quinta-feira, 7 de março de 2013

O Princípio da relatividade do saber na filosofia de Tobias Barreto

Rachel Helena da Silva Brito

Monografia de Graduação (2003)
Universidade Federal do Rio de Janeiro
Instituto de Filosofia e Ciências Sociais
Departamento de Filosofia
Orientador: Professor Doutor Luiz Alberto Cerqueira




Sumário


Introdução
1. Relatividade do saber em Kant
1.1 dimensão epistemológica
1.2 dimensão metafísica
2. Recepção do sentido da relatividade do saber em Tobias Barreto
2.1 relatividade e relativismo
2.2 relatividade como limitação
2.3 necessidade do incognoscível
Conclusão
Bibliografia

Notas ao fim do texto.

Introdução

O princípio da relatividade, enunciado por Kant no prefácio da segunda edição da Crítica da razão pura (Crp), tem como fundamento a proposição de que todo o conhecimento é relativo ao sujeito. Aparentemente simples, esta afirmação é alvo de uma das maiores polêmicas da história da filosofia: a confusão entre relatividade e relativismo.

A doutrina relativista, surgida na Antiguidade mediante o subjetivismo de Protágoras, entende que “o homem é a medida de todas as coisas”[1], dirigindo-se assim, de um ponto de vista sensualista, contra todos aqueles que se propunham alcançar verdades invariáveis e universais. Ora, tal compreensão da subjetividade como medida (metron), ou seja, como padrão (kriterion) de juízos de valor, não se manteve circunscrita à Antiguidade, tendo se estendido até a Modernidade. Isto é o que verifica o brasileiro Tobias Barreto, no cenário filosófico do século XIX, ao se deparar com a ideia de relatividade de John Stuart Mill. Entretanto, tal ideia de relatividade não é a mesma defendida por Kant, o qual, preocupado em fundamentar a possibilidade metafísica de ampliação dos nossos conhecimentos, a entende como um princípio, onde, contrariamente ao que se supõe numa fase pré-científica, o objeto de conhecimento não vem da experiência, e sim da razão, no sentido da possibilidade a priori desse objeto. Em outras palavras, “só conhecemos a priori das coisas o que nós mesmos nelas pomos” (KANT, Crp, BXVIII).

Essa ideia de relatividade, cujo fundamento é a consciência de si como razão pura, envolve a distinção entre fenômeno e coisa em si. Para Kant, só conhecemos as coisas enquanto fenômenos, mas não essas mesmas coisas consideradas em si. Isto quer dizer: segundo o método matemático-experimental, aplicado desde o século XVII pelos físicos modernos, todo o conhecimento supõe a possibilidade a priori de uma coisa e sua verificação ou prova na experiência, de modo que essa mesma coisa considerada em si pode ser pensada, mas não conhecida, permanecendo absolutamente incognoscível.

No Brasil, a investigação acerca da relatividade enquanto princípio foi efetivamente iniciada pelo sergipano Tobias Barreto, com seu texto Relatividade de Todo Conhecimento, de 1885 (Disponível em: http://textosdefilosofiabrasileira.blogspot.com/2008/06/relatividade-de-todo-conhecimento.html). A preocupação de Tobias Barreto em relação ao problema deve-se à crise estética desencadeada por Sílvio Romero em sua crítica do chamado romantismo oficial no Brasil (A Poesia de Hoje, de 1878; disponível em: http://textosdefilosofiabrasileira.blogspot.com/2010/04/poesia-de-hoje.html), a saber: contrariamente ao idealismo romântico, que supunha o valor de beleza das coisas como sendo absoluto, Sílvio Romero afirma que o belo é relativo.

Tobias Barreto tomou a si a responsabilidade de esclarecer o sentido dessa relatividade, deixando clara a necessidade de estudo da questão a partir do pensamento de Kant. Neste sentido, o problema que nos propomos pesquisar consiste em responder à seguinte questão: qual é a interpretação, na filosofia brasileira do século XIX, da ideia de relatividade do conhecimento enquanto princípio?


1. Relatividade do saber em Kant
Partimos da hipótese de que o princípio da relatividade enunciado por Kant representa, na filosofia ocidental, a consolidação do Cogito cartesiano, em função do qual o homem se vê como sujeito e objeto de conhecimento. “Sujeito de conhecimento”, no sentido de que “a razão [...] deve ir ao encontro da natureza, é certo, mas não na qualidade de aluno que aceita tudo o que o mestre afirma, antes na de juiz” (KANT, Crp, BXIII) que nada admite que não seja necessariamente verdadeiro, a começar pelo conhecimento de si mesmo como sendo “um espírito, um entendimento ou uma razão” (DESCARTES, 1962, p. 102). “Objeto de conhecimento”, no sentido de que a própria existência enquanto objeto dos sentidos se funda nessa consciência de si como espírito.

Por outro lado, entendemos também, como hipótese, que o autor da Crítica da razão pura resolveu a ambiguidade contida na proposição cartesiana Cogito, ergo sum. Tal ambiguidade, concernente ao verbo latino esse quanto à possibilidade de referência tanto à essência, quanto à existência da mesma coisa, foi solucionada mediante a introdução de dois modos de se ver o mesmo objeto: como fenômeno, isto é, como objeto dos sentidos, existente, que se conhece na experiência, e como coisa em si, ou seja, como objeto apenas pensado, possível a priori, mas que não se conhece como existente.

Considerando-se a distinção de uma mesma coisa como fenômeno e coisa em si, a ideia de que o conhecimento é relativo ao sujeito pode ser compreendida a partir de dois pontos de vista: (i) como fundamento do saber científico, numa dimensão epistemológica, configurando a chamada mudança de método na maneira de pensar, ou “revolução copernicana na filosofia”, onde “só conhecemos a priori das coisas o que nós mesmos nelas pomos”, e (ii) como fundamento da metafísica tradicional, através do incondicionado (o incognoscível), que é uma exigência da razão quando se trata da consideração das coisas em si (Heidegger, 1954).


1.1 dimensão epistemológica
As mudanças ocorridas no século XVII significaram uma profunda transformação no que diz respeito à tradição Escolástica. A Revolução Científica modificou e consolidou as ciências da natureza, e a filosofia, com o Cogito cartesiano, entrou na sua época moderna. Entrementes, torna-se necessário esclarecer que mudanças foram essas que proporcionaram às ciências da natureza e à filosofia superar o período anterior.

A Escolástica caracterizava-se por uma visão de mundo predominantemente religiosa, onde o único objetivo do homem, no mundo, era alcançar a sua salvação. O universo nada mais era do que um lugar de expiação, e a natureza apenas objeto de contemplação do homem frente a sua perfeição divina. Mesmo subordinadas a esta visão de mundo teológica, as universidades medievais lutavam, constantemente, contra esta hegemonia, visando direcioná-las para um desenvolvimento científico.

A influência da Antiguidade nesta tradição resume-se, basicamente, à figura de Aristóteles, considerado, à época, “o filósofo”. Os estudos das obras deste autor, através dos seus diversos comentadores e críticos são, constituintes de toda a tradição escolástica. Entretanto, é importante ressaltar que o Aristóteles que se conhecia e se estudava não era o Aristóteles da Antiguidade, da tradição grega, mas o Aristoteles Latinus, conhecido a partir das traduções feitas para o latim de suas obras (CERQUEIRA, 2000). Essa distinção — entre um Aristóteles grego e outro latino — se faz necessária por se tratar de duas tradições diferentes, separadas pelo tempo, pela cultura, e principalmente, pelo cristianismo da Idade Média, em oposição ao paganismo da Antiguidade.

Com a influência de Aristóteles, tornava-se clara uma outra concepção de mundo, que não era a cristã, mas a grega. Assim, como os homens de saber eram clérigos na sua maioria, não estavam de acordo em muitos pontos com esta tradição. Tais divergências provocaram muitas reações, por parte da Igreja, contra alguns dos escritos deste filósofo, que foram proibidos, dentre eles a Metafísica, e até mesmo a Física.

Decorre desta postura o conhecimento e o estudo de Aristóteles via comentadores cristãos, em grande parte, como Santo Tomás de Aquino. Contudo, tais proibições não impediram a consolidação e o desenvolvimento do aristotelismo na Universidade de Paris, ganhando apoio mais tarde até da própria Igreja. Neste contexto, o ensino de filosofia nas universidades era chamado de Artes e tinha uma tendência globalizante, agrupando os estudos aristotélicos de lógica, matemática, física, ética, botânica e metafísica. A filosofia, entretanto, estava a serviço da teologia.

Dentro deste quadro, o modelo de explicação dos fenômenos da natureza utilizado na Escolástica também era baseado em Aristóteles. Para “o filósofo”, toda e qualquer explicação acerca do mundo podia ser entendida a partir de quatro causas: material, eficiente, formal e final, podendo reduzir-se, unicamente, à causa formal. É importante ressaltar que, mesmo no século XVII, em plena “revolução científica”, ainda havia resquícios desta tradição, como no caso do personagem-médico de Molière, que explica a sedação provocada pelo uso do ópio em função de uma virtus dormitiva, motivo de piada, já naquela época.

Na tradição do aristotelismo escolástico, era através das disputas[2] retóricas, do embate de ideias, que se confirmava ou se refutava qualquer proposição. Apesar de a experimentação já ser conhecida, não era adotada como método. Somente em casos raros e isolados se recorria a ela, quando os argumentos retóricos não eram suficientes.

Entretanto, o aristotelismo que se propagou, através da utilização das doutrinas aristotélicas, foi responsável pela fomentação de uma efervescência cultural e pelo ressurgimento do interesse científico, lançando as bases da Revolução Científica que ocorreria no século XVII. A importância dos textos científicos de Aristóteles pode ser notada através da sua influência, por exemplo, sobre Coiter, Fabricius e Harvey, que adotaram os textos aristotélicos como guia de seus estudos em embriologia, bem como através da influência da Física nos estudos do espanhol Domingo de Soto, que, baseado no livro do Estagirita, propôs, pela primeira vez, que um corpo, em queda, teria uma aceleração uniforme, sendo considerado, por este feito, precursor de Galileu (HALL, 1988, p. 60 e 117).

A partir do Renascimento, uma mudança cultural começa a surgir: novas traduções do grego aparecem, e autores esquecidos, como Platão, retornam à cena. A leitura direta dos textos antigos torna-se fundamental, e a influência de Platão chama a atenção para a matemática. Ao mesmo tempo, a universidade medieval passa por grandes transformações, mediante o advento da imprensa, que proporcionou um acesso mais fácil à educação, e a introdução dos chamados colégios, de acordo com os modelos de Oxford e Paris. Diferentemente da universidade da Idade Média, cujo ensino tinha por objetivo uma formação mais geral, a universidade da Renascença direciona-se tendo em vista a profissionalização e o desenvolvimento científico, preocupando-se com a especialização e com a investigação.

Com a Renascença, impõe-se uma nova atitude em relação à natureza. Esta deixa de ser entendida de maneira contemplativa, como na Escolástica, onde o divino harmoniza a existência, e passa a ser compreendida no âmbito de leis universais, por meio de uma causalidade mecânica, podendo ser medida e calculada. A matemática ganha importância como uma forma de conhecimento capaz de nos fornecer uma compreensão ordenada e lógica do mundo natural. Ocorre, então, a matematização da natureza, onde o homem torna-se capaz de apreender as leis naturais através da linguagem matemática, no intuito de compreendê-la e de corrigi-la.

Este novo conceito de natureza afirma-se tanto do ponto de vista científico, quanto do ponto de vista filosófico. Na esfera científica, ela é compreendida como a existência das coisas enquanto determinadas por leis universais. Seu conceito filosófico também é alterado, levando-se em consideração o sujeito cognoscente cartesiano, de modo que ela é assimilada como o conjunto de leis universais que determinam a existência dos objetos da experiência.

Com o Cogito cartesiano, afirma-se uma atitude filosófica completamente nova, através de uma mudança interna no sujeito, que agora é consciente de si. Desvinculada da questão religiosa, a filosofia entra na sua era moderna, onde o Cogito fundamenta não só a existência humana, como também todo o saber que se pretende universal. Ao contrário da filosofia Escolástica, que dificilmente debruçava-se sobre a experiência, o princípio de autoconsciência implicou numa consciência crítica frente ao real, uma vez que o homem se reconhece como sujeito e objeto de conhecimento.

No campo da filosofia, como no das ciências da natureza, também houve um embate de forças entre o tradicionalmente pré-estabelecido e a filosofia moderna que estava por se afirmar, com a crise decorrente da síntese entre a filosofia e a teologia. A consciência crítica advinda do Cogito é questionadora, acredita e apóia o desenvolvimento científico, e antes de tudo, tem fé, mas na razão.

Todavia, é importante salientar que as mudanças ocorridas nas ciências da natureza e na filosofia não significaram, de modo algum, um descaso em relação à renovação aristotélica do século XVI — chamada de aristotelismo português (CERQUEIRA, 2000), mas a sua superação. Esta superação, inclusive, representa o desenvolvimento de alguns estudos já iniciados naquele momento, e que foram consolidados e aperfeiçoados posteriormente (HALL, 1988, p.53-54). Desta maneira, uma ruptura com o passado exclui certos aspectos essenciais à transformação das ciências naturais, o que não quer dizer que não existam grandes diferenças entre o período escolástico e o que se seguiu a ele (KUHN, 1989, p. 79 e 87).

Estas mudanças culminaram com uma verdadeira revolução, em especial, nas ciências da natureza, proporcionando a afirmação do conceito moderno de ciência, que elimina o que é espiritual do seu objeto de estudo e passa a dedicar-se mais à realidade que nos cerca. O a priori torna-se condição de conhecimento, de tal modo que as hipóteses são submetidas à experimentação, podendo ser confirmadas ou refutadas. Predominam os argumentos matemáticos, que nos permitem medir e calcular aspectos da natureza na forma de leis, em detrimento dos argumentos retóricos, típicos da Escolástica. Assim, o saber científico que se adquire torna-se um somatório de conhecimento teórico, aliado ao conhecimento prático, na experiência.

Nesse contexto, o que se convencionou chamar de revolução copernicana na filosofia foi justamente a mudança de método, pela qual as ciências passaram neste período, e que lhes conferiu o status de ciências seguras. Essa mudança de método implicou na sua formalização, da mesma maneira como já ocorrera na lógica, desde Aristóteles.

A lógica, representando uma ciência segura, tem por função examinar as condições de verdade e a consistência do pensamento consigo mesmo, abstraindo, para isso, a relação com os objetos. Esse abstrair a relação com os objetos significa o distanciamento da experiência, o a priori, no qual toda experiência se fundamenta, e que é condição para o conhecimento científico.

O que já se dava no campo da lógica, só passou a acontecer com as ciências, em especial com a física, a partir de Copérnico. Visando uma melhor explicação sobre os corpos celestes, ele inverteu, por assim dizer, o sistema geocêntrico de Ptolomeu. A grande novidade desta postura refere-se à mudança de método na maneira de pensar, o que inspirou a revolução filosófica, assim expressa por Kant:

“Trata-se aqui de uma semelhança com a primeira idéia de Copérnico; não podendo prosseguir na explicação dos movimentos celestes enquanto admitia que toda a multidão de estrelas se movia em torno do espectador, tentou se não daria melhor resultado fazer girar o espectador e deixar os astros imóveis. Ora, na metafísica, pode-se tentar o mesmo, no que diz respeito à intuição dos objetos. Se a intuição tivesse de se guiar pela natureza dos objetos, não vejo como deles se poderia conhecer algo a priori; se, pelo contrário, o objeto (enquanto objeto dos sentidos), se guiar pela natureza da nossa faculdade de intuição, posso perfeitamente representar essa possibilidade” (KANT, Crp, BXVII).

Dessa forma, a física só passou a ser considerada propriamente uma ciência depois que os físicos adotaram esta atitude com relação aos seus objetos de estudo, invertendo a relação entre o sujeito e o objeto de conhecimento: o objeto deixa de ser considerado como um absoluto e passa a ser considerado como tendo a sua origem no próprio sujeito cognoscente. Essa revolução metodológica vai caracterizar, a partir de então, o saber científico. Os objetos de conhecimento da física passaram a ser regulados pela razão, ao invés de ser ela, a razão, guiada pelos objetos, possibilitando um conhecimento a priori nesta ciência. A partir do século XVII, o que se caracteriza como ciência leva em conta o elemento a priori, que é o que na ciência há de razão.

Com o método matemático-experimental, o elemento universal torna-se a condição mínima para o saber científico, que adquire um novo significado. A fundamentação da experiência, através do a priori, afirma-se como essencial, onde a razão afasta-se, provisoriamente, desta, voltando-se sobre si mesma, para depois retornar a ela, fundamentando-a. É pelo a priori, pois, que se estabelece um saber científico, voltado sobre procedimentos objetivos e em vista de leis universais.

Baseado na mudança de método pela qual as ciências passaram, o que representou a sua formalização, mediante o a priori, implicando na possibilidade de um conhecimento verdadeiramente científico, Kant ocupa-se por esclarecer como é possível um conhecimento a priori na metafísica, de maneira a formalizá-la como ciência. Por analogia à mudança de método implementada por Copérnico no que concerne ao sistema solar, passa a aplicar o método matemático-experimental no tocante às nossas intuições sensíveis, que, de um ponto de vista gradativo, é o nosso conhecimento mais primário.

Kant refuta a dependência das nossas intuições com relação aos objetos de conhecimento, justificando que desta forma não se poderia conhecê-los a priori. O que ele afirma é exatamente o contrário, que se o objeto for guiado pela nossa faculdade de intuição, a possibilidade de um conhecimento a priori torna-se mais plausível. Porém, como as intuições não são conhecimento propriamente dito, pois são dadas na sensibilidade, ainda não houve a determinação do objeto. Tornam-se necessários, então, os conceitos — a determinação do objeto mediante o processo de abstração. O problema continuaria se Kant pensasse que os conceitos são regulados pelos objetos, entretanto, sua posição é de que os objetos são regulados pelos conceitos, pela razão.

Provada a necessidade de um conhecimento a priori, utilizando-se o método matemático-experimental, no qual os objetos de conhecimento vêm da razão, Kant conclui que “só conhecemos a priori das coisas o que nós mesmos nela pomos” (KANT, Crp, XVIII). Esta afirmação representa o sentido mais forte e a novidade da revolução copernicana na filosofia, pois sintetiza a mudança que o método matemático-experimental impôs, onde a postura filosófica tradicional, na qual o sujeito se adapta ao objeto de conhecimento é abandonada, posto que aquilo que a razão humana põe nas coisas, são leis, conceitos, que conhecemos pelo seu uso teórico.

Nosso conhecimento, então, passa a ocupar-se menos dos objetos, que do nosso modo de os conhecer, na medida em que este deve ser possível a priori. Isto significa que a experiência nos dá apenas o conteúdo do saber, mas quem determina a síntese dos dados sensíveis é o sujeito de conhecimento, mediante o a priori, que estabelece, objetivamente, a relação entre o sujeito pensante e o fenômeno, possibilitando toda e qualquer experiência.

No entanto, cabe ressaltar que o conhecimento a priori é aplicado aos fenômenos da experiência, o que implica afirmar que só conhecemos fenômenos, e que a experiência constitui-se como o limite do conhecimento humano. Neste contexto, coloca-se a questão: como é possível fundamentar a metafísica como ciência, cujo propósito é o de ultrapassar o mundo fenomênico, se o conhecimento humano se limita apenas à experiência?


1.2 dimensão metafísica
A denominada revolução copernicana na filosofia significou uma mudança de método. Da mesma forma que a aplicação do método matemático-experimental nas ciências proporcionou a sua formalização, Kant aplica este mesmo método no que diz respeito à metafísica. Com o objetivo de se ultrapassar os limites da experiência, baseia-se apenas num conhecimento a priori, de modo que a metafísica possa ser considerada uma ciência.

Todavia, é necessário esclarecer, no âmbito da história da filosofia, a origem do termo metafísica, um conceito que, devido a interpretações equivocadas, tornou-se dogmático, sendo alvo da crítica kantiana. Inicialmente, designou-se metafísica o conjunto de livros de Aristóteles posteriores à Física. Devido à dificuldade de compreensão do conteúdo daquilo que o próprio Aristóteles chamou de “filosofia primeira”, bem como da dificuldade em se identificar os temas tratados pela metafísica, este conceito virou alvo de confusão no que concerne a sua definição.

O conceito de metafísica, apesar de parecer dual à primeira vista, posto que significa o conhecimento do ser enquanto tal, como também o conhecimento do ser em geral, na sua totalidade, é, contudo, um conceito uno, remetendo-nos a uma concepção de totalidade da existência envolvendo no presente tanto o passado quanto o futuro.

Em função da incompreensão acerca da sua problemática original, a metafísica tornou-se dogmática, imprecisa e obscura, devido a dois motivos capitais. Um dos principais equívocos que contribuíram para o dogmatismo metafísico consiste na relação que se estabeleceu entre a metafísica e o sobrenatural, pautada numa visão cristã do mundo, e relacionada à teologia, característica da Escolástica. Outro problema que persiste diz respeito ao método utilizado pela metafísica. Como ela consiste numa “filosofia primeira”, como expressara Aristóteles, posto que trata do ser, visando ultrapassar toda a experiência possível, fez-se necessário um método suficientemente rigoroso que pudesse validá-la em seus objetivos.

O método matemático foi considerado o mais adequado, no intuito de dar clareza e rigor à metafísica, uma vez que o conhecimento inerente a este método, além de ser estritamente racional, independe da experiência. Neste contexto, é importante ressaltar que, na época moderna, apesar de nenhum filósofo, antes de Kant, ter-se dedicado exclusivamente à questão da metafísica, não se pode deixar de admitir a existência de uma preocupação de cunho metafísico em filósofos como Locke e Espinosa. Estes antecedentes se fazem notar na obra kantiana no que concerne, por exemplo, aos conceitos de coisa em si e fenômeno, conceitos estes derivados do pensamento de Locke, e também no que se refere à influência de Espinosa quanto à ideia de um ens a se.

Kant, ao adotar o método matemático como critério de rigor e clareza na afirmação da metafísica como ciência, não se engana quanto ao dogmatismo presente neste método. Propõe, assim, a sua fundamentação, no intuito de torná-la uma ciência, livre de todo e qualquer dogma.

No entanto, para que a metafísica possa se fundamentar como ciência, é necessário que se estabeleça uma crítica da razão pura, dos limites dessa razão, levando-se em consideração sua utilidade, que tanto é negativa, quanto positiva. Ela é negativa, enquanto impedimento para se ultrapassar os limites da experiência, posto que nada se conhece para além desta. E positiva, à medida que representa uma limitação do uso da razão teórica, permitindo, então, que a razão prática (que tem uma conotação moral) não seja anulada, como bem observa Kant:

“uma crítica que limita a razão especulativa é, como tal, negativa, mas na medida em que anula um obstáculo que restringe ou mesmo ameaça aniquilar o uso prático da razão, é de fato de uma utilidade positiva e altamente importante” (KANT, Crp, BXXV).

Em se tratando de metafísica, cujo objetivo é ultrapassar os limites da experiência possível, já foi provado, pelo método matemático-experimental, a possibilidade de um conhecimento a priori, desprendido da experiência. No entanto, diferentemente da física, por exemplo, que pode submeter à experimentação seus objetos, a metafísica desta forma não pode proceder. Para resolver tal questão, os objetos da metafísica passam a ser encarados a partir de dois pontos de vista: como objetos dos sentidos na experiência, ou seja, como fenômeno, e como objetos que são apenas pensados, como coisas em si.

Apesar desta dupla visão do objeto, não há dualidade entre fenômeno e coisa em si, apenas uma tensão dialética, exigência da razão com relação aos objetos. Essa distinção funda a metafísica moderna, que Kant pretende converter em ciência, suprimindo, definitivamente, a visão anterior de metafísica, pautada num sentido de revelação sobrenatural e sustentada pelo dogmatismo, seja ele religioso ou da razão.

Neste contexto, torna-se fundamental esclarecer o conceito de fenômeno, desde a sua origem etimológica. ). Originariamente, a palavra fenômeno significa trazer à luz, fazer aparecer, revelar, mostrar-se, brilhar intensamente. Num sentido estrito, o fenômeno ou aparência, em sendo algo que aparece para um sujeito no espaço, impressionando nossa sensibilidade, está fora de nós, e, uma vez fora de nós, é matéria, é corpo. Refere-se, portanto, ao “objeto indeterminado de uma intuição empírica” (KANT, Crp, A20; B34), que aparece no espaço, para um sujeito que, por seu turno, é capaz de percebê-lo. No dizer kantiano, “chamam-se fenômenos as manifestações sensíveis na medida em que são pensadas como objetos, segundo a unidade das categorias” (KANT, Crp, A249).

As categorias às quais se refere Kant são “conceitos puros do entendimento”, podendo ser classificadas em quatro classes: categorias de quantidade (unidade, pluralidade e totalidade), de qualidade (realidade, negação e limitação), as de relação (substância e acidente, causalidade e dependência, comunidade e reciprocidade) e as categorias de modalidade (possibilidade e impossibilidade, existência e não-existência, necessidade e contingência).

Já num sentido mais amplo, também utilizado por Kant, o fenômeno implica não só a intuição dos objetos exteriores, como inclusive a intuição que o espírito tem de si próprio, à medida que os objetos são considerados como realmente dados, constituindo-se sempre como objetos da experiência possível. Isto quer dizer que, nesta acepção, os conceitos de fenômeno e ente equivalem-se, possuindo o mesmo sentido.

A partir dessa dupla distinção do objeto como fenômeno e coisa em si, Kant afirma que nós só podemos conhecer as coisas como fenômenos, uma vez que se o conhecimento se referisse à coisa em si, e não a fenômenos, não seria possível o conhecimento a priori, pois a nossa intuição estaria sendo guiada pelo objeto. O que Kant pretende mostrar é justamente o contrário, isto é, que o conhecimento ôntico dos objetos só é possível mediante o conhecimento ontológico dos mesmos objetos. Os objetos, então, é que têm de adaptar-se ao conhecimento ontológico, posto que sem ele, o conhecimento ôntico não tem como sustentar-se. O que se caracteriza como fenômeno, pois, já presume que a nossa intuição não se guia pela natureza do objeto, porque desta forma não haveria a possibilidade de um conhecimento a priori.

Enquanto coisa em si, o objeto é independente do sujeito, não se relacionando nem com a inteligência, nem com a vontade. Deste modo, pode-se afirmar que nós não conhecemos as coisas em si, mas não por uma questão de insuficiência do saber, mas porque a coisa em si não se reduz à consciência, nem a consciência se reduz ao objeto enquanto dado. Inacessíveis à intuição sensível, as coisas em si tornam-se inacessíveis também ao conhecimento humano, acabando por delimitá-lo, pois este se restringe apenas ao âmbito dos fenômenos.

A incognoscibilidade das coisas em si fica clara quando Kant afirma que a coisa em si pode ser chamada de “o algo x do qual nada sabemos nem, em geral [...] nada podemos saber” (KANT, Crp, A250). Neste âmbito, cabe ressaltar que o conceito de coisa em si é confuso e muitas vezes obscuro, como se verifica no próprio uso das expressões “coisa em si” e “númeno”, quando significando o mesmo. Esta confusão também se evidencia na própria afirmação kantiana de que a coisa em si corresponde a “um pensamento completamente indeterminado de algo em geral” (KANT, Crp, A253).

As coisas em si podem apenas ser pensadas, e por isso, são condição de possibilidade do fenômeno, são reais, porém, não existentes (a condição mínima de realidade das coisas é poder ser pensada, podendo, a isso, corresponder um objeto ou não) [3]. A necessidade das coisas em si, enquanto condição de possibilidade do fenômeno, fica evidente nesta afirmação:

“se os sentidos apenas representam algo como aparece, esse algo deve contudo também ser, em si mesmo, uma coisa e um objeto de uma intuição não sensível, isto é, do entendimento, ou seja, deve ser possível um conhecimento onde não se encontre sensibilidade alguma e que tem só uma realidade pura e simplesmente objetiva, pela qual nos são representados objetos como são, enquanto no uso empírico do nosso entendimento apenas são conhecidas as coisas como aparecem” (KANT, Crp, A249).

O a priori, mesmo sendo condição de possibilidade do conhecimento, não dá conta de toda realidade, porque supõe o que a razão humana põe nas coisas. Há que se pressupor que, em determinado momento, há algo nas coisas que nos escapa à inteligência e à vontade. Na determinação de um objeto, pelo processo de abstração, há sempre algo que nos permanece incognoscível, estranho e indeterminado: a coisa em si, o incondicionado, que se refere aos objetos não como os conhecemos como fenômenos, mas como não os conhecemos como coisas em si.

É através do incondicionado que o método das ciências, matemático-experimental, é aplicado à metafísica, no intuito de fundamentá-la. Esta fundamentação da metafísica, por fugir ao dogmatismo da razão, não nos fornece nenhum princípio capital, mas nos leva, todo o tempo, a investigar o desconhecido, o incondicionado, o mistério. O incondicionado, que é exigido nas coisas em si pela razão, nos leva a ultrapassar os limites da experiência, e, em função disso, justifica a própria metafísica. Nas palavras de Kant:

“Com efeito, o que nos leva necessariamente a transpor os limites da experiência e de todos os fenômenos é o incondicionado, que a razão exige necessariamente e com plena legitimidade nas coisas em si, para tudo o que é condicionado, a fim de acabar, assim, a série de condições” (KANT, Crp, BXX).

Nesse momento, quando Kant já colocou a possibilidade de se ultrapassar os limites da experiência pelo incondicionado, é que entra em pauta a dialética, que, no caso, tem o papel de unir o conhecimento das coisas, dividido pela metafísica, e baseado no método matemático-experimental, em fenômeno e coisa em si. Dialeticamente, não há cisão entre fenômeno e coisa em si, uma vez que a união de ambas as coisas se dá pelo incondicionado.

Assim, é na fundamentação da metafísica, proposta por Kant, que se encontra a essência do princípio de relatividade, onde, ao mesmo tempo em que o autor deixa claro o caráter de limitação do conhecimento humano, nos deixa uma abertura para além dos domínios da experiência, através do incondicionado.

Desta forma, o incondicionado kantiano, o incognoscível, que diz respeito à coisa em si, como fruto da fundamentação da metafísica, está relacionado ao elemento de inverdade proposto por Tobias Barreto, enquanto ponto comum e fundamental do princípio de relatividade do conhecimento.


2. Recepção do sentido da relatividade do saber em Tobias Barreto
No Brasil, a primeira preocupação de Tobias Barreto quanto à questão da relatividade foi distingui-la do relativismo. Referindo-se a uma má interpretação do princípio da relatividade dos conhecimentos humanos, o mestre da Escola de Direito do Recife observa que, segundo John Stuart Mill, “essa relatividade consiste no fato de que nós só podemos conhecer as nossas próprias afecções e nossos estados íntimos” (BARRETO, 1990, p. 290; disponível em: http://textosdefilosofiabrasileira.blogspot.com/2008/06/relatividade-de-todo-conhecimento.html). O filósofo brasileiro busca ressaltar uma compreensão da relatividade do conhecimento como limitação, mediante as ideias de “inverdade” e de “imperfeita validade objetiva”, inerentes ao conhecimento humano, desde o cogito cartesiano à crítica da razão em Kant. Com isso, impõe-se, como em Kant, a necessidade do incognoscível, como um fator essencial ao princípio de relatividade, posto que implica numa abertura para o supra-sensível, escapando à condicionalidade da experiência.


2.1 relatividade e relativismo
A doutrina de Mill rejeita o caráter absoluto e universal da verdade. Mas nela, o sujeito pressuposto teria um caráter psicológico, diferentemente do sujeito transcendental advindo da consciência de si como razão universal. Isto se evidencia na afirmação:

“todos os atributos que assinalamos aos objetos consistem em que eles têm o poder de excitar tal ou tal variedade de sensação em nosso espírito; que para nós as propriedades de um objeto têm esta significação e nenhuma outra; que um objeto não é para nós nada mais do que o que afeta nossos sentidos de uma maneira; que somos incapazes de ligar à palavra objeto outro sentido; que um objeto imaginário é uma concepção, tal como poderíamos formá-la de qualquer coisa que afetasse nossos sentidos de uma maneira nova; de sorte que nosso conhecimento dos objetos, e mesmo nossas ficções sobre objetos não se compõem senão das sensações que excitam, ou que imaginamos que excitariam em nós” (MILL, 1869, p. 6-7).

Sua doutrina, que remontaria à de Protágoras (“O homem é a medida de todas as coisas”), acabaria, desse modo, por cair numa contradição interna, pois, se toda a verdade se reduzisse à certeza referente aos estados psíquicos de cada indivíduo, toda a verdade passaria a ter um caráter absoluto. Contra essa interpretação da ideia de relatividade do conhecimento se opôs Tobias Barreto:

“Mas isto envolve um engano. Com a relatividade do saber admite-se um elemento de inverdade, de imperfeita validade objetiva. Afirmar que os nossos conhecimentos são relativos só tem sentido sob o pressuposto de que as coisas em si não são tais, quais são para nós, e que só podemo-las conhecer tais quais elas nos aparecem” (BARRETO, 1990, p. 290).

Para Tobias, a relatividade expressa o caráter de limitação dos nossos conhecimentos. Estes são condicionados pelas faculdades que os realizam, à medida que só conhecemos o que a razão humana põe nas coisas. Isto pressupõe um sujeito que é de conhecimento, consciente de si, em oposição ao sujeito psicológico do relativismo. Pressupõe também a revolução copernicana na filosofia, enunciada por Kant, e bem compreendida por Tobias, segundo o qual “na essência dos mesmos objetos há alguma coisa que os prende ao sujeito, uma originária adaptação daqueles às leis deste” (BARRETO, 1990, p. 291).

O que Tobias Barreto pretende apontar na questão da relatividade do saber é a inverdade, ou imperfeição na validade objetiva do conhecimento, como fator ontológico da ciência que produzimos. Tal imperfeição ou ignorância subjacente ao ato de conhecer é a condição mesma para o conhecimento, uma vez que sem a consciência dessa ignorância necessária, que caracteriza a “douta ignorância”, sequer se constitui teoricamente um problema a se investigar. Nesse sentido, a inverdade de que fala Tobias Barreto corresponde ao que em Kant é representado pela consideração das coisas em si “que, embora em si mesmas reais, se mantêm para nós incognoscíveis” (KANT, Crp, BXX).


2.2 relatividade como limitação
Assim como em Kant impõe-se a necessidade do incognoscível, impõe-se também em Tobias Barreto a inverdade como elemento condicionante e incondicionado do ato de conhecer, gerando uma abertura para toda a investigação de caráter metafísico, no mesmo sentido em que “o que nos leva necessariamente a transpor os limites da experiência e de todos os fenômenos é o incondicionado, que a razão exige necessariamente e com plena legitimidade nas coisas em si” (KANT, Crp, BXX).

Quando Tobias Barreto afirma que “Todos os nossos conhecimentos são limitados” (BARRETO, 1990, p. 291, isto quer dizer: todo o conhecimento é condicionado ao que não que não sabemos, sendo esta “douta ignorância”, enquanto fator condicionante das perguntas, das questões e dos problemas, o incondicionado. Desta forma, o elemento de inverdade que é o incondicionado deve ser encarado como motivador de conhecimento, pois se não se admite o não saber, a ignorância, inerentes ao sujeito que conhece, não há investigação científica, porque o espírito da pesquisa está diretamente ligado à inverdade.

Nesse admitir a ignorância revela-se o movimento dialético, entre saber e não-saber, essencial ao processo do conhecimento. Como princípio do saber, o método dialético, ao mesmo tempo em que nos permite atentar para a diferença, tornando evidente a limitação do conhecimento humano, também o impulsiona, pois é o mistério, é a consciência do não-saber que nos move em direção ao conhecer, partindo-se sempre da luz do que se sabe em direção às trevas do não-saber. Embora não haja verdades absolutas, o que fica, o que permanece, é a possibilidade de se ver mais, a partir das trevas, guiado pela luz interna da razão. Neste sentido, o incondicionado é o que possibilita este movimento dialético, que vem para acabar com o fim das condições, tornando possível a cognoscibilidade das coisas.

Em função disso, há que se admitir que não é possível apreender plenamente a realidade das coisas mediante o método experimental da “ciência da natureza”, caracterizado pela explicação mecânica, porque, segundo Tobias Barreto, em Glosas Heterodoxas (Parte III), “há sempre um resto mecanicamente inexplicável” (BARRETO, 1990, p. 300; disponível em: http://textosdefilosofiabrasileira.blogspot.com/2012/07/glosas-heterodoxas-um-dos-motes-do-dia_26.html), que é incognoscível. Entendido como como elemento de inverdade, como mistério, o incognoscível é o que nos escapa ao conhecimento: é o absoluto.


2.3 necessidade do incognoscível
Pensando a natureza para além do âmbito dos fenômenos, de modo a incluir, à semelhança da physis grega, o que escapa ao método experimental da “ciência da natureza”, tem-se um conceito metafísico de natureza, para além de sua compreensão física, que Tobias Barreto enuncia, em seu artigo Sobre uma Nova Intuição do Direito (Parte VI), como “o estado originário das coisas, o estado em que elas se acham depois do seu nascimento, enquanto uma força estranha, a força espiritual do homem, como a sua inteligência e a sua vontade, não influi sobre elas, e não as modifica — esse estado se designa pelo nome geral de natureza”. (BARRETO, 1990, p. 247; disponível em: http://textosdefilosofiabrasileira.blogspot.com/2009/05/sobre-uma-nova-intuicao-do-direito-1881.html).

Nesse sentido, a natureza, uma vez independente de nossa inteligência e vontade, é condicionante e incondicionada, determinando a existência das coisas enquanto fenômenos.

Esse determinismo da natureza, entrementes, pressupõe leis universais. O homem é capaz de apreendê-las racionalmente, explicando os fenômenos numa linguagem formal, matemática, segundo uma causalidade mecânica, donde se conclui que no mundo físico das “leis da natureza” não há liberdade, só mecanismo.

Contrariamente ao mecanismo absoluto desse mundo das leis da natureza, Tobias Barreto introduz a noção de mundo da cultura, inteiramente relativa à inteligência e à vontade humanas, no qual há sentimentos, emoções, crenças e, sobretudo, valores; mundo esse que é propriamente o que se denomina cultura. Nas palavras de Tobias Barreto, “A cultura é, pois, a antítese da natureza, no tanto quanto ela importa uma mudança do natural, no intuito de fazê-lo belo e bom” (BARRETO, 1990, p. 247).

Em contrapartida, Tobias insere a noção de cultura como sendo o mundo dos fenômenos, no qual há valores, leis (e onde é fundamental o conhecimento a priori dessas leis), onde as coisas são passíveis de conhecimento e relativas. Nas palavras de Tobias Barreto, em Glosas Heterodoxas (Parte IV), “o processo da cultura geral deve consistir precisamente em gastar, em desbastar, por assim dizer, o homem da natureza, adaptando-o à sociedade” (BARRETO, 1990, p. 306; disponível em: http://textosdefilosofiabrasileira.blogspot.com/2012/07/glosas-heterodoxas-um-dos-motes-do-dia_26.html), fugindo, então, ao seu determinismo.

Dessa maneira, é através do incondicionado, da coisa em si, que se revela a liberdade, no sentido de que o mistério é condicionador de problema, consequência da liberdade de espírito característica do saber científico. Sendo assim, a liberdade justifica a ideia de se ultrapassar os limites da experiência. A liberdade, para Tobias Barreto, é, pois, o modo pelo qual se conciliam natureza (coisa em si) e cultura (fenômeno), o que implica na superação do determinismo imposto por essa natureza. E o que garante essa liberdade é exatamente o incondicionado, na visão da coisa em si.


Conclusão
A crise estética brasileira, desencadeada pela crítica de Sílvio Romero ao romantismo oficial, teve a suma importância de anteceder o sentido da filosofia como autoconsciência crítica, cuja consolidação se dá, no Brasil, através da interpretação do princípio de relatividade kantiano por Tobias Barreto.

A ideia de relatividade defendida por Tobias representa, mais que tudo, a ideia de uma filosofia brasileira, ou seja, representa a ideia de uma filosofia que esteja inserida no contexto de nossa emancipação cultural.

Por outro lado, a consolidação do Cogito também implicou numa abertura com relação à filosofia ocidental, que é a base para a discussão de problemas universais dentro do âmbito de nossa cultura.

Se a crise estética possibilitou a construção de uma tradição cultural, ou seja, de uma identidade cultural brasileira, evidencia-se a necessidade, mais do que urgente, de que no Brasil se construa uma identidade filosófica. Longe de qualquer pretensão de cunho nacionalista, a necessidade de uma identidade filosófica visa dar forma aos aspectos gerais do ser e do sentido, mediante um diálogo prospectivo com a cultura de nosso país, de modo a nos permitir dizer palavras próprias e novas, cujos significados sejam, ao mesmo tempo, universais e particulares.


Notas
[1] A sentença inteira diz: “O homem é a medida de todas as coisas, das coisas que são o que são, e das coisas que não são o que não são” (Guthrie, 1971, 183).

[2] Segundo o Prof. Cerqueira: “No ensino de origem escolástica, a disputa (disputatio) surgiu como uma ampliação da questão (quaestio) e da leitura ou lição (lectio). Em função das dificuldades geradas pelo ensino escolar com base na leitura, surgiu a meditação (meditatio) no intuito de esclarecer dúvidas de interpretação. Daí vieram as glosas sob a forma de anotações interpostas e marginais feitas pelo próprio leitor. Da glosa resultou a exposição (expositio) enquanto o recurso a frases ou sentenças como chave de explicação do texto original. Como freqüentemente um texto filosófico se presta a diferentes interpretações, oferecendo então sentenças contrapostas, surgiu a questão como um gênero independente de problema teórico a resolver. Na discussão oral ou escrita de uma questão, a disputa se estabelecia entre alguém que defendia uma afirmação ou tese e outro que a impugnava, de modo que, à exceção das disputas entre os “dialéticos”, em geral procurava-se negar a tese contrária” (Cerqueira, 2002: 220).

[3] Não se pode deixar de chamar a atenção para a polêmica acerca do termo númeno, empregado pelo autor, algumas vezes, como algo distinto do conceito da coisa-em-si, e outras vezes como conceitos equivalentes, polêmica esta com a qual não iremos ocupar-nos.


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