No
passado, há muito tempo, uma força de alteração e mascaramento perpassava céus
e terra, tudo se revestindo de uma existência frágil e submissa diante da magia
das fadas, gnomos e poderes arcanos. Nesse ambiente de lenda a atmosfera
parecia sulcada por sortilégios que transformavam vertiginosamente a fisionomia
das coisas, mudando príncipes em feras e feras em amáveis aparências. Foi neste
cenário de sonho que recebemos pela primeira vez, quando crianças, a lição de
que as coisas podem ser de outra forma do que aquela na qual se manifestam e de
que podem se manifestar de outra forma do que aquela na qual se apresentam.
Esses
fatos são deslocados, nas histórias de fadas, para um longínquo passado. Esta referência
ao passado é entretanto inoperante para a criança, pois o seu poder de
fabulação e o seu pouco contato com o que nós, adultos, denominamos
“realidade”, a faz sentir como possível aquilo que consideramos fictício.
Reconheçamos
que existe uma profunda verdade nas páginas dos contos de fadas sob a forma de
uma linguagem cifrada de insondáveis perspectivas. Esta linguagem é a primeira
aproximação do eterno diálogo entre a aparência e o ser. Ingressando nesse
mundo encantado não sabemos se naquela árvore habita realmente a alma de um
príncipe, se ali, naquele castelo e sob a sua aparência não se abre um pavoroso
labirinto e, em geral, se por detrás de cada coisa não existe outra, pronta a
nos favorecer ou a nos perder. Esta é a verdade imperecível contida nessas
obras de beleza que no alvorecer da vida nos põem pela primeira vez diante
desse caráter esquivo e desorientador da existência, dessa eterna
transcendência da verdade. O que nos envolve imediatamente, o mundo que se
inscreve em nossa percepção pode esconder e não “mostrar” o que está por detrás
dele. Não podendo mais nos abandonar às coisas, já que podem ser enganosas e
falazes, como saber o que somos e onde estamos? Nós mesmos podemos ter sido
vítimas de algum encantamento e andamos assim revestidos de uma forma que não é
a original e primitiva. O gênio mau de que nos falava Descartes, aquele ser
“não menos trapaceiro que poderoso”, é uma encarnação desse poder alucinatório
que nos faz ver “o céu, o ar, a terra, as cores, as figuras, os sons e as
demais coisas exteriores, onde possivelmente não existe nada, criando
armadilhas à nossa credulidade”. O conto de fadas é uma transposição no plano
imaginativo das possibilidades de alteração e pseudomorfose de nossa
existência.
Se,
desde cedo, este fenômeno da dissimulação das coisas comove a nossa imaginação,
é porque alude a uma certeza radicada profundamente em nosso espírito, a saber,
que um mundo subterrâneo e imprevisível espreita sempre sob a superfície do
habitual, com súbitas e aterradoras irrupções. A heteromorfose é em geral a
atualização de uma série de momentos incluídos numa coisa, com a consequente
plurificação de sua maneira de ser. É o sentimento da multiplicidade, latente
em tudo. Os limites entre as coisas não são, nesta perspectiva, infranqueáveis,
estando elas umas nas outras e podendo surgir umas das outras quando um poder
superior rompe a harmonia limitante. A monstruosidade é um caso desta ruptura
da unidade informante como hierarquia de possibilidades. Uma dimensão
particular, uma paixão, um órgão, uma parte, um sistema, um setor subordinado
da atividade se ampliam desmesuradamente, crescendo e absorvendo o todo. Este é
o fenômeno da heteromorfose do todo na parte. A mentalidade pré-racional não
admite nem supõe, entretanto, um contorno essencial que especifique as
virtualidades latentes e infranqueáveis dos objetos; para essa mentalidade tudo
pode se transformar em tudo, a heteromorfose sendo arbitrária e cósmica. A
monstruosidade não é entretanto para nós arbitrária, sendo o desenvolvimento de
uma virtualidade em prejuízo do todo. Os antigos entretanto não explicavam as
ocorrências teratológicas por conceitos naturais, mas por heteromorfoses que
implicavam a presença de forças maléficas. Assim como Circe transformava seus
amantes em porcos, o demônio é quem transformava a euritmia dos objetos.
Este
mundo fantasmagórico de metamorfoses e transmutações continha em si, como
dissemos acima, um grande fundo de verdade, revelando em forma imaginativa um
comportamento real da existência. São Paulo já dissera que o homem é monstro,
metade fera metade anjo, ser ambíguo e de metamorfoses. A sensibilidade do
poeta, alerta para as conexões mais profundas, sempre procurou transfigurar o
real, substituindo o sortimento de imagens imediatas por outro mundo de figuras
e de corpos.
O
que há de abismal em nossa realidade é que não temos uma forma de ser e que os
nossos limites se nos apresentam mais como convite e proposição a superá-los do
que como advertência e respeito à sua lei. Esta vontade de superação se
manifesta tanto no caminho que sobe como no caminho que desce, isto é, tanto
como transcendência como transdescendência.
Afirma
Kierkegaard que o homem é o ser heterogêneo por excelência, além de todo o
gênero, não podendo ser compreendido a partir dos gêneros, das classes e das
espécies. É seu destino e sua impotência entretanto alienar-se e confundir-se
com o gênero, perder-se no baile de máscaras das coisas e não saber mais
encontrar-se a si mesmo. Podendo olvidar a sua identidade fundamental, a
existência pode ser tomada pelo que não é, perdendo-se num mundo de desilusões
e encantamentos.
Esta
alienação, este estranhamento a si mesmo não deve ser confundido com o
estranhamento de que nos fala Hegel, momento necessário à realização do homem na
vida cultural. A passagem pela objetividade, o ser fora de si é uma etapa no
desenvolvimento das possibilidades do eu. Sem a linguagem, que Hegel considera
como a “efetividade do estranhamento ou da cultura”, o eu não poderia existir
para os outros, não poderia enunciar a sua intimidade e portanto não poderia
ser nem para si mesmo um eu expressado e compreendido. A singularidade da nossa
vida pessoal pode evolar-se nos quadros universais da linguagem, perder-se na
ambiguidade e na abstração dos termos; entretanto a objetividade do sistema linguístico
continua a ser o expediente por excelência de nossa humanização. A
transcendência da linguagem em relação ao natural é, para nós, o instrumento de
construção do mundo humano.
Idênticas
considerações poderiam ser feitas em relação ao papel do trabalho na existência
do homem. A conformação do mundo às nossas necessidades, pelo trabalho, é uma
forma de nosso comportamento que pode nos expor a um sistema de múltiplas
alienações; a imagem do mundo conformada pelo trabalho pode dominar o projeto
de utilização, o trabalhador vindo a ofuscar o homem que se esconde em suas
vestes. Apesar dessa possibilidade de alienação, constitui o homo faber um dos aspectos necessários
da consciência que se realiza.
O
homem como excedente a todas as coisas, como Un-natur, como ser heterogêneo, ao se transcrever em termos de
natureza, economia, política etc., separa-se de si mesmo e de sua liberdade e
se toma por uma de suas possibilidades. A parte esmaga ontologicamente o todo,
fenômeno que apontamos como expressão da monstruosidade. O mais grave é que
essas realidades nas quais a existência humana se modela, sendo de índole
objetiva e necessária, imprimem ao seu destino uma nota de necessidade e
alienação. A fascinação do objeto transforma o homem num ser mudo e encantado
que vive sem ter acordo de si. Há toda uma história das sucessivas mimeses, dos
sucessivos encantamentos do homem, em que este se vê enclausurado em múltiplas
alterações e heteromorfoses, ou melhor, é em si mesma, como “estar aí”, como
objetividade, alteração e estranhamento. Encontramos diante de nós o mundo
impugnável e duvidoso que remete sempre a uma verdade transcendente. Mas esse
encontrar-se com um mundo dado determina um sem-número de ilusões, sugerindo a
suspeita de que o que existe é qualquer coisa de dado e de presente e não
qualquer coisa que chega a ser, superando o dado. O dado é “o material do nosso
dever”, o que existe unicamente para ser transcendido, o informe que espera uma
forma. Não é isto, entretanto, o que pensa o homem na ingenuidade de sua
existência imediata, vítima da alienação na objetividade. O eu, depois de
escolher um cenário de desenvolvimento, passa a ser função e parte desse mundo
criado e a se compreender a partir desse complexo de objetividades. A
alienação, o encantamento, o ser fora de si da existência não é um fato
acidental e provisório, mas uma determinação de nossas coordenadas
existenciais. Não é menos verdade, por outro lado, que uma vida é tanto mais
poderosa quanto mais sabe libertar-se dessas insídias e encantamentos da
floresta e desenvolver-se em sua identidade original.
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