César de Araújo Fragale
Dissertação de Mestrado (2003)
Universidade Federal do Rio de Janeiro
Instituto de Filosofia e Ciências Sociais
Departamento de Filosofia
Centro de Filosofia Brasileira
Orientador: Professor Doutor Luiz Alberto Cerqueira
Resumo
Motivado pelas profundas transformações ocorridas na cultura brasileira nas primeiras décadas do século XIX, e preocupado em fundamentar a superação do aristotelismo, então suprimido do ensino filosófico desde a reforma pombalina da Universidade (1776), Domingos José Gonçalves de Magalhães (1811-1882) tornou-se o fundador da filosofia brasileira mediante a assimilação do cogito cartesiano enquanto princípio que inaugura a filosofia moderna. Tal assimilação consiste numa mudança de princípio, a saber: à necessidade de autoconsciência inerente ao aristotelismo ensinado sob a Ratio Studiorum (o que, em última instância, implicava a conversão religiosa) Magalhães acrescentou a necessidade de liberdade. Deixou assim a cultura brasileira de ser filha do aristotelismo português, mas não para renegar a própria origem nem esquecer da própria geração natural — a religiosidade cristã —, e sim para converter o espírito ao princípio desta geração através do racionalismo cartesiano, isto é, na perspectiva do homem que se concebe a si mesmo livre do determinismo da própria natureza, tornando-se assim capaz de pensar por si, tornando-se livre e, portanto, um ente moral. A evidência disto está em sua obra filosófica, especialmente nos Fatos do espírito humano (1858).
Abstract
Freedom as a philosophical problem in Brazil: Gonçalves de Magalhães
Motivated by deep transformations that took place in the Brazilian culture, in the first decades of the 19th century, and concerned about developing foundations to overcome Aristotelianism, which had been abolished from philosophical education since the Pombaline reform had been accomplished at the University (1776), Domingos José Gonçalves de Magalhães (1811-1882) became the founder of the Brazilian philosophy by assimilating the Cartesian cogito as a principle that inaugurates modern philosophy. Such assimilation is a change in principles, namely: Magalhães added the need of freedom to the need of self-consciousness inherent to Aristotelianism taught under the Ratio Studiorum (which ultimately implied religious conversion). Thus, Brazilian culture was no longer a successor of Portuguese Aristotelianism, but not so in order to deny its own origin or omit its own natural generation - Christian religiosity - but rather to convert the spirit to the principle of this generation through the Cartesian rationalism, or, in other words, from the perspective of man who conceives himself free from nature's determinism itself and make him ready to think on his own, free, and render him into a moral being. The evidence of this assumption is in Magalhães' philosophical work, especially in Fatos do espírito humano (1858).
Sumário
Introdução
1. A modernização como problema filosófico
1.1 Necessidade de mudança de princípio
1.2 A conversão como consciência de si
1.2.1 A figura do pregador
1.2.1.1 Um caso exemplar: Antônio Vieira
1.3 Fonte cartesiana
1.3.1 A questão do inatismo
1.3.1.1 A questão da liberdade
2. Gonçalves de Magalhães e a ideia de liberdade
2.1 Liberdade e natureza
2.2 Doutrina da conciliação
Conclusão
Referências Bibliográficas
Notas ao fim do texto.
Introdução
Do ponto de vista da filosofia brasileira no século XIX, poder-se-iam conceber os diferentes sentidos da liberdade, de uma maneira geral, em vista da escravidão como fator de composição ou decomposição da vida em sociedade. Desse modo, haveria apenas dois sentidos básicos da liberdade: o natural e o cultural. Com efeito, considerando-se o fato de que, logo após a consolidação da emancipação política brasileira, e no âmbito mesmo da modernização cultural, se manteve a escravidão no Brasil, Tobias Barreto (1839-1889) argumenta da seguinte forma: “se alguém hoje ainda ousa repetir com Aristóteles que há homens nascidos para escravos, não vejo motivo de estranheza. Sim — é natural a existência da escravidão; há até espécies de formigas, como a polyerga rubescens, que são escravocratas; porém é cultural que a escravidão não exista” (BARRETO, 1990, p. 304). Da argumentação de Tobias Barreto segue-se que há um sentido natural da liberdade coexistente com o uso de seres humanos apenas como instrumento de ação, e um sentido cultural da liberdade com base na supressão deste uso; além disso, segue-se também, a título de problema, que ambos os sentidos se excluem.
Quanto à origem, o sentido natural da liberdade vem do Mundo Antigo e supõe uma tensão entre indivíduos. Isto verifica-se em Aristóteles, para o qual “todos os homens que diferem entre si como a alma difere do corpo e como o ser humano difere do bruto — e esta é a condição daqueles cuja função é fazer uso de seu corpo e de quem isto é o melhor que se pode esperar — [...] são por natureza escravos, para quem o ser governado [...] é vantajoso [...] Porque é por natureza um escravo aquele que é capaz de pertencer a outro [...] e que participa da razão só na medida em que esta se acha implicada na sensação”[1], concluindo adiante ser “evidente, portanto, que há casos em que uns são livres e outros escravos por natureza”[2]. Já o sentido cultural, sua origem supõe a tensão entre o Estado e o indivíduo no Mundo Moderno. Isso depois que Lutero traduziu a Bíblia em linguagem nacional e rejeitou a soberania do Papa como poder exclusivo de interpretação da lei de Deus e de administração dos sacramentos (a saber: o batismo, a crisma, a eucaristia, a confissão, a ordem, o matrimônio e a extrema-unção) necessários à salvação da alma, ensinando que cada cristão deve buscar por si mesmo, nas palavras de Deus, a própria salvação. Veja-se, por exemplo, Espinosa, que defendeu a liberdade de consciência no capítulo XX de seu Tratado político-teológico (1670)[3]. Mas veja-se especialmente Locke, em sua Carta sobre a tolerância (1689), na qual não só proclamou a necessidade de “distinguir entre os assuntos da cidade e os da religião e definir os limites exatos entre a Igreja e o Estado”, como definiu o Estado como “uma sociedade de homens constituída unicamente com o fim de conservar e promover os seus bens civis”, chamando bens civis “à vida, à liberdade, à integridade do corpo e à sua proteção contra a dor, à propriedade dos bens externos tais como as terras, o dinheiro, os móveis, etc.”
Não obstante a importância e utilidade dessa distinção política entre os sentidos natural e cultural da liberdade,[4] acreditamos que ela implica um sentido prévio, ontológico, que serve de fundamento ao uso que fazemos das coisas no mundo, a começar pelo próprio corpo.
Ao caracterizar o amor da sabedoria (isto é, a φιλοσοφια) como disciplina exclusiva do espírito e intrínseca à consciência de si, independentemente de qualquer necessidade material, de quaisquer fatores externos, Aristóteles explica que aqueles que “filosofaram para fugir da ignorância, é claro que buscavam o saber em vista do conhecimento, e não por alguma utilidade [...] É, pois, evidente que não buscamos [esta disciplina] por nenhuma outra utilidade, senão que, assim como chamamos homem livre aquele que é para si mesmo e não para outro, assim consideramos esta [disciplina] como a única ciência livre, pois só é para si mesma”[5] (itálicos acrescentados). Mas antes mesmo de Aristóteles, Sócrates, no diálogo de Platão “Alcebíades, ou da natureza do homem”, ensina que ao tomar consciência de si o homem descobre “todo esse caráter sobre-humano, um deus e uma inteligência”[6], e afirma que isso lhe permite escapar ao jugo das sensações e dos hábitos, concluindo que “a perversidade é própria do escravo, enquanto que a virtude é patrimônio do homem livre”[7]. Ora, é neste sentido ontológico da liberdade, como fundamento do uso teórico da razão, em Aristóteles, e como fundamento do seu uso prático (o uso moral), em Sócrates, que estamos interessados, supondo que mediante essa consideração nos tornaremos aptos a esclarecer a hipótese de que, do ponto de vista da filosofia brasileira no século XIX, e segundo Domingos José Gonçalves de Magalhães (1811-1882), os sentidos natural e cultural da liberdade não se excluem, antes se conciliam. Eis, portanto, o nosso problema: esclarecer se, e em que medida, tem fundamento a tese da conciliação em Gonçalves de Magalhães, segundo a qual “sendo [...] possível uma sociedade de homens livres, que não exclui a outra [de entes sem liberdade], nem é por ela excluída, esta sociedade existe de fato no nosso planeta, e dela somos membros, livres graças a Deus”.
Embora seja evidente que o sentido ontológico da liberdade inerente à consciência de si já era objeto de consideração na filosofia grega, seu estudo só começará efetivamente com o advento da filosofia cristã, mais claramente em Santo Agostinho, que preconiza a necessidade do livre-arbítrio como princípio da ação moral. Para Agostinho, do mesmo modo que o ser humano conhece as coisas pela razão, ele também faz uso dessas coisas pela vontade. Esse uso das coisas, uma vez condicionado à razão, é bom e, contrariamente, é mau. Como primeira condição do bom uso das coisas, não se pode, por exemplo, querer ou não querer o que não se conhece. Daí que, tendo como condição o conhecimento de si mesmo inerente à conversão[8], o bom uso das coisas no mundo, a começar pelo uso de si mesmo, pressupõe o domínio de si mesmo pela razão, uma vez que a “razão, ou mente, ou espírito rege os impulsos irracionais da alma”[9]. Entretanto, mesmo considerando que, do ponto de vista dessa subordinação do que é inferior ao superior, a razão humana está necessariamente “em conformidade com a norma da ordem”[10], isto é, subordinada à universalidade da “lei de Deus”, Agostinho entende que não basta conhecer pela razão a lei divina, é preciso querer o que ela diz. Desse modo se apresenta, em Santo Agostinho, o sentido da liberdade em função da vontade: como uso, mas não das coisas através da vontade, e sim da própria vontade que, assim, se revela como princípio de ação necessária independentemente da corporeidade e de qualquer determinação externa, porque “de algum modo usa de si mesma a vontade que usa das outras coisas, como se conhece a si mesma a razão, que também conhece as outras coisas”[11]. Princípio de ação necessária enquanto poder absoluto de arbítrio e opção entre fazer ou deixar de fazer. Não tratando, portanto, de necessidade mecânica, e sim de necessidade do espírito, resultante da consciência de si como “luta das vontades”[12], é preciso reconhecer nesse poder absoluto de arbítrio, pelo menos virtualmente, uma certa indiferença para o sim e para o não enquanto contrários, porque de fato “a mesma razão [...] ora se esforça por chegar à verdade, ora não se esforça”[13]. Daí porque Agostinho distingue a necessidade mecânica que suprime, como o vício ou a morte, a possibilidade de escolha inerente ao livre-arbítrio, da necessidade moral, que tem o seu fundamento justamente nessa possibilidade:
“Se deve chamar-se necessidade o que não está em nosso poder, aquilo que, ainda que não o queiramos, pode ser eficiente, como se diz ‘necessidade’ da morte, é manifesto que as nossas vontades, pelas quais se vive retamente ou em erro, não estão sob tal necessidade [...] Mas se se define a necessidade como aquilo segundo o qual se diz ‘É necessário que assim seja ou assim se faça’, não sei porque temos de temer que se nos prive da liberdade da vontade, pois tampouco colocamos sob a necessidade a vida de Deus e a sua presciência se dizemos ‘É necessário que Deus sempre viva e possua o conhecimento virtual de todas as coisas’ [...] Quando dizemos ‘necessário’ querendo, e assim queiramos com livre-arbítrio, dizemos a verdade e nem por isso submetemos o livre-arbítrio à necessidade que suprime a liberdade”[14].
No âmbito da filosofia moderna, Descartes também se refere ao poder absoluto da vontade que “consiste somente em que podemos fazer uma coisa ou deixar de fazer (isto é, afirmar ou negar, perseguir ou fugir) ou, antes, somente em que, para afirmar ou negar, perseguir ou fugir às coisas que o entendimento nos propõe, agimos de tal maneira que não sentimos absolutamente que alguma força exterior nos obrigue a tanto”[15]; observa, inclusive, que “esta indiferença que sinto, quando não sou absolutamente impelido para um lado mais do que para outro pelo peso de alguma razão, é o mais baixo grau da liberdade”[16].
O tema da liberdade como condição sine qua non da moderna ideia de cidadania só será consagrado no século XVIII pelos iluministas franceses. A inspiração, como não poderia deixar de ser, vem de Locke, já agora em vista, principalmente, do seu Segundo tratado sobre o governo civil (1690), no qual expôs a teoria de que o contrato social que os indivíduos celebram entre si não se constitui no único fundamento das relações jurídicas entre os homens. Para ele, tais vínculos contratuais são precedidos por vínculos originários que não dependem de contrato. Existiriam, assim, direitos naturais do homem anteriores à formação das sociedades e dos Estados, de modo que a função própria e o fim essencial do Estado consistiriam em acolher, proteger e garantir tais direitos. Especialmente os direitos à liberdade pessoal e à propriedade, Locke os considera entre os direitos fundamentais. Neste sentido, a filosofia francesa do século XVIII não inventou a ideia dos direitos inalienáveis, mas foi a primeira que converteu essa ideia num verdadeiro evangelho moral, defendendo-a e propagando-a acima de tudo. Eis que se discute a ideia de liberdade política em Montesquieu, no seu tratado Do espírito das leis (1748); e contra a escravização dos instintos naturais sob o manto protetor da civilização, discute-se a ideia do “bom selvagem” em Rousseau, no seu Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens (1755). Mediante uma propaganda apaixonada, a ideia da liberdade foi introduzida na vida política e dotada da força de choque e explosão que revelou durante a Revolução de 1789. Isto é o que se verifica num iluminista do porte de Voltaire que, pelo temperamento e pela reflexão, não se caracteriza propriamente como um revolucionário, mas se conhece historicamente como um arauto da liberdade. Do ponto de vista teórico, o que ele expôs sobre a liberdade encontra-se principalmente no Traité de métaphysique (1734), no qual procura defender a necessidade da vontade livre, sustentando-a frente a todas as objeções. Para ele, as objeções de caráter conceitual e dialético fracassam ante o simples testemunho da autoconsciência como princípio de ação. O sentimento de liberdade em cada indivíduo apresenta-se de uma maneira imediata à consciência de si e, por isso mesmo, não pode ser uma ilusão. A consciência de uso da vontade como princípio de ação é suficiente como demonstração da própria liberdade: Vouloir et agir, c’est précisement la même chose que d’être libre. Vale constatar, neste ponto, que, de maneira semelhante a Santo Agostinho, Voltaire considera que a liberdade, como ele a concebe, não exclui a necessidade mecânica da natureza, porque ser livre, do ponto de vista da consciência de si, não significa poder tudo o que quer, senão poder fazer o que propõe o entendimento, pois uma vontade sem razão suficiente que a ilumine seria absurda, estaria fora da ordem da natureza e a perturbaria. Trata-se, portanto, de uma concepção que se enquadra no âmbito do uso prático da razão pura.
Não temos dúvida de que essa noção voltairiana da liberdade se pressupõe à significação moral do “esforço voluntário” no espiritualismo de Maine de Biran, sob o qual o brasileiro Gonçalves de Magalhães completou sua formação filosófica em Paris entre 1833 e 1837. Isto poderá constatar-se mais adiante, quando tratarmos do espiritualismo francês. Porém, mais do que uma simples constatação da influência do espiritualismo francês (ou do ecletismo francês) sobre o pensamento de Gonçalves de Magalhães, interessa-nos uma compreensão aprofundada de sua tese da conciliação em face da ideia de liberdade como princípio da ação moral. Para isso será necessário incluirmos Kant, não só o seu conceito de liberdade, como também a sua doutrina acerca da distinção entre “fenômeno” e “coisa em si”, mesmo sabendo que da Crítica da razão pura Magalhães só tomou conhecimento através da tradução francesa então disponível e dos cursos oferecidos pelos discípulos de Victor Cousin na universidade de Paris[17].
O fato é que na mesma perspectiva daquela distinção agostiniana entre a necessidade mecânica e a necessidade espiritual, Kant afirma, por um lado, que “a natureza é a existência das coisas enquanto determinadas por leis universais”[18], o que inclui a existência humana; por outro lado, que “a vontade é uma espécie de causalidade nos seres vivos enquanto racionais, e a liberdade seria a propriedade da vontade de ser eficiente independentemente de causas estranhas que a determinem”[19]. Além disso, ele explica, na Crítica da razão pura, que a “mesma vontade pode, por um lado, na ordem dos fenômenos (das ações visíveis), pensar-se necessariamente sujeita às leis da natureza, ou seja, como não livre; por outro lado, enquanto pertencente a uma coisa em si, não sujeita a essa lei e, portanto, livre, sem que deste modo haja contradição”[20]. Do ponto de vista do uso da vontade por ela mesma, Kant explica que “a moral pressupõe necessariamente a liberdade (no sentido mais estrito) como propriedade da nossa vontade, porque põe a priori, como dados da razão, princípios práticos que têm a sua origem nesta mesma razão e que sem o pressuposto da liberdade seriam absolutamente impossíveis”[21], ressaltando que, sem esse uso a priori, “a liberdade, e com ela a moralidade (cujo contrário não envolve qualquer contradição se a liberdade não tiver sido pressuposta), teria de ceder o lugar ao mecanismo da natureza”[22].
Eis, portanto, o quadro geral em que situamos o problema da liberdade na filosofia brasileira do século XIX: a tese de Gonçalves de Magalhães, que implica a conciliação dos sentidos natural e cultural da liberdade, não se explica nem se fundamenta sem o recurso à filosofia moderna, no âmbito da qual a liberdade se apresenta com sentidos contrários; mas, do ponto de vista da consciência de si como atitude originária do “amor da sabedoria”, e da ação moral, torna-se necessária a consideração de um terceiro sentido, ontológico, subjacente aos sentidos contrários, como condição de possibilidade dessa conciliação.
1
A modernização como problema filosófico
No primeiro capítulo de seu livro Fatos do espírito humano, Gonçalves de Magalhães[23] faz uma significativa observação acerca da necessidade de compreendermos que os modernos triunfos da inteligência humana e os prodígios da técnica estão subordinados a necessidades do espírito, e não a necessidades materiais, dando a isso grande ênfase: “não creio [...] que deva o rei da criação exaurir essa inteligência [...] no exclusivo estudo e afano de prover as suas necessidades físicas, como se ele fosse um mísero escravo do corpo, a vítima da natureza, e não o seu intérprete” (MAGALHÃES, 2004, p. 54). Embora se possa perceber nessa observação um claro indício de sua adesão à filosofia espiritualista francesa, a qual se caracteriza como uma forte reação, sobretudo no século XIX, contra o “espírito positivo”, e o que se denominou “materialismo” introduzido pela hegemonia do método matemático-experimental, vale ressaltar o discernimento de Magalhães quanto ao que lhe parece ser o sentido originário do “Conhece-te a ti mesmo” resgatado pela filosofia moderna no cogito cartesiano, na medida em que “reconhece o espírito como primeira necessidade refletir sobre si mesmo, distinguir-se do que não é ele, estudar essa faculdade ativa aberta à verdade” (MAGALHÃES, 2004, p. 60), e que, por isso mesmo, fundada a sua existência na consciência de si, o homem “procura a verdade por amor da verdade, e nem pode deixar de o fazer; porque essa aspiração, essa percepção, essa reflexão da verdade em sua alma é o que o constitui inteligente; e daí nascem todas as ciências” (MAGALHÃES, 2004, p. 58). Esse discernimento de que a autoconsciência é a primeira necessidade do espírito, além da ideia de que as ciências da natureza, produto da atividade do espírito, jamais poderão com seu método experimental “contentar completamente as necessidades do espírito, e esgotar a sua atividade, e amor de saber” (MAGALHÃES, 2004, p. 55), conferem ao pensamento um caráter transcendente e metafísico que nos ajudará entender não só por que Magalhães não vê qualquer incompatibilidade entre a fé e a atividade filosófica, como também por que a sua exigência de liberdade não exclui a tradição filosófica vigente sob a Ratio Studiorum, na medida em que o sentido de transcendência da autoconsciência está presente no pensamento brasileiro desde Antônio Vieira[24], ganhando força, mais tarde, com Farias Brito[25]. Esta ligação interna entre o passado e o futuro em Magalhães, podemos enunciá-la da seguinte forma: não só a ciência (como se concebe a partir da chamada Revolução Científica, no século XVII) deve ser compreendida como um produto da atividade do espírito, resultante da busca da verdade enquanto uma tarefa infinita, como o próprio espírito se torna, em virtude dessa compreensão, no objeto mesmo da filosofia:
“O espírito humano tem um pressentimento, como uma revelação interior, ou ciência instintiva, que diversa é a sua substância essencialmente ativa, da do seu corpo; diversa a sua lei; diverso o seu destino; e que acima das aparências sensíveis, e dos atos atestados pela sua consciência, existe o mundo da realidade substancial infinita, que poderosamente o atrai; na contemplação desse mundo ideal da razão pura, talvez por isso mesmo mais real do que este que se nos antolha; na sua relação com todas as manifestações intelectuais, e sensíveis, acha ele um encanto inefável, a que nada se pode comparar, que nada pode substituir; porque esse é o seu mais belo emprego, nisso está o complemento da lei que o rege” (MAGALHÃES, 2004, p. 61).
Desse ponto de vista, os fatos do espírito humano (isto é, os fatos psíquicos) constituem um aspecto da realidade que não se reduz ao âmbito da ciência porque não se reduz ao método das ciências da natureza. É nesse sentido que devemos entender o uso da palavra metafísica em Magalhães, significando assim que os fatos específicos do espírito humano ultrapassam os limites da experiência: “Não é pois o mundo exterior o único teatro das nossas observações; outro mundo se abre à nossa inteligência” (MAGALHÃES, 2004, p. 59). É nesse sentido também que se compreende sua denúncia do espírito positivo, cuja crítica, em face do positivismo e do naturalismo, será um dos aspectos mais importantes na filosofia de Farias Brito, tanto quanto na de Husserl[26]. Eis como se manifesta Magalhães:
“Não compreendemos o desdém ridículo, o estúpido sorriso com que alguns homens, que se dão por mui positivos, olham para as ciências metafísicas; como se a inteligência humana, atormentada pelos problemas da substância, da causa, do ser, e do futuro, pudesse suprimi-los e anulá-los da ordem das suas ideias [...] como se assuntos tão antigos como a razão, e que nos são dados em nome de Deus como objetos de fé, não merecessem a pena de um contínuo e profundo estudo” (MAGALHÃES, 2004, p. 61-62).
Embora seja mais conhecido como poeta e reformador da literatura brasileira mediante a introdução do romantismo, Magalhães se propôs fundar a nossa emancipação cultural (para além de nossa emancipação política) na moderna exigência cartesiana do espírito, ou razão ou entendimento ou pensamento, em função da consciência de si. Assimilação do novo espírito científico como base de uma educação moderna, sim; mas antes o sentido da liberdade inerente ao espírito como condição de possibilidade de colocar-se na perspectiva da modernidade. Desse modo o pensamento de Gonçalves de Magalhães marca o início da história da filosofia brasileira: a primeira tentativa de elevar um problema singular — a necessidade histórica de modernização — ao nível do princípio que inaugura a filosofia moderna, como bem o percebeu Tobias Barreto[27].
De nossa parte, propomo-nos mostrar que a questão da liberdade inerente à consciência de si como espírito corresponde, segundo o modo como se apresenta em Magalhães, não só à necessidade de modernização, no tanto quanto isto significa a superação do aristotelismo português vigente no ensino filosófico brasileiro ao longo de dois séculos, mas também a um aprofundamento do sentido da consciência de si já existente, como se verifica em Vieira. Isto porque, de acordo com Cerqueira, a ideia de fundamentar a modernização como superação da própria natureza corresponde à ideia de que a atitude filosófica não nasce senão dentro de uma tradição cultural.
1.1 Necessidade de mudança de princípio
Primeiramente, há que esclarecer a diferença entre o sentido histórico e o sentido filosófico da modernização. No seu sentido histórico, a modernização brasileira remonta às reformas empreendidas pelo todo poderoso secretário de estado do rei de Portugal D. José, o Marquês de Pombal, a começar pela expulsão dos jesuítas (1759) e culminando na reforma da Universidade (1772), com a total supressão do aristotelismo e a introdução das novas disciplinas científicas[28]. Tais reformas atenderam às exigências externas do tempo, cujo contexto, após a Revolução Científica e já no curso da Revolução Industrial, é o despotismo sob as luzes da razão[29]. No seu sentido filosófico, entretanto, a modernização nos remete para um sentido interno do tempo que envolve, nos séculos XVI e XVII, no contexto ideológico da luta entre aristotélicos e antiaristotélicos, a opção filosófica portuguesa pela renovação dos estudos aristotélicos, da qual resultaram os famosos Conimbricenses, aí incluindo-se as obras de um filósofo autêntico como Pedro da Fonseca (1528-1599)[30]; mas da qual resultou também um verdadeiro alheamento do ensino filosófico, tanto em Portugal como no Brasil, em relação à filosofia moderna. Neste sentido, antes que aparecesse alguém disposto a “naturalizar entre nós a filosofia, conceder-lhe direito de cidade”, de acordo com opinião de Tobias Barreto sobre Gonçalves de Magalhães, verificamos que foi o aristotelismo português[31], ao longo de exatos dois séculos, desde 1572 até à reforma da Universidade[32], a primeira diretriz do pensamento brasileiro, cujo princípio é a conversão. A evidência disso encontra-se na Ratio Studiorum, método pedagógico criado pela Companhia de Jesus, e no qual se funda a educação brasileira, cuja regra nº 2, das Regras do Professor de Filosofia, estabelecia o seguinte: “Em questões de alguma importância não se afaste de Aristóteles, a menos que se trate de doutrina oposta à unanimemente recebida pelas escolas, ou, mais ainda, em contradição com a verdadeira fé” (Ratio Studiorum, Regras do Professor de Filosofia. Internet: <http://filosofiabrasileiracefib.blogspot.com.br/2016/09/ratio-studiorum.html>. Consulta: 05/01/2017).
Ora, tanto quanto se constatou que sem o estabelecimento de novas diretrizes no domínio filosófico a modernização pombalina encontrar-se-ia transformada numa simples modificação de métodos e hábitos escolares (Carvalho, 1978: 153), do mesmo modo entendemos hoje que o estabelecimento das novas diretrizes filosóficas implicou, em Magalhães, uma mudança de princípio relativamente àquela opção originária pela renovação do aristotelismo[33].
O liberalismo firma-se, no Brasil do século XIX, como força motivadora para a modernização. Contudo o liberalismo brasileiro apresentou-se ambíguo: com base nas ideias liberais, promoveu-se a descentralização do poder e tornou-se possível um maior grau de participação popular. Contrariamente, ficaram intactas as bases do sistema econômico introduzido pelo regime colonial, sobretudo a escravidão. Em outras palavras, a necessidade de pensar a liberdade no Brasil oitocentista supunha o fato de que a liberdade política da sociedade, a partir de 1822, dependia do modo de produção escravocrata, gerando o paradoxo de manter e legitimar a escravidão numa sociedade livre.
Refletindo sobre esta temática, o pensador fluminense acolhe e aprofunda radicalmente o problema: a ideia de emancipação da cultura brasileira, do espírito brasileiro, principalmente no que isto envolve a assimilação do espírito moderno, implica um sentido da liberdade que, se não se distingue na autoconsciência inerente à conversão, é a partir desta que vai ao encontro da autoconsciência inerente ao cogito cartesiano. Este percurso intracultural do sentido da liberdade, que não exclui a própria experiência histórica da conversão, torna necessária, em termos de mudança para o futuro, a formação de um novo sujeito, mas sem prejuízo da historicidade do sujeito dessa mudança. Magalhães nos apresenta o sentido dessa emancipação na perspectiva da consciência de si, isto é, na perspectiva do homem que se concebe a si mesmo como que fora do mecanismo da própria natureza, tornando-se assim capaz não só de fundamentar sua ciência, como também a própria existência, transformando-se, dessa maneira, num ente verdadeiramente moral. Compreende-se assim que, em Magalhães, a visão do problema da escravidão, por situar-se no âmbito do problema essencial da modernização espiritual ou cultural, por um lado supõe o sentido cultural da liberdade, uma vez que a moderna filosofia política, desde Locke, Montesquieu, Rousseau e os iluministas franceses, já estabelecera a ideia dos direitos inalienáveis; mas, por outro lado, implica o sentido ontológico da liberdade, o qual, do ponto de vista da consciência de si, não exclui a tradição aristotélica originária.
1.2 A conversão como consciência de si
O sentido da conversão implica a questão de saber como pode o homem libertar-se da concupiscência, do jugo do corpo e da pressão externa sobre os sentidos que limitam o seu poder, para então transformar-se numa inteligência, isto é, poder “ver dentro” (intus legere) todas as coisas, a começar por si próprio, significando deste modo, a conversão, o conhecimento de si mesmo como alma, espírito, e não como corpo. Refletindo sobre a conversão de Vitorino, Santo Agostinho chama a atenção para a sua própria experiência de viver uma certa ambiguidade no querer, reveladora da comparticipação do eu tanto no corpo quanto no espírito:
“Assim, compreendia, por experiência própria, aquilo que lera — de que modo a carne tem desejos contra o espírito e o espírito contra a carne — e eu, na verdade, estava em ambos, mas estava mais naquilo que em mim aprovava do que naquilo que em mim não aprovava. Pois já aí havia mais de não eu, porque, em grande parte, mais o sofria, contra vontade, do que fazia querendo [...] porque, querendo, eu tinha chegado aonde não queria” (AGOSTINHO, 2000b, p. 339-341).
Daí a necessidade de converte-se ao espírito. Porque não seria através dos sentidos, questiona Santo Agostinho, que provêm “uma certa lama e sujidade do corpo e também das trevas, nas quais o erro nos envolve?” (AGOSTINHO, 2000a, p. 121). Discorrendo sobre a universalidade da ordem natural que escapa à disposição e à vontade do homem, argumenta Santo Agostinho que tal inobservância decorre da debilidade espiritual no homem, o qual, para conhecer-se, “há-de dar-se ao trabalho, com grande persistência, de se afastar dos sentidos, de recolher o espírito para si mesmo e de o conservar em si próprio” (AGOSTINHO, 2000a, p. 91). Mais adiante ele completa: “que outra coisa é converter-se, senão elevar-se sobre si mesmo desde a imoderação dos vícios até à virtude e à temperança?” (AGOSTINHO, 2000a, p. 121). É neste sentido que a autoconsciência inerente à conversão se coloca na perspectiva do amor da sabedoria, desde o imperativo socrático, “Conhece-te a ti mesmo”, enquanto princípio e fim da atividade filosófica: o que se estabelece pelo processo da conversão é a anterioridade da alma ou espírito em vista do conhecimento.
A consciência de si inerente à conversão religiosa tem, portanto, uma significação moral, sem a qual não é possível a participação da criatura racional na universalidade da lei de Deus, e com base na qual o espírito humano funda a própria existência na visão de si mesmo como espírito liberto do jugo do corpo e dos sentidos do corpo. Isto será ressaltado pela teoria do conhecimento do aristotelismo escolástico, quanto ao fato de ser o homem naturalmente dotado da capacidade de conhecer a partir dos sentidos, devendo, entretanto, libertar-se por si mesmo das sensações a fim de alcançar a visão interior de si mesmo, conforme Tomás de Aquino, que empreende uma reflexão sobre o pensamento aristotélico em relação à capacidade do intelecto de refletir sobre si mesmo pelo seu ato, e não pela sua essência:
“É cognoscível o que está em ato e não em potência, como diz Aristóteles [Metafísica VIII 9, 1051a]; assim, um ser conhecido é ente e verdadeiro enquanto atual. [...] como é conatural ao nosso intelecto, no estado da vida presente, referir-se às coisas materiais e sensíveis, [...] é consequente que ele seja capaz de inteligir a si mesmo, na medida em que é atualizado pelas espécies abstraídas das coisas sensíveis, pela luz do intelecto agente, que é o ato dos próprios inteligíveis e, mediante estes, ato do intelecto possível. Logo, não é pela sua essência, mas pelo seu ato, que o nosso intelecto se conhece a si mesmo”[34].
Ao referir-se à luz natural do intelecto, outorgada por Deus, Tomás de Aquino esclarece que é importante considerar que, para conhecer as coisas imateriais, a alma é capaz de sobrelevar-se à matéria em suas operações, partindo, contudo, das coisas sensíveis. Em outras palavras: sendo o conhecimento intelectivo dividido em intelecto possível e intelecto agente, o intelecto humano apresenta-se primeiramente como simples possibilidade, destituído de todo conhecimento, mas apto a tornar-se intelecto cognoscente; voltando-se para Deus, a alma encontra toda a possibilidade plenamente realizada (actus purus), pois Deus conhece todas as coisas na plenitude do seu ser. Em Deus não há intelecto possível. O espírito humano, por outro lado, enquanto intelecto criado, portanto participado, se abre para todo o cognoscível, estando em potência para com o inteligível. Eis o início da conversão: o intelecto inicia sua passagem da potência para o ato[35].
No âmbito do aristotelismo no Brasil, Pedro da Fonseca, que é a fonte mais próxima, nos esclarece que “o intelecto agente é uma certa luz interior e espiritual, fazendo de coisas universais em potência universais em ato, de algum modo como a luz corporal faz das cores visíveis em potência visíveis em ato, como diz Aristóteles” (FONSECA, 1965, p. 54-55).
A conversão, portanto, permite a iluminação e o fortalecimento do espírito, tornando-o capaz de senhorear as tendências do automatismo da natureza e do corpo pela participação na lei divina que se revela na intimidade das almas, como podemos ver em Santo Agostinho, segundo o qual o divino atua como uma potência secreta que move, convida, atrai, retrai, fascina, assombra, espanta, domina, deslumbra, "assim como ela [a alma] se não pode iluminar por si mesma, assim também, por virtude própria se não pode saciar" (AGOSTINHO, 2000b, p. 705), enfim, como um campo de possibilidades e de mistério que motiva ao homem a busca da ciência divina, pois, Deus, “um ser inteligente, pelo qual todas as coisas naturais se ordenam ao fim”[36], é a causa necessária, absoluta e regente de todas as coisas, a expressão de uma vontade criadora, única e livre, imutável e eterna. E dentro dessa estrutura interna e com uma dinâmica própria, a conversão à espiritualidade se apresenta como uma forma de ascender a uma modalidade do ser acima do modo natural:
“E, admoestado a voltar daí para mim mesmo, entrei no mais íntimo de mim, guiado por ti, e consegui, porque te fizeste meu auxílio [...] Entrei e vi com o olhar da minha alma, seja ele qual for, acima do mesmo olhar da minha alma, acima da minha mente, uma luz imutável, não esta vulgar e visível a toda a carne, nem era uma maior como que do mesmo gênero [...] era superior a mim, porque ela própria me fez, e eu inferior, porque feito por ela” (AGOSTINHO, 2000b, p. 295).
Pela conversão, Agostinho procura uma verdade certa e inabalável, evidente por si. Entretanto, defronta-se com um obstáculo no caminho da verdade: a dúvida cética, largamente explorada pelos acadêmicos. Como a superação dessa dúvida é condição fundamental para o estabelecimento das bases sólidas para o conhecimento racional, Santo Agostinho, antecipando o Cogito cartesiano, apelará para as evidências primeiras do sujeito: parte dos erros dos sentidos, até chegar a uma verdade inabalável: a existência do sujeito pensante, onde se fundamenta a verdade:
• “Contudo, quem duvida que vive, recorda, entende, quer, pensa, conhece e julga? Porque, se duvida, vive; se duvida, lembra-se da dúvida; se duvida, entende que duvida; se duvida, é porque busca a certeza; se duvida, pensa; sabe que não sabe se duvida, é porque julga que não deve concordar temerariamente. E ainda que duvide de todas as outras coisas, não pode duvidar destas, pois se não existissem, seria impossível qualquer dúvida”;[37]
• “E se [me] engano? Pois, se me engano, existo. Quem não existe não pode enganar-se; por isso, se me engano, existo.[...] Embora me engane, sou eu que me engano e, portanto, no que conheço que existo, não me engano. Segue-se também que, no que conheço que me conheço, não me engano. Como conheço que existo, assim também conheço que conheço”. (AGOSTINHO, 1999, p. 46-47)
E mais:
Razão: — Tu, que desejas conhecer-te a ti mesmo, sabes que és?
Agostinho: — Sei. [...]
R. — Sabes que pensas?
A. — Sei.
R. — Logo, é verdade que pensas?
A. — Sim![38]
Parece evidente, do ponto de vista da conversão, que a revelação do “homem interior” não depende exclusivamente da razão, de modo a conceber-se a completa supressão da corporeidade, como poderiam supor os racionalistas do século XVII. O que não parece evidente é se e em que medida é possível um paralelo entre o cogito e a conversão em termos de consciência de si, de modo a conceber a obra de Magalhães na perspectiva do nascimento da filosofia brasileira no século XIX. Isto, procuraremos esclarecer.
1.2.1 A figura do pregador
No processo de conversão dá-se a figura mediana do pregador, fundamentada na função de um espelho, imagem presente nos religiosos da cultura medieval que exerciam a função de espelho dos reis (speculum regum), levando os homens, principalmente os governantes, a refletirem moralmente sobre a sua condição pessoal de estarem originariamente submetidos à universalidade da lei de Deus. Essa ideia do pregador resume-se na do pedagogo, cuja função já aparece em Tomás de Aquino, quando afirma que “Catequizar é o mesmo que ensinar, e ensinar é aperfeiçoar”[39]. Assim, o pregador tinha como função levar a todos a palavra de Deus, constituindo-se numa ligação entre o mundo material e espiritual.
Etienne Gilson, esclarece a função do pregador ao falar sobre a obra de Clemente de Alexandria, Discurso de exortação, ou Protreptikos, que procura estimular a conversão dos gentios. O pregador, nesta obra, é apresentado como sendo o pedagogo:
“o Verbo assumiu as funções de um pedagogo para estabelecer limites ao pecado. É bem o nome que lhe convém, melhor talvez do que o de Doutor, porque um doutor apenas ilumina o espírito, mas um pedagogo melhora a alma ensinando a viver bem. De quem o Verbo é pedagogo? De todos os homens, sem distinção.[...] O Pedagogo é, pois o Verbo e ensina todo homem que vem a este mundo; mas como ensina?[...] O verdadeiro saber é conhecer a si mesmo; conhecendo-se, conhece-se Deus, que nos fez; conhecendo-o, o homem se descobre cada vez mais semelhante a ele.[...] O Verbo converteu o cristão, o Verbo educou-o; o Verbo pode, agora, instruí-lo, segundo o discípulo seja capaz de ser instruído” (GILSON, 1998, p. 42-43; itálicos acrescentados).
Pela palavra, o pregador é o instrumento da conversão, subordinando-se à intencionalidade do ato de fala na medida em que o ato de fala realiza aquilo mesmo que significa, como esclareceu, já agora no âmbito do aristotelismo português, Pedro da Fonseca:
“Na autoridade humana requerem-se ordinariamente duas condições: conhecimento das coisas (que se contém na ciência ou na experiência dessas coisas) e virtude. Aquele, para se saber o que se diz; esta, para se querer o que se diz” (FONSECA, 1964, p. 574)
O pregador é a presença da virtude como causa externa, exemplar, que, à maneira de um espelho, é capaz de refletir o próprio desejo de autoconsciência. Como exemplo clássico temos o caso de Agostinho, que inspirou-se na sua conversão de Vitorino, segundo o relato de Simpliciano em sua pregação (Agostinho, 2000b: 339).
Essa necessidade da presença do pregador como sendo o outro, em função do qual se realiza a existência política do homem, encontra-se na origem mesma do aristotelismo que nos é originário, pois o Estagirita apresenta o homem como sendo naturalmente sociável (ARISTÓTELES, Política I, 2, 1253a); assim, em função da philía, que é a opção pela vida em comum; é um sentimento natural, inato, próprio à nossa natureza, que nos leva aos outros; é por isso que os sons da voz, que exprimem dor e prazer, como nos animais, no homem se transformam para se constituir a palavra (logos), pela qual comunicamos nossas ideias. Nesse sentido, a comunidade tem seu sentido completado na abertura à atividade teórica, sendo ela condição e consequência, pois a presença do outro é descoberta na interioridade de nosso ser, visto que a atividade intelectual é o sinal de uma comunidade originária que, quando consegue manifestar-se consciente e voluntariamente, aperfeiçoa toda atividade, dando-lhe um aumento de finalidade, porquanto ela própria encontra sua perfeição na atividade que é a única a ser ela próprio fim, afinal “quando dois vão juntos, somos ao mesmo tempo mais capazes de pensar e de agir”[40].
1.2.1.1 um caso exemplar: Antônio Vieira
Um caso exemplar que nos apresenta o sentido de universalidade da conversão dentro da tradição brasileira é a da mais conhecida expressão de um espírito universal formado sob o aristotelismo português, no Brasil: o Padre Antônio Vieira, S. J. (1608-1697)[41], que se distinguira desde cedo pelas virtudes oratórias de pregador, cujos sermões tornaram-se célebres e iriam seduzir os auditórios de Lisboa e Roma. Nele, a conversão como consciência de si é evidente:
“Para uma alma se converter por meio de um sermão, há-de haver três concursos: há-de concorrer o pregador com a doutrina, persuadindo; há-de concorrer o ouvinte com o entendimento, percebendo; há-de concorrer Deus com a graça, alumiando. Para um homem se ver a si mesmo, são necessárias três coisas: olhos, espelho e luz. Se tem espelho e é cego, não se pode ver por falta de olhos; se tem espelho e olhos, e é de noite, não se pode ver por falta de luz. Logo, há mister luz, há mister espelho e há mister olhos. Que coisa é a conversão de uma alma, senão entrar um homem dentro em si e ver-se a si mesmo? Para esta vista são necessários olhos, é necessária luz e é necessário espelho. O pregador concorre com o espelho, que é a doutrina; Deus concorre com a luz, que é a graça; o homem concorre com os olhos, que é o conhecimento”.[42]
Analisando as obras de Vieira, descobrimos nele um representante da cultura de língua portuguesa capaz de suscitar permanentemente a experiência de pensamento universal. Qual a sua técnica? O mestre da parenética[43] tinha como técnica construir o sermão mediante a interpretação do sentido de uma oração, fazendo distinções conceituais, com procedimentos lógicos, de uma simples imagem, recorrendo a um fato ou a uma frase da Bíblia, utilizando nos sermões o método etimológico[44], cujo propósito, não temos dúvida, é o de remontar à raiz das palavras para fundamentar as relações existentes entre palavra e ação, propondo restabelecer o valor moral do saber:
“Será porventura o estilo que hoje se usa nos púlpitos? Um estilo tão empeçado, um estilo tão dificultoso, um estilo tão afetado, um estilo tão encontrado a toda a arte e a toda a natureza? O estilo há de ser muito fácil e muito natural. [...] Nas outras artes tudo é arte; na Música tudo se faz por compasso, na Arquitetura tudo se faz por regra, na Aritmética tudo se faz por conta, na Geometria tudo se faz por medida. [...] Assim há de ser o pregar. Hão de cair as coisas e hão de nascer; tão naturais que vão caindo, tão próprias que venham nascendo. [...] A queda é para as coisas, a cadência para as palavras [...] porque não hão de ser escabrosas, nem dissonantes, hão de ter cadência. [...] O pregar há de ser como quem semeia, e não como quem ladrilha, ou azuleja.”[45]
É certo que no domínio das técnicas retóricas Vieira não é propriamente um inovador: utiliza fundamentalmente os processos que a escola ensinava, na senda dos tratados clássicos de Aristóteles, Cícero e Quintiliano, tratados que alguns autores, nomeadamente no século XVI, tinham adaptado aos objetivos específicos da oratória cristã. Mas se as técnicas são comuns a quase todos os oradores da época, a forma de as pôr em prática, essa revela o gênio inconfundível de Vieira, o seu inigualável talento de arquitetar argumentos, explorar conceitos, trabalhar as palavras. Palavras que são utilizadas não só nas suas capacidades semânticas (como o de tirar partido da polissemia das palavras), mas também na sua materialidade fônica e até mesmo no seu aspecto gráfico.
Todos estes elementos são mobilizados na construção de um discurso engenhoso, construído segundo uma lógica que é, aparentemente, verbal, mas na verdade, racional, apresentando um vigor decorrente do magistral domínio dos processos oratórios da época, e, sobretudo, da capacidade de moldar a linguagem, possibilitando construir os mais diversos efeitos pragmáticos e lúdicos. O que não significa um jogo de palavras gratuito e inconseqüentemente, mas uma concretização perfeita do ideal retórico da arte de bem dizer para persuadir, por uma utilização equilibrada das técnicas a serviço da função específica de entusiasmar, motivar a atenção e persuadir os destinatários, levando-os a tomar atitudes conscientes. Deste modo há que considerar a conversão, do ponto vista dialético, como a habilidade em revelar a outrem, através da linguagem, o desconhecido (a própria alma em oculto) a partir do conhecido.
Para toda a tradição filosófica cristã, assim como para a tradição filosófica portuguesa, a fala estabelece uma articulação originária entre a vontade e a arbitrariedade do signo. Desde Santo Agostinho, no ato da fala o eu se revela em sua singularidade, como vontade, à mesma medida em que aprende o significado das palavras: “ia eu deduzindo pouco a pouco de que coisas eram signos as palavras colocadas nas várias frases em posição apropriada e freqüentemente pronunciadas”, porque assim, uma vez “afeiçoada a boca a esses signos, eu já enunciava os meus desejos” (AGOSTINHO, 2000b, p. 23). Neste sentido, Agostinho distingue a palavra, enquanto sinal arbitrário, daquilo que efetivamente se quer dizer, e vai mais além quando apresenta o saber não como condição pura da razão, senão ética e estética, afinal, não se ensina palavras, mas pelas palavras, e
“mesmo que não emitas som algum, todavia, porque pensamos as mesmas palavras, nós falamos intimamente em nossa alma; e assim, também, com a fala nada mais fazemos do que chamar a atenção, enquanto a memória a que as palavras aderem, revolvendo-as, faz vir à mente as mesmas coisas, das quais as palavras são sinais” (AGOSTINHO, 1979, p. 292).
Ainda nesta tradição, vemos a mesma relação entre vontade e signo em Tomás de Aquino quando ele diz que “o homem ensina somente por meio de sinais” (TOMÁS DE AQUINO, O mestre, art. 1, obj. 2), o que nos remete ao termo de ensinar enquanto o ato de apresentar sinais (insegnire). Portanto, o pregador é aquele que apresenta sinais para que o aluno possa por si extrair o ato dos particulares dos conhecimentos universais, ou seja, trata-se de eduzir o conhecimento em ato a partir da potência (TOMÁS DE AQUINO, O mestre, art. 1, obj. 10), remetendo-nos para o sentido de ‘educar’, ou melhor, o ensinar é uma edução do ato:
“O conhecimento das coisas em nós não se realiza pelo conhecimento de sinais, mas por conhecimentos mais certos: o dos princípios [...] que produz um nós o conhecimento das conclusões. No aluno, o conhecimento já existia mas não em ato perfeito, e sim como que em ‘razões seminais’, no sentido que as concepções universais, inscritas em nós, são como que sementes de todos os conhecimentos posteriores. Ora, se bem que essas razões seminais não se transformem em ato por uma virtude criada como se fossem infusas por uma virtude criada, no entanto essa sua potencialidade pode ser conduzida ao ato pela ação de uma virtude criada. O professor infunde conhecimento no aluno [...] porque neste, pelo ensino, se produz passando de potência para ato um conhecimento semelhante ao que há no mestre. No aluno, as representações das coisas inteligíveis, pelas quais se produz o conhecimento recebido pelo ensino, são imediatamente de seu intelecto agente, mas mediatamente propiciadas pelo professor, ao propor sinais das coisas inteligíveis a partir dos quais o intelecto agente capta os conteúdos e os representa no intelecto paciente. Daí que as palavras do mestre, ouvidas ou lidas, causem o conhecimento do mesmo modo que as realidades externas, pois tanto a estas quanto àquelas volta-se o intelecto agente para receber os conteúdos inteligíveis”.[46]
É nesta concepção que Vieira fala da arte de pregar, fundamentando sua atitude estética. Isso fica bem claro no seu Sermão da Sexagésima, em que se propõe distinguir o bom pregador do mau pregador: o verdadeiro pregador, que visa a conversão dos espíritos rudes e alheios à espiritualidade da vida, evita ser pregador só de nome, abandona o conforto da civilização e sai a semear (“Ecce exiit, qui seminat, seminare”)[47], porque sabe que são as suas ações, os seus exemplos, as suas obras, enfim, que conferem a si o nome próprio do seu ser, e não o contrário, isto é, exprimem o modo próprio do ser segundo a obrigação moral, pois “se com cada cem Sermões se convertera e emendara um homem, já o mundo fora santo”[48]. Afinal, conforme vemos em Tomás de Aquino, “pelo ensino, se produz [o conhecimento no aluno] passando de potência para ato um conhecimento semelhante ao que há no mestre” (TOMÁS DE AQUINO, O mestre, a. 1, objeção 6), ou seja, o mestre, ciente de que o conhecimento está em potência no educando, ajuda-o a atualizá-lo, não no sentido que atue em sua alma, como causa eficiente, contudo como causa final, ou melhor, como modelo que o discípulo tende a concretizar.
Nesse exemplo do semeador, percebemos que Vieira não concebe o discurso apenas como expressão e comunicação de pensamento, como é próprio do espírito do tempo sob o racionalismo do século XVII. A intenção doutrinária e a estrutura textual e conceitual, nos seus sermões, visam como que uma significação pragmática das palavras, pois, dirigindo-se aos maus pregadores, adverte que “muitas vezes as tomais [as palavras] pelo que toam e não pelo que significam, e talvez nem pelo que toam”. Daí a sua compreensão de que o mau desempenho dos pregadores devia-se, na verdade, ao mau uso das palavras:
“Antigamente convertia-se o mundo, hoje por que se não converte ninguém? Porque hoje pregam-se palavras e pensamentos, antigamente pregavam-se palavras e obras. Palavras sem obras, são tiros sem balas; atroam, mas não ferem [...] Basta que havemos de trazer as palavras de Deus a que digam o que nós queremos, e não havemos de querer dizer o que elas dizem!”[49]
Se as palavras dizem o que nós queremos, o sermão não espiritualiza, isto é, não leva ninguém a pensar objetivamente — ou não eduz o conhecimento em ato a partir da potência — aquilo que ouve como sinal ou revelação de uma vontade estabelecida, se antes o pregador não reconhece na palavra um “querer” a priori. Isto é, “o conhecimento já preexiste no educando como potência não puramente passiva, mas ativa, senão o homem não poderia adquirir conhecimentos por si mesmo”(TOMÁS DE AQUINO, O mestre, a. 1). Assim sendo, as palavras, na medida em que significam por convenção, já “querem” dizer a priori. Enquanto signos, as palavras evocam outra realidade de ordem superior cujo arbítrio lhes confere validade objetiva. Por isso Vieira questiona:
“como cuidais que pregais a palavra de Deus? Mais. Nesses lugares, nesses Textos que alegais para prova do que dizeis, é esse o sentido em que Deus os disse? É esse o sentido em que os entendem os Padres da Igreja? É esse o sentido da mesma Gramática das palavras?”[50]
Nesta perspectiva de entendimento, reveste-se de autoridade todo aquele que, sem prejuízo da arbitrariedade das palavras, as escolhe por querer dizer o que elas dizem, realizando ele mesmo aquilo que as palavras querem dizer, ou como nos apresenta Pedro da Fonseca:
“Significar nada mais é que representar algo a uma potência cognoscente [...] Por isso, quando se diz que aquele que fala ou escreve significa a sua sentença, ou vontade, isto não se deve entender senão no mesmo sentido em que se diz que aquele que põe fogo à lenha ele mesmo queima a lenha” (FONSECA, 1964, p. 34).
Assim sendo, a conversão se realiza pela palavra, na participação dos princípios e regras de significação que definem a língua, no caso, portuguesa, tendo em vista o fim que o sujeito se propõe. Porque o fim, enquanto querido, move o indivíduo a agir em conformidade à razão, aprendendo e conhecendo, subordinando-se a princípios, regras e leis. O sentido dessa virtude intelectual no contexto do aristotelismo português encontra-se primeiramente em Santo Tomás de Aquino, onde ele se refere à “participação da lei eterna pela criatura racional”[51], e sua origem encontra-se em Aristóteles, quando define o bem como um fim desejável apoiado na “função do homem que consiste em uma atividade da alma conforme à razão”[52], acrescido a esta função o querer aquilo que se saber fazer[53], ou seja, conforme Aristóteles, a virtude, ou excelência.
O desempenho de Vieira como autor estético, apresenta esta excelência, o que implica em uma perfeição da inteligência através do ato de fala do mesmo modo que, na Ética a Nicômaco, o bem constitui a perfeição da vontade. O homem verdadeiro não corresponde, assim, apenas a um acordo interno do espírito consigo mesmo ou com as representações por ele elaboradas, mas conformidade da consciência com uma razão universal da qual o sujeito participa concreta e historicamente segundo a própria vontade, pois “o professor ensina precisamente porque tem o conhecimento em ato”[54]. Sendo assim, Vieira condena aqueles pregadores que se comportam no púlpito como se comportam os atores no palco, sem qualquer compromisso com a verdade, levando os ouvintes a prenderem-se apenas ao sensitivo, ao fingimento, à comédia[55]. Ou conforme Aristóteles, que afirma que o fato de existirem homens “que empregam a linguagem que procede da ciência não prova em nada que a possuam”, e que, por isso mesmo, “temos de supor que os incontinentes falam à maneira dos atores de teatro” (ARISTÓTELES, Ética a Nicômaco I, 3). Afinal, nos dizeres de Agostinho:
“No que diz respeito a todas as coisas que compreendemos, não consultamos a voz de quem fala, a qual soa por fora, mas a verdade que dentro de nós preside à própria mente, incitados talvez pelas palavras a consultá-la.[...] E se às vezes há enganos, isto não acontece por erro da verdade consultada, como não é por erro da luz externa que os olhos, volta e meia, se enganam: luz que confessamos consultar a respeito das coisas sensíveis, para que no-las mostre na proporção em que nos é permitido distingui-las”[56].
Portanto, se havemos de proclamar a relação íntima entre a conversão e a verdade, de modo a conceber o uso da palavra como uma unidade de pensamento e ação subjacente à objetividade, é necessário que o pregador, o mestre ou o professor realize a seguinte técnica de construir o sermão:
“Há de tomar o Pregador uma só matéria, há de defini-la para que se conheça, há de dividi-la para que se distinga, há de prová-la com a Escritura, há de declará-la com a razão, há de confirmá-la com o exemplo, há de amplificá-la com as causas, com os efeitos, com as circunstâncias, com as conveniências que se hão de seguir, com os inconvenientes que se devem evitar; há de responder às dúvidas, há de satisfazer às dificuldades, há de impugnar e refutar com toda a força da eloquência os argumentos contrários, e depois disto há de colher, há de apertar, há de concluir, há de persuadir, há de acabar. Isto é sermão, isto é pregar, e o que não é isto, é falar de mais alto”[57].
Estes ensinamentos coadunam com os de Pedro da Fonseca: “Há três modos gerais de discorrer, os quais se dividem ainda, bastante pormenorizadamente, em muitos outros. São eles: a divisão, a definição e a argumentação” (FONSECA, 1964, p. 25).
Lendo Vieira e o que foi verificado até aqui, duas questões podem ser consideradas em torno ao mesmo problema da superação do determinismo da natureza e do ponto de vista da projeção do aristotelismo português no Brasil, a saber: as questões referentes à conversão como princípio ontológico, já tratado anteriormente e o dever-ser como essência do homem.
Constitui-se uma ilusão, nesse sentido, a ideia de que a revelação do “homem interior” vem exclusivamente da razão, por abstração da experiência e dos sentidos, como poderiam supor os racionalistas do século XVII. Afinal, “somos compostos de carne e sangue” e para tanto devemos agir de tal maneira racionalmente para que “tenha sempre respeito ao sensitivo”[58], recomenda Vieira em atenção ao princípio aristotélico-tomista de que nada se encontra no intelecto que não tenho sido proveniente do sentido (nihil est in intellectu quod non prius fuerit in sensu). Assim sendo, filosoficamente, encontramos nos sermões de Vieira a ideia que nos insere no plano ético de que o modo próprio do homem não é o ser e sim o dever que ao ser se acrescenta e o distingue como razão concreta e histórica:
“pelas conveniências do bem comum se hão-de transformar os homens, e que hão-de deixar de ser o que são por natureza, para serem o que devem ser por obrigação [...] porque o ofício há-de se transformar em natureza, a obrigação há-de se converter em essência, e devem os homens deixar de ser o que são, para chegarem a ser o que devem. [...] cada um é o que deve ser, e senão, não é o que deve”[59].
Percebemos, assim, dois modos do ser em Vieira: o ser como determinação da natureza, pois os homens “hão-de deixar de ser o que são por natureza”, e o dever-se como superação do determinismo da natureza, “para serem o que devem ser por obrigação”.
O primeiro modo é o estado em que a existência do homem não depende da sua inteligência nem da sua vontade. Nesse estado, o homem conhece a si mesmo apenas em sua forma externa e como parte de um mecanismo social. Prevalece aí o determinismo natural do nascimento, de modo que a visão da desigualdade, quer do ponto de vista das características acidentais de um homem em relação aos outros, quer do ponto de vista do estado desse homem em suas relações sociais, impede a “visão interior” da unidade de essência dos homens[60]. Neste sentido, diz Vieira que os homens “têm a essência na mesma desigualdade”.
O segundo é o modo em que, pela obrigação como essência, os homens deixam de ser o que são “para chegarem a ser o que devem”. Para tanto, é necessária a conversão, em virtude da qual todo o homem se “vê” obrigado ao Criador, quer por sujeição à necessidade e universalidade das leis da natureza, quer por reconhecimento ao dom ou privilégio da própria criação, correspondendo a obrigação à consciência de si não só como sujeito das leis da natureza, que impõem a desigualdade entre os homens, mas também como sujeito da “lei” de Deus, que concede a ligação espiritual entre eles.
Na dimensão social e política dessa ligação espiritual, os homens “hão-de deixar de ser o que são”, considerando-se apenas o estado em que se encontram após o seu nascimento, “para serem o que devem ser por obrigação”. Neste sentido, o dever-ser constitui-se na superação do determinismo da natureza mediante o ofício, que se concebe em função da qualificação intelectual, mas sobretudo como obrigação moral ou dever (officium) em vista do bem comum. Neste sentido diz Vieira que “pelas conveniências do bem comum se hão de transformar os homens”.
Eis o que nos apresenta Vieira em seu sermão As cinco pedras da funda de Davi (1673), proclamando que “neste mundo racional do homem, o primeiro móbil de todas as nossas ações é o conhecimento de nós mesmos”, acentuando a ideia de que a alma busca-se a si mesma para desfazer-se de uma falsa imagem sensível, distinguindo a “limpa” consciência de si, a subjetividade pura, o eu não misturado e depurado dos objetos dos sentidos e das necessidades do corpo, como condição de uma mesma experiência atual de sabedoria, na medida em que, para ele, a ciência infusa, isto é, a ciência adquirida passivamente, não basta:
“Qual será logo no homem o limpo conhecimento de si mesmo? Digo que é conhecer e persuadir-se cada um, que ele é a sua alma. O pó, o lodo, o corpo, não é eu; eu sou a minha alma: este é o verdadeiro, o limpo e o heróico conhecimento de si mesmo; o heróico porque se conhece o homem pela parte mais sublime; o limpo, porque se separa totalmente de tudo o que é terra; o verdadeiro, porque ainda que o homem verdadeiramente é composto de corpo e alma, quem se conhece pela parte do corpo, ignora-se, e só quem se conhece pela parte da alma se conhece [...] Homem, se te ignoras, se te não conheces, sai fora. Eu bem sei que a causa de muitas ignorâncias é o não sair; o homem tanto sabe, quanto sai, e aqueles que não saíram, não sei como podem saber, se não for por ciência infusa, a qual ainda não basta”[61].
Desta forma, Vieira ressalta a dimensão existencial da consciência de si como razão concreta e histórica em vista da necessidade de fundar as próprias ações, inclusive o ato de conhecer, no âmbito do vivido, não concebendo a “visão interior” de si mesmo sem a corporeidade de todo o sujeito do conhecimento, pois ela serve à autoconsciência na medida em que é necessário antes sair de si, para depois entrar em si, e neste sentido, relembramos, se “somos compostos de carne e sangue, obre de tal maneira o racional, que tenha sempre respeito ao sensitivo”, recomenda Vieira. Em outras palavras, a corporeidade serve à autoconsciência se e na medida em que a subjetividade se funda individual e casualmente na corporeidade:
“Os Santos dizem, que para que o homem se conheça, há que entrar em si mesmo; e este sair de si, é entrar em si; porque é sair do exterior do homem, que é o corpo, e entrar e penetrar o interior dele, que é a alma; Há de servir o corpo ao próprio conhecimento, como o aço no espelho serve à vista [...] de maneira que o mesmo que impede o conhecimento direto, serve ao conhecimento reflexo”[62].
Vieira, portanto, se posiciona, contrariamente ao racionalismo da época e à dicotomia mente/corpo, contrariando também o pensamento cartesiano que realça a idealidade da consciência de si como razão abstrata e atemporal em vista da necessidade de fundar o modo matemático-experimental do saber.
Do ponto de vista de uma concepção transcendental do eu, que não depende do corpo, mas é princípio de ação no sujeito concreto e histórico, podemos ver como, na filosofia brasileira do século XIX, se discutem os conceitos do espírito e da ciência do espírito em face da filosofia moderna, destacando-se Domingos José Gonçalves de Magalhães, conforme veremos mais adiante.
1.3 Fonte cartesiana
Nossa preocupação central diz respeito ao sentido da liberdade no âmbito do processo de emancipação e modernização da cultura brasileira no século XIX. Neste sentido, falar em emancipação e modernização de uma cultura originário do aristotelismo, como é o caso da cultura brasileira, é remeter imediatamente aos princípios da filosofia moderna, isto é, à filosofia de Descartes. Por que Descartes? Porque foi ele quem efetivamente introduziu a necessidade do retorno à consciência de si como sendo a atitude filosófica originária, fundamento da verdade científica. Ora, é exatamente esta atitude que verificamos em Gonçalves de Magalhães, quando se questiona:
“Mas que instrumento, que faculdade temos nós para procurar e achar a verdade?” (MAGALHÃES, 2004, p. 59). Para ele, a resposta a essa questão não se encontra na realidade exterior. Faz parte, ao contrário, da investigação sobre o próprio espírito humano. Nas palavras de Magalhães:Nesse mundo da razão, vasto campo das ciências metafísicas, reconhece o espírito como primeira necessidade refletir sobre si mesmo, distinguir-se do que não é ele, estudar essa faculdade ativa aberta à verdade, descobrir as suas leis, diferençá-las de outras faculdade que a acompanham e assistem, classificar os seus atos, ver os que pertencem a cada uma delas em separado, e os que dependem do seu exercício simultâneo (MAGALHÃES, 2004, p. 59-60).
Afirma, portanto, que é da necessidade do espírito humano compreender os ditames de seu funcionamento, bem como sua especificidade em relação à realidade exterior e a maneira pela qual o espírito pode obter a verdade; compreender sua natureza ativa distinta da do “corpo que o abriga”; e, para além do duvidoso mundo da realidade sensível, onde o corpo se movimenta, encontrar o mundo da razão pura, o reino das especulações metafísicas (uma vez que se trata de uma esfera para além dos limites da experiência), onde firma como objetivo primordial a busca por um critério necessário e inequívoco de validação da verdade, o que o leva a dizer:
“Esse processo cético, adotado muito a propósito por Descartes, a quem se confere hoje o título de criador da filosofia moderna, merece todos os nossos aplausos em atenção ao tempo e às circunstâncias em que apareceu esse pensador profundo, no meio do século décimo sétimo, no auge do geral ceticismo que sucedeu à reforma de Lutero, e no descrédito e queda da filosofia escolástica, a qual nasceu, viveu, sublimou-se, amesquinhou-se, definhou, e expirou nos claustros, em serviço da fé, e debaixo da tutela da teologia. Mas depois que Descartes tirou a filosofia dos bancos da escola, e a emancipou, restituindo-lhe o seu verdadeiro método, o psicológico, e a sua única autoridade, a da razão” (MAGALHÃES, 2004, p. 59-68).
Neste sentido da modernização, remetemos a Descartes. Mas assim como remetemos a Descartes contra o aristotelismo que predominou no Brasil sob a Ratio Studiorum, é imprescindível considerarmos que o justo título de fundador da filosofia moderna, a ele concedido, não é concebível sem a renovação conimbricense, no século XVI, desse mesmo aristotelismo. Isto, para evitarmos uma espécie de simplismo, já amplamente condenado pelos especialistas, quando nos reportamos às críticas que Descartes empreendeu à filosofia escolástica, pois tal desvinculação do pensador com o seu tempo estaria apenas na imaginação de certos comentadores. Esta é a opinião, por exemplo, de Jean-Marie Beyssade, quando considera que seus predecessores escolásticos, São Tomás, Suárez, e os manuais que ele conheceu na escola dos jesuítas em La Flèche, estavam presentes e insistentes com seus problemas, e sobretudo com suas noções primitivas; e se ele reivindicou face aos teólogos, como sua profissão, o direito de filosofar segundo a razão natural e simplesmente humana, por outro lado tomou o partido de Deus contra a frivolidade dos libertinos e contra as acomodações naturalistas, não para recusar discretamente a tradição metafísica ou o renascimento católico, mas restaurando em sua abrupta incomensurabilidade a transcendência divina, instaurando em seu rigor uma nova filosofia teísta. O filósofo do Cogito, que abriu o domínio da subjetividade, aparece também como o herdeiro de especulações teológicas medievais. (CHÂTELET, 1974, p. 82).
É certo que Descartes põe em suspenso a tradição filosófica que lhe fora transmitida no Colégio de La Flèche, mas também é certo que o pai da filosofia moderna tinha respeito a seus mestres jesuítas e aos Conimbricenses[63]. Etienne Gilson nos dá a entender que Descartes seguiu muitos detalhes da orientação empreendida no colégio, sendo sempre problemático delinear o que seja propriamente “escolástico” em sua obra, quanto à teologia e à filosofia, que em La Flèche se faziam representar pela doutrina de Tomás de Aquino e pelos comentários nos Conimbricenses. O próprio Descartes manifesta o seu reconhecimento, ao dizer que
“é muito útil fazer um curso inteiro à maneira como se ensina nas escolas jesuíticas, antes de empreender a elevação do próprio espírito acima da pedanteria, para se fazer sábio. Devo prestar esta homenagem a meus mestres, dizendo que não há lugar no mundo em que julgo que ensinem melhor do que o fazem em La Flèche” (DESCARTES, Oeuvres, Correspondance, p. 378).
Assim sendo, o que importa ressaltar na atitude cartesiana, que o habilita a transformar-se num reformador? Mais do que isso, num fundador? Ora, Descartes não deixa de criticar o conjunto das doutrinas que assimilara em La Flèche, especialmente o dogmatismo de que se revestira o aristotelismo sob o Ratio Studiorum. Em outras palavras, ele revigorou o verdadeiro amor da sabedoria do ponto de vista da consciência de si não só como faculdade de conceber, que se afirma a priori, mas, sobretudo, do ponto de vista da consciência de si como vontade, em função da qual o homem, que se conhece finito e limitado à própria corporeidade, se torna capaz de representar a si mesmo a ideia do ser infinito e independente. Neste sentido, Descartes diz que
“se considero a faculdade de conceber que há em mim, acho que ela é de uma extensão muito pequena e grandemente limitada e, ao mesmo tempo, eu me represento a ideia de uma outra faculdade muito mais ampla e mesmo infinita; e, pelo simples fato de que me posso representar sua ideia, conheço sem dificuldade que ela pertence à natureza de Deus [...] a vontade, que eu sinto ser em mim tão grande, que não concebo absolutamente a ideia de nenhuma outra mais ampla e mais extensa: de sorte que é principalmente ela que me faz conhecer que eu trago a imagem e semelhança de Deus” (DESCARTES, 1973b, Meditação Quarta).
Tal consideração é importante se considerarmos que Descartes se encontra inserido no contexto de uma espécie de programa da ciência moderna. Este programa se caracteriza por uma preocupação renascentista com a cultura e com a erudição, empenhando-se numa retomada dos clássicos; e por um movimento humanista que se preocupa com a utilização do saber em vista da experiência[64]. Já em Nicolau de Cusa, por exemplo, no seu De conjecturis (1443), se apresenta o homem como um criador, mas não no sentido de um poder absoluto. Tal programa culmina no projeto cartesiano e, posteriormente, de toda a modernidade, ou seja, a afirmação da humanidade do homem, que, por meio da razão, se propõe justamente fundar a experiência, com o propósito de exercer um domínio sobre a natureza, construindo, a partir da natureza, um mundo próprio da vida humana, o mundo da cultura, no qual ele, o homem, é o rei, conforme se pode observar no subtítulo do Novum Organon, de Francis Bacon, que fala de interpretação da natureza: “Indicações verdadeiras acerca da interpretação da natureza”. Em outras palavras: a essência desse programa é a resistência contra todo o dogmatismo inerente à autoridade do tradicionalismo. Desse ponto de vista, o pensamento cartesiano é fruto de um sentido de modernidade que se apresenta como a rejeição da autoridade da tradição; que se apresenta como ideia de progresso e valorização do indivíduo ou da subjetividade. É fruto do contexto da dignidade do homem (dignitas hominis) em oposição ao tema da miséria do homem (miseria hominis), do ser caído, marcado pelo pecado original.
Mas assim como é pela vontade iluminada pela razão que o homem se dignifica como criador, e se concebe à imagem e semelhança do ser infinito e independente, Descartes argumenta que “ela não me parece, todavia, maior se eu a considero formal e precisamente nela mesma” (DESCARTES, 1973b, Meditação Quarta). Por que isto? Por que, de fato, pode ser que o espírito, uma vez liberto de toda a pressão externa originária da vontade carnal, segundo os procedimentos do Cogito, se baste com o entendimento na contemplação a priori do ser das coisas, tornando-se moralmente indiferente à escolha entre o sim e o não no plano da ação. Para Descartes, não basta entender; não basta saber a verdade; é necessário agir e viver em conformidade à verdade. Moralmente falando, a consciência do poder de livre-arbítrio não é ainda a liberdade:
“Pois consiste somente em que podemos fazer uma coisa ou deixar de fazer [...] ou, antes, somente em que, para afirmar ou negar, perseguir ou fugir às coisas que o entendimento nos propõe, agimos de tal maneira que não sentimos absolutamente que alguma força exterior nos obrigue a tanto” (DESCARTES, 1973b, Meditação Quarta).
Moralmente falando, a liberdade é o exercício da escolha entre contrários em função da verdade:
“Pois, para que eu seja livre, não é necessário que eu seja indiferente na escolha de um ou de outro dos dois contrários; mas antes, quanto mais eu pender para um, seja porque eu conheça evidentemente que o bom e o verdadeiro aí se encontram, seja por que Deus disponha assim o interior do meu pensamento, tanto mais livremente o escolherei e o abraçarei” (DESCARTES, 1973b, Meditação Quarta).
Moralmente falando, Descartes não se encontra tão longe de Vieira, por exemplo, quando este insiste que o bom pregador deve sair a semear, não limitando-se apenas a semear entre entendidos; que é preciso, além de cultivar o pensamento, a obra. O espírito não deve ser um refúgio, senão o fundamento da experiência. Eis o que diz o filósofo francês:
“De maneira que esta indiferença que sinto, quando não sou absolutamente impelido para um lado mais do que para outro pelo peso de alguma razão, é o mais baixo grau de liberdade” (DESCARTES, 1973b, Meditação Quarta).
Em resumo, “O que é, pois, a liberdade em Descartes, senão uma força espiritual, uma espontaneidade, uma certa facilidade de ação, que o ser humano adquire em função da consciência de si inerente ao Cogito? Facilidade que posteriormente se traduzirá como autonomia e autodeterminação contra o mecanismo da natureza” (CERQUEIRA, 2002, p. 138).
1.3.1 A questão do inatismo
Historicamente, o que nos permite estabelecer a ligação entre a ideia de filosofia brasileira e a cultura francesa é a circunstância de a cultura brasileira apresentar-se, no século XIX, como filha desta cultura (MAGALHÃES, 2004, p. 395). Qual a evidência disso? Depois das reformas pombalinas, a cultura brasileira passa a girar em torno à cultura de língua francesa e não mais em torno à cultura de língua portuguesa. Em outras palavras: a formação da intelectualidade brasileira passa por Paris, e não mais por Coimbra. Este é um fato assinalado desde as primeiras décadas do século XIX[65]. Filosoficamente, estabelecemos uma relação entre o pensamento brasileiro, desde o magistério de Frei Francisco do Mont’Alverne (1748-1858), que, no Seminário de São José, no Rio de Janeiro, referia-se a um filósofo francês, contemporâneo seu, como um “destes gênios, nascidos para revelar os prodígios da razão humana [e que] reconstruiu a filosofia, apresentando as verdades, de que o espírito humano esteve sempre de posse. Os sistemas exclusivos foram prescritos por Mr. Victor Cousin” (apud CERQUEIRA, 2002, p. 117). Mont’Alverne foi o primeiro professor de filosofia de Gonçalves de Magalhães, a quem estimulou a aprofundar os estudos em Paris. Lá, Magalhães acompanhou os cursos de Jouffroy, discípulo de Cousin, cujas teses tem a sua origem no chamado espiritualismo francês de Maine de Biran (1766-1824), mas que é fruto de uma tradição que se inicia com Descartes, passando por Pascal, Bossuet, Malebranche e culminando com Bergson. Imbuído dessa tradição, Magalhães forma um núcleo de ideias a partir de uma certa concepção metafísica da introspecção psicológica como método próprio da filosofia, cuja essência, a consciência de si, seria, do ponto de vista da introspecção, inata.
A psicologia afeiçoa-se, assim, em filosofia primeira ou metafísica, como uma “ciência positiva e real”, referente aos fenômenos da consciência. Trata-se, portanto, de descobrir o princípio real do ato de pensar a si mesmo no processo de autoconsciência, o que leva Magalhães a reconhecer como primeira necessidade do homem o retorno para si mesmo, certo de que a verdade não se apresenta no quadro da observação da realidade exterior, mas relativa à existência do sujeito pensante, como uma coisa individual, única intemporal de qualquer pensamento possível fundado no uso teórico da razão, orientando o homem para o modo essencial do seu ser, conforme podemos observar em Aristóteles[66], ou seja, de agir em conformidade com a razão:
“Nesse mundo da razão, vasto campo das ciências metafísicas, reconhece o espírito como primeira necessidade refletir sobre si mesmo, distinguir-se do que não é ele, estudar essa faculdade ativa aberta a verdade, descobrir as suas leis, diferenciá-la de outras faculdades que a acompanham e a assistem, classificar os seus atos, ver os que pertencem a cada uma delas em separado, e os que dependem do seu exercício simultâneo.[...] e com o testemunho irrecusável e imprescritível de sua consciência, a inteligência [...] cria a psicologia, acha as leis da lógica, os fundamentos da estética, da moral, e da legislação, e por conseguinte de todas as ciências que se originam da liberdade humana, e que seriam vãs sem a liberdade [...] além deste conhecimento dos fenômenos psicológicos, que se apresentam como distintos dos fenômenos físicos, as ideias de substância e de causa [...] sem o que não pode o homem compreender a possibilidade das aparências, e das suas mudanças contínuas; essas ideias necessárias, absolutas e eternas [...] o elevam ao conhecimento da sua origem, e ao estudo da substância, e da causa, ciência ontológica, ou da realidade, a mais transcendental, a mais difícil das ciências, a que se abalança o homem, apoiando-se em dados que lhe fornecem uma profunda análise dos fatos psicológicos. O espírito humano tem um pressentimento, como uma revelação interior, ou ciência instintiva, que diversa é a sua substância essencialmente ativa, da do seu corpo; diversa a sua lei, diverso o seu destino; e que acima das aparências sensíveis, e dos atos atestados pela sua consciência, existe o mundo da realidade substancial infinita, que poderosamente o atrai; na contemplação desse mundo ideal da razão pura [...] acha ele um encanto inefável, a que nada se pode comparar, que nada pode substituir; porque [...] nisso está o complemento da lei que o rege” (MAGALHÃES, 2004, p. 60-61).
Nessa orientação, torna-se um autor de importância no momento em que nas suas ideias verificamos um projeto moderno de superação da substância essencialmente ativa, considerada como vontade, em relação ao corpo, manifestação do estado em que a vontade humana se encontra indiferentemente submetida à divina providência, aduzindo a existência do EU em face do não-EU, que revela a necessidade da inteligência como essência do sujeito cognoscente e razão de ser da lei de causalidade universal, enquadrando-se no âmbito das mais fundamentais preocupações do pensamento moderno, proclamando a “necessidade transcendental do espírito humano”, e valendo-se da abstração de toda dependência do espírito em relação ao corpo e aos sentidos, pois:
“Não é com os olhos pregados no mundo exterior, com todos os sentidos abertos e atentos aos fenômenos sensíveis, que há de o espírito humano conhecer a sua própria natureza, os seus atributos, e o seu destino; é recolhendo-se no santuário da sua consciência, refletindo sobre os seus próprios atos, examinando os fatos atestados por eles, que poderá penetrar nesse mundo espiritual da metafísica, [...] Para que possa o espírito conhecer-se, é mister que pela comparação se distinga de tudo o que não é ele, nem dele” (MAGALHÃES, 2004, p. 293).
E neste mundo espiritual o espírito encontra o princípio real ou o fato primitivo da consciência: o esforço voluntário, conforme observamos em Maine de Biran, na sua obra Mémoire sur la décomposition de la pensée (1805). Um fato, na medida em que os dados da consciência são vividos; e primitivo, na medida em que não possa ser decomposto. Assim, o fato primitivo firma-se na experiência espiritual do esforço que ultrapassa a dimensão do mecanismo orgânico, em que a tensão muscular está às voltas com o corpo enquanto obstáculo. O que leva Magalhães a dizer, após coadunar-se com Gall e Spurzheim, na distinção entre desejos e vontade, que esta é o resultado da ação simultânea das forças intelectuais superiores — atenção, reflexão, comparação e juízo —, expressando-se como liberdade; é um ato próprio do espírito de sua livre atividade no meio da fatalidade que o cerca, pois ela preside ao uso do corpo, criando as necessidades das ações físicas voluntárias, afinal ter músculos não faz mover o homem, assim como não cria a necessidade de fazê-lo, ou seja,
“não podendo essa livre vontade deixar de ser ato de alguma potência, faculdade de algum sujeito, determinação de algum ser ativo que realmente existe, nada nos impede de atribuir essa vontade ao espírito mesmo [...]. Tanto mais que a vontade é o que caracteriza a personalidade humana, e lhe dá nela mesma a primeira ideia de potência e de causa, à que pela razão se liga a ideia de substância; porque a causa é a substância em ação [...]. Essa liberdade que caracteriza a vontade, definida nos seus devidos termos, é um fato de consciência que tem a necessária evidência em si mesmo, dispensa qualquer outra demonstração e destrói todos os argumentos que a negam. Não consiste a liberdade em obrar sem razão, ou sem motivo; mas em obrar por determinação própria, segundo a sua própria razão” (MAGALHÃES, 1876, p. 56-57).
Descartes, dentro deste mesmo sentido, percebeu que o eu se recolhe, voluntariamente, para afirmar sua existência e, a partir deste mesmo ato voluntário (que se apresenta como causa livre), concluir que essa realidade absoluta exerce, para tanto, uma ação, que não se confunde com a corporeidade, mas dela não pode separar-se.
Neste sentido, a ideia do esforço voluntário como fato primitivo da consciência de si reaproximou do interesse filosófico a experiência mística e religiosa, assim como o senso comum, na medida em que as coisas vividas são fatos, são sempre reais e presentes. O fato primitivo exprime uma relação originária entre o eu e o não eu, representada por Descartes na expressão máxima do “Eu penso”. Ora, do ponto de vista dessa relação, estariam envolvidas na autoconsciência as noções originárias de substância, causa, unidade, identidade, bem como a de uma causalidade externa inteiramente independente do eu, que não seriam simples abstrações, senão fatos do espírito humano. Contudo, ao invés da visão racionalista do Cogito, com ênfase na consciência de si como razão universal, apresenta-se a perspectiva moral da necessidade do esforço voluntário na consciência de si, renovando-se o sentido cartesiano da liberdade como negação da vontade indiferente, “quando não sou absolutamente impelido para um lado mais do que para outro pelo peso de alguma razão”[67], bem como a ideia de que a inclinação da livre vontade se segue à clareza do espírito, gerando necessariamente a concórdia e a estima:
“a livre vontade é a essência do nosso ser espiritual, porque pelas sensações e percepções nos reconhecemos subjugados por uma ação ou causa estranha, que tem o seu instrumento no nosso próprio corpo, e todas as afecções sensíveis se impõem à nossa vontade. Do mesmo modo, quando pensamos, se nos apresenta o que tomamos por verdade como independente da nossa vontade, e emanada de uma razão absoluta. Mas quando queremos, quando nos esforçamos para conhecer a verdade das coisas, ou para resistir a qualquer desejo, ou a qualquer ação estranha, e efetuar as nossas próprias determinações, reconhecemos então que somos uma potência livre, um ser real, que tem a posse de si mesmo, e cuja personalidade se revela pela vontade no eu da consciência. Assim, se não podemos deixar de ver quando abrimos os olhos, podemos fechá-los para não ver o que nos desagrada; e isso fazemos muitas vezes. Se não podemos deixar de perceber a verdade quando ela se apresenta à nossa compreensão, podemos retirar-lhe a nossa atenção, duvidar, sofismar, e mesmo negá-la; o que muitos fazem por espírito de sistema, e outros por interesse. E se não podemos vencer as nossas paixões, podemos resistir-lhes até certo ponto, destruir o seu instrumento orgânico, e libertar-nos desta vida terrestre, pelo suicídio; triste privilégio da liberdade humana!” (MAGALHÃES, 1876, p. 64-65)
Se assim não fosse, “a psicologia seria toda a filosofia, se o sujeito pensante não saísse da contemplação de si mesmo, se o eu espontaneamente não se distinguisse do não eu, se ao subjetivo não se opusesse o objetivo”, de maneira que, em virtude dessa relação entre o eu e o não eu, entende que “não haveria filosofia se o espírito humano estivesse na impossibilidade de conhecer o que são as coisas em relação a ele que as percebe, e à causa que as produz” (MAGALHÃES, 2004, p. 75).
Segundo Maine de Biran, a consciência se manifesta em vários níveis. O nível mais baixo corresponde ao “sentimento espontâneo” ou “afecção simples”, ou seja, o eu ainda não se revela. Isso só acontece quando a percepção acompanha a reflexão, quando todas as afecções são referidas a si. Essa experiência interior, ainda obscura e confusa, exige uma “decomposição do pensamento”, que será o método próprio da psicologia introspectiva. Decomposição real, e não lógica, em que os elementos são dados separadamente à consciência, cuja finalidade é a de evidenciar o princípio da consciência de algo, ou como nos diz Magalhães, o conhecimento imediato que temos de nós mesmos (MAGALHÃES, 1876, p. 330), a começar pela existência do espírito.
Magalhães, de acordo com Maine de Biran, concebe a consciência como um esforço oposto à resistência do objeto externo, de modo que a consciência de si se dá sem a possibilidade de separação ontológica entre o mundo espiritual e o mundo da vida. A independência do espírito humano, portanto, não exclui a causalidade externa. Concepção que o leva a divergir de Cousin, quando este afirma, quanto à causa natural das sensações, que o “seu princípio, o princípio de causalidade, é uma lei necessária do meu espírito” (Magalhães, 2001: 206; citação do autor). Esclarece Magalhães que a existência natural das coisas, no tanto quanto não depende da inteligência nem da vontade, não deriva de tal princípio, uma vez que, assim como qualquer outro princípio, ele vem exclusivamente da razão pura, do espírito livre, como um absoluto, enquanto que a natureza se instaura por determinação outra, externa, e também absoluta:
“A crença na existência dos objetos externos não nos parece derivar do princípio de causalidade; ao contrário, esse princípio é um axioma formulado como tantos outros pelo espírito em virtude da percepção desses objetos. Ele é verdadeiro, porque o fato o é; universal, porque todos percebem do mesmo modo; absoluto, porque a razão é absoluta [...] De que serviria ao espírito a faculdade de saber, e uma livre atividade, se necessitasse que a intuição de causa externa lhe fosse dada por uma lei? [...] Agora, se quiserem chamar instinto, ou lei, o ato pelo qual o espírito inteligente e livre reconhece intuitivamente que o fenômeno que se lhe apresenta como externo, independente de sua vontade, é proveniente de uma causa fora de si mesmo, ou de uma vontade estranha, é questão de palavra” (MAGALHÃES, 1876, p. 207-208; itálicos acrescentados).
Para preserva a autonomia do espírito de toda e qualquer forma de interferências externas, distinguindo a inteligência da sensibilidade, considera a sensação como um modo especial e interno da faculdade de sentir “e não sendo a sensação, ou a ideia, uma imagem da impressão, nem por ela imediata e necessariamente produzida, segue-se que ela ou é produzida naturalmente pela alma, ou lhe é inata, ou lhe é dada por ocasião da impressão” (MAGALHÃES, 1876, p. 78).
Esse seria um aspecto positivo e original na obra de Magalhães, onde ele introduz uma relação entre sensação e percepção, separando-as, fundamentando-se na distinção de Maine de Biran entre sensação e percepção, enquanto distinção entre a impressão passiva provocada pelas coisas externas e a impressão ativa do espírito como atividade exclusivamente interna[68]; por outro lado, inspira-se visivelmente em Descartes, quer na consideração do ser-situado, quer na consideração dos desacordos motivados pelo erro em relação à ideia do absoluto como natureza comum:
“Se supusermos leis necessárias a que sujeito esteja o entendimento humano, seremos obrigados a supor também um ser necessário que lhe imponha essas leis, e coisas necessárias, objetos dessas leis; e neste caso o espírito humano deveria instintivamente dirigir-se para esses objetos, sem enganar-se no meio de concebê-los. Donde viriam então os erros do espírito humano? Donde viria o desacordo entre Platão e Aristóteles, Descartes e Condillac, Leibniz e Hume?” (MAGALHÃES, 1876, p. 215; itálicos acrescentados).
Isso representa uma inovação na teoria da sensibilidade, pois ela sempre foi considerada como um termo genérico para abranger os modos de ser da consciência provenientes da sensação e percepção. Mas, fundamentado no seu argumento de que o espírito é uma realidade objetiva, o autor dos Fatos exclui a sensibilidade dos domínios da consciência, demonstrando que o espírito não sofre qualquer interferência externa e que o mesmo é autônomo, asseverando que perceber não é sentir (MAGALHÃES, 1876, p. 94), pois a sensação é característica das atividades orgânicas, enquanto a percepção é da consciência. A sensação, sendo um ato interior, uma modificação da faculdade de sentir (MAGALHÃES, 1876, p. 108), só pode referir-se a um objeto exterior através da faculdade inata do espírito de perceber e de julgar, ou seja, a sensação ocasiona a percepção.
A sensação, é um fenômeno em nós (MAGALHÃES, 1876, p. 94), ou melhor, é ela que nos dá as qualidades exteriores e interiores, isto é, as qualidades dos objetos e os efeitos internos sobre nós, sendo algo ambíguo, pois é ao mesmo tempo, a qualidade que está no objeto e o sentimento interno que nosso corpo possui das qualidades sentidas. Por isso se pode afirmar que ninguém diz o que sente, pois sentimos as qualidades como integrantes de seres mais amplos e complexos do que a sensação isolada de cada qualidade, por isso dizem que só temos sensações sob a forma de percepções, ou melhor sínteses de sensações.
Como a sensação é passiva, então não é a atenção, que é um “ato da faculdade ativa” (MAGALHÃES, 1876, p. 95), sendo o seu grau determinado pela consciência, pois: “quanto mais viva é a sensação, mais passivos somos; e quanto mais moderada ela é, tanto mais se manifesta a nossa atividade”. Assim como a sensação não é memória, pois esta seria uma faculdade do ser ativo e que representa a duração da consciência, ou, de outro modo, a consciência do passado, da duração e da sucessão, nos trazendo a identidade do eu e da consciência, espontaneamente ou depender da vontade, donde podemos concluir que a imaginação “é a memória das coisas sensíveis que está na consciência” e a fantasia ou imaginação criadora, a atividade própria do espírito, a faculdade “que dispõe dos fatos existentes na sua memória” (MAGALHÃES, 1876, p. 119).
A percepção, para Magalhães, é tida como uma relação da consciência do espírito com o mundo exterior, não uma reação fisiológica de um conjunto de estímulos externos (como suporia um sensualista). Seria “o saber, ter ciência do que fora de si passa”, o que supõe necessariamente a consciência, pois, “quem não tem consciência de sua própria existência não pode de nenhum modo distinguir-se de coisa alguma, não pode ter percepções, nem ciência de coisa alguma dentro ou fora de si” (MAGALHÃES, 1876, p. 117), neste sentido, o saber, entendido como estrutura inata, é a garantia da percepção, porém, é capaz sempre de atividade pura, apesar de seu misto de atividade e passividade, por isso, distingue Magalhães:
“a sensibilidade propriamente dita, [...] que sente sem consciência e sem memória, da percepção externa, ou perceptibilidade do espírito, que recebe, refere, e objetiva essas sensações, as quais lhe servem de sinais de alguma coisa. A perceptibilidade é a faculdade do espírito que se corresponde com a sensibilidade vital, e se serve das sensações, as reúne, e as conserva em memória, e o faz parecer sensível, pela consciência da percepção imediata delas” (MAGALHÃES, 1876, p. 143).
Descartando o processo de redução das ideias a aspectos contingentes e relativos, tão usados pelos sensualistas, e atento à natureza das nossas ideias, Magalhães esclarece que, além da faculdade de sentir e de uma atividade própria, o espírito tem uma faculdade inata de saber, “tanto o que nele está, como o que fora dele se passa” (MAGALHÃES, 1876, p. 117). A isso se dá o nome de consciência, entendida como o “saber o que está em si mesmo, ter ciência de todos os seus atos” e “a ciência refletida em alguém, individualizada, personalizada, possuída por um sujeito ativo, e convertida assim em faculdade individual [ou] conhecimento imediato que temos de nós mesmos” (MAGALHÃES, 1876, p. 330).
“A consciência da unidade e identidade do ser que pensa, sente e quer é um fato indeclinável [...] Esse fato de consciência obriga tanto os filósofos como o comum de todos os homens a atribuir todas as nossas faculdades a um princípio simples, a um mesmo sujeito indivisível, a que chamamos alma ou espírito, para o distinguir do princípio substancial dos fenômenos corpóreos, que se nos apresentam como composto de partes e indivisível. Nem as palavras espírito e matéria têm outra significação na ciência, nem nos meios temos de conhecer esses dois seres senão pelo fenômenos que nos revelam.[...] Do mesmo modo que para o ser real que pensa não há nem pode haver demonstração mais evidente da sua existência do que o ato mesmo de pensar; assim não há nem pode haver demonstração mais evidente da unidade e identidade de sua substância do que a própria consciência dessa unidade e identidade, no meio da variedade e sucessão de seus atos. A consciência, direi, é a evidência mesmo da existência real do ser que se conhece existir com todas os atributos de que é cônscio, entre os quais a unidade e identidade; é para nós a primeira e a condição de todas as evidências” (MAGALHÃES, 1876, p. 45).
Distinguindo uma faculdade de saber da de sentir, agora é necessário examinar a percepção externa, na qual se distinguem duas partes básicas: a sensação, através de uma impressão orgânica, e a presença ou intuição, referida pela consciência através de qualidades. Dessa forma a sensação é vista como um sinal objetivado pela consciência, cabendo, inicialmente, a natureza separar a sensação da percepção e à consciência, confirmar essa separação, pois a faculdade de sentir é separada da consciência, ou seja, “eu sou o ser ativo dotado de consciência, que posso sentir ou deixar de sentir o que se passa no meu corpo” (MAGALHÃES, 2004, p. 165), sendo este apenas uma “condição temporária da permanência da impressão e da sensação” (MAGALHÃES, 1876, p. 154), embora Magalhães o reconheça como condição da vida.
É por isso que se pode considerar, em Magalhães, a consciência, enquanto dimensão da subjetividade, mostra-se como vida, unindo pensamento e ação, possibilitando então ao ser humano sair da esfera puramente orgânica para entrar no universo articulado das representações, explicitadora de sentido e com o qual o homem refina sua apreensão do mundo, assim como, da própria subjetividade enquanto subjetividade, levando o sujeito a se dar primazia e prioridade no universo significativo, diluindo o objeto no próprio sujeito, em outros termos: “O que é próprio do espírito humano, o que lhe é individual e subjetivo, é a faculdade de saber, inteligência, ou entendimento das coisas, e a faculdade de obrar por si mesmo, de servir-se dessa inteligência, e do seu corpo até certo limite” (MAGALHÃES, 1876, p. 203), sem necessidade de negar a sensibilidade ou renegar o corpo, porém sempre estabelecendo o espírito como prioritário, como causa final de sua substância material. Afinal:
“O espírito humano entra em exercício neste mundo com a faculdade de saber e de julgar inata com ele, mas que nada pode saber sem que uma coisa se lhe apresente e a provoque. O seu primeiro ato é a percepção sensível, ato complexo no qual ocorre: 1º a sensação, fenômeno externo ao espírito, que se lhe apresenta como objeto; 2º a faculdade de saber própria do espírito ativo, que lhe dá a consciência de si, e faz que ele não tome essa sensação como ato seu, e a perceba como distinta dele; 3º a razão que lhe dá a causa no objeto a que essa sensação se refere como efeito e fenômeno por ele provocado” (MAGALHÃES, 1876, p. 203; itálicos acrescentados).
Em resumo, poderíamos apresentar o pensamento de Magalhães da seguinte forma: as ideias são por nós conhecidas a partir dos objetos ou seres materiais, por abstração ou certa separação, como entidades distintas ou independentes, imóveis ou incorruptíveis, por parte da faculdade de saber do homem. Esta abstração realiza-se quando o intelecto, com o auxílio das sensações, apreende nos seres materiais ou objetos singulares não as próprias naturezas comuns que nelas existem, mas as semelhanças naturais pelas quais são representadas sem nenhuma diferença individual.
Baseado em Aristóteles, poderíamos falar assim: a sensação é a base de todo conhecimento, ela é o ato comum do sensível e do que sente, isto é, ela apreende diretamente as qualidades sensíveis das coisas. A sensação é fonte da verdade, mas não o seu critério. Contudo, toda faculdade cognitiva em nós existente separa (ou abstrai) e distingue o seu objeto dos objetos das outras faculdades cognitivas, por exemplo: a audição abstrai a tonalidade das outras propriedades do som, com as quais ela permanece ligada na realidade. Só que os sentidos, uma vez que são materiais e ligados a um órgão corpóreo, apenas conhecem os indivíduos ou os objetos singularmente, e não podem separar senão determinadas coisas materiais e sensíveis do objeto.
Mas, a inteligência, uma vez que é uma potência imaterial, e não está ligada a nenhum órgão corpóreo, apreende as ideias dos objetos e não das coisas: a razão capta a forma intelectual delas, ou o seu conceito, pois se conhecer é um ato capaz de apreender o ato do objeto conhecido, aquilo que ele é enquanto ser, então conhecer é captar a forma atual da coisa.
Tal abstração realiza-se da seguinte forma: os sentidos externos sendo a porta de entrada para se conhecer, recolhe os dados da experiência, no qual a percepção objetiva, separando as essências dos acidentes das coisas que se lhe apresentam, estes se ligam a imaginação que designa tanto um processo mental de fazer aparecer a imagem de uma coisa que foi percebida, quanto designa a própria aparição dessa coisa aos sentidos. A imaginação, ligada a percepção, que é o sabermos que temos uma sensação, está diretamente ligada a esta, mas como processo mental de fazer aparecer uma imagem está ligada à memória. Ela não cria imagens mas reproduz as imagens da sensação, organizando-as e estabilizando-as.
Deste modo se compreende a sua crítica ao empirismo de Locke, ou as objeções de Hobbes e, principalmente, ao sensualismo de Condillac, que passou a ser conhecido por Magalhães através de um curso ministrado pelo filósofo português Silvestre Pinheiro Ferreira de suas Preleções filosóficas (1813-1816). Discípulo de Locke, Condillac procura reduzir todas as coisas a um princípio único através da identificação das proposições científicas, analisando a percepção e a reflexão, unificando a origem das ideias nesta última, pois “no princípio, a reflexão é a sensação mesma” (MAGALHÃES, 1876, p. 92). A crítica de Magalhães se inicia nas contradições que se dá nas obras desse autor sensualista, mas é, sobretudo a hipótese do “homem estátua”, dotado originariamente apenas de capacidade sensorial, que nada mais seria do que uma reprodução da tabula rasa de Locke.
Condillac tenta explicar toda as atividades intelectivas e volitivas, como simples resultado de combinação de sensações. Esse método de supor que todas as nossas faculdades e ideias seriam originadas unicamente da sensação, se dá pelo fato de se admitir uma verdade que só deve ser constatada pela indução.
Na sua crítica a Condillac, Magalhães considera que é impossível reduzir as ideias a sensações consideradas como representações dos objetos sensíveis, pois se nada no universo é visível para nós, como quer Condillac, isto se constituiria na negação da visibilidade do mundo físico em prol da universalidade das sensações. Isso seria reduzir a ideia de substâncias dos fenômenos sensíveis a uma ideia imaginária, inconcebível para o autor fluminense. Mas se ela existe no entendimento e não nos vem através dos sentidos, é porque nossa alma tem o poder de produzir, ou de a receber, por canal diverso da sensação. Essa ideia seria, para Magalhães, simples, necessária e universal, de maneira a existir no nosso entendimento independente dos sentidos, dos quais apenas adquirimos qualidades, não havendo, portanto, necessidade de confundir a ideia de substância com o seu objeto.
A imaginação estabelece uma ponte entre a faculdade sensitiva e a faculdade de saber ou racional, ou entre a sensação e a razão. Assim, tendo a imaginação oferecido as imagens ao intelecto, fornece-lhe a matéria para a intelecção, todavia, como as imagens são materiais, não podem por si agir no espírito, que é imaterial, isso se torna possível, pelo fato de possuirmos um espírito duplo: passivo e ativo: um que de coisa materiais produz coisas imateriais e outro que pode receber as coisas imateriais. As imagens, elevados pela luz da faculdade ativa do espírito (intelecto agente), parafraseando Santo Tomás, imprimem as espécies.
Do exposto se conclui que há uma dupla abstração que se dá por meio das faculdades sensitivas e que se dá por meio da faculdade do saber:
“Há duas espécies de abstração para o espírito, uma das coisas puramente fenomenais e relativas, com que formamos as ideias gerais coletivas, que não correspondem a nenhuma realidade na natureza, fora dos objetos donde as abstraímos, como a ideia geral de árvore, ou de animal. [....] A Segunda espécie de abstração consiste simplesmente em considerar em separado os elementos necessários que concorrem na percepção externa, e que são para nós verdades absolutas e universais, não formadas por uma coleção de atributos relativos” (MAGALHÃES, 1876, p. 124).
Há, dessa forma, faculdades de sentir que pré-existem à sensação, tais como a memória, a consciência e sua coexistência com um eu que pressupõe um ser real, sujeito permanente e idêntico e que se distingue do que nela ocorre. Descartes e Leibniz chamaram essa pré-existência de inata, e Magalhães a reafirma:
“Essa teoria das ideias inatas, ridicularizada pelos que não a entendem, ou reduzem o espírito humano a uma tábua rasa, foi satisfatoriamente explicada pelo seu autor, respondendo às objeções de Hobbes contra suas Meditações, de modo tal que atenua tudo o que ela teria de repugnante ao empirismo. ‘Quando digo’, é Descartes quem fala, ‘que qualquer ideia nasce conosco, ou esta assinalada naturalmente em nossas almas, não entendo que ela se apresente sempre ao nosso pensamento; entendo tão somente que temos em nós a faculdade de a produzir’ [...] não se trata de noções no estado atual de um conhecimento presente à consciência, ou conservado na memória, ou formulado em axioma; trata-se de uma disposição natural do nosso espírito, com ela nascida, independente da impressão externa, e manifestando-se espontaneamente por uma virtude do espírito, e não como um efeito necessário da impressão” (MAGALHÃES, 2004, p. 94; itálicos acrescentados).
É importante considerar que o inatismo se baseia na admissão necessária de um elemento cognoscitivo essencial, anterior a qualquer experiência, podendo ser um conteúdo conceitual acabado ou predisposições estruturais das faculdades cognoscitivas. Descartes, inicialmente, nos apresenta inicialmente as ideias inatas como conteúdos conceituais mais ou menos acabados, conhecimentos já em ato ou explícitos desde o princípio. Porém, em explicações ulteriores, conforme a resposta à objeção de Hobbes, apresenta claramente as ideias inatas como simples predisposições naturais para determinadas formas de conhecimento, que se desenvolverão por meio de estímulos das coisas exteriores. Por isso que se pode classificar o pensamento cartesiano como um inatismo apriorístico.
Existe uma faculdade passiva de sentir, ou melhor, de receber e de reconhecer as ideias das coisas sensíveis. Mas ela seria inútil se não houvesse uma faculdade ativa capaz de formar ou produzir as próprias ideias, pois foi dito antes que a sensação é fonte da verdade, mas não o seu critério. Ora se ela é fonte e não os critérios da verdade, então por isso que as ideia provenientes dos sentidos, as ideias adventícias, não são confiáveis, somente as ideias inatas, ou a faculdade inata de saber que se tornam o fundamento de todo o conhecimento pela reflexão.
Eis o pensamento espiritualista de Gonçalves de Magalhães: apoiando-se sobre a teoria das ideias inatas de Descartes, Magalhães esforça-se por estabelecer o princípio humano, a capacidade inata de saber, relacionando, de modo não explícito, com os princípios do intelecto ativo ou faculdade ativa do espírito, estabelecidos desde Aristóteles, buscando, assim, encontrar no fato primitivo da consciência uma via de acesso ao absoluto, ou seja, o espírito é possuidor de uma série de princípios evidentes, ideias inatas, que servem de fundamento lógico, ontológico e epistemológico a todos os elementos com que nos enriquecem a percepção e a representação, o que o permite manifestar-se em termos de inteligência e liberdade, passível de conhecimento pelas forças mesmas da atividade cognitiva, e alcançar um conhecimento metafísico da realidade como um todo exclusivamente por meio do conhecimento dessa consciência, pois:
“Basta-lhe a inteligência, e a sua livre atividade, para que saiba o espírito imediatamente que o que não é ele, nem dele, é coisa diversa e fora dele [...] A glória do espírito humano consiste em conhecer por seus próprios esforços as leis das relações das coisas finitas, e distingui-las do que é real e infinito, que ele sabe existir em uma só realidade única, indivisível e eterna, a que se eleva, partindo da percepção das coisas sensíveis, que ele, por assim dizer, desmascara, para vê-las como elas são, e o que são. E isso deve ele à aplicação voluntária da sua faculdade de saber” (MAGALHÃES, 2004, p. 283 e-289).
1.3.1.1 A questão da liberdade
Nas passagens em que procura esclarecer, à luz do Cogito, a natureza do erro, Descartes introduz um conceito de liberdade que supõe a situação do ser humano em face da ideia de Deus. Isto quer dizer: se me permito duvidar e discordar livremente do que não me parece inteiramente certo ou examinado, inclusive de mim mesmo, isto se deve, por um lado, ao fato de que o ser humano erra, sendo capaz por si mesmo de enganar-se, e, por outro lado, ao fato de que, enquanto duvido, sou incompleto e dependente. Trata-se, portanto, de um modo do ser, inerente à consciência de si, que, para além de toda a dependência em relação ao próprio corpo e a determinações externas, implica “a ideia de um ser completo e independente, ou seja, de Deus” (DESCARTES, 1973b, Meditação Quarta, 2), que, pela sua própria completude e independência, não pode não ser, ou morrer, faz o que quer e, por isto mesmo, não pode ser um Deus enganador. Essa ideia do Deus não enganador envolve, em atenção aos argumentos de Santo Agostinho acerca da origem do mal e da relação entre a vontade e a necessidade[69], a distinção entre a necessidade natural, enquanto uma força estranha à inteligência e à vontade, como a necessidade da morte, e a necessidade espiritual, a exemplo da necessidade nas ações morais, de modo que o não querer enganar é uma necessidade espiritual e condição mesma da vontade livre e criadora:
“reconheço que é impossível que ele me engane jamais, posto que em toda a fraude e embuste se encontra algum modo de imperfeição. E, conquanto pareça que poder enganar seja um sinal de sutileza ou de poder, todavia querer enganar testemunha indubitavelmente fraqueza ou malícia” (DESCARTES, 1973b, Meditação Quarta, 3; grifo acrescentado).
Disso se segue que o erro, em sua origem, não se encontra no âmbito da necessidade espiritual, onde se encontra a ideia de Deus, senão no âmbito da necessidade natural, como privação ou carência, em função do modo incompleto e dependente do ser humano:
“Assim, conheço que o erro enquanto tal não é algo de real que dependa de Deus, mas que é apenas uma carência; e, portanto, que não tenho necessidade, para falhar, de algum poder que me tenha sido dado por Deus particularmente para esse efeito, mas que ocorre que eu me engane pelo fato de o poder que Deus me doou para discernir o verdadeiro do falso não ser infinito em mim” (DESCARTES, 1973b, Meditação Quarta, 5).
Em Descartes, essa concepção do ser humano como um poder finito perante a ideia de Deus como um poder infinito, corresponde ao modo do ser-situado, isto é, ao fato de o ser humano situar-se, na consciência de si, a meio caminho entre o ser completo e independente, que ele concebe por exigência da razão, e o ser incompleto e dependente que ele vive na experiência, participando assim nos dois extremos, no que é, no ser, e no que não é, no não-ser ou nada (non rem)[70]:
“sou como que um meio entre Deus e o nada, isto é, colocado de tal maneira entre o soberano ser e o não ser que [...] se me considero participante de alguma maneira do nada ou do não-ser, isto é, na medida em que não sou eu próprio o soberano ser, acho-me exposto a uma infinidade de faltas, de modo que não devo espantar-me se me engano” (DESCARTES, 1973b, Meditação Quarta, 4).
Na medida em que o erro supõe o ser-situado e o afastamento da ideia do ser completo e independente como um absoluto, o poder enganar-se se explica, em Descartes, em função “do concurso de duas causas, a saber, do poder de conhecer que existe em mim e do poder de escolher, ou seja, meu livre arbítrio; isto é, de meu entendimento e conjuntamente de minha vontade” (DESCARTES, 1973b, Meditação Quarta, 9). Mas isto não quer dizer, de modo algum, que o entendimento e a vontade contribuam apenas para o erro; quer dizer tão somente que o entendimento e o livre arbítrio concorrem tanto na propensão para a certeza e a realidade das coisas, quando delas se diz que são verdadeiras, na medida em que existem, como na propensão para o falso e o que isto representa como coisa nenhuma ou nada, quando se julga que existe o que não existe.
O fato é que no caso do que não está certo ou totalmente examinado, Descartes afirma que somos livres para discordar (DESCARTES, Princípios da filosofia I, 39 e 43); mas no caso contrário, das verdades apreendidas de maneira clara e distinta, diz ele que somos totalmente levados à concordância, não só pelo entendimento, como também pelo livre arbítrio, porque “é certo que de uma grande luz no entendimento segue-se uma grande propensão na vontade”[71]. Ora, assim sendo, qual a contribuição do livre arbítrio na propensão para a concordância? Há liberdade quando a vontade se determina completamente e a escolha se torna necessária com base no entendimento? Em Descartes, a resposta é sim.
A liberdade cartesiana não é um poder contra-causal, um poder absoluto que se oponha à lei de Deus; mas, não obstante essa aparente circunscrição à metafísica escolástica, é a condição suficiente e necessária pela qual o homem escapa ao determinismo da natureza para transformar-se, numa perspectiva inteiramente nova, no seu intérprete. Sem prejudicar a tradição metafísica escolástica, Descartes sustenta a necessidade em nós das leis da natureza, segundo a lei de Deus, que doou exclusivamente ao homem, para esse fim, o entendimento, provendo-o, além disso, do poder de querer ou não querer, isto é, o livre arbítrio, que, à luz do entendimento, não deixa lugar senão a que ele se ponha de acordo com as leis da natureza. Desse ponto de vista, Descartes não contradiz Santo Tomás, por exemplo, quando este argumenta que “é manifesto que tudo participa de algum modo na lei eterna, na medida em que, por impressão desta, é dotada de inclinação para os próprios atos e fins”[72], para concluir que “a criatura racional está sujeita à divina providência de modo mais excelente, na medida em que se faz ela própria participante na providência para si e para as outras [...] E tal participação na lei eterna pela criatura racional diz-se lei natural” (grifo acrescentado)[73]. Todavia, como um passo além do sentido da participação mais excelente, puramente racional, que se caracteriza pela indiferente sujeição à lei de Deus, Descartes se opõe a essa indiferença no âmbito do Cogito, ao observar que “é sempre possível deixarmos de perseguir um bem claramente conhecido, ou de admitir uma verdade evidente, desde que consideremos um bem afirmar, desse modo, o nosso livre arbítrio”[74], o que sugere a ideia de autonomia da vontade contra a servidão que impõe o mecanismo do hábito. Neste aspecto, considera ele que não é pela inteligência que o ser humano se concebe à imagem e semelhança do Criador, senão pela vontade:
“se considero a faculdade de conceber que há em mim, acho que ela é de uma extensão muito pequena e grandemente limitada e, ao mesmo tempo, eu me represento a ideia de uma outra faculdade muito mais ampla e mesmo infinita [...] Resta tão-somente a vontade, que eu sinto ser em mim tão grande, que não concebo absolutamente a ideia de nenhuma outra mais ampla e mais extensa: de sorte que é principalmente ela que me faz conhecer que eu trago a imagem e a semelhança de Deus” (DESCARTES, 1973b, Meditação Quarta, 9).
A vontade, “se eu a considero formal e precisamente nela mesma” (ibidem), é, de fato, ontologicamente indiferente para o sim e para o não; mas isso não quer dizer que o sujeito pensante seja indiferente em suas opções no mundo da vida. O mundo da vida do sujeito pensante tem a dimensão da cultura. Diferentemente do mundo da natureza, que é regido pela causalidade eficiente, pelo mecanismo, independentemente da vontade, a cultura é regida pela causalidade final, de modo que para o sujeito pensante nenhuma ação se justifica senão em vista do objeto visado (eventualmente existente) enquanto querido.
Em virtude da consciência de si não apenas como inteligência, mas sobretudo como vontade, o valor (ou virtude, em Fonseca, quando ele fala da autoridade humana) da ação implica não só o conhecimento a priori, para evitar o erro quanto ao que se visa, mas também a liberdade, para, sem indiferença, querer o que se concebe como necessidade espiritual. Do ponto de vista da causalidade final, é o desejo que move a ação, consistindo a liberdade, enquanto causalidade espiritual, numa certa habilidade adquirida ou facilidade de execução[75]. Neste sentido, não há lugar para a indiferença no âmbito do Cogito.
A liberdade tem a sua origem no livre arbítrio, mas se reduz, em última instância, ao fato de uma propensão indiferente para o sim e para o não, o que explica porque, na tradição filosófica pré-cartesiana, sempre se assinala o livre arbítrio em sua indiferença como origem do mal[76]. Por isso, pode considerar-se a indiferença no mundo da vida o mais baixo grau de liberdade, porque mesmo sem promover a ação ela não exclui a possibilidade de escolha.
2
Gonçalves de Magalhães e a ideia de liberdade
O fato que marca o nascimento da filosofia brasileira no século XIX é a introdução da liberdade como princípio de ação. Cabe a Magalhães esse mérito, que só se justifica porque a sua exigência de liberdade, embora refletindo o influxo do espiritualismo francês, resgata o pensamento de Vieira, bem como é o elo de ligação com Tobias Barreto e Farias Brito. Acerca deste último aspecto tratarei adiante. Quanto a Vieira, cabe retomar seu pensamento.
Qual a tese de Vieira sobre a liberdade? Que o ser humano por natureza padece, mas não é pela exclusão do padecimento que a liberdade aparece. Quando trata da situação do escravo, Vieira procura mostrar que a consciência de si promovida pela conversão religiosa é a condição não só de pensar a desigualdade e a injustiça determinadas pelo nascimento, como também, mediante a ideia do reino de Deus inerente à própria conversão, conquistar o benefício de participar em outra realidade, onde não há sofrimentos físicos nem morais, onde todos se reconhecem em absoluta igualdade de essência, numa visão da realidade que não depende da experiência e, de certo modo, se propõe exatamente ultrapassar os limites da experiência. Em outras palavras: pela autoconsciência decorrente da conversão religiosa todo o sujeito se revela a si mesmo submetido ao determinismo da natureza, descobrindo porém, na mesma revelação, uma via de escape dessa prisão. Neste sentido, e somente neste sentido, a fé se constitui no primeiro grau de liberdade na medida em que, em face da dor e da morte, celebra a vida. Além de Vieira, também Magalhães soube exprimir essa consciência trágica da existência humana:
“Do céu as estrelas/ Acaso no brilho/ São todas iguais?/ São umas mais belas,/ E outras parecem/ Funéreos fanais./ Assim são os fados/ Dos tristes mortais./ Cada qual tem sua sorte;/ Um foi para a dor gerado,/ E outro pela ventura/ Ao nascer foi embalado./ Quanto mais penso, mais creio/ Neste mistério profundo;/ E a mim mesmo pergunto:/ Para que vim eu ao mundo? (...) Para a dor, me diz, nasceste;/ Para a dor, para o tormento;/ Teus males só terão termo/ Co’o teu último momento. (...) Não serei livre de lançar por terra/ Um fardo que me acurva, um fardo inútil?/ É a vida para uns néctar suave,/ Tóxico é para mim;... devo tragá-lo?/ Acaso Deus me disse − A ti toca sofrer por mil que gozam (...) A sorte choremos,/ Que avêssa nos é;/ Mas não blasfememos,/ Vivamos co’ a Fé” (MAGALHÃES, 1836, Para Que Vim Eu ao Mundo?).
A fé, no entanto, pode transformar-se em princípio de alienação na medida em que se transferem para o domínio de Deus todas as aspirações de justiça, implicando isto, no processo da conversão, uma separação real, porquanto vivida, entre os dois domínios. Tal separação, que caracteriza a vida contemplativa, constitui-se numa indiferença negativa, no mesmo sentido cartesiano[77], na medida em que o sujeito não exerce, moralmente falando, o seu livre arbítrio como um princípio positivo, de maneira a poder escolher e praticar a verdade universal com base apenas na consciência de si. Neste sentido, a errância, enquanto o poder enganar-se que implica o perder-se da ideia do ser completo e independente como um absoluto, supõe a decadência moral na vida contemplativa. Tal concepção não é estranha à cultura de língua portuguesa em sua origem, como se verifica na literatura medieval portuguesa:
“Porque no mundo mengou a Verdade, / punhei um dia de a ir buscar, / e u per ela fu perguntar/ disseram todos − Alhur a buscade; / cá de tal guisa se foi a perder, / que não pudemos em novas haver, / nem já não anda na irmaidade. / Nos moeteiros dos frades, regrados/ a demandei, e disseram-m’assi: / Não busquedes vós a Verdade aqui, / ca muitos anos havemos passados/ que não mor’em nosco, per boa-fé, / (...) e d’al havemos maiores cuidados. / E em Cistel, u Verdade soía/ semre morar, disseram-me que não/ morava i, havia grã sazão/ nem frade d’i já não a conhecia; / nem o abade us’outrossi não estar, / sol não queria que fosse i pousar, / e anda já fora da abadia. / Em Santiago send’albergado/ em ma pousada, chegaram romeus; / perguntei-os e disseram: Par deus, / muito levade-lo caminho errado; / ca se Verdade quiserdes achar/ outro caminho convém a buscar/ ca não sabem aqui dela mandado”[78].
Essa capacidade moral, de querer necessariamente aquelas coisas que pela inteligência prevemos como certas, não é compatível com a vida contemplativa. Ela envolve a seguinte questão: como é possível que o ser humano seja capaz de prever pela inteligência a realidade de algo sem assumir, de certo modo, que é também responsável pela sua existência? Isto quer dizer: na vida contemplativa o sujeito não é capaz de agir, como especificara Descartes, de maneira a sentir que nenhuma força exterior o obrigue a tanto. Neste sentido, a fé, para Magalhães, se constitui no mais baixo grau de liberdade:
“Podia Deus sem dúvida criar uma sociedade de espíritos puros, não obrigados a coisa alguma, não sujeitos à menor dor, seres angélicos que vivessem em uma eterna bem-aventurança, só contemplando as maravilhas do seu criador. Mas qual seria o mérito desses espíritos para tanta ventura? Necessita Deus de admiradores inúteis? [...] Concebemos que a vida humana e a ordem social podiam ser melhores do que são; que não estivéssemos sujeitos a tantas aflições e enfermidades; que fôssemos todos bons e belos; que não necessitássemos de tão rudes trabalhos para esta vida transitória; que justas fossem todas as nossas inclinações; que não houvesse ódios e guerras; que Deus mesmo nos governasse. Mas o que seria então a liberdade humana [isto é: o livre arbítrio], se estivesse inteiramente subjugada a instintos naturais? Qual seria o nosso mérito, se nenhum obstáculo se nos apresentasse? O que seria a virtude, se a não praticássemos com algum esforço, vencendo as dificuldades e os vícios com que nos opomos uns aos outros? Qual seria a nossa ciência, quais as nossas artes, a nossa indústria, se as necessidades, as privações e as misérias humanas, a que chamamos males físicos e morais, não nos instigassem a uma contínua atividade livre, a um trabalho incessante?” (MAGALHÃES, 2004, p. 355-356).
Na vida contemplativa do Brasil oitocentista, a tarefa da modernização reduziu-se ao âmbito da presciência divina, de modo que o simples conhecimento, por um ato de inteligência humana, da possibilidade e da necessidade de uma certa transformação no mundo da vida, não implicava a liberdade humana de opção pela transformação. Entendia-se, assim, o vivido da verdade como sendo apenas a participação humana na ciência de Deus, chegando-se a conceber e prever toda a mudança necessária sem necessidade de mudar coisa alguma. Tobias Barreto, em texto memorável, denunciou essa atitude:
“A verdade não tem seu tempo, ela é de todos os tempos. Não se repita com o Sr. Conselheiro Alencar [José de Alencar], no seu superficial ensaio sobre O sistema representativo, que a distância entre o político e o filósofo é imensa ... que há reformas que o espírito prevê em um futuro remoto, ao passo que no presente combate como altamente prejudiciais [...] é fácil de compreender o engano dos apóstolos da procrastinação indefinida; eles julgam prever o que realmente estão vendo e sentindo, isto é, a necessidade das reformas capitais, do estabelecimento do verdadeiro governo, da verdadeira ordem social” (MENEZES, 1957, p. 310).
Em suma, na vida contemplativa há uma verdadeira separação entre a subjetividade e a objetividade, entre consciência e corporeidade. Em Vieira, entretanto, não é isto o que se verifica, uma vez que, para ele, na consciência de si “há de servir o corpo ao próprio conhecimento, como o aço no espelho serve à vista [...] de maneira que o mesmo que impede o conhecimento direto, serve ao conhecimento reflexo”. Do mesmo modo, o esforço voluntário biraniano supõe a corporeidade. E é nesta perspectiva que Magalhães, atendendo à historicidade da cultura brasileira, propõe um sentido da liberdade como ampliação do significado meramente subjetivo do termo já pensado em Vieira: indo ao encontro do Cogito cartesiano, mas sem prejuízo da conversão religiosa, ele reconhece que “o que limita o nosso poder é o corpo animal” (MAGALHÃES, 2004, p. 354); contrariamente, porém, ao modo como na vida contemplativa se estabelece uma separação real entre consciência e corporeidade, restringindo-se a liberdade à indiferença negativa na vontade, Magalhães ressalta o caráter positivo dessa separação necessária, que é só de razão, ao observar que “só com esta triste condição poderíamos ser entes morais” (ibidem), pois o “que convém ao corpo nos é anunciado pelos apetites e desejos periódicos, que não dependem de cálculo algum, e cuja satisfação natural nos dão prazeres, e pode dar-nos algum mérito, combatendo-os quando desordenados, e tendentes a embrutecer-nos” (MAGALHÃES, 2004, p. 370).
Essa “triste condição” remete, sem dúvida alguma, ao modo do ser-situado em Descartes, uma vez que, para Magalhães, é no âmbito da corporeidade que o ser humano se reconhece como ser finito e dependente em face do ser infinito e independente, ou dir-se-ia criatura, ou fenômeno sujeito a leis necessárias, independentes da nossa vontade; do mesmo modo, é no âmbito da corporeidade que ele é capaz de desejar o que não conhece, donde se originam os erros,[79] pois o corpo, diz Magalhães, não nos foi dado como uma condição de saber e de querer. Entretanto, dessa “triste condição” depreendemos que toda a vida psíquica do indivíduo está fundada na corporeidade e toda a vida em comunidade está fundada nos corpos dos membros individuais dessa comunidade, uma vez que, segundo suas palavras, o corpo nos foi dado “como uma sujeição que coarctasse esse poder livre [o livre arbítrio] de que abusaríamos, chamando-nos à vida prática” (MAGALHÃES, 2004, p. 354). Seguindo a Descartes, quanto à opinião de que no ser humano a inteligência é muito limitada e a vontade ilimitada[80], Magalhães, também aqui sem prejuízo das fontes da tradição filosófica luso-brasileira, conclui que toda a discordância deriva do concurso da inteligência e do livre arbítrio, “porque bastariam estas duas condições para que cada indivíduo pensasse, discorresse, e quisesse ordenar as coisas a seu jeito [...] e não haveria acordo” (MAGALHÃES, 2004, p. 356).
Na perspectiva de uma visão positiva da separação necessária entre a consciência e a corporeidade, ele defendeu a tese de que a inteligência e o livre arbítrio não constituem em si mesmos a condição humana da errância porque são dons divinos, coincidindo aqui com a posição cartesiana[81].
Mais do que isso, porém, ele está em perfeita sintonia com a reação metafísica do espiritualismo francês contra o sensualismo de Condillac e o positivismo de Comte[82], no tanto quanto essa reação se incorpora à proposta kantiana de fundamentar a metafísica no incognoscível ou mistério[83]. Neste sentido, esclarece Heidegger, acerca da necessidade de infinito e de mistério, que “o conhecimento finito, enquanto finito, oculta simultânea e necessariamente a “coisa em si”, e que a oculta previamente, de maneira que a “coisa em si” não somente não é acessível perfeitamente, senão que, por essência, não é acessível de modo algum” (HEIDDEGER, 1981, § 5; apud CERQUEIRA, 2002, p. 145).
Ora, Magalhães entende que a razão pela qual a inteligência e o livre arbítrio originam o erro deve-se ao fato de que o indivíduo historicamente passou a desdenhar e a esquecer-se da própria imagem concebida mediante a participação na ideia de Deus, como absoluto ou mistério, que a razão exige no âmbito da consciência de si[84]. Essa participação é que garantiria a liberdade de cada um sem prejuízo da possibilidade de conciliação e concordância em função da necessidade do ser em comum. Portanto, não seria por causa da fé, da Providência e em nome da presciência divina que se colocaria em dúvida a liberdade humana. Pelo contrário, a religiosidade cristã, fundada na ideia do ser infinito e independente, constituiu-se, em Magalhães, no ponto de partida mesmo de toda a argumentação em favor da liberdade humana como expressão de esforço, conquista e civilidade:
“A glória do espírito humano consiste em conhecer por seus próprios esforços as leis das relações das coisas finitas, e distingui-las do que é real e infinito, que ele sabe existir em uma só realidade única, indivisível e eterna, a que se eleva, partindo da percepção das coisas sensíveis, que ele, por assim dizer, desmascara, para vê-las como elas são, e o que são. E isso se deve à aplicação voluntária da sua faculdade de saber” (MAGALHÃES, 2004, p. 289-290; grifo acrescentado)
“Quem nega a liberdade humana cai em uma contradição manifesta; porque, negando-a, prova que sabe o que é liberdade; que quis, e deixou de querer alguma coisa em oposição a outra; que fez esforços para resistir; que pensou sobre os meios de subtrair-se à necessidade [...] e que só deixou de executar o que livremente quis, porque a execução depende de coisas estranhas à sua livre vontade. Se esse poder de efetuar fosse tanto como o de querer, imagine-se que ordem haveria neste mundo! Aniquilada estaria a espécie humana, ou seria a terra um verdadeiro vale de lágrimas. A liberdade de muitos só era possível com algum elemento fatal, que as reunisse, e as harmonizasse” (MAGALHÃES, 2004, p. 357; itálicos acrescentados).
O pensamento de Magalhães, no âmbito da tradição filosófica brasileira, representa um sentido de conciliação que compreende a harmonia de liberdade e necessidade, ou livre arbítrio e presciência divina, ou seja:
“a coexistência da liberdade e da necessidade prova que tudo foi previsto e ordenado com maior sabedoria que a ordem de todo esse imenso universo. E como de fato existe esta harmonia da liberdade e da necessidade, nenhuma dificuldade temos de admitir o livre arbítrio, e a presciência divina. [...] Eu creio que, reconhecendo-se bem no que consiste o livre arbítrio, distinguindo-o do elemento fatal e previsto que lhe resiste, e da oposição mesma de todas as vontades livres que se combatem, coordenam e harmonizam perante a razão absoluta e a necessidade das coisas que não dependem da nossa vontade, possa tudo estar previsto, sem que deixem os homens de ser livres” (MAGALHÃES, 2004, p. 358).
Esta conciliação, entretanto, se compreende no âmbito da ordem social e moral. Deste modo, para representar o sentido de conciliação, Magalhães diz ser possível uma sociedade de homens livres, que não excluiria a outra e nem por ela seria excluída, para tanto, juntamente com a liberdade, ressalta vigorosamente que a presciência divina, ou a necessidade, é um fato, pois todos os seres, sem exceção, estão sujeitos à necessidade – fato que por si só não exclui a liberdade. O sujeito autoconsciente se estabelece justamente neste conflito entre a liberdade e a necessidade:
“Supondo porém uma sociedade de entes sem liberdade, sem virtudes nem vícios, sem bens nem males, todos de acordo e uniformes obedecendo a uma só vontade sempre justa; uma tal sociedade é possível, e talvez exista em qualquer outro sistema planetário; mas sendo também possível uma sociedade de homens livres, que não exclui a outra, nem é por ela excluída, esta sociedade existe de fato no nosso planeta, e dela somos membros, livres graças a Deus, a fim de que sejamos justos por nós mesmos, virtuosos e sábios pelos nossos próprios esforços, e não um rebanho de máquinas, obedecendo cegamente a uma vontade soberana” (MAGALHÃES, 2004, p. 356; itálicos acrescentados).
O escritor dos Fatos percebe que no âmbito social não existe contradição ou exclusão entre liberdade e necessidade, pelo simples fato de se verificar que existe uma sociedade de homens autoconscientes, que agem em consonância com a dimensão moral da ação em função da liberdade e vontade, assim como, observadas a necessidade a priori de leis absolutas que regulam a mecânica do universo (entendida como “leis naturais” ou “leis divinas”), existe uma sociedade de homens privados da consciência de si, consequentemente, sem uso da inteligência nem liberdade, que se regulam pelo mecanismo das ações e relações dos deveres morais por força da necessidade.
Contudo, uma sociedade fundada no homem livre, que se apresenta “para si mesmo e não para outro”, conforme nos fala Aristóteles, e que não exclui uma sociedade fundada por outros homens obrigados à necessidade da lei por determinações estranhas à própria vontade; essa mesma sociedade não nega o fato de que ao mecanismo da natureza se sobrepõe o mundo da cultura como prova de necessidade do ser livre e criador. De fato, a sociedade de homens livres e escravos existe e é natural essa coexistência, entretanto, a superação é um dever moral pelo simples fato de ser humano, pois, conforme Agostinho, tudo aquilo que é é necessariamente bom, e só pelo desvio da vontade gera-se o mal, ou seja, o mal é destituído de toda a substancialidade e não necessário, apresentando-se como negação do ser – Deus [85]. O que se pode dizer que coexistem as leis temporâneas e a lei eterna: as primeiras, embora justas, podem legitimamente ser mudadas ao longo do tempo de acordo com a segunda lei; isto é, a lei eterna, que está ínsita em nós determinando que todas as coisas devem estar inteiramente conforme a norma absoluta da ordem[86], deste modo,
“se o homem foi constituído de maneira que embora não fosse ainda sapiente, podia contudo receber um preceito a que por certo devia obedecer, [...]. Com efeito, uma coisa é ser racional, outra, sapiente. Pela razão torna-se cada um capaz de um preceito, ao qual deve fidelidade, de modo a cumprir o que está marcado. Ora, assim como a natureza racional recebe o preceito, assim a observância do preceito recebe a sapiência. Deste modo, o que é a natureza para receber o preceito, é a vontade para o observar. E assim como é uma espécie de mérito da natureza racional receber o preceito, assim é mérito da observância do preceito receber a sapiência”[87].
Compreende-se isso quando verificamos, tanto no princípio de conversão quanto no Cogito, que o espírito é capaz de iluminação e de se fortalecer, tornando-se capaz de senhorear as tendências do automatismo da natureza e do corpo. A expressão máxima dessa lei eterna, dentro da tradição cristã, dá-se o nome de Deus, compreendido como “um ser inteligente, pelo qual todas as coisas naturais se ordenam ao fim”, como nos apresenta Tomás de Aquino[88], ou a Razão eterna, absoluta de todas as coisas, a causa necessária, o sentido de unidade harmônica, tão patenteado por Magalhães, e se a novidade do espírito moderno está no método em que se eleva a razão concreta e histórica do indivíduo ao nível de universalidade da “lei ontológica” que rege a existência das coisas, manifestada na pessoa do legislador humano, e considerando a lei ontológica como a expressão de uma vontade criadora, única e livre, imutável e eterna — a lei de Deus; ou, por outro lado, também submetida à regularidade uniforme e impessoal da experiência concebendo a lei ontológica como sendo a expressão das leis da natureza; então podemos compreender o sentido de conciliação como um ato do entendimento precedido de algum modo pelo desejo de um objeto que fora iluminado, e favorável para uma manifestação de uma vontade livre.
Deus é o ser que se revela na intimidade das almas, possibilitando a iluminação do sujeito cognoscente, como podemos ver nas Confissões, em que o divino atua como uma potência secreta que move, convida, atrai, retrai, fascina, assombra, espanta, domina, deslumbra, gerando um campo de possibilidades e de mistério que motiva ao homem a busca da Verdadeira ciência, pois “assim como ela [a alma] se não pode iluminar por si mesma, assim também, por virtude própria se não pode saciar”[89].
O mundo da cultura, assim concebido como o conjunto das atividades humanas orientadas para a significação, religa por dentro, no âmbito da consciência, o que a natureza diversifica e separa. Assim sendo, a atitude filosófica moderna não excluiu a religiosidade do seio da cultura. Pelo contrário, sem o sentido dessa ligação espiritual há o risco de se perder a mais ampla significação do Cogito cartesiano como um recomeço radical para a realização do saber, uma vez que este mesmo saber, ao propor aos homens valores, verdades e ideais comuns, contribui eficazmente para uni-los por dentro e expressar em si mesmos esta unidade interna. Uma espécie de meio espiritual através do qual os sujeitos se comunicam e em relação ao qual a personalidade de cada um se situa, uma vez que cada um penetra na personalidade do outro na medida que se assimila o universo ideal.
Isso nos leva a uma moderna exigência de uma educação fundada no uso teórico da razão, que visa a orientar o homem para uma transformação essencial no modo do seu ser, uma vez que acidentalmente ou por natureza a racionalidade já lhe é inerente. Deste modo, em Gonçalves de Magalhães, a busca de verdades necessárias e universais excede o modo natural do ser e não se justifica senão em função da liberdade como sendo o modo do ser do homem, cujo amor da verdade deve ser entendido exatamente no mesmo sentido em que Aristóteles explicara, na Metafísica: buscar “o saber em vista do conhecimento, e não por alguma utilidade”, ou seja, em si mesmo.
Nesse sentido, à medida que se percorre o caminho do conhecer, adquire-se uma consciência cada vez maior da própria autonomia. Em outras palavras, o limite move-se do objeto que é ou pode ser conhecido para investir, radicalmente, na própria possibilidade do conhecer, onde o plano lógico e epistemológico do conhecer cede lugar ao plano ontológico e o EU, enquanto sujeito cognoscente, revela-se no seu aspecto mais profundo como consciência de si, apresentando-se como condição de superação do modo do ser originário da cultura, em função da superação da própria natureza ou, em termos estritos, a filosofia enquanto se concebe a partir da fundamentação do processo de emancipação da cultura.
2.1 Liberdade e natureza
O que é, pois, a exigência de liberdade em Magalhães senão uma abertura à superação do determinismo da natureza que, uma vez concebida como o estado ou modo originário do ser determinado por causas estranhas à inteligência e à vontade, torna o ser humano numa vítima do próprio nascimento? Se antes, sob o princípio da conversão religiosa, se procurava minimizar ou mesmo corrigir a desigualdade e a injustiça sociais em nome da divina Providência, a exemplo da medieva doutrina portuguesa acerca da “virtuosa benfeitoria”, é no âmbito da mudança de princípio que se concebe a liberdade como luta contra o mecanismo da natureza. Isto já parece claro em Descartes, quando, relativamente à hipótese de que “é sempre possível deixarmos de perseguir um bem claramente conhecido, ou de admitir uma verdade evidente, desde que consideremos um bem afirmar, desse modo, o nosso livre arbítrio”[90], entende que o que caracteriza a semelhança do ser humano com Deus é a vontade enquanto poder absoluto do sim e do não; torna-se ainda mais claro em Kant, quando afirma que a “vontade é uma espécie de causalidade dos seres vivos, enquanto são racionais, e a liberdade seria a propriedade desta causalidade pela qual ela pode ser eficiente independentemente de causas estranhas que a determinem; assim como a necessidade natural é a propriedade da causalidade de todos os seres irracionais de serem determinados à atividade pela influência de causas estranhas”[91]; da mesma forma, também parece claro em Magalhães, quando afirma: “Livres somos nos nossos esforços, e o que há de ser acontece, não por ter sido previsto e determinado, mas como uma consequência natural da luta da liberdade contra a necessidade” (MAGALHÃES, 2004, p. 359; grifo acrescentado).
Advirta-se, porém, que essa ideia de luta da liberdade contra a necessidade não implica ir (i) contra a natureza à maneira de Hobbes, para quem a sociedade humana seria impossível sem um poder político racional e absoluto, um Estado soberano, como condição de defesa contra o poder irracional de Leviatã, sob o qual prevalecem a vontade de cada indivíduo e a selvageria de todos contra todos na guerra constante pela disputa de bens e de poder, definida no aforismo “o homem é lobo para o homem” (homo homini lupus) que caracteriza o “estado de natureza”, segundo o qual a “natureza fez os homens tão iguais nas faculdades do corpo e do espírito que, embora muitas vezes se encontre um homem mais forte ou inteligente que outro, contudo, no conjunto, a diferença entre um e outro não é tão notável que se possa pretender para si um benefício que outro não possa igualmente pretender”[92]; nem implica ir (ii) ao encontro da natureza e do “bom selvagem”, à maneira de Rousseau, segundo o qual a cultura e a civilização nada significam senão a corrupção dos indivíduos em seu estado natural de igualdade e “feliz ignorância em que nos pusera a sabedoria eterna” (ROUSSEAU, 1999, p. 22), sendo a história da sociedade humana a história da desigualdade, da injustiça e da tirania[93], do que se segue que impossíveis seriam tanto o bem comum, superior ao interesse de indivíduo ou de grupo, quanto o ato de soberania, em que o indivíduo age como representante da lei, sem uma “vontade geral” como princípio, uma vez que “Numa legislação perfeita, a vontade particular ou individual deve ser nula, a vontade de corpo própria do governo muito subordinada e, em consequência, a vontade geral ou soberana sempre dominante, única regra de todas as outras” (ROUSSEAU, 2001, p. 78; itálicos acrescentados). O fato é que, embora defendendo posições contrárias, tanto Hobbes quanto Rousseau sacrificam a liberdade como princípio. Magalhães, é verdade, se propõe ir ao encontro da natureza, mas, contrariamente a Rousseau, defende o ideal de que “sejamos justos por nós mesmos, virtuosos e sábios pelos nossos próprios esforços, e não um rebanho de máquinas, obedecendo cegamente a uma vontade soberana” (MAGALHÃES, 2004, p. 356). E ainda que pela razão especulativa possamos participar nas leis universais que regem a existência das coisas, prevendo cientificamente os fatos do mundo, prevenindo o erro e tendendo necessariamente à concordância em função da verdade, tal poder de razão, para Magalhães, em nada diminui a exigência de liberdade, especialmente quando se considera que, não obstante a sua glória, o entendimento humano é limitado comparativamente à presciência divina. Daí que quanto maior a ignorância, ou mistério, em relação às contingências futuras, maior o grau de liberdade quando o sujeito, mesmo arrastado pela causalidade externa, procura determinar-se, sendo ele mesmo o autor de seus atos, a causa de seus movimentos e de sua atividade, dando a si mesmo as razões de agir e os fins:
“Para o mérito do homem, para a sua virtude, basta a intenção com que ele livremente faz o que deve fazer, ou se opõe, sem que possa subtrair-se à necessidade: e essa liberdade de resolução, e o seu mérito, são tanto maiores quanto ele ignora o que há de acontecer, e atribui-se a determinação e a execução [...] Essa ignorância do que tem de acontecer dá-nos uma inteira liberdade nos nossos juízos, deliberações e resoluções, e perfeita moralidade aos nossos atos. A fatalidade nas coisas humana não se apresenta como razão e motivo das nossas determinações, senão como um efeito, um resultado delas [...] O que faremos? Deixar-nos-emos arrastar impassíveis pelas circunstâncias, e pela fatal necessidade? Mas ainda assim, levados pela torrente, vamos julgando, resolvendo, aplaudindo a nossa sorte, ou protestando contra ela, e acusando de injusta a ordem dos acontecimentos. A inteligência e a liberdade não se resignam sem esforço a esse fatalismo maometano, mais em palavras que em obras” (MAGALHÃES, 2004, p. 358; itálicos acrescentados).
A liberdade, como expressão de luta, esforço, resistência à causalidade externa, transforma-se positivamente na única evidência da consciência de si como um absoluto, especialmente se considerarmos que a limitação do entendimento é de tal ordem que há coisas que lhe são incognoscíveis de direito, como é o caso do conteúdo infinito das contingências futuras. Ressalte-se, porém, que na dimensão ontológica da consciência de si, o sentido da liberdade não brota das sensações, como se observa no sensualismo de Condillac, senão em face do que nos obriga como um poder absoluto — o mistério —; nem se confunde, como entendeu Bentham, com o caráter utilitarista do interesse, que visa à satisfação de necessidades empíricas e imediatas:
“essas sensações, pelas quais involuntária e instintivamente se movem os animais, não nos impedem que muitas vezes com inteligência e vontade suportemos dolorosas operações [...] mesmo para livrar-nos de algum pequeno defeito que enfeia o corpo [...] e todos julgam que obramos bem, quando suportamos todas essas dores [...] quando nos entregamos a grandes e penosos trabalhos do espírito, ou do corpo, com algum fim qualquer que pareça razoável [...] Esse princípio do interesse individual, bem ou mal entendido, depende de um cálculo, supõe inteligência e vontade, e o desprezo da dor e dos males presentes na esperança de um maior gozo, e de um maior interesse. Qual é esse maior interesse, que não é o prazer, e o interesse atual, momentâneo? Haverá pois para nós um interesse real e positivo, pelo qual devamos sacrificar outros muitos interesses, os nossos cômodos presentes, e os nossos prazeres?” (MAGALHÃES, 2004, p. 362-363).
Essa ideia de um interesse real e positivo que não depende da experiência, mas serve de fundamento à experiência, já aparece na filosofia transcendental de Kant, mas somente o romantismo, particularmente Fichte, após subordinar a razão teórica à razão prática, pôde desdobrar o conceito de interesse num sentido emancipativo que implica distinguir a forma cultural da vida de sua forma natural. Isto quer dizer: o conceito de interesse não deve, de modo algum, sugerir uma redução naturalista de determinações transcendentais a dados empíricos. Neste caso, o interesse diz respeito à forma natural da vida no que esta supõe o determinismo biológico da vida como sentido da necessidade e orientação básica para a sua satisfação, enquanto que, do ponto de vista espiritual ou cultural, a vida consiste numa unidade histórica e espiritual cuja necessidade de preservação só se satisfaz em face da ideia do Criador e em vista da solução de problemas objetivos referentes à criação entendida como trabalho. Tal solução só é possível através da forma cultural da vida e, neste sentido, como já ensinara Vieira, “pelas conveniências do bem comum se hão de transformar os homens [...] hão de deixar de ser o que são por natureza, para serem o que devem ser por obrigação [...] porque o ofício há-se de transformar em natureza, a obrigação há-se de converter em essência”. Assim sendo, interesses são “as orientações básicas que aderem a certas condições fundamentais da reprodução e da autoconstituição possíveis da espécie humana: trabalho e interação” (HABERMAS, 1982, p. 217). Magalhães, como que expandindo o pensamento de Vieira, entende como verdadeiramente útil, condição suficiente e necessária para satisfazer a necessidade de preservação da vida, a presença do Criador à consciência de si como princípio universal de dever para o sim e para o não, independentemente de acordo:
“Não haverá pois nem bem nem mal, nem justo nem injusto, nem virtude nem crime, nem belo nem feio, nem útil nem inútil? Será tudo indiferente? Tudo o mesmo? E só será moralmente útil o que parecer a cada um de sua maior utilidade? [...] Se há pois alguma coisa verdadeiramente útil, independentemente do prazer e da dor, de toda e qualquer paixão, de qualquer vontade, de qualquer cálculo de interesses, há por conseguinte alguma coisa que seja absolutamente boa, justa e verdadeira, que nos impõe o dever de procurá-la por ela mesma, e não pelo prazer ou interesse particular [...] Podemos ser heróis, justos, caridosos aos olhos dos homens, praticando atos de bravura, administrando a justiça, e dando esmolas aos pobres. É quanto basta às vezes para o mundo, que não penetra as nossas ambiciosas intenções, e ainda bem; mas não basta para a perfeita moralidade da ação; e se os homens descobrem que não praticamos o bem por um princípio de dever, que procuramos a glória, a recompensa, a fama, a consideração, eles deixam de admirar-nos, e como a nossa própria consciência, como Deus mesmo, nos dizem: fostes movidos por um sentimento de vaidade, de ambição, e de egoísmo; nada fizestes por dever, e por amor do bem; acertastes nos vossos cálculos, tanto melhor; mas se não acertásseis, vos teríeis arrependido do que fizestes. Se porém tivésseis obrado por amor do bem, qualquer que fosse o resultado, não teríeis remorsos, nem arrependimento; e a consciência vos diria: fiz o que devia, e continuarei a fazer o que devo, qualquer que seja o resultado” (MAGALHÃES, 2004, p. 364-365; itálicos acrescentados).
2.2 Doutrina da conciliação
Dentre os problemas de filosofia prática suscitados por Gonçalves de Magalhães no âmbito da mudança de princípio, o de maiores proporções diz respeito à conservação da categoria de escravo após a proclamação da Independência. Grande parte da comunidade brasileira era constituída de escravos desde a sua formação, razão pela qual pode afirmar-se que a emancipação política da comunidade brasileira como um todo baseou-se numa contradição: em nome da liberdade manteve-se a escravidão[94]. O problema de justificar a existência de escravos numa comunidade livre é pensado meio à socapa no capítulo XV de Fatos do espírito humano e poderia apresentar-se sob a seguinte formulação: uma vez fundada a existência do indivíduo na consciência de si, e definida a essência do ser humano em termos de inteligência e liberdade, como justificar a manutenção de escravos?
Antes de Magalhães, Vieira já afirmara que “um indivíduo não pode ter duas essências”, e que os homens “hão de deixar de ser o que são por natureza”, de maneira que assim, mediante a superação do estado de natureza, em que prevalece a desigualdade, o ser humano conviveria em igualdade de essência. Ora, quanto à natureza humana, Magalhães, como se viu, concorda em parte com Hobbes, “porque bastariam estas duas condições [a inteligência e o livre arbítrio] para que cada indivíduo pensasse, discorresse, e quisesse ordenar as coisas a seu jeito; e [...] não haveria acordo, não haveria sociedade, seria a guerra o estado permanente” (MAGALHÃES, 2004, p. 356); mas também concorda em parte com Rousseau, quando reconhece como feliz a ignorância “em que nos pusera a sabedoria eterna” (ROUSSEAU, 1999, p. 22), porque “essa ignorância do que tem de acontecer dá-nos uma inteira liberdade aos nossos juízos [...] e perfeita moralidade aos nossos atos” (MAGALHÃES, 2004, p. 360). Tratava-se, portanto, da necessidade de conciliar a singularidade da existência de um indivíduo sob o estado de natureza, em que prevalece a vontade de cada um, e a universalidade da existência social desse mesmo indivíduo sob regras ou preceitos gerais obtidos pelo entendimento no âmbito da consciência de si, uma vez que a sociedade humana não é um fato natural como a “sociedade” das abelhas ou das formigas:
“Supondo [...] uma sociedade de entes sem liberdade, sem virtudes nem vícios, sem bens nem males, todos de acordo e uniformes obedecendo a uma só vontade sempre justa, uma tal sociedade é possível, e talvez exista em qualquer outro sistema planetário; mas sendo também possível uma sociedade de homens livres, que não exclui a outra [a ‘sociedade natural’ ], nem é por ela excluída, esta sociedade existe de fato no nosso planeta, e dela somos membros, livres graças a Deus, a fim de que sejamos justos por nós mesmos, virtuosos e sábios pelos nossos próprios esforços, e não um rebanho de máquinas, obedecendo cegamente a uma vontade soberana” (MAGALHÃES, 2004, p. 356).
Esse problema da conciliação apareceu em decorrência da introdução do novo conceito de natureza, no século XVII, quando, ao conhecimento baseado no método matemático-experimental corresponderam novos conceitos de lei natural e direito natural. Entretanto, o século XVII não inventou de forma alguma o direto natural. Grotius (1583-1645), às vezes apresentado como o fundador do direito natural e do direito internacional, não criou uma coisa nem outra: sua obra depende, quanto à forma e ao conteúdo, da tradição escolástica, constituindo-se, portanto, numa transição entre o direito natural escolástico e o direito natural racionalista, que encontrará sua maior expressão em Pufendorf (1632-1694). Em outras palavras, tratava-se, do ponto de vista de Magalhães, do “grande problema da conciliação do livre arbítrio e da presciência divina, tão discutido pelos maiores teólogos e filósofos cristãos” (idem: 266), cuja referência cultural mais próxima é a doutrina da ciência condicionada ou “ciência média” do jesuíta Pedro da Fonseca no século XVI. No século XIX, porém, duas são as referências doutrinárias básicas, envolvendo não só posições contrárias quanto às condições de singularidade e universalidade da existência humana, como também o desafio de conciliá-las:
“Uns, reconhecendo o livre arbítrio, negam como incompatível a presciência divina. Outros, julgando impossível que Deus ignore o que os homens têm de fazer, sacrificam a liberdade à onisciência do eterno. Outros enfim, admitindo ambas as coisas como certas, procuram ajustar as duas verdades, sem contudo satisfazerem completamente” (MAGALHÃES, 2004, p. 358).
A primeira dessas referências é Hobbes, para quem o estado de natureza gera a necessidade da lei natural ou “de natureza” (lex naturalis) enquanto condição universal do ser social no homem: a lei de natureza fundamental consiste (i) “que devemos procurar a paz, quando possa ser encontrada”, e (ii) “se não for possível tê-la, que nos equipemos com os recursos da guerra” (HOBBES, 1998, p. 38), do que se segue que, para tanto, “os homens não devem conservar o direito que têm, todos, a todas as coisas, e que alguns desses direitos devem ser transferidos, ou renunciados” (idem, p. 39). A segunda é Rousseau, para quem Hobbes, que “viu muito bem o defeito de todas as definições modernas do direito natural [...] deveria dizer que, sendo o estado de natureza aquele em que o cuidado com a nossa conservação é menos prejudicial à conservação alheia, esse estado era, consequentemente, o mais apropriado para a paz e o mais conveniente ao gênero humano” (ROUSSEAU, 1999, p. 188), até porque “ao tornar-se sociável e escravo”, o homem, em sua condição singular de indivíduo sob o estado de natureza, “torna-se fraco, temeroso, rastejante, e sua maneira de viver, indolente e efeminada, acaba por debilitar-lhe ao mesmo tempo a força e a coragem” (idem, p. 170).
A posição de Magalhães, que para muitos se identifica com a história da consciência conservadora no Brasil[95], e que, para efeito de esclarecimento da ideia de conciliação na cultura brasileira, deve denominar-se doutrina da conciliação, supõe a ideia de Deus como natureza comum às condições de singularidade e universalidade da existência humana.
Ora, primeiramente deve entender-se que a natureza de uma coisa é anterior à sua singularidade e universalidade. Assim, a natureza de um homem, a humanidade, quando considerada em si mesma, não é algo singular nem universal; antes, ela se mantém indiferente, tanto para a singularidade da existência do indivíduo sob o estado de natureza, quanto para a universalidade das leis naturais ou de natureza que regem a sua existência. No indivíduo a natureza se denomina natureza individual, cabendo ao entendimento convertê-la em natureza universal mediante a abstração. É com base nesta natureza comum que os diferentes objetos da experiência chegam a constituir uma igualdade. Tanto se pode dizer, com força de verdade, que “a=b”, como se deve entender, moralmente falando, que os diferentes indivíduos conscientes de si como inteligência e liberdade são iguais. Neste caso, porém, não se trata de igualdade conceitual ou numérica, senão de igualdade de essência, em virtude da qual os seres humanos estão submetidos à necessidade da lei sem prejuízo de sua natureza individual, isto é, do livre arbítrio:
“Eu creio que, reconhecendo-se bem no que consiste o livre arbítrio, distinguindo-o do elemento fatal e previsto que lhe resiste, e da oposição mesma de todas as vontades livres que se combatem, coordenam e harmonizam perante à razão absoluta, e à necessidade das coisas, que não dependem da nossa vontade, possa tudo estar previsto, sem que deixem os homens de ser livres” (MAGALHÃES, 2004, p. 358).
Foi no sentido da igualdade dessa essência, que se verifica na comparticipação numa mesma unidade espiritual ou cultural, que Vieira observava aos escravos, no Engenho, que eles deviam “dar infinitas graças a Deus por [ter-lhes] dado conhecimento de si, e por [tê-los] tirado de terras, onde [seus pais e eles mesmos viviam] como gentios; e [por tê-los] trazido a esta, onde instruídos na Fé, [deviam viver] como Cristãos, e [salvar-se]”. Desse modo, moralmente falando, insisto, é concebível “uma sociedade de entes sem liberdade”, cuja salvação para o mundo do espírito, da cultura enfim, só é possível pela via da consciência de si, até porque, sendo a consciência de si um ato incompatível com a vida sonolenta e preguiçosa dos irrefletidos, há quem tema a liberdade, pois, como observou Descartes, “um escravo que gozava de uma liberdade imaginária, quando começa a suspeitar de que sua liberdade é apenas um sonho, teme ser despertado e conspira com essas ilusões agradáveis para ser mais longamente enganado” (DESCARTES, 1973b, Meditação Primeira, 13).
Quais as fontes dessa compreensão? Além de Descartes, Hobbes e Rousseau como representantes da filosofia moderna, cabe ressaltar como fonte intra cultural o aristotelismo português. Aristóteles distingue como forma da vida entre os homens, segundo a necessidade, aquela “união do que naturalmente é governante e do que naturalmente é súdito, pois o que é capaz de prever as coisas com sua mente naturalmente é governador e senhor ou chefe, e o que é capaz de fazer coisas com seu corpo é naturalmente súdito e escravo”[96] Quanto à conciliação de necessidade e liberdade, vemos claramente a ressonância do pensamento de Agostinho, quando se questiona se está sujeita a alguma necessidade a vontade humana, chegando à conclusão de que “se se define a necessidade, como quando dizemos ser forçoso que algo seja assim, se faça assim, não sei por que tememos que nos tire o arbítrio da vontade”[97].
A importância da doutrina da conciliação em Magalhães para a história da filosofia brasileira não está apenas no fato de que ela justifica a forma da vida brasileira sob a Monarquia, mas, sobretudo, porque ela é imediatamente superada pela teoria da cultura de Tobias Barreto. Não temos dúvida de que, se Magalhães não tivesse concebido como natural a sociedade escravista brasileira, Tobias Barreto não teria afirmado, com tanta ênfase, ainda no âmbito da modernização, que a “cultura é [...] a antítese da natureza” (BARRETO, 1990, p. 247), especialmente se considerarmos que ele argumenta da seguinte forma: “se alguém hoje ainda ousa repetir com Aristóteles que há homens nascidos para escravos, não vejo motivo de estranheza. Sim − é natural a existência da escravidão [...] porém é cultural que a escravidão não exista” (BARRETO, 1990, p. 304).
Conclusão
O reconhecimento de Gonçalves de Magalhães como responsável pela mudança de princípio na cultura brasileira por si só lhe justifica o crédito, concedido por Tobias Barreto, de ter sido o primeiro, com Fatos do espírito humano, a querer, “em nome da civilização e do progresso, naturalizar entre nós a filosofia”. Acresce que, além da mudança de princípio, sua doutrina da conciliação abre o caminho para a ideia de filosofia brasileira. Pois foi a partir de sua visão da liberdade, no âmbito do problema da escravidão, enquanto problema filosófico e não apenas como um problema jurídico, econômico ou político, que Tobias Barreto avançou para uma concepção ontológica da cultura como antítese da natureza, já então no âmbito do neokantismo alemão e da própria filosofia de Kant. Além de Tobias Barreto, também Farias Brito poderia ser introduzido a partir do pensamento filosófico de Gonçalves de Magalhães, particularmente no que diz respeito à concepção da consciência como um absoluto e à importância do método psicológico para a filosofia.
Esta maneira de ver os estudos filosóficos de Gonçalves de Magalhães, introduzida pelo Prof. Cerqueira, especialmente os Fatos do espírito humano, como uma abertura para estudos de maior envergadura e originalidade, nos oferece a possibilidade de uma verdadeira história da filosofia brasileira que, neste sentido, ainda está por escrever. Referimo-nos, evidentemente, à possibilidade de uma história da filosofia brasileira sem preconceitos contra o passado ou contra o aristotelismo português inerente à nossa formação cultural, apenas com base no princípio de historicidade do saber, conforme a referida compreensão da filosofia defendida pelo Prof. Cerqueira: toda a filosofia não nasce senão dentro de uma certa cultura.
A revisão do significado da obra filosófica de Gonçalves de Magalhães, principalmente em face do seu proclamado “tradicionalismo”, passa a ser um ponto essencial se quisermos dar qualidade filosófica à historiografia filosófica brasileira, superando em definitivo aquela perplexidade introduzida por Sílvio Romero, quando confessa que no Brasil “o espírito público não está ainda criado e muito menos o espírito científico. A leitura de um escritor estrangeiro, a predileção por um livro de fora vem decidir da natureza das opiniões de um autor entre nós. As ideias dos filósofos, que vou estudando, não descendem umas das outras pela força lógica dos acontecimentos”.
Quero crer que depois que Miguel Reale redimensionou a doutrina da cultura de Tobias Barreto, inaugurando o culturalismo brasileiro, no seio do qual renovaram-se os estudos historiográficos com a História das ideias filosóficas no Brasil, de Antônio Paim, tornou-se evidente a necessidade de considerar o processo de modernização cultural, iniciado pelas reformas pombalinas da instrução pública, como o ponto de partida da filosofia brasileira. Ora, mais do que qualquer outro que o tenha antecedido, incluindo-se o Frei Francisco do Mont’Alverne e o português Silvestre Pinheiro Ferreira, que em seu curso das Preleções Filosóficas, no Rio de Janeiro (1813-1816), refletiu a influência do moderno sensualismo, Gonçalves de Magalhães não só foi o primeiro a pensar a modernização da cultura brasileira como problema filosófico, mas, sobretudo, foi o primeiro a propor uma resposta ao problema. Nesta perspectiva de entendimento, a reflexão filosófica de Gonçalves de Magalhães em Fatos do espírito humano tem efetivamente um caráter fundador.
Notas
[1] ARISTÓTELES, Política I, 5; 1254b.
[2] ARISTÓTELES, Política I, 5; 1255a.
[3] Segundo Espinosa, a soberania invade o direito de o indivíduo pensar sobre o que quiser na medida em que prescreve o que ele deve aceitar como verdadeiro ou rejeitar como falso.
[4] Evidentemente, a significação política da distinção pressupõe o princípio aristotélico de que “o homem é por natureza um animal político”. Cf. Política I, 2, 1253a; Ética a Nicômaco I, 7, 1097b.
[5] ARISTÓTELES, Metafísica I, 2; 982b.
[6] Idem, 134a.
[7] Idem, 135e.
[8] Quanto à necessidade do conhecimento de si mesmo inerente à conversão, ver, por exemplo, o nosso Padre Antônio Vieira. No Sermão da Sexagésima (1655), ele esclarece: “Que coisa é a conversão de uma alma senão entrar um homem dentro em si, e ver-se a si mesmo?”. No sermão As Cinco Pedras da Funda de Davi (1676), Vieira confirma a necessidade dessa condição ao afirmar que “neste mundo racional do homem, o primeiro móbil de todas as nossas ações é o conhecimento de nós mesmos”.
[9] AGOSTINHO, O livre arbítrio I, VIII.
[10] AGOSTINHO, ibidem.
[11] AGOSTINHO, idem, II, XIX.
[12] “Porque da vontade pervertida nasce o desejo e, quando se obedece, nasce o hábito, e, quando se não resiste ao hábito, nasce a necessidade [...] Pois a nova vontade, que eu começava a ter, a de te servir sem retribuição e querer fruir de ti, ó Deus, única alegria segura, ainda não era capaz de superar a primeira, consolidada como estava pelos muitos anos. Deste modo, estas minhas duas vontades, uma velha, outra nova, aquela carnal, esta espiritual, lutavam entre si e, opondo-se uma à outra, destroçavam-me a alma” (Agostinho, Confissões VIII, V, 10).
[13] AGOSTINHO, O livre arbítrio II, VI.
[14] AGOSTINHO, A cidade de Deus V, X.
[15] DESCARTES, 1973b, Meditação Quarta, 9.
[16] Ibidem.
[17] Em carta de Paris a Frei Francisco do Mont’Alverne, seu primeiro mestre de filosofia ainda no Seminário de São José, no Rio de Janeiro, Magalhães dá as seguintes notícias: “Aqui só não estuda quem não quer, mas, em abono da verdade, todas as salas, que são largas e espaçosas e feitas em semicírculo, acham-se sempre apinhoadas; o grego antigo e moderno, o hebraico, o siríaco, o armênio, o turco, o indostano e quantas línguas há aí vivas e mortas são aqui ensinadas. Há cadeiras só para explicar Dante, Tucídides, Voltaire, Locke etc. etc. etc.. Há cadeiras para todas as ciências e para as divisões e subdivisões de todas as ciências. O Cousin ainda está em viagem, e acaba de publicar um livro sobre o ensino na Alemanha e na Prússia, obra esta de bastante utilidade; não sei se já lá [isto é: no Brasil] chegaria a tradução de Reid por Mr. Jouffroy com notas de Royer-Collard e uma tradução de Dugald Stewart pelo mesmo e assim como a tradução de Kant que, quando as leio, me lembro do Padre Mestre” (PORTO ALEGRE-MAGALHÃES, 1964, p. 18-19).
[18] KANT, Prolegômenos, §14.
[19] KANT, Fundamentação da metafísica dos costumes, Terceira Seção.
[20] KANT, Crítica da razão pura, BXXVIII.
[21] KANT, ibidem.
[22] KANT, idem, BXXIX.
[23] “Não há muita notícia sobre a vida do nosso autor. Domingos José Gonçalves de Magalhães, Visconde de Araguaia, filho de Pedro Gonçalves de Magalhães Chaves (do nome da mãe não temos registro), nasceu no Rio de Janeiro em 13 de agosto de 1811. Segundo consta, desfrutou dos bons cuidados familiares. Problemas de saúde precária, entretanto, foram uma constante ao longo de sua vida, a começar pela própria compleição menos saudável, depois o drama da perda de três filhos, a quem dedicou Os mistérios (cântico fúnebre, Paris, 1858). Quanto à sua educação escolar, deu-se numa atmosfera de mudança no sistema de ensino e na forma da vida. Refiro-me não só à mentalidade brasileira pós-reformas pombalinas da instrução pública, mas especialmente às consequências da transferência da Corte Portuguesa para a cidade do Rio de Janeiro, configurando um tempo marcado pela novidade e pela forte presença da cultura francesa. Foi a época dos artistas franceses, que mandou vir D. João VI: Lebreton, Debret, os Taunay, Ferrez, Grandjean de Montigny. E foi sobretudo a época em que se tomou consciência da necessidade de modernização e emancipação cultural, após a emancipação política, quando brilhava na capital do país o Fr. Francisco do Mont’Alverne, cuja palavra, então considerada sublime, já refletia, do púlpito e da cátedra, o influxo do moderno pensamento francês. Em virtude desses fatores, Magalhães encontrou nas instituições de cultura do Rio de Janeiro todos os elementos que definiram a sua formação, a qual, sem dúvida, teve um caráter humanístico. Nesse sentido, assinalamos não só a sua graduação em medicina (1828-1832) pela antiga Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro, mas também os seus estudos na Academia de Belas Artes, onde foi aluno de Debret e chegou a participar na exposição de 1830; sua iniciação nos estudos filosóficos, em 1832, aos vinte e um anos, no Seminário de São José, sob a orientação de Mont’Alverne, que o teria apoiado e estimulado a aperfeiçoar-se; finalmente, cumpre assinalar, neste mesmo ano, a sua estréia formal como escritor, mediante a publicação de Poesias. Em 03 de julho de 1833 partiu para a França a bordo do ‘Dous Eduardos’, na condição de adido à legação brasileira em Paris. Uma vez estabelecido em Paris, estudou ciência e filosofia, tendo acompanhado os cursos de Jouffroy, discípulo de Cousin. Além dessas atividades, procurou não só viver a agitada vida cultural parisiense, como também viajou pela França, Itália e Suiça. O entusiasmo nessa decisiva experiência européia, transparente na correspondência que manteve com Mont’Alverne, por exemplo, chegou a lhe valer, por parte da crítica contemporânea, a imagem deturpada de ‘turista’. Voltou para o Rio de Janeiro no início de 1837. Outro fator decisivo na vida de Magalhães foi a amizade, que ele soube cultivar como poucos. Além de Francisco de Sales Torres Homem e Manuel José de Araújo Porto Alegre, íntimos, com os quais compartilhou a fase decisiva de sua trajetória intelectual (quando fundou a Niterói, Revista Brasiliense e publicou os Suspiros poéticos e saudades), e de Mont’Alverne, a quem, nessa época, escrevia regularmente de Paris, ele contou com a proteção de ninguém menos que o próprio Imperador Pedro II, que chegou a defendê-lo, em 1856, contra as críticas negativas de José de Alencar ao seu poema A confederação dos tamoios. Além do título de visconde, Magalhães recebeu em vida todas as distinções: Conselheiro do Imperador, Cavaleiro da Ordem do Cruzeiro, Comendador da Ordem da Rosa, Comendador da Ordem de Cristo, Comendador da Ordem Napolitana de Francisco I, Comendador da Ordem do Mérito, Sócio do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro e de outras associações de letras; Professor de Filosofia no Colégio de Pedro II (cargo para o qual foi nomeado em 1838 e praticamente não exerceu, porque nesse mesmo ano foi designado para exercer a função de secretário de Caxias no Maranhão, depois da Balaiada, e no Rio Grande do Sul, depois da guerra dos Farrapos; representante pelo Rio Grande do Sul na legislatura de 1845 a 1848; como diplomata, foi Encarregado de Negócios nas Cortes de Turim e de Nápoles, Ministro Residente em Viena, Enviado Extraordinário e Ministro Plenipotenciário aos Estados Unidos da América do Norte, Enviado Especial a Buenos Aires, Enviado Especial ao Paraguai (em 1873, para celebrar tratados de guerra com o Gal. Mitre), e finalmente Ministro junto à Santa Sé, resolvendo pendências entre o Estado Brasileiro e a Cúria Romana por ocasião da famosa ‘Questão Religiosa’. Faleceu em Roma a 10 de julho de 1882 na condição de Enviado Extraordinário e Ministro Plenipotenciário do Brasil junto a esta Corte”. In: Luiz Alberto Cerqueira, Gonçalves de Magalhães como fundador da filosofia brasileira (MAGALHÃES, 2004, p. 28-37).
[24] “Não obstante as censuras ao caráter transcendente do seu pensamento, acusando-o de seguir ‘a metafísica das escolas’, comparando os seus sermões a ‘teias de aranha, bonitas para se observarem, mas que não prendem ninguém’ (Vernei, 1950: 178), o fato é que, do ponto de vista da transcendência como possibilidade de uso da razão pura exclusivamente para ultrapassar os limites da experiência [...] sua obra passa a despertar um interesse filosófico insuspeito, independentemente do sempre renovado interesse literário” (CERQUEIRA, 2002, p. 80).
[25] Segundo Farias Brito, “entende-se por transcendente o que fica em esfera superior à experiência e não pode ser atingido pela experiência [...] Transcendente é então o que não pode ser objeto de ciência, a esfera, por assim dizer, suprafenomenal da existência [...] esfera em que nossa energia cognitiva não pode penetrar, a não ser por intuição profética, coisa incompatível com os hábitos do pensamento moderno [...] Hoje, não é permitido apelar para a fé; simplesmente por isto: que não é permitido apelar para o que não existe [...] Será necessário renovar a fé? Sim, porque sem fé não há ligação para as almas e é necessário que toda a humanidade constitua um só corpo [...] A fé é uma convicção que se impõe, e uma convicção que se impõe é a lei que rege a ordem moral” (BRITO, 1912, p. 71; 81-82).
[26] No caso de Farias Brito, cf. especialmente A base física do espírito (1912) e O mundo interior (1914); no caso de Husserl, cf. A filosofia como ciência estrita (1910-1911).
[27] Em análise crítica do livro Fatos do espírito humano, Tobias Barreto reconhece que “esta obra, escrita por um homem afeito ao movimento da política e das letras européias, constitui, ela só – tal é o nosso atraso –, toda a biblioteca filosófica do Brasil. Foi uma tentativa louvável do seu autor querer assim, em nome da civilização e do progresso, naturalizar entre nós a filosofia, conceder-lhe direito de cidade; porquanto não havia, antes dele, como não há ainda a par dele, obra digna de atenção” (BARRETO, 1990, p. 83).
[28] “Pelos Estatutos, foram criadas quatro cadeiras: a Primeira, de Filosofia Racional e Moral; a Segunda, de História Natural; a Terceira, de Física Experimental e a Quarta, de Química Teórica e Prática” (CARVALHO, 1978, p. 169).
[29] “O estado de decadência da Universidade [...] exigia uma intervenção mais profunda do poder público, pois a rotina nela imperante provinha da própria inércia dos espíritos acostumados a ler e repetir doutrinas que os Estatutos determinavam e a vontade régia obrigava a cumprir. A reforma da universidade, nestas condições, teria forçosamente de ser a expressão de uma vontade que, de cima para baixo, se impusesse, mostrando aos professores o caminho das aquisições científicas e literárias que o ensino escolástico vedara à inteligência portuguesa” (idem, p. 153).
[30] Suas obras conhecidas são: Institutionum dialecticarum libri octo (1564), Commentariorum in libros metaphysicorum Aristotelis (I: 1577; II: 1589; III: 1604 e IV: 1612) e Isagoge philosophica (1591).
[31] “O termo ‘aristotelismo’ exprime dois sentidos que não se confundem nem se excluem: um primeiro sentido universal, em função do qual a fidelidade a Aristóteles assume o caráter de causa exemplar da consciência de si na mesma medida em que um Platão, um Agostinho, um Descartes, um Kant, podem servir de modelo ou exemplo na formação do sujeito espiritual ou pensante, o que em geral se resume ao modo fiel e não servil de considerar o texto como ponto de partida da experiência filosófica; e um segundo sentido singular,em função do qual a fidelidade ao filósofo assume um caráter subordinado à condicionalidade histórica do ensino de Filosofia. O aristotelismo português envolve ambos os sentidos, pois não só filia-se claramente na linhagem do Aristoteles Latinus, promovido e difundido pelas traduções latinas usadas na Universidade de Paris, como também alinha-se na tradição da Contra-Reforma e do Concílio de Trento (1545-1553)” (CERQUEIRA, 2000, p. 9).
[32] O primeiro curso de filosofia no Brasil, ministrado pelo jesuíta Gonçalo Leite, no colégio fundado na cidade do Salvador, Bahia, é de 1572-1575.
[33] As Regras do Professor de Filosofia são claras:
- Fim: Como as artes e as ciências da natureza preparam a inteligência para a teologia e contribuem para a sua perfeita compreensão e aplicação prática, e por si mesmas concorrem para o mesmo fim, o professor, procurando sinceramente em todas as coisas a honra e a glória de Deus, trate-as com a diligência devida, de modo que prepare os seus alunos, sobretudo os nossos, para a teologia e acima de tudo os estimule ao conhecimento do Criador.
- Como seguir Aristóteles: Em questões de alguma importância não se afaste de Aristóteles, a menos que se trate de doutrina oposta à unanimemente recebida pelas escolas, ou, mais ainda, em contradição com a verdadeira fé.…
[34] TOMÁS DE AQUINO, Suma teológica I-I, q. LXXXVII, a. I; itálicos acrescentados.
[35] Idem, q. LXXIX.
[36] Idem, q. 2, a. III.
[37] AGOSTINHO, De trinitate X, 10.
[38] AGOSTINHO, Solilóquios II, I-III.
[39] TOMÁS DE AQUINO, Suma I-I, q. LXXI, a. IV.
[40] ARISTÓTELES, Ética a Nicômaco VIII, 1, 1155, a, 15. O grifo representa uma citação de Homero, Il. X, 224 e tornou-se proverbial.
[41] Em 1614, Antônio Vieira veio com os pais para a sede do governo geral português no Brasil, Salvador, Bahia, iniciando os seus estudos no Colégio de Todos os Santos, dos jesuítas, como aluno externo. Em 1623 tornou-se seminarista nesse mesmo colégio. Concluiu o noviciado aos 18 anos (1626), e um ano após já era incumbido de escrever em latim um relatório, a Carta Ânua, informativo que a província costumava enviar ao Geral da Companhia em Roma e encontrava-se encarregado de ensinar retórica no colégio de Olinda, em Pernambuco. Após três anos de magistério (fins de 1629), regressou ao colégio de Salvador para estudos complementares de filosofia (aristotelismo) e teologia, sendo aí ordenado padre (1634) e encarregado da cadeira de teologia (1635). Em sua carreira, Vieira foi missionário, conselheiro real e diplomata. Denunciado pela Inquisição seguidas vezes, por causa de suas Ideias “heréticas” (referentes às obras de caráter profético e messiânico: Quinto Império; História do futuro; Esperanças de Portugal e Clavis prophetarum) inspiradas no sebastianismo, chegou a ser desterrado para Coimbra e proibido de retornar ao Brasil. Segundo consta, já em 1683 realizou-se, na Universidade do México, a primeira defesa de tese sobre a obra de Vieira. Morreu na cidade do Salvador, com cerimônias e honras fúnebres em Lisboa.
[42] VIEIRA, Sermão da Sexagésima, III; grifo acrescentado.
[43] Apesar das críticas a seu estilo, de seu pensamento ser comparado a “coisas que cheiram a Metafísica das escolas”, e seus sermões serem comparados a “teias de aranha, bonitas para se observarem, mas que não prendem ninguém” (VERNEY, 1950, p. 178), o fato é que os inúmeros estudos, literários e filosóficos, estão aí para provar, três séculos depois de sua morte, que Vieira sobreviveu como autor.
[44] É do ponto de vista de sua técnica, que se considera Vieira um autor predominantemente conceptista, tornando-se a sua obra um exemplo do mais puro “pensamento barroco”, ou do “barroquismo conceitualista”.
[45] VIEIRA, Sermão da Sexagésima, III.
[46] TOMÁS DE AQUINO, O mestre, art. 1, respostas às objeções. Internet: <http://www.lo.unisal.br/nova/graduacao/filosofia/artigos.html>. Consulta: 06/01/2017.
[47] “Eis que o semeador saiu a semear”. Lc, 8: 11.
[48] VIEIRA, Sermão da sexagésima, II.
[49] Idem, IV e IX.
[50] Ibidem.
[51] TOMÁS DE AQUINO, Suma I-II, q. XCI, a. II.
[52] ARISTÓTELES, Ética a Nicômaco I, 7.
[53] Ibidem.
[54] TOMÁS DE AQUINO, O mestre, a. 2; respostas às objeções, 6.
[55] VIEIRA, Sermão da Sexagésima, IX.
[56] AGOSTINHO, O mestre, 2.
[57] VIEIRA, Sermão da Sexagésima, VI.
[58] VIEIRA, Sermão de Santo Antônio (1642), III.
[59] Ibidem.
[60] Por “unidade de essência” se deve entender, no âmbito do aristotelismo português (Fonseca, 1964: 294), que para cada espécie de coisa há apenas uma definição essencial que exprime a essência de cada coisa dessa mesma espécie.
[61] VIEIRA, As cinco pedras da funda de Davi, II.
[62] Ibidem.
[63] Segundo Cerqueira, “o aristotelismo conimbricense foi, acima de tudo, uma reivindicação de validade objetiva do ensino de filosofia. Tal reivindicação apoiou-se na então recente invenção da imprensa, para a elaboração de compêndios, e na exegese do Aristoteles Latinus, cujo pensamento foi considerado falseado pelas interpretações e interpolações inseridas nas sucessivas transmissões, recepções e adaptações do Corpus de texto do Estagirita. Desse empreendimento resultaram as três obras conhecidas de Pedro da Fonseca — Institutionum dialecticarum libri octo (1564), Isagoge philosophica (1591) e Commentariorum in libros metaphysicorum Aristotelis (1577-1612) — e as dez obras (em oito volumes), publicadas de 1592 a 1606, sob o título geral Commentarii Collegii Conimbricensis Societatis Jesu, também referidas como Cursus Conimbricensis, ou simplesmente Conimbricenses” (CERQUEIRA, 2002, p. 34-35).
[64] Vale lembrar, no âmbito do conflito entre aristotélicos e antiaristotélicos no século XVI, a famosa controvérsia entre o aristotélico português Antônio de Gouveia e o humanista Pierre de la Ramée (Petrus Ramus). Segundo o Prof. Cerqueira, “Estavam em jogo diferentes conceitos de lógica como disciplina filosófica. Na perspectiva dos “modernos” (recentiores), Petrus Ramus (Animadversiones in dialecticam Aristotelis, de 1543) considerava que o estudo da argumentação devia voltar-se para a experiência, tendo em vista a solução de problemas práticos nos domínios político, jurídico, moral e pedagógico. Numa perspectiva tradicionalista, Antônio de Gouveia (Pro Aristotele responsio adversus Petri Rami calumnias, de 1543) admitia, apegando-se ao caráter apriorístico e demonstrativo da lógica aristotélica, que os problemas jurídicos são suscetíveis de soluções categóricas” (CERQUEIRA, 2002, p. 34).
[65] Observe-se o testemunho de Frei Francisco do Mont’Alverne: “A instrução nessa época era muito circunscrita. A Metrópole não queria homens sábios em suas colônias: era à custa de esforços inauditos que os brasileiros podiam distinguir-se. Restava um meio fácil de promover o nosso adiantamento, o estudo da língua francesa [...] O jovem orador brasileiro era condenado a ficar na obscuridade, estudando os oradores portugueses, cujos sermonários eram comuns entre nós; ou procurar na leitura dos pregadores franceses as inspirações de que carecia para ilustrar o seu espírito e abrilhantar seus discursos. Havia porém neste estudo da língua francesa um grande inconveniente; e era a corrupção da língua portuguesa. Era preciso responder à glória, que nos chamava; não era possível abnegar os pundonores do amor próprio; convinha ceder ao nosso entusiasmo. Não havia tempo para ler Freire de Andrade, estudar Fr. Luís de Sousa, e o Padre Antônio Vieira. Os galicismos, os termos menos apropriados, e as frases menos corretas deviam necessariamente desfigurar a beleza das nossas produções” (apud CERQUEIRA, 2002, p. 117).
[66] ARISTÓTELES, Ética a Nicómaco I, I.
[67] DESCARTES, 1973b, Meditação Quarta, 9.
[68] “Eu distingo aqui a sensibilidade propriamente dita [...] que sente sem consciência e sem memória, da percepção externa, ou perceptibilidade do espírito, que recebe, refere, e objetiva essas sensações, que lhe servem de sinais de alguma coisa.” (MAGALHÃES, 2004, p. 185).
[69] Segundo Agostinho, “quando queria ou não queria alguma coisa, tinha absoluta certeza de que quem queria ou não queria não era outro senão eu [...] E aquilo que fazia contra vontade via que era mais padecer do que fazer” (Confissões VII, III, 5), razão pela qual ele concebe que de alguém “se diz onipotente porque faz o que quer, não porque padece o que não quer” (AGOSTINHO, A cidade de Deus V, X).
[70] É interessante observar, nesta concepção do ser-situado, a presença de Agostinho: “E observei as restantes coisas abaixo de ti [de Deus] e vi que nem em absoluto são, nem em absoluto não são: na verdade, são, porque procedem de ti, mas não são, porque não são aquilo que tu és. Porque existe verdadeiramente aquilo que permanece imutavelmente. Mas para mim é bom estar unido a Deus, porque, se não permanecer nele, nem em mim poderei permanecer” (AGOSTINHO, Confissões VII, XI, 17).
[71] Meditação Quarta, 11; Carta a Mesland, de 02/05/1644.
[72] TOMÁS DE AQUINO, Suma I-II, q. XCI, a. II.
[73] Ibidem.
[74] DESCARTES, Carta a Mersenne, de 27/05/1941.
[75] Carta a Mesland, de 09/02/1645. Internet: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0100-512X2008000100014&lng=pt&nrm=iso&tlng=pt>. Consulta: 09/01/2017.
[76] Nas Confissões de Agostinho, livro VII, a tese que se discute é a de “que o livre arbítrio da vontade é a causa de obrarmos mal (male faceremus)”. Cf. também, do mesmo autor, O livre arbítrio.
[77] DESCARTES, 1973b, Meditação Quarta, 9.
[78] Cf. Cancioneiro Português da Vaticana, 455 (apud CERQUEIRA, 2002, p. 140-141).
[79] “Donde nascem, pois, meus erros? A saber, somente de que, sendo a vontade muito mais ampla e extensa que o entendimento, eu não a contenho nos mesmos limites, mas estendo-a também às coisas que não entendo” (DESCARTES, 1973b, Meditação Quarta, 10).
[80] Idem, Meditação Quarta, 9.
[81] “reconheço que nem o poder da vontade, o qual recebi de Deus, não é em si mesmo a causa de meus erros, pois é muito amplo e muito perfeito na sua espécie; nem tampouco o poder de entender ou de conceber: pois, nada concebendo senão por meio deste poder que Deus me conferiu para conceber, não há dúvida de que tudo o que concebo, concebo como é necessário e não é possível que nisso me engane” (Idem, Meditação Quarta, 10).
[82] “reconheço que nem o poder da vontade, o qual recebi de Deus, não é em si mesmo a causa de meus erros, pois é muito amplo e muito perfeito na sua espécie; nem tampouco o poder de entender ou de conceber: pois, nada concebendo senão por meio deste poder que Deus me conferiu para conceber, não há dúvida de que tudo o que concebo, concebo como é necessário e não é possível que nisso me engane” (Idem, Meditação Quarta, 10).
[83] De acordo com a interpretação de Heidegger, Kant não se propôs, na Crítica da razão pura, uma “teoria da experiência”, nem mesmo uma teoria das ciências positivas: Kant se propôs uma fundamentação da metafísica cujo ponto essencial consiste no fato de que, desde o segundo prefácio até ao final da obra, “não leva à evidência clara e absoluta de uma primeira tese ou princípio, senão que se dirige e nos remete conscientemente para o desconhecido” (Heidegger, 1981: § 1º - § 6º; apud CERQUEIRA, 2002, p. 145).
[84] Observe-se que tal exigência da Ideia de Deus se dá no âmbito da autoconsciência tanto em Vieira como em Descartes.
[85] AGOSTINHO, Confissões VII, I, 16.
[86] Idem, O livre arbítrio I, VI, 14 e 15.
[87] Idem, ibidem, III, cap. XXIV, 72. O sentido de sapiência ou sabedoria em Agostinho consiste no predomínio de toda a ciência e no conhecimento das supremas leis da moralidade, que, juntas, visava ao perfeito exercício do conjunto das virtudes. O seu oposto era a insciência (stultitia), caracterizada pela ignorância e pela falta de princípios morais.
[88] TOMÁS DE AQUINO, Suma I-I, q. 2, artigo III.
[89] AGOSTINHO, Confissões XIII, 16.
[90] Carta a Mesland, de 09/02/1645.
[91] KANT, Fundamentação da metafísica dos costumes III.
[92] HOBBES, Leviatã I, 13.
[93] “Por que somente o homem é sujeito a tornar-se imbecil? Não será porque volta assim ao seu estado primitivo e − enquanto o bicho, que nada adquiriu e tampouco tem algo a perder, continua com seu instinto − o homem, tornando a perder pela velhice ou por outros acidentes tudo o que sua perfectibilidade o fizera adquirir, recai assim mais baixo do que o próprio bicho? Seria triste para nós sermos forçados a convir que essa faculdade distintiva, e quase ilimitada, é a fonte de todas as infelicidades do homem; que é ela que o tira, por força do tempo, dessa condição originária em que ele passaria dias tranqüilos e inocentes; que é ela que, fazendo desabrochar com os séculos suas luzes e seus erros, seus vícios e suas virtudes, torna-o com o tempo o tirano de si mesmo e da natureza.” (ROUSSEAU, 1999, p. 174).
[94] Segundo estimativa, a população brasileira constituía-se, em 1823, de 2.813.351 indivíduos livres e 1.147.515 escravos (PRADO JÚNIOR, 1961: Anexos).
[95] Consultar Paulo Mercadante, op. cit.
[96] ARISTÓTELES, Política I, 1252a.
[97] AGOSTINHO, A cidade de Deus V, X.
Referências bibliográficas
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Obra literária de Domingos José Gonçalves de Magalhães teoricamente referida à introdução do romantismo e à fundação da literatura brasileira:
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