quinta-feira, 31 de maio de 2012

Prelúdio de metamorfoses

Vicente Ferreira da Silva

No passado, há muito tempo, uma força de alteração e mascaramento perpassava céus e terra, tudo se revestindo de uma existência frágil e submissa diante da magia das fadas, gnomos e poderes arcanos. Nesse ambiente de lenda a atmosfera parecia sulcada por sortilégios que transformavam vertiginosamente a fisionomia das coisas, mudando príncipes em feras e feras em amáveis aparências. Foi neste cenário de sonho que recebemos pela primeira vez, quando crianças, a lição de que as coisas podem ser de outra forma do que aquela na qual se manifestam e de que podem se manifestar de outra forma do que aquela na qual se apresentam.

Esses fatos são deslocados, nas histórias de fadas, para um longínquo passado. Esta referência ao passado é entretanto inoperante para a criança, pois o seu poder de fabulação e o seu pouco contato com o que nós, adultos, denominamos “realidade”, a faz sentir como possível aquilo que consideramos fictício.

Reconheçamos que existe uma profunda verdade nas páginas dos contos de fadas sob a forma de uma linguagem cifrada de insondáveis perspectivas. Esta linguagem é a primeira aproximação do eterno diálogo entre a aparência e o ser. Ingressando nesse mundo encantado não sabemos se naquela árvore habita realmente a alma de um príncipe, se ali, naquele castelo e sob a sua aparência não se abre um pavoroso labirinto e, em geral, se por detrás de cada coisa não existe outra, pronta a nos favorecer ou a nos perder. Esta é a verdade imperecível contida nessas obras de beleza que no alvorecer da vida nos põem pela primeira vez diante desse caráter esquivo e desorientador da existência, dessa eterna transcendência da verdade. O que nos envolve imediatamente, o mundo que se inscreve em nossa percepção pode esconder e não “mostrar” o que está por detrás dele. Não podendo mais nos abandonar às coisas, já que podem ser enganosas e falazes, como saber o que somos e onde estamos? Nós mesmos podemos ter sido vítimas de algum encantamento e andamos assim revestidos de uma forma que não é a original e primitiva. O gênio mau de que nos falava Descartes, aquele ser “não menos trapaceiro que poderoso”, é uma encarnação desse poder alucinatório que nos faz ver “o céu, o ar, a terra, as cores, as figuras, os sons e as demais coisas exteriores, onde possivelmente não existe nada, criando armadilhas à nossa credulidade”. O conto de fadas é uma transposição no plano imaginativo das possibilidades de alteração e pseudomorfose de nossa existência.

Se, desde cedo, este fenômeno da dissimulação das coisas comove a nossa imaginação, é porque alude a uma certeza radicada profundamente em nosso espírito, a saber, que um mundo subterrâneo e imprevisível espreita sempre sob a superfície do habitual, com súbitas e aterradoras irrupções. A heteromorfose é em geral a atualização de uma série de momentos incluídos numa coisa, com a consequente plurificação de sua maneira de ser. É o sentimento da multiplicidade, latente em tudo. Os limites entre as coisas não são, nesta perspectiva, infranqueáveis, estando elas umas nas outras e podendo surgir umas das outras quando um poder superior rompe a harmonia limitante. A monstruosidade é um caso desta ruptura da unidade informante como hierarquia de possibilidades. Uma dimensão particular, uma paixão, um órgão, uma parte, um sistema, um setor subordinado da atividade se ampliam desmesuradamente, crescendo e absorvendo o todo. Este é o fenômeno da heteromorfose do todo na parte. A mentalidade pré-racional não admite nem supõe, entretanto, um contorno essencial que especifique as virtualidades latentes e infranqueáveis dos objetos; para essa mentalidade tudo pode se transformar em tudo, a heteromorfose sendo arbitrária e cósmica. A monstruosidade não é entretanto para nós arbitrária, sendo o desenvolvimento de uma virtualidade em prejuízo do todo. Os antigos entretanto não explicavam as ocorrências teratológicas por conceitos naturais, mas por heteromorfoses que implicavam a presença de forças maléficas. Assim como Circe transformava seus amantes em porcos, o demônio é quem transformava a euritmia dos objetos.

Este mundo fantasmagórico de metamorfoses e transmutações continha em si, como dissemos acima, um grande fundo de verdade, revelando em forma imaginativa um comportamento real da existência. São Paulo já dissera que o homem é monstro, metade fera metade anjo, ser ambíguo e de metamorfoses. A sensibilidade do poeta, alerta para as conexões mais profundas, sempre procurou transfigurar o real, substituindo o sortimento de imagens imediatas por outro mundo de figuras e de corpos.

O que há de abismal em nossa realidade é que não temos uma forma de ser e que os nossos limites se nos apresentam mais como convite e proposição a superá-los do que como advertência e respeito à sua lei. Esta vontade de superação se manifesta tanto no caminho que sobe como no caminho que desce, isto é, tanto como transcendência como transdescendência.

Afirma Kierkegaard que o homem é o ser heterogêneo por excelência, além de todo o gênero, não podendo ser compreendido a partir dos gêneros, das classes e das espécies. É seu destino e sua impotência entretanto alienar-se e confundir-se com o gênero, perder-se no baile de máscaras das coisas e não saber mais encontrar-se a si mesmo. Podendo olvidar a sua identidade fundamental, a existência pode ser tomada pelo que não é, perdendo-se num mundo de desilusões e encantamentos.

Esta alienação, este estranhamento a si mesmo não deve ser confundido com o estranhamento de que nos fala Hegel, momento necessário à realização do homem na vida cultural. A passagem pela objetividade, o ser fora de si é uma etapa no desenvolvimento das possibilidades do eu. Sem a linguagem, que Hegel considera como a “efetividade do estranhamento ou da cultura”, o eu não poderia existir para os outros, não poderia enunciar a sua intimidade e portanto não poderia ser nem para si mesmo um eu expressado e compreendido. A singularidade da nossa vida pessoal pode evolar-se nos quadros universais da linguagem, perder-se na ambiguidade e na abstração dos termos; entretanto a objetividade do sistema linguístico continua a ser o expediente por excelência de nossa humanização. A transcendência da linguagem em relação ao natural é, para nós, o instrumento de construção do mundo humano.

Idênticas considerações poderiam ser feitas em relação ao papel do trabalho na existência do homem. A conformação do mundo às nossas necessidades, pelo trabalho, é uma forma de nosso comportamento que pode nos expor a um sistema de múltiplas alienações; a imagem do mundo conformada pelo trabalho pode dominar o projeto de utilização, o trabalhador vindo a ofuscar o homem que se esconde em suas vestes. Apesar dessa possibilidade de alienação, constitui o homo faber um dos aspectos necessários da consciência que se realiza.

O homem como excedente a todas as coisas, como Un-natur, como ser heterogêneo, ao se transcrever em termos de natureza, economia, política etc., separa-se de si mesmo e de sua liberdade e se toma por uma de suas possibilidades. A parte esmaga ontologicamente o todo, fenômeno que apontamos como expressão da monstruosidade. O mais grave é que essas realidades nas quais a existência humana se modela, sendo de índole objetiva e necessária, imprimem ao seu destino uma nota de necessidade e alienação. A fascinação do objeto transforma o homem num ser mudo e encantado que vive sem ter acordo de si. Há toda uma história das sucessivas mimeses, dos sucessivos encantamentos do homem, em que este se vê enclausurado em múltiplas alterações e heteromorfoses, ou melhor, é em si mesma, como “estar aí”, como objetividade, alteração e estranhamento. Encontramos diante de nós o mundo impugnável e duvidoso que remete sempre a uma verdade transcendente. Mas esse encontrar-se com um mundo dado determina um sem-número de ilusões, sugerindo a suspeita de que o que existe é qualquer coisa de dado e de presente e não qualquer coisa que chega a ser, superando o dado. O dado é “o material do nosso dever”, o que existe unicamente para ser transcendido, o informe que espera uma forma. Não é isto, entretanto, o que pensa o homem na ingenuidade de sua existência imediata, vítima da alienação na objetividade. O eu, depois de escolher um cenário de desenvolvimento, passa a ser função e parte desse mundo criado e a se compreender a partir desse complexo de objetividades. A alienação, o encantamento, o ser fora de si da existência não é um fato acidental e provisório, mas uma determinação de nossas coordenadas existenciais. Não é menos verdade, por outro lado, que uma vida é tanto mais poderosa quanto mais sabe libertar-se dessas insídias e encantamentos da floresta e desenvolver-se em sua identidade original.

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