sexta-feira, 10 de outubro de 2014

História da Filosofia no Brasil I

Disciplina: FCF 654 História da Filosofia no Brasil I
Período: 2019.1
Sala: 325 C
Horário: Segunda-Feira de 08:40 às 12:00
Prof.: L. A. Cerqueira

Ementa: A filosofia brasileira como problema: origens e perspectivas.

Programa de Curso
A consciência de si como liberdade

Discutir-se-á o conceito de filosofia brasileira do ponto de vista da descolonização e emancipação do espírito em face do aristotelismo sob a Ratio Studiorum no Brasil durante o período colonial. O sentido da liberdade como indiferença. A liberdade como fundamento da dignidade do animal humano: sua origem no âmbito do Humanismo. Caráter ontológico da indiferença como sendo o mais baixo grau da liberdade. Liberdade, moral e ética.

Objetivos: compreender a ideia de filosofia brasileira do ponto de vista da consciência de si como liberdade.

Formas de avaliação: prova ou trabalho.

Textos de Classe
 BARRETO, Tobias. “Um discurso em mangas de camisa”. Texto completo disponível em:
http://textosdefilosofiabrasileira.blogspot.com/2014/07/um-discurso-em-mangas-de-camisa.html.
 "O que mais salta aos olhos, o que mais fere as vistas do observador, o fenômeno mais saliente da vida municipal, que bem se pode chamar o expoente da vida geral do país, é a falta de coesão social, o desagregamento dos indivíduos, alguma coisa que os reduz ao estado de isolamento absoluto, de átomos inorgânicos, quase podia dizer (…) Entre nós, o que há de organizado é o poder público [Legislativo, Judiciário e Executivo], não é a Nação; é o governo, por seus altos funcionários, por seus sub-rogados nas administrações estaduais, por seus ínfimos caudatários nos municípios; não é o povo, o qual permanece amorfo e dissolvido, sem outro liame entre si a não ser a comunhão da língua, dos maus costumes e do servilismo. Os cidadãos não podem, ou melhor, não querem combinar a sua ação. Nenhuma nobre aspiração os prende uns aos outros; eles não têm nem força defensiva contra os assaltos do poder público, nem força intelectual e moral para viverem por si; tal é o fato mais notável que a observação estabelece em geral, porém, que me parece não se manifestar em lugar algum tão carregado de más consequências como podemos observar em nossa própria vida municipal. Deste modo de viver à parte, de sentir e pensar à parte, resulta a indiferença, com que olha cada um para aquilo que pessoalmente não lhe diz respeito, e enquanto não chega o seu dia, contempla impassível os tormentos alheios. [Obs. 1: ver l'impassibilité e liberté d’indifférence, in: Véron, E., La morale (Paris, 1884), p. 37-40 e p. 80:
Essa impassibilidade, que acabo de assinalar, não se revela somente por uma certa ausência de sincero amor e caridade, nas relações puramente humanas, mas também pela falta de patriotismo, nas relações nacionais, pela ausência de senso político e dignidade pessoal, nos negócios locais."

CERQUEIRA, Luiz Alberto. Filosofia brasileira – Ontogênese da consciência de si. Petrópolis: Vozes, 2002.

DESCARTES, René. Meditações Metafísicas. São Paulo: Martins Fontes, 2005. Texto completo disponível em: http://livrosdehumanasempdf.blogspot.com/2014/08/descartes-meditacoes-metafisicas-pdf.html.
Abaixo: Quarta Meditação, §9.
 “Olhando-me de mais perto e considerando quais são meus erros (que apenas testemunham haver imperfeição em mim), descubro que dependem do concurso de duas causas, a saber, do poder de conhecer que existe em mim e do poder de escolher, ou seja, meu livre arbítrio; isto é, de meu entendimento e de minha vontade. Isto porque, só pelo entendimento, nada afirmo nem nego sobre coisa alguma, mas apenas concebo o sentido essencial que posso afirmar ou negar sobre as coisas [Obs. 2 - Observe-se, na tradição da filosofia ocidental que remonta aos gregos, o ensinamento aristotélico (ARISTÓTELES, tratado Da alma III-4; 429a) em virtude do qual se compreende o ato de conhecer ou entendimento (νοῦς) como sendo “superior” aos estados vegetativo (relativo às funções vitais e estados fisiológicos involuntários) e sensitivo da alma (relativo aos sentidos do corpo, ou seja, às sensações e emoções), respectivamente. Ora, desse modo gradativo, sendo superior o ato em virtude do qual o animal humano apreende o sentido essencial das coisas por abstração, quando então conhece, não se compreende tal superioridade do entendimento, assinalada por Aristóteles, senão na medida em que somos indiferentes ao determinismo que rege nossas próprias sensações e emoções, o que envolve a ideia de liberdade de arbítrio e escolha]. Ora, considerando assim o entendimento, precisamente, pode-se dizer que nele jamais encontraremos erro algum, desde que se tome a palavra ‘erro’ [erro, avi, atum = procurar alcançar; perambular] em sua significação própria. E, ainda que haja talvez uma infinidade de coisas neste mundo das quais não tenho o sentido essencial em meu entendimento, não se pode por isso dizer que ele seja privado desse sentido essencial devido a sua natureza, mas somente que não o tem (…) se considero a faculdade de conceber que há em mim, acho que ela é de uma extensão muito pequena e muito limitada (…) não encontro nenhum outro poder que não seja em mim muito pequeno e limitado [como a memória e a imaginação] e que em Deus não seja imenso e infinito (…) Resta somente a vontade, que eu sinto ser em mim tão grande, que não concebo absolutamente a ideia de outro poder mais amplo e mais extenso (…) se eu a considero formal e precisamente nela mesma, pois consiste somente em que podemos fazer uma coisa ou não fazer (…) agimos de tal maneira que não sentimos absolutamente que alguma força exterior nos obrigue a tanto (…) De maneira que esta indiferença que sinto, quando não sou absolutamente impelido para um lado mais do que para outro pelo peso de alguma razão, é o mais baixo grau da liberdade, e faz parecer mais uma carência no conhecimento do que perfeição na vontade.”

DESCARTES, René. Princípios da filosofia. Trad. de Guido Antônio de Almeida (coord.) e outros. Rio de Janeiro: UFRJ. Abaixo: §XXXIX e §XLI
“Que haja liberdade em nossa vontade, e que, a nosso arbítrio, possamos assentir ou dissentir a muitas coisas, é a tal ponto manifesto que deve ser enumerado entre as primeiras e mais comuns noções que nos são inatas (…) experimentamos, com efeito, existir em nós tão grande liberdade, que nos podíamos abster ou impedir de acreditar naquilo que ainda não conhecíamos perfeitamente bem (…) estamos de tal maneira conscientes da liberdade e da indiferença que em nós existe, que nada há que conheçamos de maneira mais evidente e perfeita.”

MAGALHÃES, D. J. Gonçalves de. Fatos do espírito humano. Org. e estudo introdutório de L. A. Cerqueira. Petrópolis: Vozes, 2004; Cap. XV. Texto completo disponível em: http://textosdefilosofiabrasileira.blogspot.com/2008/06/fatos-do-esprito-humano-cap-xv_20.html
“Não é por falta de inteligência que deixamos às vezes de reconhecer a verdade, mas por deficiência de atenção, o que depende da vontade; e muitas vezes por um falso preconceito, que nos faz duvidar da evidência só por parecer contrária ao nosso modo habitual de entender, e a certos princípios que fabricamos por uma análise incompleta, e uma indução precipitada. Custa-nos muito no meio, ou no fim da vida, renovar as nossas ideias, como o mudar de linguagem, e reformar os nossos costumes. Assim, não há verdade em ciência alguma, não há fato novo, achado pelo trabalho assíduo de alguns espíritos, que não fosse, e não seja combatido por mil juízos antecipados. Outras vezes, não podendo conciliar fatos que nos parecem contrários ao que sabemos, negamos hoje o que afirmamos ontem, damos agora como causa o que antes reconhecemos ser efeito, ou desacoroçoados duvidamos de tudo; o que também é um erro, porque infalivelmente alguma coisa é verdade sem a menor dúvida para o espírito humano, a começar pela sua própria existência (…) Nós percebemos o nosso corpo com as mesmas condições que nos servem na percepção de qualquer outro corpo; a sensibilidade que a ele nos prende (…) O nosso corpo está para nós como para ele está a sua efígie refletida em um espelho, onde ele não está realmente; e quando queremos ver o que se acha no nosso rosto, olhamos para o espelho, e aí o vemos. A figura que se nos antolha no espelho nada mais é do que o segundo reflexo da nossa percepção (…) o espírito humano não é um simples pensamento da inteligência eterna que, sem conhecer-se, se mova por determinações necessárias; que só exista intelectualmente em Deus, ou como objeto para outros espíritos, do mesmo modo que o corpo existe para nós (…) O espírito tem consciência de si; na sua inteligência se refletem os pensamentos de Deus; ele procura compreendê-los, delibera, e obra por si mesmo. Essa consciência e liberdade lhe dão uma individualidade real, a posse de si mesmo, e ele diz eu, e realmente existe; e quer o constituísse Deus com o seu próprio ser, quer lhe desse um ser análogo ao seu, de ambos os modos ele se conhece pela sua própria consciência, e se distingue da consciência eterna e universal, bem como da consciência de todos os espíritos seus irmãos. Por essa consciência individual, e por seus próprios atos, é que ele se julga, e é julgado; que goza, ou padece; que se queixa, ou se aplaude; que é virtuoso, ou culpado; não tanto pelo que faz, como pela intenção com que o faz (…) O que limita o nosso poder é o corpo animal, essa imagem, esse complexo de fenômenos sensíveis, sujeito a leis necessárias, independentes da nossa vontade, que demanda imperiosamente a nossa atenção, e involuntariamente se opõe às nossas determinações. O corpo não nos foi dado como uma condição de saber e de querer, mas como uma sujeição que coarctasse esse poder livre, de que abusaríamos, chamando-nos à vida prática. Sem esse corpo, sem as relações sensíveis com outros espíritos, e com os objetos (…) postos ao nosso alcance, não poderíamos efetuar as intuições puras de justiça, de dever, de virtude e do belo (…) Só com esta triste condição poderíamos ser entes morais. Essa é a nossa glória, e o nosso bem. Só tem liberdade neste mundo quem é inteligente; só tem inteligência quem é livre, e obra por si mesmo; e quem tem inteligência e liberdade tem consciência de si mesmo, é de necessidade um ente moral. Podia Deus sem dúvida criar uma sociedade de espíritos puros, não obrigados a coisa alguma, não sujeitos à menor dor, seres angélicos que vivessem em uma eterna bem-aventurança, só contemplando as maravilhas do seu criador. Mas qual seria o mérito desses espíritos para tanta ventura? Necessita Deus de admiradores inúteis? (…) Qual seria o nosso mérito, se nenhum obstáculo se nos apresentasse? O que seria a virtude, se a não praticássemos com algum esforço, vencendo as dificuldades e os vícios com que nos opomos uns aos outros? Qual seria a nossa ciência, quais as nossas artes, a nossa indústria, se as necessidades, as privações e as misérias humanas, a que chamamos males físicos e morais, não nos instigassem a uma contínua atividade livre, a um trabalho incessante? (…) Mas demos que desaparecessem todas as virtudes, e todas as ciências, desaparecendo todas as suas ocasiões, todos os vícios, e todos os males humanos. Mesmo assim essa sociedade de máquinas vivas, pouco mais ou menos como a das abelhas, impossível seria com a inteligência e a liberdade; porque bastariam estas duas condições para que cada indivíduo pensasse, discorresse, e quisesse ordenar as coisas a seu jeito; e cada qual pensando, e querendo operar a seu grado, não haveria acordo, não haveria sociedade, seria a guerra o estado permanente (…) Supondo porém uma sociedade de entes sem liberdade, sem virtudes nem vícios, sem bens nem males, todos de acordo e uniformes obedecendo a uma só vontade sempre justa; uma tal sociedade é possível, e talvez exista em qualquer outro sistema planetário; mas sendo também possível uma sociedade de homens livres, que não exclui a outra, nem é por ela excluída, esta sociedade existe de fato no nosso planeta, e dela somos membros, livres graças a Deus, a fim de que sejamos justos por nós mesmos, virtuosos e sábios pelos nossos próprios esforços, e não um rebanho de máquinas, obedecendo cegamente a uma vontade soberana (…) Quem nega a liberdade humana cai em uma contradição manifesta; porque, negando-a, prova que sabe o que é liberdade; que quis, e deixou de querer alguma coisa em oposição à outra; que fez esforços para resistir; que pensou sobre os meios de subtrair-se à necessidade; que foi livre na sua resolução, na sua intenção, no seu querer, e que só deixou de executar o que livremente quis, porque a execução depende de coisas estranhas à sua livre vontade. Se esse poder de efetuar fosse tanto como o de querer, imagine-se que ordem haveria neste mundo! Aniquilada estaria a espécie humana, ou seria a Terra um verdadeiro vale de lágrimas. A liberdade de muitos só era possível com algum elemento fatal, que os reunisse, e os harmonizasse; e a coexistência da liberdade e da necessidade prova que tudo foi previsto e ordenado com maior sabedoria que a ordem de todo esse imenso universo. E como de fato existe esta harmonia da liberdade e da necessidade, nenhuma dificuldade temos de admitir o livre-arbítrio, e a presciência divina. Este grande problema da conciliação do livre-arbítrio e da presciência divina, tão discutido pelos maiores teólogos e filósofos cristãos, tem sido explicado por modos diversos, mas não resolvido. Uns, reconhecendo o livre-arbítrio, negam como incompatível a presciência divina. Outros, julgando impossível que Deus ignore o que os homens têm de fazer, sacrificam a liberdade à onisciência do Eterno. Outros enfim, admitindo ambas as coisas como certas, procuram ajustar as duas verdades, sem contudo satisfazerem completamente. Eu creio que, reconhecendo-se bem no que consiste o livre-arbítrio, distinguindo-o do elemento fatal e previsto que lhe resiste, e da oposição mesma de todas as vontades livres que se combatem, coordenam e harmonizam perante a razão absoluta e a necessidade das coisas que não dependem da nossa vontade, possa tudo estar previsto, sem que deixem os homens de ser livres. Para o mérito do homem, para a sua virtude, basta a intenção com que ele livremente faz o que deve fazer, ou se opõe, sem que possa subtrair-se à necessidade: e essa liberdade de resolução, e o seu mérito, são tanto maiores quanto ele ignora o que há de acontecer, e se atribui a determinação e a execução. Pode Deus ter previsto todos os acontecimentos, e para que sejamos livres, para que tenhamos o mérito e a responsabilidade dos nossos atos, basta que não determine ele todas as nossas resoluções e volições, que serão anuladas umas pelas outras, diante da necessidade prevista que ignoramos, e da razão que consultamos.”

 PICO DELLA MIRANDOLA, G. Discurso sobre a dignidade do homem (ed. bilíngue). Trad. de Maria de Lurdes Sirgado Ganho. Lisboa: Ed. 70; ver p. 85. Texto completo disponível em: 
https://ia601902.us.archive.org/22/items/202684703GiovanniPicoDellaMirandolaDiscursoSobreADignidadeDoHomem/202684703-Giovanni-Pico-Della-Mirandola-Discurso-Sobre-a-Dignidade-Do-Homem.pdf.
 “A filosofia me ensinou a depender menos dos juízos dos outros do que da minha própria consciência.”

 VIEIRA, Antonio. “Sermão da sexagésima” (1655). Texto completo disponível em:
http://textosdefilosofiabrasileira.blogspot.com/2015/11/sermao-da-sexagesima.html.
 “Se com cada cem sermões se convertera e emendara um homem, já o mundo fora santo (…) Tantos pecadores convertidos, tanta mudança de vida, tanta reformação de costumes; os grandes desprezando as riquezas e vaidades do mundo (…) Nada disto. Nunca na Igreja de Deus houve tantas pregações, nem tantos Pregadores como hoje (…) Não há um homem que em um sermão entre em si e se resolva, não há um moço que se arrependa, não há um velho que se desengane. Que é isto? (…) Pois se a palavra de Deus é tão poderosa, se a palavra de Deus tem hoje tantos pregadores, por que não vemos hoje nenhum fruto da palavra de Deus? Esta tão grande e tão importante dúvida, será a matéria do sermão. Quero começar pregando-me a mim. A mim será, e também a vós: a mim, para aprender a pregar; a vós para que aprendais a ouvir (…) Para uma alma se converter por meio de um sermão há-de haver três concursos: há-de concorrer o pregador com a doutrina, persuadindo; há-de concorrer o ouvinte com o entendimento, percebendo; há-de concorrer Deus com a graça, alumiando (…) Que coisa é a conversão de uma alma, senão entrar um homem dentro em si e ver-se a si mesmo?”
VIEIRA, Antonio. Sermão “As cinco pedras da funda de Davi”, discurso I (1673). Texto completo disponível em: http://textosdefilosofiabrasileira.blogspot.com/2008/07/antonio-vieira-1608-1697-o-que-conduz.html.
Neste mundo racional do homem, o primeiro móbil [movente; motor; e menos precisamente: causa] de todas as nossas ações é o conhecimento de nós mesmos. As obras são filhas dos pensamentos; no pensamento se concebem, do pensamento nascem, com o pensamento se criam, se aumentam e se aperfeiçoam (…) Sendo pois os pensamentos, e conceitos na mente do homem tantos, e tão diversos, justamente se pode duvidar de qual, ou quais deles sejam filhas as obras. Todos comumente cuidam, que as obras são filhas do pensamento ou ideias, com que se concebem e conhecem as mesmas obras: eu digo que são filhas do pensamento e da ideia, com que cada um se concebe, e conhece a si mesmo (…) Qual será logo no homem o [verdadeiro] conhecimento de si mesmo? Digo que é conhecer e persuadir-se cada um, que ele é a sua alma (…) o corpo, não é eu; eu sou a minha alma: este é o verdadeiro (…) conhecimento de si mesmo (…) o verdadeiro, porque ainda que o homem verdadeiramente é composto de corpo e alma, quem se conhece pela parte do corpo ignora-se, e só quem se conhece pela parte da alma se conhece (…) Assim como um espelho se compõe de aço e cristal, assim o homem se compõe de corpo e alma (…) Quem olha para o espelho pela parte do aço, vê o aço, mas não se vê a si: quem olha pela parte do cristal vê ao cristal, e no cristal vê-se a si mesmo. Assim neste espelho da natureza humana, quem o olha pelo corpo, vê o corpo, mas não vê o homem: quem o olha pela alma, vê a alma, e na alma vê e conhece ao homem (…) Há de servir o corpo ao próprio conhecimento (…) Assim é no homem o conhecimento de si mesmo: se pára no corpo, ignora-se; se reflete sobre a alma, conhece-se (…) quem vê o corpo, vê um animal; quem vê a alma, vê ao homem (…) os animais chamam-se corpos, e os homens almas, porque o caráter que distingue o animal do homem, e o homem do animal, é, que o animal é corpo, e o homem alma. Verdade é, que o homem e o animal, cada um por seu modo, é composto de alma e corpo: mas como a alma do animal é corpórea, e a alma do homem espiritual; o animal ainda que tenha alma, é corpo (…) Quando S. Paulo (e eu com ele) chama homem à alma, não fala da parte do homem, senão de todo o homem; mas não do homem físico e natural, senão do homem moral, a quem ele queria instruir e formar, bem assim como em outro lugar distingue no mesmo homem dois homens; a constituição do homem moral é mui diversa da composição do homem natural: o homem natural compõe-se de alma e corpo; o homem moral constitui-se ou consiste só na alma. De maneira que, para formar o homem natural, há-se de unir a alma ao corpo; e para formar ou reformar o homem moral, há-se de separar a alma do corpo (…) Senhores meus, separemos o precioso do vil: separemos como S. Paulo ao homem do [seu corpo], ao senhor do escravo, ao morador da casa, ao preso do cárcere (…) enfim ao corpo da alma: entendamos todos, e diga-se cada um a si mesmo: Eu sou a minha alma (…) livre [salva] a alma dos embaraços e dependências do corpo, obra com outras espécies, com outra luz, com outra liberdade (…) se a morte há de fazer por força esta separação, por que a não faremos nós por vontade? Por que não fará a razão desde logo, o que a morte há de fazer depois? Oh que vida! Oh que obras seriam as nossas tão outras do que são! (…) como as obras nascem de seus princípios e caminham a seus fins, só obrará heroicamente, quem trouxer diante dos olhos do seu conhecimento, não o vil princípio e fim de seu corpo, senão o princípio e fim altíssimo de sua alma (…) Tenho acabado o meu discurso, e só vejo me poderão dizer contra ele, que pus o conhecimento de si mesmo em uma coisa que se não conhece: é verdade que nós nesta vida não conhecemos a nossa alma, como é em si mesma, ou quidditative [em Tomás de Aquino: é o modo de conhecer a essência, ou o que é (quidditatem) a coisa, por abstração da espécie], como falam os escolásticos: mas porque a alma se não conhece a si, por isso mesmo se pode conhecer melhor: não quis Deus que o homem tivesse próprias espécies de sua alma, porque pertencia à dignidade de uma criatura tão nobre e tão aparentada com Deus, que assim como Deus nesta vida se conhece por fé, assim se conhece por fé também a alma. Não digo que a alma se não conhece naturalmente nesta vida, mas quando se conhece naturalmente, é também como Deus pelos efeitos (…) Almas, almas, vivei como almas: se conheceis que a alma é racional, governe a razão, e não o apetite; se conheceis que é imortal, desprezai tudo aquilo que morre e acaba.”

Obs. 3: Neste sentido, a hipótese de conhecimento da alma em separado, segundo Vieira, está em consonância com o Princípio e Fundamento que se encontra nos Exercícios espirituais de Inácio de Loiola, fundador da Companhia de Jesus: “é necessário fazer-nos indiferentes (necesse est facere nos indifferentes) a todas as coisas criadas, em tudo o que é concedido à liberdade do nosso livre arbítrio, e não lhe está proibido”.


VIEIRA, Antonio. Sermão “XIV” da série Maria, Rosa Mística (1633). Texto completo disponível em: http://textosdefilosofiabrasileira.blogspot.com/2016/01/sobre-condicao-do-negro-escravizado-no.html.
Sermão sobre a condição do negro escravizado no Brasil: o sentido ontoteológico da liberdade. Na Bahia, à irmandade dos negros africanos escravizados de um engenho de cana-de-açúcar, ano de 1633.
“E porque agora falo mais particularmente convosco, agora lhes peço mais particular atenção (…) a primeira e maior de todas é que deveis dar infinitas graças a Deus por vos ter dado conhecimento de si, e por vos ter tirado de vossas terras, onde vossos pais e vós vivíeis como gentios, e vos ter trazidos a esta, onde instruídos na Fé, vivais como Cristãos, e vos salveis [ver Obs. 4 abaixo] Estou vendo porém que o vosso contínuo trabalho e exercício pode parecer ou servir de escusa ao descuido dos menos devotos. Direis que estais trabalhando de dia e de noite em um Engenho, e que as tarefas multiplicadas umas sobre outras vos não deixam tempo nem lugar para rezar o Rosário (…) Não se pudera, nem melhor nem mais altamente, descrever que coisa é ser escravo em um Engenho do Brasil. Não há trabalho nem gênero de vida no mundo mais parecido à Cruz e Paixão de Cristo que o vosso em um destes Engenhos (…) Em um Engenho sois imitadores de Cristo crucificado (…) Cristo despido, e vós despidos; Cristo sem comer, e vós famintos; Cristo em tudo maltratado, e vós maltratados em tudo. Os ferros, as prisões, os açoites, as chagas, os nomes afrontosos, de tudo isto se compõe a vossa imitação (…) Que tem que ver a liberdade de uma ave com penas e asas para voar, com a prisão do que se não pode bulir dali por meses e anos, e talvez por toda a vida? (…) se não só de dia, mas de noite vos virdes atados a essas caldeiras com uma forte cadeia, que só vos deixe livres as mãos para o trabalho, e não os pés para dar um passo, nem por isso vos desconsoleis e desanimeis: orai e meditai (…) e nessa triste servidão de miserável escravo tereis o que desejava (…) Oh! quem me dera asas como de pomba para voar e descansar! E estas são as mesmas que eu vos prometo no meio dessa miséria (….) para os que orando e meditando, que o ferro se lhes converte em prata, a prisão em liberdade, o trabalho em descanso, o inferno em paraíso.”

Obs. 4: "vos salveis" - de acordo com o Princípio e Fundamento que se encontra nos Exercícios espirituais de Inácio de Loiola (ver obs. 3 acima), Vieira entende que, sendo instruído pelos jesuítas com base na consciência de si sendo indiferente às próprias sensações e emoções, o animal humano uma vez convertido (conforme o significado que Vieira confere ao termo 'conversão') passa a conhecer a si mesmo pelo próprio uso da razão como sendo capaz de libertar-se ou salvar-se do mecanismo causal que rege as inclinações naturais de todo animal; somente assim se justifica a exortação de Vieira à vida moral: "se conheceis que a alma é racional, governe a razão, e não o apetite”.


 VIEIRA, Antonio. "Sermão de Santo Antônio" (1642), Parte V. Texto completo disponível em:
http://textosdefilosofiabrasileira.blogspot.com/2016/01/sermao-de-santo-antonio.html.
 “Pelas conveniências do bem comum se hão de transformar os homens, e hão de deixar de ser o que são por natureza, para serem o que devem ser por obrigação."





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