D. J. Gonçalves de Magalhães
Texto publicado na Revista Minerva Brasiliense, vol. I, n. 9, p. 255-256, Rio de Janeiro, 1844.
∭
1. É a palavra o meio mais natural que tem o homem para discorrer consigo mesmo e revelar o seu pensamento aos outros homens; nenhum outro sistema de sinais pode com tanta precisão e justeza manifestar as recônditas operações do espírito, as ideias gerais e abstratas, as noções particulares, sua relação e ordem lógica; e tão grande é a harmonia entre o sinal e o pensamento, que difícil é a diferença do falar ao pensar, donde veio o designar-se com o verbo discorrer o pensar e o falar.
2. Questionam os filósofos sobre a origem da palavra. Os que mais profundamente cavaram no assunto dão-lhe uma origem divina, na impossibilidade de explicá-la humanamente.
3. Os sensualistas, apostados a nada admitirem além do estreito círculo da experiência, pretendem que o homem a inventasse. E não há aí quem diga que não pensam os animais porque não falam? E, por conseguinte, que pensa o homem porque lhe foi dado o dom da palavra?
4. Bem extravagante e desassisada é esta última opinião: se todavia os que tal dizem, por tal jeito não identificam o pensamento e a palavra, que só queiram dizer com esta proposição paradoxal que o dom de pensar é o de falar, com o que nada esclarecem a questão.
5. Condillac, que tanto nos recomendou a observação, que tanto nos preveniu contra a hipótese, e que, não obstante, recorreu à hipótese do homem estátua para explicar as operações intelectuais, pecando assim contra os seus próprios preceitos; Condillac, para dar uma explicação origem da palavra, supõe duas crianças sem conhecimento algum, abandonadas em um ermo, e as faz entrar em comércio recíproco por meio de contorções, agitações violentas e jeitos, e por um salto mortal faz surgir um sistema de sinais convencionais e a palavra, sem advertir na impossibilidade de se estabelecer um sistema de sinais convencionais sem prévios meios para se estabelecer essa convenção, sendo necessária a palavra, como diz Rousseau. E como inventariam essas crianças ou o homem a palavra, sendo necessário para essa invenção pensamentos preexistentes, e para esses pensamentos, palavras preexistentes à invenção que os constituíssem e os comunicassem? E como se explica Mr. Bonald: o homem pensa sua palavra antes de falar seu pensamento. Herder, que prestou seu grande talento e vasta erudição em serviço da escola da sensação com penetração e bom senso de um observador, recuou diante desta dificuldade. Diz ele:
A falar a verdade, a história da espécie humana apresenta um grande número de fatos, que impossível me é o compreendê-los sem o socorro de uma influência divina. Por exemplo, parece-me inexplicável que pudesse o homem começar a carreira do aperfeiçoamento, e inventar a linguagem sem um guia superior.
6. Este trecho de um sábio como foi Herder mostra ao menos que não é com esse espírito superficial da escola empírica que se resolvem questões de tanta transcendência. Tudo é fácil e natural para quem se contenta com as aparências, como nos ensina Mr. G. de Humboldt:
Não podemos renunciar à influência divina na explicação da origem da palavra, devemos antes abraçar o pensamento dos que atribuem sua origem a uma revelação imediata da divindade.
7. Mas enfim o que é a palavra? Ordinariamente a definem um som articulado. Cumpre porém notar que, se só no poder articular sons estivesse o dom da palavra, deveríamos confessar que falam os quadrúpedes e as aves porque quase todos articulam sons, que nós imitamos por onomatopeia, como muitos arremedam as nossas palavras. O dom da palavra está na faculdade que tem o espírito humano de se servir desses sons articulados como sinais de seus pensamentos; e, essa faculdade que não possuem os irracionais, posto que articulem sons. Essa faculdade o espírito não adquiriu-a pela experiência, ela se manifesta espontaneamente ao espírito, como a faculdade de pensar e de sentir, por uma revelação divina. Entre o som como som e o som como sinal do pensamento há um abismo que o espírito não venceria por seus próprios esforços se Deus o não permitisse.
8. Se refletirmos agora sobre a natureza do som, veremos que nada tem de material; o som é uma pura sensação que nenhuma existência tem fora do ser sensível, de que ela é uma modificação. Não há em toda a natureza objeto algum que corresponda ao som. A mesma vibração considerada como causa objetiva do som não é coisa material, e sim um impulso dado pela divindade à inerte matéria. Assim pois na palavra tudo é imaterial, tudo divino!
9. E quis Deus em sua infinita sabedoria que entrassem os homens em relação intelectual por um meio análogo à sua espiritual essência, por uma sensação que não representa objeto algum material, e apenas é despertada pelo movimento, que não é propriedade intrínseca da matéria, e sim uma lei geral prescrita pelo seu poder criador e conservador à matéria inerte!
FIM
Nenhum comentário:
Postar um comentário