Luiz Alberto Cerqueira
“Cada filósofo sofre a influência da ciência especial a cuja inspiração preponderante obedece, mas sempre que se entrega à especulação filosófica propriamente dita, o que tem em vista e o que procura é interpretar o espírito.” Farias Brito
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Introdução
1. Como se pode distinguir um filósofo, senão por meio de sua ideia de filosofia? Em Raimundo de Farias Brito, a ideia de filosofia gira em torno ao conhecimento de si. Esta é uma evidência que se nos impõe desde seus primeiros estudos, ao final do século XIX. Desse ponto de vista, creio que poderemos salientar sua posição situando-o tanto em relação à história da filosofia no Brasil quanto em relação à história da filosofia ocidental. No §5 d’O mundo interior, bem como no §7 do Ensaio sobre o conhecimento, encontram-se dois conceitos que usaremos com esta finalidade. São duas maneiras de revelar uma mesma coisa — a filosofia — no plano da ação e no plano teórico do saber: filosofia pré-científica, que ele concebe como a atividade prévia do espírito em termos de regras, princípios e leis para o governo de si mesmo, independentemente de qualquer força externa, e referida à originária “ciência livre” dos gregos, a qual Aristóteles, na segunda parte do Livro I da Metafísica, compara ao homem livre enquanto aquele que é para si e não para outro; e filosofia supercientífica, conceito suscitado por Farias Brito para ressaltar a ideia do moderno conhecimento científico como uma tarefa infinita, cuja condição é aquela “ciência livre” que permite ao sujeito elaborar metodicamente conceitos universais e objetivos, e cujo fim visado é “uma interpretação do verdadeiro sentido da existência”, referindo-se ele à realidade vivida pelo indivíduo como povo dentro dos limites de sua experiência histórica. Com base nesses dois conceitos, indicaremos primeiro as condições de presença do seu pensamento no Brasil, e depois o significado dessa presença em relação a dois filósofos de vanguarda no contexto europeu, Henri Bergson e Edmund Husserl, os quais à mesma época também pensavam a filosofia como um saber estrito acerca da estrutura da subjetividade.
Antecedentes: da conversão à consciência crítica
2. No Brasil, o primeiro registro de postulação do conhecimento de si encontra-se no Padre Antônio Vieira (1608-1697). Preocupado com a ineficácia dos sermões, numa época marcada pelas doutrinas que configuraram o racionalismo, Vieira insiste no princípio de que tanto a formação quanto a reforma do homem moral implicam a conversão. Em sua teologia da conversão, Vieira questiona: “Que coisa é a conversão de uma alma senão entrar um homem dentro em si, e ver-se a si mesmo?” (VIEIRA, Sermão da Sexagésima, III, §10). Para ele, essa visão introspectiva não só é necessária como também pressupõe uma consideração da alma em separado do corpo e de tudo o que é corpóreo:
Nota: Vieira, Sermão da Sexagésima, disponível em: http://textosdefilosofiabrasileira.blogspot.com/2015/11/sermao-da-sexagesima.html.
Homem, se te ignora, se te não conheces, sai fora (…) o homem tanto sabe, quanto sai, e aqueles que não saíram, não sei como podem saber, se não for por ciência infusa, a qual ainda não basta (…) Mas donde há de sair? Do corpo (…) para que o homem se conheça, há de entrar em si mesmo; e este sair de si, é entrar em si; porque é sair do exterior do homem, que é o corpo, e entrar e penetrar o interior dele, que é a alma. (VIEIRA, As Cinco Pedras da Funda de Davi, II, §8; itálicos acrescentados)
Quando S. Paulo (e eu com ele) chama homem à alma, não fala da parte do homem, senão de todo o homem; mas não do homem físico e natural, senão do homem moral, a quem ele queria instruir e formar (…) o homem natural compõe-se de alma e corpo: o homem moral constitui-se, ou consiste só na alma. De maneira, que para formar o homem natural, se há de unir a alma ao corpo; e para formar ou reformar o homem moral, há-se de separar a alma do corpo. (VIEIRA, As Cinco Pedras da Funda de Davi, III, §14)
Nota: Vieira, As Cinco Pedras da Funda de Davi, disponível em: http://textosdefilosofiabrasileira.blogspot.com/2008/07/antonio-vieira-1608-1697-o-que-conduz.html.
3. Para destacarmos o significado filosófico dessa separação, é necessário considerá-la em termos de independência do espírito ou mesmo de liberdade em vista da ação moral. Vieira chama a atenção, por exemplo, para o fato de um pregador ser muito eficiente em seu próprio uso da linguagem, e comover com sua eloquência, mas ainda assim ser ineficaz para fazer alguém arrepender-se, porque a eficácia da ação depende tanto do conhecimento quanto da virtude: aquele, para saber o que devemos fazer, e esta para querer o que fazemos por dever (officium):
As palavras de Deus (…) pregadas no sentido que nós queremos, não são palavras de Deus (…) Dizei-me, pregadores (aqueles com quem eu falo indignos verdadeiramente de tão sagrado nome (…) Nesses lugares, nesses Textos que alegais para prova do que dizeis, é esse o sentido em que Deus os disse? É esse o sentido em que os entendem os Padres da Igreja? É esse o sentido da mesma Gramática das palavras? (…) Basta que havemos de trazer as palavras de Deus a que digam o que nós queremos, e não havemos de querer o que elas dizem! (VIEIRA, Sermão da Sexagésima, IX, §41)
4. Cada um quer escolher para si o melhor e o mais perfeito, mas para tanto precisa subordinar essa escolha ao entendimento. Porque pelo corpo estamos sujeitos ao mecanismo da própria natureza, e de tal maneira que somos capazes de escolher o que não é o melhor para nós, como no caso da escravidão ao vício:
tratava S. Paulo o seu corpo, como se não fora parte sua, senão um escravo rebelde, e como tal o castigava, e domava a açoites (…) estimava o seu corpo (…) como um cárcere penoso (…) e como tal suspirava por se desapegar, e livrar-se dele (…) repreendendo aos que não querem despir-se do mesmo corpo e das suas paixões e apetites. (VIEIRA, As Cinco Pedras da Funda de Davi, III, §13)
5. Portanto, o problema moral envolve a conhecimento prévio de que pelo livre-arbítrio o homem goza do poder do sim e do não como um poder absoluto, pois o fato de escolhermos aquilo que não é manifestamente o melhor e o mais perfeito não afeta qualitativamente o exercício dessa liberdade. Mas como se manifesta no comportamento humano esse poder livre? Considerando o exemplo de Vieira, Davi enfrenta Golias sem medo de errar porque se encontra inteiramente indiferente ao gigantismo do adversário e não sente absolutamente que alguma força exterior possa embargá-lo em suas habilidades com a funda. É essa indiferença que lhe garante, em última instância, a confiança necessária para ser solto em sua ação:
Quando Davi se pôs em campo contra Golias, Saul desconfiava da vitória, e Davi não: e por quê? Porque Saul media a Davi com o Gigante, e Davi media-se a si consigo mesmo. (VIEIRA, As Cinco Pedras da Funda de Davi, I, §3)
6. Em segundo lugar, importa ressaltar que a mesma separação pela qual se revela a indiferença como um poder livre também revela que o conhecimento de si só se adquire no âmbito da própria consciência individual, e que essa evidência psicológica, embora não sirva para explicar por que uma força exterior pode determinar uma mudança na natureza do indivíduo, todavia é a razão pela qual se explica a eficácia de nossas ações pela causalidade final, isto é, quando agimos movidos pelo fim enquanto algo desejado:
neste mundo racional do homem, o primeiro móbil de todas as nossas ações é o conhecimento de nós mesmos (…) Todos comumente cuidam, que as obras são filhas do pensamento ou ideias, com que se concebem e conhecem as mesmas obras: eu digo que são filhas do pensamento e da ideia, com que cada um se concebe, e conhece a si mesmo (…) A imagem mais perfeita, a proporção mais ajustada, e medida mais igual da obra, é o conhecimento de si mesmo em quem a faz. (VIEIRA, As Cinco Pedras da Funda de Davi, I, §1-§2)
7. Finalmente, convém ressaltar que, para além do dualismo que a sua doutrina psicológica pode sugerir, Vieira observa que “estimar o corpo e tratar o corpo, como se não fora parte do homem” é apenas uma disciplina, o jeito sábio de exercer o governo de si mesmo no plano da ação, o que é muito diferente de “crer e entender que o corpo não é parte do homem” (VIEIRA, As Cinco Pedras da Funda de Davi, III, §13). Para ele, o conhecimento de si em separado é o atributo essencial de todo o sujeito para a eficácia da sua ação na mesma medida em que a sua condição física é o atributo acidental para o mesmo fim. Isto se torna evidente quando ele compara o corpo humano à matéria do espelho, pois se a finalidade de refletir por imagem e semelhança constitui a essência do espelho, a contingência de ele ser de aço, vidro ou cristal constitui o seu caráter acidental, de maneira que se nos limitamos a observar a qualidade do material, sobretudo o seu reflexo da luz, então a visão do acidental pode impedir a visão do essencial; mas se não nos deixamos cegar pelo brilho, então o acidental, que nunca se confunde com o essencial, também dele não se separa:
Há de servir o corpo ao próprio conhecimento, como o aço no espelho serve à vista (…) de maneira que o mesmo que impede o conhecimento direto, serve ao conhecimento reflexo. Assim é no homem o conhecimento de si mesmo: se para no corpo, ignora-se; se reflete sobre a alma, conhece-se. (VIEIRA, As Cinco Pedras da Funda de Davi, II, §8)
8. Mas se a doutrina psicológica de Vieira não incorre no dualismo, ela de fato serviu para justificar uma formação pedagógica contemplativa durante os dois séculos em que a educação no Brasil Colônia esteve sob a orientação oficial da Cia. de Jesus. Nesse contexto, o ideal do saber se encontra expresso na Ratio Studiorum, segundo a qual a finalidade do ensino é o “conhecimento do Criador” (Regras do Professor de Filosofia, nº 1). Portanto, se o fim da educação é a contemplação do espírito mais perfeito, então o que nos move a conhecer não são causas econômicas, sociais ou políticas, senão a fé, sendo o conhecimento de si como espírito efeito da conversão religiosa: “assim como Deus nesta vida se conhece por fé, assim se conhece por fé também a alma” (VIEIRA, As Cinco Pedras da Funda de Davi, V, §22).
Nota: Ratio Studiorum, texto disponível em: http://textosdefilosofiabrasileira.blogspot.com/2013/02/ratio-studiorum.html.
9. Contra a ideia da liberdade circunscrita ao âmbito psicológico da indiferença posicionou-se Domingos José Gonçalves de Magalhães em sua obra Fatos do espírito humano (Paris, 1858; reed. crítica: Petrópolis, Vozes, 2004). Preocupado com a necessidade de reformas institucionais, após a emancipação política brasileira em relação à metrópole portuguesa, ele faz a primeira crítica do conhecimento de si no Brasil:
Não é por falta de inteligência que deixamos às vezes de reconhecer a verdade (…) muitas vezes por um falso preconceito, que nos faz duvidar da evidência só por parecer contrária ao nosso modo habitual de entender, e a certos princípios que fabricamos por uma análise incompleta (…) Custa-nos muito no meio, ou no fim da vida, renovar as nossas ideias, como o mudar de linguagem, e reformar os nossos costumes. Assim, não há verdade em ciência alguma, não há fato novo, achado pelo trabalho assíduo de alguns espíritos, que não fosse, e não seja combatido por mil juízos antecipados. Outras vezes, não podendo conciliar fatos que nos parecem contrários ao que sabemos, negamos hoje o que afirmamos ontem, damos agora como causa o que antes reconhecemos ser efeito, ou desacoroçoados duvidamos de tudo; o que também é um erro, porque infalivelmente alguma coisa é verdade sem a menor dúvida para o espírito humano, a começar pela sua própria existência. (MAGALHÃES, 2004, cap. XV, p. 348; itálicos acrescentados)
O corpo não nos foi dado como uma condição de saber e de querer, mas como uma sujeição que coarctasse esse poder livre, de que abusaríamos, chamando-nos à vida prática. (MAGALHÃES, 2004, cap. XV, p. 354)
Podia Deus sem dúvida criar uma sociedade de espíritos puros, não obrigados a coisa alguma, não sujeitos à menor dor, seres angélicos que vivessem em uma eterna bem-aventurança, só contemplando as maravilhas do seu criador. Mas qual seria o mérito desses espíritos para tanta ventura? Necessita Deus de admiradores inúteis? (MAGALHÃES, 2004, cap. XV, p. 355)
Nota: Na ed. de 1858, estas citações estão disponíveis em: https://digital.bbm.usp.br/view/?45000008694&bbm/4164#page/10/mode/2up.
10. Entretanto, ainda que Gonçalves de Magalhães tenha assimilado o moderno princípio cartesiano de que “para que eu seja livre, não é necessário que eu seja indiferente na escolha de um ou de outro dos dois contrários; mas antes, quanto mais eu pender para um, seja porque eu conheça evidentemente que o bom e o verdadeiro aí se encontrem, seja porque Deus disponha assim o interior do meu pensamento, tanto mais livremente o escolherei e o abraçarei” (DESCARTES, Meditações, IV, 9), suas ideias psicológicas se plasmaram em consonância com as de Maine de Biran e Jouffroy, as quais se encontram na base do espiritualismo francês liderado por Victor Cousin no combate ao sensualismo de Condillac; e por essa via ele foi levado a estabelecer uma certa separação entre a consciência e a sensação, considerando esta apenas como “sinal de alguma coisa” (MAGALHÃES, 2004, cap. VIII, p. 185), e aquela como sendo o conhecimento da própria forma espiritual (a “própria natureza”), em função do qual toda a sensação seria então recebida, referida a seus objeto, interpretada como sinal, e, portanto, objetivada como fato do espírito humano:
Saber o que está em si mesmo, ter ciência de todos os seus atos, é o que se chama consciência.
A consciência é a ciência refletida em alguém, individualizada, personalizada, possuída por um sujeito ativo, e convertida assim em faculdade individual.
Saber, ter ciência do que fora de si se passa, é o que se chama perceber.
A percepção supõe necessariamente a consciência. Quem não tem consciência de sua própria existência não pode de nenhum modo distinguir-se de coisa alguma, não pode ter percepções, nem ciência de coisa alguma dentro ou fora de si.
A consciência supõe também percepções, não para que ela exista no espírito, mas para que ele se possa encher, e ocupar-se do outros objetos fora de si mesmo.
As percepções atuais e as passadas supõem sempre a consciência, sem a qual não existiriam; mas a consciência não necessita de percepções atuais para exercer-se; ela pode pensar com as percepções passadas, que se acham na sua memória.
A consciência não é pois um modo de perceber, nem uma faculdade distinta da faculdade de saber, como alguns filósofos o pensaram, mas sim essa faculdade mesma de saber, que sabe de si antes de tudo, e que percebendo, se apercebe.
Perceber é saber alguma coisa fora de si, é um modo de saber, um modo pelo qual a consciência recebe as noções das coisas externas, por conseguinte um ato da consciência, que, por assim dizer, se enriquece. (MAGALHÃES, 2004, cap. VI, p. 148-149)
11. Importa assinalar ainda que Gonçalves de Magalhães rejeita o caráter positivo do modo de explicação dos fenômenos naturais para dar conta dos fatos do espírito humano, vendo assim como irredutíveis entre si o mundo psíquico interior e o mundo físico exterior (MAGALHÃES, 2004, cap. I, p. 59-62). Este foi o primeiro e decisivo passo para a visão estrita do conhecimento de si como problema filosófico no Brasil, cabendo a Tobias Barreto esta tarefa.
12. Em seu texto mais importante sobre o assunto, Tobias Barreto afirma que:
desde Sócrates até os nossos dias, a consciência humana tem sido interpelada, e todavia as suas respostas ainda não enchem meia folha de verdades. Não basta reconhecer e alegar a existência dos fatos internos. (BARRETO, A ciência da Alma Ainda e Sempre Contestada, Parte II, §16; grifos acrescentados)
Nota: Texto disponível em: http://textosdefilosofiabrasileira.blogspot.com/2010/12/ciencia-da-alma-ainda-e-sempre.html.
13. Mas embora preocupado em provar que “a consciência não é sempre intérprete fiel do mundo interior” (Idem, Parte IV, §59), combatendo o espiritualismo defendido por Gonçalves de Magalhães, o mestre do Recife também não encontrou nos argumentos empiristas uma ideia convincente de psicologia como ciência. Desse ponto de vista, ele observa que:
A psicologia empírica, a despeito de todas as suas descrições e pinturas do mundo subjetivo, ainda nada pôde levantar que seja traduzível em forma científica (…) o defeito capital da psicologia, como ciência de observação, é a falta absoluta de dados para se formarem exatas e profundas previsões (…) a psicologia não descobre uma só das leis que determinam a formação do indivíduo. (Idem, Partes V e VI, §86 e §147-§150)
14. Como, então, escapar dessa encruzilhada metodológica? Ao buscar uma saída, Tobias Barreto chama a atenção para a psicologia dos artistas e reforça a ideia de especificidade de uma ciência da alma que dê conta do estado psicológico:
Se não se admite que, em face desses painéis do mundo interno, o que nos impressiona é ainda o ideal, a força criadora do artista, o nosso entusiasmo não tem senso (…) desde Homero até o maior poeta dos nossos dias, o que distingue as criações do verdadeiro artista é o característico da impersonalidade (…) o que existe, por exemplo, de mais impessoal do que o teatro de Shakespeare? (…) Entretanto se diz que ninguém ainda se mostrou tão conhecedor do coração humano (…) O autor de Père Goriot, por exemplo, era mais que um psicólogo, era um grande fisiologista, que andava sempre em dia com a dinâmica mimosa do organismo feminino, cujos movimentos mais imperceptíveis ele sabia detalhar na figura das suas personagens. (Idem, Partes V e VI, §118-§127 e §141)
Não canso de repeti-lo: a ciência do eu implica contradição. Abstraído da pessoa, e do caráter que a constitui, o eu é coisa nenhuma, nada significa. Mas onde estão as induções científicas, feitas de modo que possam garantir nossos juízos sobre a marcha normal da personalidade alheia? Eu disse alheia; e pudera dizer própria. Todos nós sabemos, por experiência, que as mais das vezes, o que nos desarranja e nos perturba, no curso ordinário da vida é a ignorância de nós mesmos, da força de nossas paixões, ou da fraqueza de nossa vontade. (Idem, Parte VI, §151-§152)
A filosofia como ciência do espírito
15. Explorando o alcance das teses de Tobias Barreto, Farias Brito manifestou-se contra uma psicologia que, ao final do século XIX, se constituía com base no método experimental. Seu ponto de partida é o estudo da doutrina kantiana, iniciado por Tobias Barreto, acerca da existência considerada de dois pontos de vista diferentes, como fenômeno e como coisa em si, tendo em mira o caso perturbador da alma ressaltado por Kant. Considerando que as causas que determinam a alma como fenômeno não destroem o seu poder intrínseco de ser em si mesma indiferente a agir de um modo ou do modo contrário, sendo assim, como “coisa em si”, não determinada e, portanto, livre do mecanismo que rege a vida sob as leis da natureza, Farias Brito propõe uma psicologia que ele denomina (i) transcendente, para ir além da esfera de imanência dos conceitos que constituem o conhecimento da natureza de toda a coisa como fenômeno, e, desse modo, alcançar a dimensão de toda a “coisa em si” como um poder livre, pois então, de fato, em se tratando das ações que implicam o uso moral da razão pura, as nossas obras não são filhas do pensamento e ideias com que as concebemos, senão filhas do poder livre de escolha com que cada um concebe e conhece a si mesmo; e denomina (ii) metafísica, pois o que é visado, o conhecimento da alma livre, do sujeito consciente de si ou espírito, ultrapassa os limites do senso de realidade verificável pelo método experimental das ciências da natureza. Por isso ele afirma que “A filosofia é a psicologia, a ciência do espírito”, esclarecendo, porém, o seu uso de ‘psicologia’ para significar, além da atividade psicofísica, a ideia de que:
Cada filósofo sofre a influência da ciência especial a cuja inspiração preponderante obedece, mas sempre que se entrega à especulação filosófica propriamente dita, o que tem em vista e o que procura é interpretar o espírito. (BRITO, O mundo interior, §5)
Nota: Na ed. do Senado, p. 97-98; disponível em: https://www2.senado.leg.br/bdsf/bitstream/handle/id/519118/MundoInterior.pdf?sequence=4.
16. Ressalte-se, porém, que a sua convergência para Kant nada tem a ver com o manifesto neokantismo de Tobias Barreto, senão com a adesão deste ao princípio de relatividade de todo o conhecimento defendido pelo autor da Crítica da razão pura:
É concepção mui comum na filosofia moderna, principalmente a partir de Kant, que nosso conhecimento das coisas só é possível através de certas ideias ou formas derivadas da constituição mesma de nosso espírito. (BRITO, O mundo interior, §39)
Mas assim como vai a Kant, Farias Brito também dele se afasta. Por quê? Porque Kant não foi um psicólogo*. Segundo Farias Brito, ele não parte da consciência para dar conta do conjunto dos fenômenos, isto é, das coisas; mas, pelo contrário, parte do conjunto das coisas para explicar a consciência. Ou seja, Kant considera em primeiro lugar o todo para explicar por dedução o espírito, partindo por via ontológica de conceitos a priori, de tal forma que o argumento com que se pretende provar a substancialidade da alma, com base no cogito cartesiano, se reduz a um paralogismo. Em consequência desse prejuízo da psicologia racional, Kant propõe uma psicologia empírica. Neste ponto, Farias Brito toma outro caminho. E por essa via ele depara com Bergson, ao ler com admiração e entusiasmo o Essai sur les données immédiates de la conscience, de 1889 (Ensaio sobre os dados imediatos da consciência, Lisboa, Edições 70, 1988).
* Eis como se deve compreender aqui o uso do termo por Farias Brito: “Os filósofos da escola jônica eram físicos [physikoi, do grego φυσικός or physikos, referente a φύσις ou physis, que se traduz pelo termo de natureza] e, como físicos, era por ação das forças mesmas da natureza que procuravam explicar, não somente os elementos exteriores, ou os movimentos do cosmo, como ao mesmo tempo o pensamento e a vida. E é esta a tradição a que se ligam Leucipo, Demócrito, Epicuro, Lucrécio e o materialismo moderno. Os eleatas, pelo contrário, eram psicólogos, e era assim pelo espírito que explicavam toda a realidade, como toda a verdade. E é esta a tradição a que se ligam Sócrates, Platão, Aristóteles (…) Entre os modernos (…) Descartes e Leibniz eram grandes matemáticos, é certo, mas eram também psicólogos, e o que com mais interesse se esforçaram por constituir foi a filosofia do espírito (…) Spinoza era principalmente moralista e psicólogo. É o que explica o caráter ético-psíquico, ao mesmo tempo ideal e transcendente, de seu sistema monista (…) Bergson é psicólogo: é natural que sua filosofia seja como realmente é, exclusivamente e fundamentalmente uma filosofia do espírito ou uma Psicologia. O mesmo acontece a William James, o filósofo do pragmatismo. Também, é esta, forçoso é reconhecê-lo, a única direção em que a filosofia é viável, e é só explicando a realidade e a vida como resultado da atividade mesma do espírito que se poderá chegar a construir definitivamente este eterno sonho do espírito humano a que Leibniz dava o nome de perennis philosophia.” (Farias Brito, O mundo interior, §5)
17. Diante do panorama filosófico do século XIX, marcado pelas interpretações exacerbadas do princípio de relatividade em doutrinas conhecidas como naturalismo, idealismo, fenomenismo e positivismo, pela tentativa dos psicofísicos de “objetivar a consciência” (BRITO, O mundo interior, §1), Farias Brito entende que é necessário ultrapassar a posição kantiana, e se convence de que “não basta indagar se o conhecimento das coisas depende da constituição de nosso espírito”, concluindo, por fim, que “é preciso verificar se o conhecimento do eu e da consciência, por sua vez, não sofre a influência das coisas” (BRITO, O mundo interior, §39).
Nota: Sobre a crítica do naturalismo em Farias Brito, ver a dissertação de mestrado de Rachel Helena da Silva Brito, concebida e desenvolvida no Centro de Filosofia Brasileira do Programa de Pós-graduação em Filosofia da Universidade Federal do Rio de Janeiro, aprovada em 2006; texto disponível em: http://textosdefilosofiabrasileira.blogspot.com/2017/01/a-critica-do-naturalismo-na-filosofia.html.
18. Para compreendermos o significado disso no âmbito de sua assimilação das ideias bergsonianas, torna-se fundamental considerarmos a passagem em que Bergson distingue o “eu interior” em si considerado como um absoluto, “o que sente e se apaixona, o que delibera e se decide [enquanto] força cujos estados e modificações se penetram intimamente” (BERGSON, 1988, p. 88), do eu fenomênico e mundano resultante do fato de que “o nosso eu toca no mundo exterior superficialmente; as nossas sensações sucessivas, embora apoiando-se umas nas outras, conservam algo da exterioridade recíproca que caracteriza objetivamente as suas causas” (BERGSON, 1988, p. 88). O eu adquire, assim, a sua sombra. E é reduzido à sua sombra que o eu se torna objeto de conhecimento científico segundo o modelo da “ciência da natureza”. Entretanto, se o “eu mais profundo não faz senão uma única e mesma pessoa com o eu superficial” (BERGSON, 1988, p. 88), como, exatamente, se perde a consciência de si como sendo essencialmente energia? Bergson explica que é por meio da palavra enquanto meio de comunicação e de formação do senso comum:
A influência da linguagem sobre a sensação é mais profunda do que normalmente se pode pensar. Não só a linguagem nos leva a acreditar na invariabilidade das nossas sensações, mas induzir-nos-á em erro, por vezes, quanto ao caráter da sensação experimentada (…) a palavra em bruto, que armazena o que há de estável, de comum e, por conseguinte, de impessoal nas impressões da humanidade, esmaga ou, pelo menos, encobre as impressões delicadas e fugitivas da nossa consciência individual [grifos acrescentados]. Para lutar com armas iguais, estas deveriam exprimir-se por palavras precisas; mas as palavras, logo que formadas, voltar-se-iam contra a sensação que lhes deu origem, e inventadas para testemunhar que a sensação é instável, acabariam por lhes impor a sua própria estabilidade. Em nenhum lado é tão flagrante este esmagamento da consciência como nos fenômenos do sentimento (…) O próprio sentimento é um ser que vive, se desenvolve e, consequentemente, muda sem cessar (…) Mas vive porque a duração em que se desenvolve é uma duração cujos momentos se penetram: ao separarmos estes momentos uns dos outros, ao desenrolarmos o tempo no espaço, fizemos perder a este sentimento a sua animação e cor. Eis-nos, pois, perante a sombra de nós mesmos [grifos acrescentados]: julgamos ter analisado o nosso sentimento, mas, na verdade, substituímo-lo por uma justaposição de estados inertes, traduzíveis por palavras, e que constituem cada um o elemento comum, consequentemente, o resíduo impessoal, das impressões experimentadas num determinado caso pela sociedade inteira. (BERGSON, 1988, p. 91-93)
19. Eis que se pode falar de uma coisificação do eu: na palavra se perdem a intensidade, a diversidade e o colorido das sensações pessoais em consequência do seu caráter arbitrário e do seu uso impessoal na comunicação, desenvolvendo-se assim um eu inteiramente superficial e homogêneo.
20. Mas a poesia nos liberta dessa prisão, ao reintegrar a sensação, o sentimento e a emoção à vida da consciência. Em nós, diz Farias Brito, o espírito se revela como sendo:
esse elemento oculto, misterioso, inexplicável, pelo qual a obra de arte nos impressiona docemente, fazendo sonhar e ver coisas longínquas, esse poder maravilhoso e incompreensível, com que as coisas mais simples fazem, muitas vezes, surgir, como de improviso, sentimentos estranhos que dormiam ignorados nas profundezas d’alma. (BRITO, O mundo interior, §1).
21. Por essa via é possível distinguir uma “filosofia existencial” avant la lettre no Brasil, não só porque em Farias Brito transparece o caráter singular e solitário da existência humana como um
esforço, um esforço doloroso e triste — eis em verdade o que tem sido em mim o trabalho do espírito (…) procuro, pelo raciocínio, interpretar estas sombras que passam e desaparecem, a realidade exterior e sua eterna fenomenalidade. Que é tudo isto que me cerca? Que sou eu mesmo que trabalho por conhecer a verdade? (BRITO, Ensaio sobre o conhecimento, §3);
mas também porque vemos, depois dele, que esse mesmo esforço no combate à coisificação se revigora em Vicente Ferreira da Silva, no qual assinalamos a necessidade de uma nova interpretação do sensível, pois se
no recinto das estruturas noético-noemáticas não encontramos um lugar para o mundo sensorial (…) isso nos leva a supor que a redução intelectualista do cogito é insuficiente para fundamentar a totalidade da vida da consciência. (SILVA, Uma Interpretação do Sensível)
Nota: Cf. Vicente Ferreira da Silva, Uma Interpretação do Sensível, disponível em: http://textosdefilosofiabrasileira.blogspot.com/2012/05/uma-interpretacao-do-sensivel.html.
22. Mais ainda:
O que nos envolve imediatamente, o mundo que se inscreve em nossa percepção pode esconder e não ‘mostrar’ o que está por detrás dele (…) A singularidade da nossa vida pessoal pode evolar-se nos quadros universais da linguagem, perder-se na ambiguidade e na abstração dos termos (…) a imagem do mundo conformada pelo trabalho pode dominar o projeto de utilização, o trabalhador vindo a ofuscar o homem que se esconde em suas vestes (…) O eu, depois de escolher um cenário de desenvolvimento, passa a ser função e parte desse mundo criado e a se compreender a partir desse complexo de objetividades (…) Não é menos verdade, por outro lado, que uma vida é tanto mais poderosa quanto mais sabe libertar-se dessas insídias e encantamentos da floresta e desenvolver-se em sua identidade original. (SILVA, Prelúdio de Metamorfoses)
Nota: Cf. Vicente Ferreira da Silva, Prelúdio de Metamorfoses, disponível em: http://textosdefilosofiabrasileira.blogspot.com/2012/05/preludio-de-metamorfoses.html.
23. Uma vez identificada a componente existencial no âmbito da rejeição do método experimental para a ciência do espírito, e considerando-se o caráter independente de sua obra, torna-se possível uma inserção de Farias Brito no quadro da filosofia ocidental a partir de sua contribuição para a história da filosofia no Brasil. Foi o que fez o norte-americano Fred Gillette Sturm, ao comparar a proposta metodológica de Farias Brito com a fenomenologia de Husserl. Segundo Sturm, são evidentes as similaridades entre ambos quanto à concepção do psíquico. Se não, vejamos:
A consciência é o eu. E tal é a existência de que temos mais certeza, pois é a única que conhecemos diretamente e, por conseguinte, de modo mais íntimo e profundo. Indagando-se, porém, da significação real dessa existência, vê-se que consiste unicamente em sucessão de estados ou mudanças (…) Ora, se toda a realidade da consciência consiste em sucessão ou mudança de estados, segue-se daí que apesar de mudar incessantemente, ela permanece sempre a mesma. É que não se trata de uma coisa, de um fato determinado, mas de uma corrente, de um fluxo contínuo; e esta corrente, este fluxo, se bem que a todo o momento mude de cor, todavia não se interrompe, e nunca se quebra: forma um todo indivisível e persiste sempre o mesmo em sua sucessão de mudanças. Isto significa que a essência da consciência consiste na duração. É assim que [Bergson] acentua, de modo decisivo, que, considerando-se a vida psicológica tal como se desenvolve através dos símbolos que a encobrem, verifica-se que o tempo é a sua matéria própria. (BRITO, O mundo interior, §44)
A experiência não pode dizer-nos o que ‘é’ o ser psíquico, no mesmo sentido válido para o físico. O psíquico não se experimenta como aparente; é a ‘vivência’, o vivido contemplado na reflexão, o qual aparece como individualidade por si mesmo em um fluir absoluto, ora como sendo, ora como ‘deixando de ser’, voltando a cair continuamente de modo visível em um ter sido. O psíquico também pode ser recordado e, deste modo, algo experimentado de maneira um pouco distinta; e no ‘recordado’ está o ‘ter sido percebido’. Pode ser recordado ‘reiteradamente’, nas recordações que estão reunidas em uma consciência que se apercebe de que as recordações mesmas são evocadas de novo ou então retidas. Nesta conexão, e exclusivamente nela, como o idêntico de tais repetições, o a priori psíquico pode ser ‘experimentado’ como ente e identificado (…) É um fluir de fenômenos ilimitado por ambos os lados, com uma linha intencional contínua, que é como se disséssemos o índice da unidade que penetra tudo, isto é, a unidade do ‘tempo’ imanente, sem começo e sem fim, tempo que não se mede com nenhum cronômetro. (HUSSERL, La filosofía como ciencia estricta, Buenos Aires, Ed. Nova, p. 72-73).
24. O método apregoado por Farias Brito como método próprio da filosofia aponta para um saber “em que o objeto do conhecimento é consubstancial com o sujeito” (§4º), razão pela qual a “o espírito (…) só pode ser conhecido por observação interior” (§89). Mas essa observação interior, que ele denomina ‘introspecção’ de preferência ao termo ‘intuição’ usado por Bergson, deve ser considerada em diferentes etapas para não ser confundida com a da psicologia racional, então analisada e descartada por Tobias Barreto. Elas são as seguintes:
- Primeira etapa: toma-se a experiência da consciência de si na sua totalidade, revelando-se então duas dimensões: a dimensão subjetiva do eu como um poder livre e absoluto, e a dimensão da própria natureza, isto é, do eu fenomênico e mundano;
- Segunda etapa: consiste na suspensão do aspecto subjetivo para a análise das condições naturais que intervêm na formação do eu fenomênico e mundano;
- Terceira etapa: a suspensão do aspecto objetivo, a fim de que o aspecto subjetivo seja analisado mediante a introspecção. Nesta análise, deparamos com a essência verdadeira do espírito humano: o mundo interior deste homem:
“Quer dizer: somos consciências e é neste caráter que formamos o mundo ético-psíquico e este tem também suas leis; mas são leis morais, não leis materiais: o que quer dizer que como consciências, somos nós mesmos que estabelecemos as leis que nos regem. Estas são as leis éticas ou morais, e ligam-se ao espírito mesmo, à existência verdadeira; e são, por isto mesmo, leis reais e concretas, leis que exercem ação como forças. As leis naturais, ao contrário, são simples abstrações em nós, da ordem dos fenômenos. As primeiras são fatos; as segundas são apenas processos lógicos para interpretação da realidade” (O mundo interior, §89; itálicos acrescentados).
- Quarta etapa: em consequência do caráter particular e exclusivo da introspecção, se a ela nos limitássemos, incorreríamos no solipsismo, e não haveria possibilidade de ciência do espírito, razão pela qual nosso autor concebeu uma observação correlativa da observação direta dos fatos psíquicos na introspecção, a qual denominou ‘introspecção indireta’:
“E há ainda a distinguir a introspecção direta e a introspecção indireta. A primeira consiste, para cada um, na observação dos fatos da própria consciência. Se não houvesse outra observação psíquica, além desta, o resultado seria o solipsismo, e a psicologia seria então, para cada um, apenas o registro de suas emoções e sentimentos, a história particular de sua vida íntima. E haveria assim tantas psicologias quantos indivíduos sensíveis e pensantes: o que equivale a dizer que a psicologia seria impossível como ciência. Realmente, cada consciência é um todo fechado e impenetrável, um absoluto inacessível a outras consciências. Parece, portanto, que não há meio para observar fatos que se passam em consciências estranhas à nossa. Mas não acontece assim. De uma para outra consciência não há, por certo, comunicação por processo interno. Cada uma é, sob este ponto de vista, um todo isolado e forma a seu ponto de vista o centro do mundo; mas há entre as diferentes consciências comunicação segura, positiva e certa por processo exterior. Tal é, por exemplo, a palavra, a linguagem em geral, como qualquer sinal com que se possa dar expressão ao pensamento. Além disto, os estados da alma refletem-se por sinais evidentes no próprio organismo. Uma emoção profunda comove até às lágrimas. O olhar fala. A raiva empalidece. O hábito do crime e a prática da crueldade dão ao indivíduo um aspecto tenebroso e repelente. A piedade, ao contrário, envolve aquele que a pratica habitualmente, numa como atmosfera luminosa e fantástica, através da qual parece que em tudo nele se reflete, no olhar tranquilo e doce, no gesto humilde e brando, na palavra equilibrada e serena, uma como expressão modesta e suavíssima, mas perene, de simpatia e de bondade. Todos estes fatos autorizam a formar juízo seguro sobre sentimentos e ideias, emoções e paixões a que somos estranhos e que se passam em consciências estranhas à nossa. Observamos, então, estes sentimentos e ideias, estas emoções e paixões, todas as operações psíquicas possíveis, não em si mesmas, mas nos movimentos exteriores que a elas se ligam e que são delas dependentes. Quer dizer: estudamos a alma dos outros, observando os movimentos exteriores que realizam, em correspondência com sentimentos ou ideias análogas às nossas. Tal é o processo de observação a que dou o nome de introspecção indireta. Trata-se aí de fatos exteriores; mas esses fatos são observados, tendo-se em vista, os nossos estados da alma e como através do espelho de nossa própria consciência. A observação é sempre introspectiva, embora indiretamente” (BRITO, O mundo interior, §89).
Conclusão
25. Sem o conceito de filosofia pré-científica, não haveria sentido em procurar no Brasil antecedentes históricos da ideia do conhecimento de si como um saber filosófico. Porque do ponto de vista histórico, o que se constata em nossa tradição filosófica originária é o uso da razão teórica tutelado pela autoridade religiosa; e depois da supressão da Ratio Studiorum, e da emancipação política em relação à metrópole portuguesa, o que se constata, ao longo do século XIX, é o esforço de literatos em assimilar os fundamentos da filosofia moderna e promover a modernização da cultura. Do ponto de vista da historiografia filosófica, o que ainda se constata é uma concepção de filosofia “brasileira” ou “nacional” circunscrita ao contexto da modernização, tendo como pressuposto a necessidade de recepção de ideias e doutrinas filosóficas estrangeiras, e como critério a preferência por uma determinada posição filosófica, e por um determinado caminho a seguir, em face da permanente renovação histórica de ideias e doutrinas.
26. Mas os conceitos de filosofia pré-científica e filosofia supercientífica nos permitem ultrapassar os limites dessa concepção historicista da vida do espírito, em termos de recepção e preferência de ideias e doutrinas, para resgatar a nossa própria experiência histórica de autoconsciência. E se é verdade que Farias Brito, quase ao fim de sua vida, lamentou-se de não ter feito um só discípulo no Brasil, também é verdade que, poucas décadas após a sua morte, tornou-se patente que o interesse filosófico em suas obras nada tem a ver com nacionalidade nem com o contexto histórico do seu pensamento. Pois se hoje nos parece claro o significado universal do seu modo de ver o “conhece-te a ti mesmo” socrático como sendo o preceito originário do saber filosófico, devemos isto em boa parte a Fred Gillette Sturm (1926-2006), um norte-americano doutorado em filosofia por Columbia University, e professor de filosofia da University of New Mexico, que em estudo pioneiro sobre o nosso autor foi o primeiro a confessar-se “quase um seu discípulo!” (STURM, 1962, p. 85).
Farias Brito na historiografia filosófica brasileira
- Retórica a favor
Na década de 1920, nosso autor foi saudado como o verdadeiro intérprete da alma nacional por Jackson de Figueiredo (1891-1928), líder de um movimento de reação contra o influxo do positivismo na educação, e fundador do Centro Dom Vital e da revista A Ordem, destinados ao estudo e à divulgação da doutrina católica. Do ponto de vista dessa cooptação ideológica, surgiram inúmeros simpatizantes de suas ideias e “discípulos confessos”.
- Retórica contrária
Na década de 1940, surge a reação contra o entusiasmo com que foi saudado Farias Brito pelo movimento de renovação católica. A principal acusação é a de que, em meio à luta entre as mentalidades conservadora e modernizadora, aparece como metafísico indesejável “a figura de Farias Brito a perturbar as forças em conflito” (Sílvio Rabello). Mais ainda: “bastante confusa, monótona e folhuda [a obra de Farias Brito] seguiu sempre, muito de perto, as oscilações das nossas importações culturais. Seus livros repetem ideias alheias, são melodias enfadonhas (…) E que estranho e também paradoxal sintoma o haver sido (…) considerado (…) pelos integralistas, como o chefe espiritual da vaga ideologia, que essa doutrina reacionária pretendeu impor ao País! No entanto, talvez, houvesse razões para isso” (João Cruz Costa). Para completar esse quadro negativo, criou-se a imagem do homem fracassado na política republicana que “refugiou-se com o seu fraque preto e os seus bigodes tristes nas indagações da filosofia” (Gilberto Freyre).
- Reconhecimento crítico
Somente em 1962, mais de quarenta anos após a sua morte, realizou-se na Universidade do Ceará, atual UFC, na semana de 05 a 10 de novembro, o IV Congresso Nacional de Filosofia, promovido pelo Instituto Brasileiro de Filosofia, em homenagem ao centenário de seu nascimento. Prestigiada pela presença do Reitor, do Governador do Estado, e de cerca de sessenta autores estrangeiros e nacionais, a homenagem acadêmica, que consistiu no conjunto de quatorze textos sobre o pensamento do ilustre cearense, estaria hoje no limbo se dela não tivesse participado o norte-americano Fred Gillette Sturm. Diferentemente dos demais, que apresentaram estudos genéricos sobre “O direito em...”, “A filosofia da história em...”, etc., Sturm surpreendeu com uma tese sobre (i) “os motivos existencialistas no pensamento de Farias Brito” (IBF, 1962, p. 91), e sobre evidências (ii) de que “há na metodologia proposta por ele, e no programa filosófico anunciado por ele, um paralelo com a fenomenologia atual” (IBF, 1962, p. 91). Após a tese doutoral defendida por Laerte Ramos de Carvalho sobre A formação filosófica de Farias Brito, o estudo de Sturm é o ponto de partida para a revisão crítica do significado de sua obra.
☛ Mais recentemente, temos a tese de doutorado de Leonardo Ferreira Almada sobre A ideia de filosofia como ciência do espírito no Brasil, concebida e desenvolvida no Centro de Filosofia Brasileira do Programa de Pós-graduação em Filosofia da Universidade Federal do Rio de Janeiro, aprovada em 2009; texto disponível em: https://textosdefilosofiabrasileira.blogspot.com/2009/03/ideia-de-filosofia-como-ciencia-do.html.
Obras de Farias Brito
- Finalidade do mundo (Estudos de filosofia e teleologia naturalista), em 03 volumes: [I] A filosofia como atividade permanente do espírito. Fortaleza: Tipografia Universal, 1895; [II] A filosofia moderna. Fortaleza: Tipografia Universal, 1899; [III] O mundo como atividade intelectual. Belém: Livraria Universal, 1905; 2ª ed. de Finalidade do mundo, Rio de Janeiro: INL, 1957; 3ª ed., Brasília: Senado Federal, 2012.
- A verdade como regra das ações. Belém: Livraria Universal, 1905b; 2ª ed., Rio de Janeiro: INL, 1953; 3ª ed., Brasília: Senado Federal, 2005.
- A base física do espírito (História sumária do problema da mentalidade como preparação para o estudo da filosofia do espírito). Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1912; 2ª ed., Rio de Janeiro: INL, 1953; 3ª ed., Brasília: Senado Federal, 2006.
- O mundo interior (Ensaio sobre os dados gerais da filosofia do espírito). Rio de Janeiro: Revista dos Tribunais, 1914; 2ª ed., Rio de Janeiro: INL, 1951; 3ª ed., Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 2003; 4ª ed., Brasília: Senado Federal, 2006.
- Inéditos e disperso − notas e variações sobre assuntos diversos, apresentando lista de 65 títulos de todos os textos conhecidos do autor, incluindo o incompleto e então inédito Ensaio sobre o conhecimento, poesias, prefácios, artigos de jornal, manifestos, manuscritos, etc. São Paulo: Grijalbo/EDUSP, 1966.
FIM
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