quinta-feira, 31 de maio de 2012

Uma interpretação do sensível

Vicente Ferreira da Silva

 Nota ao fim do texto.

A sensação foi sempre algo de incômodo para o pensamento, como elemento incorrigível e noturno da mente. Mesmo a filosofia sensualista que pretendia inspirar-se unicamente nas notas sensíveis, o que realmente fazia era ultrapassar prontamente a sensação na percepção, daí construindo os outros momentos da razão. A sorte do processo sensorial foi sempre a de subordinar-se e absorver-se nos processos noéticos superiores ou a de ser eliminado em dialéticas de separação do tipo platônico. De qualquer forma, seja pela sua integração em estratos superiores do conhecimento, seja pela sua expulsão do saber fundado, a sensação foi raramente objeto de uma vontade radical de esclarecimento.

Nas filosofias de tipo eidético-platônico, uma aproximação filosófica do sensível não podia ser proposta a não ser sob a forma de alusões míticas. O devir sensível, confundindo-se com o não-ser, com a privação infinita, com a matriz passível de todas as formas, não manifestando entretanto nenhuma forma própria, escapava a qualquer categoria do conhecimento.

Encontramos, por outro lado, nas filosofias que não implicam uma separação entre o sensível e o eidético, mas supõem uma permanente elaboração de um pelo outro, a mesma impaciência no concernente à interpretação do sensível enquanto tal e uma decidida relutância na franca abertura do problema. Assim, Kant, depois de dizer, no limiar da Crítica da razão pura, que os objetos nos são dados somente através da sensibilidade, e depois de denominar “matéria” aquilo que corresponde à sensação na apreensão dos objetos, passa imediatamente ao estudo dos processos que ordenam e estratificam o diverso sensorial, dentro de certas formas da razão. Dessa maneira, a estética transcendental torna-se o estudo, não do mundo da sensibilidade, mas de seus princípios a priori: o espaço e o tempo. Desde o início, Kant ultrapassa o campo da experiência imediata, cingindo-se à investigação das condições de possibilidades dessa experiência.

Em nossos dias, deparamos com uma atitude análoga na fenomenologia de Husserl, encontrando o mesmo descaso no que se refere ao fundo hilético da consciência. Husserl, após afirmar que a corrente da consciência possui dois estratos, um material ou hilético e outro noético, observa que os problemas funcionais ou noéticos são mais importantes para a fenomenologia, pois determinam o domínio objetivo da consciência. “Eles [os problemas funcionais] dizem respeito à maneira segundo a qual, por exemplo, em relação à natureza, a noésis, animando e apreendendo o material em multiplicidades unitárias, em sínteses contínuas, traz ao ser a consciência de algo, de forma que através dessa atividade se constitui a unidade objetiva do campo dos objetos...”

Husserl mantém em suas investigações o tradicional dualismo entre o momento sensorial e o momento intencional da consciência, entre a parte receptiva e a parte formativa na constituição da objetividade. Como já foi fartamente observado, o idealismo husserliano é, em essência, um intelectualismo propenso a reduzir todos os modos de ser ao modo de ser do representado, do conhecido. Como veremos subsequentemente, esta característica da fenomenologia impediu uma compreensão adequada da componente sensorial da nossa experiência.

Há algo anterior ao conhecimento, que este não pode compreender. O diverso sensorial, em sua originalidade, não se apresenta como um momento cognitivo, como uma notícia ou informação sobre algo — em que, sem dúvida, depois se transforma –— mas tem mais afinidade e analogia com os processos volitivos, com o desejo, o apetite e a aspiração. Para compreender a relação entre o momento sensorial e a capacidade volitiva podemos nos reportar a Benedetto Croce que nos diz em sua Filosofia da prática ser o homem um microcosmo de volições no qual se reflete todo o cosmo e contra o qual ele reage, “querendo” em todas as direções. Estas palavras poderiam fazer surgir a suspeita de que este cosmo “querido”, e querido em todas as direções, nada mais seria do que o relevo externo, o negativo, a projeção exterior desse âmbito do querer, que é o nosso eu passional.

Se no recinto das estruturas noético-noemáticas não encontramos um lugar para o mundo sensorial, para uma derivação e explicação de sua origem transcendental, e devemos continuar a considerá-lo como um dado inexplicável e uma presença incômoda, isso nos leva a supor que a redução intelectualista do cogito é insuficiente para fundamentar a totalidade da vida da consciência. Há algo irredutível aos problemas próprios da consciência noética. O primeiro encontro com a esfera sensível não se realiza, como pensou Hegel, como “certeza” sensível, como saber do imediato ou do existente, logo ultrapassado pelo próprio movimento de determinação desse sensível. Partindo do sensível, como saber do sensível, muito longe de relacioná-lo com o seu fundamento, de procurar uma interpretação de seu sentido último, imediatamente o abandonamos por outras formas da consciência.

Todas estas concepções da componente sensorial da realidade a concebem como um “dado”, como algo que não é o resultado de uma produção interior da consciência, mas que a consciência encontra como sendo outra coisa, diversa dela mesma. As sínteses perceptivas e unificadoras da consciência, que desenvolvem ao redor de nós o orbe objetivo, elaboram suas produções com um material cuja origem e sentido cai fora de seu campo de elucidação.

Essa irredutibilidade do mundo sensorial à vontade de elucidação filosófica encontrou em Fichte o seu primeiro e grande opositor. Em Fichte desponta pela primeira vez a ideia de uma possível relação do “em si” do momento sensorial com o próprio mecanismo da consciência absoluta, com a esfera do “por si”. O eu, como realidade cerrada em sua própria atividade, deveria produzir o mundo de seus próprios limites e em primeiro lugar o mundo do limite sensorial. Não vamos reproduzir aqui os passos da dedução fichteana do “não eu” porque o que nos interessa é a ideia central e não o formalismo dialético empregado.

Quando descartamos todas as concepções adventícias sobre o mundo sensorial e procuramos nos voltar para a experiência originalíssima e imediata em que ele se nos dá, notamos que a alteridade da sensação é posta pela própria consciência. Descobre-se-nos, então, um cenário sensorial, porque existe em nós um “ir a”, um movimento, um transcender hilético cujo resultado é o desvendar-se da própria sensação. A sensação é a “coisa” produzida por esse transcender, sem que tenhamos consciência desse transcender, mas unicamente da sensação como resultado. Nessa linha de pensamento afirma Schelling: “Do limite não persiste agora, na consciência, mais do que o vestígio de uma absoluta passividade. Pelo fato de que o Eu, no sentir, não se torna consciente do ato, permanece apenas o resultado”. Esta passagem da não-sensação para a sensação pode parecer coisa extravagante e inverossímil. De fato, continuamos a pensar a experiência sensorial, dentro das categorias representativas, como um momento intelectual; no entanto, essa passagem é indevida, pois equivale à passagem do não-fenômeno ao fenômeno. Não é isto, entretanto, que desejamos sugerir com a ideia de um transcender hilético, pois como já afirmamos, não é a partir de um momento intelectual que nos defrontamos com o sistema sensível. Aproximar-nos-emos de uma primeira inteligência da conexão sensorial da consciência se procurarmos entender essa passagem da não-sensação à sensação como falta, carência e desejo em geral. Este momento excêntrico da privação se confundiria com um constante tender e apetecer como impulsividade original. Não se trata aqui de um apetecer particular, de um desejo disto ou daquilo, mas, se assim podemos falar, da condição de possibilidade de todo apetecer ou desejar. O resultado desse momento excêntrico da impulsividade como traço sensível é a própria sensação. Esse colocar fora de nós mesmos do apetite teria como consequência um mostrar-se da sensorialidade como passividade posta pela atividade do apetecer. O meio sensível seria, portanto, forma exteriográfica ou projetada da estrutura a priori da impulsividade. Denominamos transcendência hilética esse movimento inexaurível em sua fonte, que determina o regime sensorial e se põe como condição de possibilidade de todo nosso desejar particular. Esse ato de transcender manifesta-se como o radicar-se ativo do homem no mundo sensorial, de maneira que esses dois momentos do “radicar-se” e do “transcender” são no fundo um só. As sensações nada mais seriam do que a consciência desse atirar-se, desse escapar que continuamente as institui em sua realidade. Ao colocarmo-nos em dependência (como atividade), apareceria o “de que” dessa dependência, como sensação. O mundo da sensorialidade não cairia do céu, não seria um dado enigmático como pensaram muitos, mas seria uma realidade contraída por essa gehemmte Aktivität[1], por essa produção negativa que denominamos o apetecer transcendental. A positividade da realidade sensorial seria uma contínua exposição (um pôr fora) da negatividade, da atividade impulsiva, cada uma se fortificando e se constituindo a expensas da outra. Diz Novalis: “Jene Verstärkung fremder Kraft durch Aufhebung seiner eignen ist Anziehung. Je mehr Negation des einen, desto mehr Position des andern”. (Cada consolidação de uma força estranha através da própria supressão constitui uma atração. Quanto mais uma se nega mais a outra se confirma.) E em outra passagem: “Das aktive is nur soweit aktiv, als es affiziert ist, soweit affiziert, als es aktiv ist”. (O ativo é unicamente ativo na medida em que é afetado e é afetado na medida em que é ativo.)

Ao falarmos numa impulsividade fundamental, referimo-nos evidentemente, não a uma tendência ou impulso circunscrito, já em dependência de um objeto de atração particular, mas à função a priori da apetecibilidade que abre campo às tendências particulares. O desejo particular é possível porque já está posto todo um campo de forças atrativas e criado um teatro próprio de atuação do desejo. Como vimos, entretanto, essas forças atrativas são continuamente suscitadas pelo transcender hilético do sujeito. A substantividade do mundo sensorial, a sua solidez e inapelável realidade é uma substantividade e solidez outorgada, é o resultado de sua contínua produção em nosso ânimo. A contínua tensão passional do nosso eu suscita a profusão sensorial e nos imerge em seu meio indefinido. Quanto mais irresistível for essa tensão, quanto mais “terrestre” for a nossa impulsividade, mais realidade cobra a dimensão sensorial da existência. Sentindo esse transcender como passividade, como um ser determinado e não como um determinar, o sistema sensorial surge como um sistema de “limites”, como a limitação original do homem. Sentimo-nos perdidos na sensorialidade sem ter consciência de nossa conivência original. Essa limitação sensorial só se patenteia como limitante, como bem notou Schelling, para um tender que vai além desse tender apetitivo. “O Eu, portanto, não é sensível se não existe nele uma atividade que ultrapassa o limite. Devido a essa atividade, o Eu deve, para ser sensível a si mesmo, acolher em si (o ideal) o estranho; mas tal elemento estranho está, por sua vez, no Eu, é a atividade subtraída ao Eu.”

A primeira onda de transcendência só é sentida como resistência, limite e oposição em relação às outras ondas sucessivas, que a vão incorporando ao seu próprio movimento de superação. O poder limitante das sensações só se denuncia ao poder ilimitado que o envolve e ultrapassa.

A componente hilética da consciência se manifesta como um puro dado, isto é, como algo alheio ao produzir interno da consciência unicamente à consciência noética e às formas de transcendência ulteriores. Com efeito, é impossível reduzir o extrato sensorial a qualquer função meramente teorética ou representativa, pois a sensação não se origina como representação, mas sim como resultado da impulsividade original. É com o material fornecido por essa primeira posição da consciência que a função representativa vai elaborar a sua esfera própria de determinações.

Nota

[1] “Atividade inibida”.

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