como projeção dos estados de consciência no espaço homogêneo. Os estados de consciência logo se fazem exteriores uns aos outros e torna-se assim possível distingui-los e calculá-los, como se fossem suscetíveis de distribuição no espaço. Mas distinguindo e calculando os estados de consciência, em verdade distinguimos e calculamos não os estados de consciências, mas os objetos exteriores a que correspondem: o que significa que consideramos não a consciência, mas a sua representação simbólica, não o eu, mas a sua sombra tal como é projetada no espaço homogêneo. É preciso, porém, não confundir uma coisa com a outra. Diz Bergson:

“No fundo da duração homogênea, símbolo extensivo da duração verdadeira, uma psicologia atenta descobre uma duração cujos momentos heterogêneos se penetram; no fundo da multiplicidade numérica dos estados de consciências, uma multiplicidade qualitativa; no fundo do eu de estados bem definidos um eu em que sucessão implica fusão e organização. Mas nós contentamo-nos, o mais das vezes, como primeiro, isto é, com a sombra do eu projetada no espaço homogêneo. É que atormentada por seu insaciável desejo de distinguir, a consciência substitui pelo símbolo a realidade, ou não percebe a realidade senão pelo símbolo. Como o eu, assim refratado e por isto mesmo subdividido, presta-se melhor às exigências da vida social em geral e da linguagem em particular, daí resulta que a consciência lhe dá preferência e perde, pouco a pouco, de vista o eu fundamental”.[38]

É daí que derivam, segundo Bergson, os sofismas da filosofia moderna com relação à liberdade, sofismas que estão em perfeita analogia com os da escola de Eleia relativamente ao movimento. É que se interpreta a ação, não como obra do eu verdadeiro, do eu profundo e vivo, mas como produto mecânico de sua sombra superficial e morta.


Organização dos estados psicológicos: liberdade

Conhecidos os princípios até aqui desenvolvidos, conhecidas as ideias de Bergson sobre a intensidade e a multiplicidade dos estados psicológicos, sobre o espaço e a duração, sobre o movimento, sobre a consciência e o eu, a questão da liberdade torna-se uma questão ociosa. A consciência é a liberdade mesma. Quer dizer: há na consciência um poder indeterminado, de significação puramente subjetiva, poder que se resolve em pura duração ou sucessão; o que significa que é sem nenhuma analogia com a existência simultânea. Decerto tem esse poder também suas leis, mas em esfera superior às leis do determinismo. Tratando-se, pois, da ação como sua operação própria, seria deslocar a ordem dos fatos levantar a questão da liberdade. A ação resulta da consciência, nas mesmas condições que o movimento resulta da força. Mas, ao passo que o movimento derivando da força tem por caráter essencial a necessidade, a ação, pelo contrário, derivando da consciência, tem por lei a liberdade. E é nisto mesmo que uma coisa se distingue da outra. É que, pela organização dos estados psicológicos, uma realidade se constitui, que é inteiramente distinta da realidade exterior; que não ocupa espaço, se bem que tenha por destino próprio agir sobre as coisas no espaço: existência sui generis que se faz por fusão e penetração dos estados psicológicos, não por justaposição, e de onde, por isto mesmo, é em absoluto excluída toda a multiplicidade distinta. É o que Bergson chama heterogeneidade puramente qualitativa sem extensão, nem quantidade; mônada impalpável, mas ativa e pensante; átomo inextenso que é o princípio mesmo da ação, e, por conseguinte, energia viva e força criadora.

“A liberdade é, pois, um fato”, afirma categoricamente o filósofo, “e entre os fatos que se constatam, nenhum é mais claro”.[39] Também todos os argumentos formulados contra a liberdade explicam-se, segundo ele, simplesmente como efeito de um equívoco: é que se considera, não a consciência, mas a sua projeção exterior, não o eu, mas a sua sombra no espaço homogêneo. Desfeito, porém, esse equívoco por uma interpretação legítima dos fatos, a liberdade faz-se, desde logo, patente por sua evidência mesma, não havendo assim razão para procurar justificá-la, nem para discutir as objeções com que a combatem seus opositores. Bergson, contudo, não se conforma com isto, naturalmente por compreender que a questão é de suma gravidade, e, para que não possa restar nenhuma dúvida, submete a uma análise rigorosa e profunda as provas alegadas pelos deterministas. E começando, distingue, como é corrente, o determinismo físico e o determinismo psicológico: o primeiro, subordinando a ação às mesmas leis universais da matéria e em particular ao princípio da conservação da força; o segundo, explicando as resoluções da vontade como consequência necessária de motivos ou de estados psicológicos anteriores, isto é, como sendo determinadas por nossos sentimentos, nossas ideias, e toda a série anterior de nossos estados de consciência. Esta distinção, porém, é, no pensar do autor, mais aparente que real, porque a primeira destas formas do determinismo reduz-se à segunda, e todo o determinismo, também o físico, implica uma hipótese psíquica.

Com efeito: que se deve entender, em seu sentido real, por determinismo físico? Naturalmente que tudo é determinado fisicamente. E isto quer dizer sem dúvida que quando agimos, obedecemos como tudo o mais, às leis da física; o que significa que somos necessitados, isto é, que não somos livres, obedecendo a leis fatais e a forças insuperáveis. Mas estas forças como agem na determinação da vontade? Decerto como motivos, isto é, como sentimentos, emoções, ideias, numa palavra, como estados de consciência. Vê-se, pois, evidentemente, que não há distinção de espécie alguma entre o determinismo físico e o determinismo psicológico. É, pois, sobre este último, em particular, que se deve concentrar todo o debate. Consideremos, em relação a ele, a atitude do filósofo.

O determinismo psicológico em sua forma mais precisa e mais recente liga-se, segundo Bergson, à psicologia da associação. Fica aí subentendida uma concepção associacionista do espírito. Faz-se do eu um agregado de estados exteriores que se distinguem uns dos outros, podendo assim valer uns como causas, outros como efeitos. Admite-se, então, que os estados de consciência possam ser combinados ou separados, que possam ser justapostos, que se coordenem como se ocupassem espaço, que se possam em fim sujeitar a operações de síntese ou de análise, como se se tratasse de elementos químicos. Daí a sua subordinação às mesmas leis da atração e da repulsão que regem a matéria; de onde resulta o caráter necessário de suas combinações. A ação, em todas as suas modalidades, entra na mesma cadeia: o que importa reconhecer que nenhuma deliberação é livre, uma vez que é sempre determinada pelas leis fatais da matéria. Mas quem não vê que se considera aí não o eu, mas simplesmente a sua projeção exterior no espaço; não a consciência, mas o seu fantasma objetivo? É que se confunde a multiplicidade de fusão e mútua penetração com a multiplicidade de justaposição, e tira-se assim à vida psicológica a sua significação própria e os seus caracteres essenciais. Não: para alcançar o verdadeiro sentido da liberdade é preciso considerar o eu profundo, o eu na sua significação interna, o eu independentemente de qualquer influência proveniente do conhecimento das coisas exteriores. Neste eu, assim concebido, cada sentimento, cada emoção, cada concepção se confunde com o todo e forma uma só e mesma coisa com ele. Diz Bergson:

“O sentimento mesmo é um ser que vive, que se desenvolve, que muda por conseguinte incessantemente; se não, não se compreenderia que nos encaminhasse pouco a pouco a uma resolução: nossa resolução seria imediatamente tomada. É certo, porém, que ele vive, porque a duração em que se desenvolve é uma duração cujos momentos se penetram”.[40]

Há, pois, vida em tudo o que se agita na alma; mas cada sentimento, cada emoção, cada paixão reflete a alma toda inteira. Assim, cada sentimento, assim cada estado de consciência, uma vez considerado em si mesmo, uma vez considerado em relação com o eu verdadeiro.

“É, pois, uma psicologia grosseira, uma psicologia que se deixa iludir pela linguagem, a que nos mostra a alma como sendo determinada por uma simpatia, por um ódio ou por uma aversão, como por outras tantas forças que pesam sobre ela. Estes sentimentos, contanto que tenham atingido uma certa profundeza, representam, cada um, toda a alma, no sentido de que todo o conteúdo da alma se reflete em cada um deles. Dizer que a alma se determina sob a ação de um qualquer destes sentimentos é, pois, reconhecer que ela se determina a si mesma”.[41]

Examinando detalhadamente os argumentos com que reciprocamente se combatem, deterministas e partidários do livre-arbítrio, Bergson observa que a questão da liberdade, em geral, sai daí intata; porque, de parte a parte, se confunde a multiplicidade qualitativa com a multiplicidade distinta, a duração concreta que é pura sucessão sem quantidade, com seu simbolismo exterior quantitativo. É assim que todos os argumentos do determinismo, no fundo, se resolvem na alegação de que a ação é sempre determinada por motivos e se a consideramos livre é porque nos passa desapercebida a influência destes motivos. Mas essa influência é sempre real, e sem ela nenhuma ação se poderia conceber. O contrário disto seria equivalente a admitir um efeito sem causa. “Vê-se assim, de um lado”, diz Bergson, “um eu sempre idêntico a si mesmo, e, de outro lado, sentimentos opostos que disputam a sua direção; a vitória pertencerá necessariamente ao mais forte”.[42] Equivale isto a reduzir toda a atividade do espírito a um puro mecanismo sem nenhuma espontaneidade. Assim para o determinista não há liberdade, pois tudo se explica, no que se refere às nossas ações, pelo jogo mecânico dos motivos. Mas o partidário do livre-arbítrio admite no conflito a intervenção brusca da vontade que resolve como uma espécie de golpe de estado. Fica assim salva a liberdade — explica o partidário do livre-arbítrio. Não — responde o determinista, porque esse golpe de estado, por sua vez, obedece à influência de motivos. E é deste modo que a discussão gira num círculo interminável, por tal modo que jamais se poderá chegar a uma conclusão definitiva. É que, de parte a parte, considera-se não o eu, mas a sua representação simbólica, separando-se da energia sensível a consciência dos seus sentimentos, para resolver estes em elementos externos que agem como se fossem forças estranhas. Tira-se então à pessoa toda a espécie de atividade viva. Consideram-se os sentimentos como se pudessem agir como motivos, fazendo-se inteira abstração do eu a que pertencem, isto é, sendo imaginados como elementos exteriores que agem de fora. Consideram-se, em suma, os estados de consciência isoladamente da alma, sem compreender que a alma, separada dos sentimentos ou dos estados sucessivos que a constituem, se resolve em pura abstração: o que no caso em questão importa dizer que se reduz a nada. Não; este mecanismo rígido não tem senão o valor de uma representação simbólica. A essa representação simbólica corresponde uma sucessão real de que nos dá testemunho a consciência. Esta explica-se como expressão de um dinamismo presente em que o passado se organiza no presente e dá livre curso à atividade do eu. E o eu é o princípio mesmo da ação e como tal é, não somente atividade consciente, mas criação incessante: o que tudo significa: um poder indeterminado que não somente é capaz de agir por si mesmo, como, além disto, sempre que age eficazmente, produz alguma coisa de novo no mundo.

Vê-se pelo exposto que Bergson põe a questão da liberdade em termos inteiramente novos. E considerados à luz dos seus princípios, todos os argumentos, não somente dos deterministas, como igualmente dos partidários do livre-arbítrio, ficam sem nenhum sentido e sem nenhuma aplicação. Esses argumentos referem-se, não ao eu, mas à sua sombra projetada no espaço. Também, todos eles, uma vez separados do simbolismo grosseiro que os reveste, reduzem-se, na sua conclusão, a esta forma, no dizer de Bergson, pueril: para o determinista — o ato, uma vez cumprido, está cumprido; para o partidário do livre-arbítrio — o ato antes de ser cumprido não está cumprido. Isto significa exatamente que a questão da liberdade sai daí intata: o que quer dizer que nem o determinista, nem o defensor do livre-arbítrio aborda essa questão em seu sentido real. Um e outro consideram a ação apenas em suas condições exteriores, e como através de um prisma que, objetivando a sua motivação, tiram-lhe o seu caráter próprio, subordinando-a às mesmas condições da existência simultânea. Diz o filósofo:

“Para estudar a liberdade é preciso considerar a ação nas suas qualidades mesmas e não na relação que porventura venha a ter com o que não é, ou com o que poderia ser. Toda a obscuridade vem de que deterministas e partidários do livre-arbítrio representam-se a deliberação sob forma de oscilação no espaço, quando ela consiste em um progresso dinâmico em que o eu e os motivos mesmos estão num contínuo vir-a-ser, como verdadeiros seres vivos. O eu, infalível em suas constatações imediatas, sente-se livre e declara-o; mas desde que busca explicar sua liberdade, não a percebe mais senão por uma espécie de refração através do espaço. Daí uma espécie de simbolismo de natureza mecanicista, igualmente impróprio para defender a tese do livre-arbítrio, para fazê-la compreender e para refutá-la”.[43]

Colocada a questão da liberdade em seus devidos termos, o que importa verificar é isto: o tempo pode representar-se adequadamente pelo espaço? A duração em nós pode ser interpretada em função da existência simultânea fora de nós? A consciência pode explicar-se por justaposição de estados sucessivos?... Conhecidas as ideias de Bergson até aqui desenvolvidas, a resposta é imediata: não; o tempo não se representa pelo espaço, a duração não é simultaneidade, a consciência não se explica por justaposição. Logo, há duas espécies essencialmente distintas de realidade: a realidade externa, a existência simultânea fora de nós, e uma realidade interna, a duração em nós, heterogeneidade puramente qualitativa sem extensão nem quantidade, fato concreto e contínuo de que é expressão viva a consciência. Na primeira destas duas formas de realidade tudo está subordinado ao mais inflexível mecanismo e tudo é assim necessário, fatal; no segundo tudo é indeterminado e a lei é a liberdade.

Notas
[1] Bergson, L’intuiton philosophique, Revue de Métaphysique et de Morale, novembro de 1911.
[2] Ibidem.
[3] Ibidem.
[4] Ibidem.
[5] Ibidem.
[6] Ibidem.
[7] René Gillouin, La philosophie de M. Henri Bergson. Paris: Grasset, 1911.
[8] Bergson, Ensaio sobre os dados imediatos da consciência, Conclusão. N. do E.
[9] Bergson, Ensaio sobre os dados imediatos da consciência, I. N. do E.
[10] Bergson, Ensaio sobre os dados imediatos da consciência, I. N. do E.
[11] Bergson, Ensaio sobre os dados imediatos da consciência, I. N. do E.
[12] Kant, Prolegômenos, §10.
[13] Bergson, Ensaio sobre os dados imediatos da consciência, II.
[14] Bergson, Ensaio sobre os dados imediatos da consciência, II. N. do E.
[15] Bergson, Ensaio sobre os dados imediatos da consciência, II. N. do E.
[16] Bergson, Ensaio sobre os dados imediatos da consciência, II. N. do E.
[17] Bergson, Ensaio sobre os dados imediatos da consciência, II. N. do E.
[18] Bergson, Ensaio sobre os dados imediatos da consciência, II. N. do E.
[19] Bergson, Ensaio sobre os dados imediatos da consciência, II, grifos acrescentados. N. do E.
[20] Bergson, Ensaio sobre os dados imediatos da consciência, II. N. do E.
[21] Bergson, Ensaio sobre os dados imediatos da consciência, II. N. do E.
[22] Bergson, Ensaio sobre os dados imediatos da consciência, II. N. do E.
[23] Bergson, Ensaio sobre os dados imediatos da consciência, II. N. do E.
[24] Bergson, Ensaio sobre os dados imediatos da consciência, II. N. do E.
[25] Bergson, Ensaio sobre os dados imediatos da consciência, II. N. do E.
[26] Bergson, Ensaio sobre os dados imediatos da consciência, II. N. do E.
[27] Bergson, Ensaio sobre os dados imediatos da consciência, II. N. do E.
[28] Bergson, Ensaio sobre os dados imediatos da consciência, II. N. do E.
[29] Bergson, Ensaio sobre os dados imediatos da consciência, II. N. do E.
[30] Bergson, Ensaio sobre os dados imediatos da consciência, II. N. do E.
[31] Bergson, Ensaio sobre os dados imediatos da consciência, II, grifo acrescentado. N. do E.
[32] Bergson, A evolução criadora, I. N. do E.
[33] Bergson, A evolução criadora, I. N. do E.
[34] Bergson, A evolução criadora, I. N. do E.
[35] Bergson, Ensaio sobre os dados imediatos da consciência, II. N. do E.
[36] Bergson, Ensaio sobre os dados imediatos da consciência, II. N. do E.
[37] Bergson, Ensaio sobre os dados imediatos da consciência, II. N. do E.
[38] Bergson, Ensaio sobre os dados imediatos da consciência, II, grifos acrescentados. N. do E.
[39] Bergson, Ensaio sobre os dados imediatos da consciência, III. N. do E.
[40] Bergson, Ensaio sobre os dados imediatos da consciência, II. N. do E.
[41] Bergson, Ensaio sobre os dados imediatos da consciência, III. N. do E.
[42] Bergson, Ensaio sobre os dados imediatos da consciência, III. N. do E.
[43] Bergson, Ensaio sobre os dados imediatos da consciência, III. N. do E.

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