☛ Trata-se do Capítulo I, sob o título "Renovação dos Estudos Psíquicos", do livro de Farias Brito - A base física do espírito (1912). Brasília: Senado Federal, 2006, p. 137-149.
☛ Aprofundando as teses de Tobias Barreto — segundo o qual, o espírito considerado separadamente do corpo é uma das formas do ideal, sem realidade objetiva, por ser inconcebível o exercício de uma função sem o órgão respectivo, assim como o pensamento fora do cérebro nada é e nada vale, não pode existir, e que neste sentido ideias e sentimentos são funções [BARRETO, A Ciência da Alma (1871) e Notas a Lápis sobre a Evolução Emocional e Mental do Homem (1884)] —, Farias Brito desenvolve sua concepção filosófica do conhecimento de si como consciência ou espírito, tendo como primeira instância a evidência de caráter imanente fundamentada pelo método experimental dos naturalistas de sua época, então precursores da neurociência.
∭
A base física do espírito é a
sensibilidade. Espírito pode mesmo definir-se: a energia dotada de
sensibilidade, capaz de sentir e perceber. Suprimi toda a sensibilidade e será
impossível conceber a percepção; fazei cessar toda a percepção, como todo o
conhecimento, e será impossível imaginar o que se chama espírito. Tratar, pois,
do espírito, fazendo abstração da sensibilidade, é abandonar o terreno da
realidade, para se perder no vácuo das cogitações sem objeto.
Observações — Não é coisa fácil definir a sensibilidade. Sabemos
que sentir, em sua significação real, se resolve em experimentar a sensação de
dor ou de prazer. Mas o prazer e a dor como devem ser compreendidos? As
opiniões se dividem. Para alguns o prazer e a dor dependem dos fenômenos da
vontade e do desejo. Há dor, quando nossa vontade é contrariada, quando alguma coisa
se opõe às nossas inclinações e desejos; prazer, no caso contrário. Neste caso
só a dor é real, e o prazer, fato negativo, consiste apenas na ausência da dor.
É o sentimento que se experimenta quando é removido o obstáculo que se opõe às
nossas inclinações e desejos (Epicuro, Carden, Montaigne, Leibniz, Verri, Kant,
Schopenhauer, Hartmann). Para outros o prazer e a dor ligam-se, não à vontade e
ao desejo mas a uma seleção da inteligência, a um ato do juízo. Prevalece nessa
concepção o ponto de vista do ideal estético. Também a teoria é sustentada principalmente
por teóricos da arte. Destacam-se, porém, entre os representantes do sistema:
uma corrente objetiva, e neste sentido, o prazer e a dor dependem do
conhecimento confuso da maior ou menor perfeição dos objetos exteriores (Wolf,
Baungarten, Medelssohn, Baader, Shaftesbury, Lamennais, Pictet, Courdaveau,
Schelling, Fichte, Hegel); e uma corrente subjetiva, segundo a qual o prazer e
a dor dependem, não do juízo sobre as coisas, mas do juízo sobre nós mesmos (Descartes,
Régis, Bertrand). Outros examinam mais a fundo a natureza da sensibilidade e
ligam o prazer e a dor, não a atos do desejo e da vontade, ou a atos da
inteligência exclusivamente, mas ao exercício de todas as nossas faculdades.
Também aqui se distinguem dois grupos. O primeiro compreende os que ligam o
prazer e a dor a diferenças de qualidade. É o grupo absolutista. Este sustenta,
em termos platônicos, que a dor consiste numa dissolução da harmonia e da
natureza, numa corrupção do animal; ao passo que o prazer corresponde ao
estabelecimento da harmonia e do estado natural, é o indício e a repercussão da
organização normal (Platão, Aristóteles, Charron, Bossuet, Bouillier). O
segundo grupo é relativista e liga o prazer e a dor aos sentimentos de um
aumento ou de uma diminuição de força em nosso organismo (Hamilton, Bain,
Hodgson, Léon, Dumont, Ribot).
Sem entrar, por enquanto, no
exame de todas essas doutrinas, nem aprofundar a questão, sob o ponto de vista
da significação e valor psíquico da sensibilidade, para considerar esta somente
em sua significação exterior, vê-se, pelo que se torna palpável no fato, que o
que constitui a sensibilidade é a propriedade que tem o organismo de ser
impressionado pelas coisas. Sentir é ser afetado por qualquer objeto ou fato. E
nesse sentido há sentimento já na planta. É assim que, quando damos um golpe
profundo na planta, vê-se que ela sente, modifica-se e perde mesmo todo o seu
viço e beleza, e se o golpe é de natureza a prejudicá-la de modo irreparável, a
planta definha e morre. Mas terá a planta, no fundo de seu organismo, em alguma
parte mais íntima e mais oculta de seus tecidos, alguma coisa que se possa
comparar ao que em nós se chama percepção? Terá a planta percepção das mudanças
que experimenta, terá a planta consciência das impressões que recebe das
circunstâncias exteriores?
É impossível responder, porque,
nesse sentido, não nos é dado entrar em comunicação com as plantas. A planta é
muda e imóvel e não pode assim dar sinal do que sente. O mesmo não se dá quando
passamos do mundo puramente vegetal para o mundo da animalidade. O animal sente
e tem a percepção de que sente. Está sujeito ao prazer e à dor, e o prazer e a
dor são precisamente os agentes que o determinam a mover-se. O animal sofre e,
por isso mesmo que sofre, é capaz de afeto e de amor; e o homem dele se
distingue somente quanto ao grau de desenvolvimento, não quanto à natureza e
organização. Também a concepção de Descartes que fazia do animal um automaton, para distingui-lo
essencialmente do homem, é manifestamente absurda. Nem há novidade na concepção
darwínica, quando faz do homem uma espécie que se destacou do reino animal pelo
desenvolvimento excepcional de certas qualidades orgânicas e de certas aptidões
de inteligência e de ação. O que é original no darwinismo é que Darwin explica
esse desenvolvimento excepcional como uma consequência da luta pela vida e da
concorrência vital. A coisa poderá, entretanto, explicar-se por outra forma.
Seja, porém, qual for a explicação que se venha a dar, o certo é que a
organização é a mesma no animal e no homem, formando a vida animal em seu
conjunto, uma escala ascendente de complicação e aperfeiçoamento, quanto ao
sistema de organização, havendo no todo harmonia geral, e perfeita unidade de
plano.
No homem e no animal pode, pois,
dizer-se que sentir é ser afetado por qualquer coisa. Mas, em um e outro caso, há
não somente afecção, mas igualmente consciência dessa afecção. Quer dizer: o
organismo passa por uma modificação interna e há, ao mesmo tempo, um sentimento
em correspondência necessária com essa modificação, sentimento que pode ser de
prazer ou de dor; de prazer, provavelmente quando há aumento, e de dor, quando
há diminuição de força no organismo.
Que a ação de alguma
circunstância exterior produza a modificação interna, compreende-se. Mas como
se explica que a essa modificação corresponda um sentimento? Resolvendo-se o
organismo em todos os seus processos e funções numa troca contínua de energia e
desenvolvimento de forças, como explicar a passagem do movimento para o
sentimento, designando-se o processo especial dessa difícil combinação e o
aparelho próprio em que se realiza o que poderia chamar-se o momento da
percepção? Em outros termos: qual o equivalente mecânico do sentimento, a
energia específica da consciência? É uma questão que fica suspensa.
A sensibilidade e a
matéria
Mas a sensibilidade está ligada à
matéria, é uma função do organismo, havendo, como se sabe, uma anatomia e uma
fisiologia dos órgãos dos sentidos. Estes se especializam no sistema nervoso, e
o sistema nervoso, por sua vez, se distribui por diferentes seções, todas
ligadas aos centros cerebrais, havendo órgãos determinados para cada uma das
espécies distintas de sensações. Como se deverá então conceber o espírito? Será
um fenômeno da matéria, um epifenômeno,
como pretende o fenomenismo moderno, oriundo de Hume? Será uma substância à
parte, distinta da matéria, a res
cogitans, em oposição a res extensa, segundo a terminologia de
Descartes, atividade imaterial que funciona por meio da matéria, forma que se
objetiva no organismo, energia que se exterioriza na vida, consciência que se
liga ao inconsciente, que dele se serve como instrumento de sua atividade, que
se individualiza em corpos para poder agir sobre os corpos?
A psicologia
tradicional
Anteriormente à psicologia
experimental contemporânea, dizia-se: a psicologia é a ciência da alma. E por
alma entendia-se a substância do espírito, tal como se realiza no homem, ligada
a um corpo, mas dele essencialmente distinta, tendo seus predicados próprios e
agindo por sua energia própria, simples e indestrutível, devendo assim
tornar-se independente e subsistir na sua simplicidade, quando vier a
separar-se do corpo a que se acha ligada, com a dissolução do mesmo, pela
morte. Era a concepção da psicologia tradicional, aceita pela filosofia cristã,
e fundada na conformidade dos princípios da filosofia platônico-aristotélica.
No conceito desta psicologia, o espírito, no homem, é alma, e a sensibilidade é
uma propriedade da alma, não da matéria; e se há, não obstante, órgãos da
sensibilidade, explica-se isso, não devendo admitir-se que a sensibilidade seja
compreendida como função da matéria, mas considerando-se que o espírito precisa
desta organização material para poder entrar em contato com a matéria e agir
sobre ela.
A máquina orgânica: a
alma como maquinista
Nosso organismo é ao mesmo tempo
passivo e ativo; o que significa que não só recebe a ação dos elementos
exteriores, como igualmente é capaz de agir sobre a natureza. Nisto está a
distinção que vai dos órgãos da sensibilidade para os órgãos da locomoção. Pela
sensibilidade recebemos as impressões do mundo exterior, e estas, transmitidas
aos centros de nossa atividade psíquica, não só dão lugar aos fenômenos de
percepção e ideação, mas ao mesmo tempo acumulam-se como memória, constituindo
um reservatório de energia, que é de onde parte o impulso para a ação. É aí que
está o fundamento e a base de toda a vida moral e psíquica. Todo homem é, pois,
como organismo, uma máquina e, como máquina, para funcionar, precisa de
combustível. Daí a dependência em que está para com a natureza exterior, da
qual faz parte e à qual se acha ligado por laços indissolúveis. Demais: os
elementos constitutivos dessa máquina são elementos que se gastam e precisam
ser renovados. É o que explica a necessidade da nutrição. Chega, porém, o momento
em que a máquina se torna de todo imprestável, e já não pode funcionar, o que
pode dar-se, não só pela marcha natural dos acontecimentos, como acontece
quando a máquina completa o ciclo fatal de seu desenvolvimento; como igualmente
por circunstâncias do acaso, como sucede quando o indivíduo é vítima de algum
acidente de significação exterior ou interna. De toda a forma, em qualquer dos
casos, a máquina dissolve-se: é a morte.
Até aí trata-se de princípios que
são aceitos por todos e que não podem ser recusados, pois é isto o que se
verifica pela observação imediata dos fatos. Mas a psicologia tradicional diz:
há além da máquina, um maquinista que sobrevive; esse maquinista é a alma.
A alma e a psicologia
experimental: psicologia sem alma
A psicologia experimental, não
podendo acreditar, senão no que vê e observa, considera a alma como uma
entidade mitológica criada pela fantasia infantil dos povos primitivos, e para
explicar os fenômenos da sensibilidade, e o mais que daí deriva, limita-se a
examinar o organismo mesmo, tal como se nos apresenta, não só no homem, como
igualmente no resto da animalidade, tornando-se assim a psicologia simplesmente
uma questão de fisiologia. A psicologia é a fisiologia do cérebro, diz a
ciência moderna. Foi assim que a alma, tornando-se inútil, foi afinal
eliminada, e a psicologia, afastando-se da tradição primitiva e submetendo-se
aos métodos da observação experimental, tornou-se uma psicologia sem alma. Diz Ribot:
A psicologia moderna difere da antiga por seu espírito: não é metafísica; por seu fim: só estuda fenômenos; por seus processos: tira-os, quando possível, das ciências biológicas. [1]
Hoffding,
em seu Esboço de uma psicologia fundada
sobre a experiência, a esse respeito, também claramente se explica. Diz ele:
A psicologia, como a compreendemos, é uma psicologia sem alma, no sentido de que nada tem a dizer sobre o ser absoluto da vida psicológica, sobre a questão de saber se há em geral um ser absoluto de tal ordem.[2]
E
Lange, em sua História do materialismo,
estudando que ele chama — a psicologia conforme a ciência da natureza — por sua
vez solta o brado:
Aceitemos atrevidamente uma psicologia sem alma! Que fazer (...) de uma hipótese sobre a essência da alma, ou simplesmente de uma hipótese sobre a existência da alma, quando sabemos ainda tão pouca coisa sobre os fenômenos isolados, a que deve, entretanto, estender-se toda busca exata? No pequeno número de fenômenos até aqui acessíveis a uma observação mais exata, não há o menor motivo para admitir em geral uma alma, qualquer que seja o sentido mais ou menos preciso que se ligue a esta palavra, e a razão oculta dessa hipótese está somente na tradição ou no desejo secreto que experimenta o coração de resistir ao pernicioso materialismo. [3]
Nota 1: Ribot, La psychologie allemande contemporaine, Intr. II.
Nota 2: Holffding, Esquisse d’une psychologie fondée sur l’expérience, trad. Poitevin, I.
Nota 3: Lange, História do materialismo, vol. II, 3ª parte, cap. III.
Origens da psicologia
moderna
É conveniente verificar como foi
que se encaminhou o espírito nesta corrente de ideias. O século XVII e o século
XVIII foram os séculos das ciências físicas e matemáticas. O século XIX foi o
século das ciências naturais. É de supor que o século XX venha a ser o século
das ciências psíquicas, e a revolução por que, neste domínio, vem passando o
espírito humano, a partir do século XIX, é a prova de que esta afirmação não é
sem fundamento. Foi do desenvolvimento mesmo das ciências físicas e
matemáticas, como das ciências naturais, que veio o impulso para a renovação
dos estudos psíquicos: a princípio, sob a influência da matemática, com a
tentativa de Herbart no sentido de introduzir o cálculo na psicologia, fundando
uma estática e uma dinâmica do espírito; depois, sob a influência ao mesmo
tempo da matemática, da física e das ciências naturais, com a psicologia de
Fechner, dominado pela ideia de descobrir uma relação, suscetível de cálculo e
medida entre a excitação e a sensação; por último, com a orientação derivada
particularmente das ciências naturais, orientação que levou ao estabelecimento
da psicologia fisiológica.
Psicologia matemática
de Herbart
A psicologia matemática de
Herbart foi de influência efêmera e fracassou por completo; o que não quer
dizer que não tenha provocado entusiastas e admiradores exaltados. Se,
entretanto, é certo que Herbart ainda exerce influência e pode ser considerado
como um dos precursores da psicologia contemporânea, explica-se isso não pelo
fato de que tenha introduzido o cálculo em psicologia, mas pelo que há de
observação e estudo real dos fenômenos psíquicos, em suas obras, abundantes,
como observa Mauxion, em notas cheias de observação sutil e de verdade, notas
que são por ele dadas, muitas vezes, como derivadas do cálculo, mas que são
antes o resultado da observação dos fatos. Explica Mauxion:
Herbart mostra-se observador atento e exato tanto quanto construtor audacioso e atrevido, psicólogo em uma palavra, tanto quanto metafísico ou matemático. [4]
E
isto é confirmado por Drobisch, discípulo entusiasta de Herbart e, portanto,
apto para conhecê-lo mais a fundo. Diz Drobisch:
Eliminando-se da psicologia de Herbart tudo o que é metafísico e matemático, fica ainda uma massa considerável de notas psicológicas finas e exatas, de concepções claras e engenhosas, que lançam viva luz sobre o encadeamento regular da vida psíquica. É a razão por que esta psicologia, tornando-se tão importante e de uso tão proveitoso em pedagogia, conseguiu além disso, enlarguecendo-se, dar nascimento à psicologia étnica e achar acesso na lingüística. [5]
Nota 4: M. Mauxion, La métaphysique de Herbart, cap. VII.
Nota 5: Citado por Mauxion.
A psicologia de
Fechner
A psicofísica de Fechner causou a
princípio uma espécie de deslumbramento. Para isso muito concorreram sem dúvida
a gravidade do ilustre pensador e o seu prestígio de sábio. “Fechner”, diz
James:
era o modelo do sábio alemão ideal, tão audaciosamente original em seu pensamento, quão simples em sua vida. Modesto, cordial, laborioso, escravo das exigências da verdade e do saber, ele possuía de outra parte, um estilo admirável, cheio de brilho e de bom gosto. A geração materialista que, para 1850 e 1860, tratava como imaginária suas especulações, foi substituída por uma geração que manifestava mais liberdade de imaginação, e um Preyer, um Wundt, um Pulsen e um Lasswitz poderiam falar de Fechner, como de seu mestre. [6]
Mas independente disso, a nova doutrina era, por si mesma, de natureza a
despertar o mais vivo interesse. Tratava-se de uma ciência exata das relações
entre a alma e o corpo. É mesmo esta a significação etimológica da palavra,
acrescendo, como observa Foucault, que essas relações eram consideradas sob o
ponto de vista fenomenista; o que quer dizer, sob o ponto de vista dos métodos
positivos, o que está nos moldes do pensamento moderno.
Nota 6: W. James, Philosophie de l’expérience, trad. E. Le Brun e M. Paris, 4ª leçon.
Não é, pois, de admirar que ainda
Lange, em sua História do materialismo,
se exprima por este modo, a respeito da psicologia de Fechner:
Entre os começos mesquinhos de uma futura psicologia científica acha-se a proporção, segundo a qual se deve reconhecer que — nos limites habituais — a sensação cresce com o logaritmo da excitação correspondente, o que se exprime pela fórmula x = log y, dada por Fechner sob a denominação de lei de Weber, como fundamento à sua psicofísica. [7]
É
o reconhecimento da alta significação e valor da psicofísica, parecendo a Lange
que é aí que se acha o ponto de partida e a base de operações para a ciência do
futuro. Wundt, por seu lado, reconhece a importância da lei de Weber, e se bem
que não exagere o seu valor, todavia vê aí uma medida relativa para a
intensidade das sensações, embora reconheça que só poderá ser utilizada em
determinados limites. Os trabalhos de Fechner são por ele aproveitados e um
longo capítulo, em seus Elementos de psicologia
fisiológica, é dedicado ao estudo dos métodos da medida das sensações.
Nota 7: Foucault, La Psychophysique.
Se Fechner, entretanto, ainda
hoje, exerce enorme influência, considerando-o Foucault como o verdadeiro
criador da psicologia experimental, explica-se isto não pelo fato de ter
fundado a psicofísica, mas pela aplicação que faz do método experimental às
ciências de ordem moral e psíquica. Diz Foucault:
A medida da intensidade das sensações é quimérica. A busca de uma lei matemática ligando os fenômenos a seus concomitantes psicológicos e a seus antecedentes físicos é também quimérica.
Isso equivale a dizer que toda a psicofísica é
quimérica. Mas os trabalhos de Fechner tiveram a propriedade de provocar um
movimento enorme de buscas e como em todas essas buscas prevalecia o ponto de
vista da experimentação e das provas pelo peso e pela medida, foi daí que
derivou o impulso para a nova orientação do trabalho mental no que se refere ao
estudo dos fenômenos psíquicos: o que vem em apoio da afirmação de Foucault —
que Fechner é o verdadeiro fundador da psicologia experimental.
A psicologia e as
ciências naturais
Mas o verdadeiro impulso para a
renovação dos estudos psíquicos saiu das ciências naturais e o ponto de vista
que veio a prevalecer foi este: a psicologia é uma ciência natural e deve ser
estudada à maneira das ciências naturais. Ora, a psicologia é a ciência do
espírito. Não se diz outra coisa quando se fala em ciência dos fenômenos
psíquicos ou dos fenômenos mentais. Fenômenos psíquicos — é uma fórmula, uma
expressão técnica que tem precisamente a mesma significação e valor que esta
outra: fenômenos do espírito. Psyché
é o que sente e percebe, e o que sente e percebe é o que se chama de espírito;
é o noos de Anaxágoras, a res cogitans de Descartes. Se, apesar
disso, deve a psicologia ser compreendida como uma ciência natural, que
significa tal coisa senão que o espírito é também uma força natural e não deve,
nem pode ser considerado senão como uma força natural entre as demais forças
naturais? Essa ideia é hoje corrente. “Considerando debaixo do ponto de vista
científico”, diz Maudsley, “o espírito é uma força natural.” Isso pode parecer
a muitos como um ponto de vista que desloca a órbita natural de nosso
pensamento. É muito comum imaginar o espírito como uma energia, um princípio sui generis, independente da natureza e
superior à natureza. Mas, se na ordem da existência tudo se liga, tudo se
prende, que há de estranho em que o espírito se ache ligado à natureza e deva
ser explicado como um fenômeno da natureza, havendo mesmo uma ligação profunda
e, até certo ponto, uma unidade fundamental entre o que se chama espírito e o
que se chama matéria? Para que cavar um abismo entre fatos que por natureza se
acham ligados? Seja qual for a concepção que se venha formar do espírito, é
certo que não pode estar fora da natureza, e é de observação comum que está
ligado à matéria e que age sobre a matéria. Nada há, pois, de extraordinário na
afirmação de Maudsley, quando diz:
Considerado debaixo do ponto de vista científico como uma força natural, o espírito não é apreciável, como a eletricidade, como o peso, como qualquer outra força da natureza, senão pelas mudanças materiais, causa e condição de suas manifestações. [8]
Nota 8: Maudsley, Physiologie de l’esprit, trad. Herzer, cap. II.
O cérebro como corpo
do espírito
Mas o ponto de vista naturalista,
estabelecendo-se definitivamente em psicologia, não se limita a essas
generalidades vagas. O naturalismo objetiva o espírito, ou antes faz do
espírito um acidente da matéria. O que é real no espírito é a máquina orgânica
ou, mais precisamente, o sistema nervoso, pois é o sistema nervoso que serve de
veículo ao pensamento. E o sistema nervoso tem um centro de ação que é a base
de todas as energias do espírito. Este centro é o cérebro e se é, assim, no
cérebro que está a base de toda a vida psíquica, seria absurdo procurar em
outra parte o espírito. O espírito é o cérebro. É no cérebro que se encontra a
energia que sente e percebe; é o cérebro que constitui o corpo do espírito. “Abandonemos
o terreno das abstrações vagas e consideremos, tanto quanto possível, o fato
concreto” — diz Maudsley. Sim, consideremos o fato concreto, consideremos a
realidade. É só assim que poderemos chegar à verdade positiva. Mas, em última
análise, em que consiste a substância do espírito? Diz Maudsley:
Para o fisiologista só há aí uma resposta a dar: a substância do espírito é o cérebro, e não uma fantástica entidade metafísica de cuja existência não se tem nenhuma prova e que é desnecessário imaginar hipoteticamente. [9]
Nota 9: Maudsley, obr. cit., loc.cit.
O espírito ou a
consciência como epifenômeno
Está no cérebro tudo o que é real
e positivo no espírito. O espírito propriamente dito, isto é, a fenomenalidade
psíquica, a sensação, o sentimento, a percepção; numa palavra, a consciência;
tudo isto é apenas uma repercussão da fenomenalidade mesma do cérebro; não é um
fenômeno propriamente dito, mas apenas um epifenômeno. Quer dizer: é um
fenômeno de segunda ordem, aparente, não real; o que melhor talvez se poderia
compreender, fazendo esta distinção: o fenômeno é um acidente da realidade; o
epifenômeno é um acidente do fenômeno. É uma distinção muito sutil,
aparentemente sem importância, mas que pode ter consequências muito graves. A
causa explica-se pelo fato de que a ciência moderna, preocupada de fatos, só
acredita em fatos tangíveis. Ora, o que há de tangível nos movimentos em que se
resolve a vida mental, e pelos quais se explica a atividade do espírito, é o
trabalho do cérebro. O que resulta desse trabalho, isto é, a emoção, o
sentimento, a representação, tudo isso é como um simples clarão passageiro, que
nada tem de real, e se explica como vibração ou repercussão subjetiva da
atividade nervosa. É a significação do conceito de um espírito ou de uma
consciência — epifenômeno. Deste modo o que é preciso estudar, para compreender
a verdadeira significação do espírito, é a atividade nervosa em si mesma, isto é,
os órgãos dos sentidos e sua função específica. Foi assim, que a psicologia
veio a cair fatalmente sob a dependência da fisiologia, sendo definitivamente
proclamada pelo naturalismo moderno: a psicologia é apenas um capítulo da
fisiologia, a psicologia é simplesmente a fisiologia cerebral.
Se o espírito é de
carne e osso, como separar a psicologia da fisiologia?
A psicologia fisiológica tem
raízes profundas na história do pensamento e justifica-se pela simples
consideração exterior do mecanismo da vida. Ora, eu ouço pelos ouvidos, vejo
pelos olhos, e movo-me pondo em atividade a energia muscular de que é dotado o
meu organismo. A cada um dos sentidos, com que entra a consciência em relação
com o mundo, corresponde um aparelho devidamente apropriado no sistema da
organização nervosa, e o espírito, na sua totalidade, já quando recebe a ação
dos elementos exteriores, já quando tende a agir sobre a natureza, só se
compreende e explica em ligação com o organismo e como repercussão necessária
do organismo. Sente pelos órgãos da sensibilidade e age pelos órgãos do
movimento. Ora, se o espírito é o que sente e percebe e é ao mesmo tempo capaz
de agir, segue-se daí que o espírito é de carne e osso, pois só podemos sentir
e agir pela carne e pelos ossos. O espírito é, pois, o organismo mesmo, o
espírito é o homem, e separar uma coisa da outra seria dispersá-la no vácuo.
Como, pois, separar a psicologia da fisiologia? Seria absurdo. Separar o
espírito do corpo seria equivalente a separar a parte do todo e separar a parte
do todo é destruí-la em sua função própria. Compreende-se assim a importância e
o valor das palavras de Feuerbach e a influência que devem ter exercido: “A verdade
não é nem o materialismo, nem o idealismo, nem a fisiologia, nem a psicologia;
a verdade é a antropologia.”
Complicação do ponto
de vista psicofisiológico
Há, entretanto, um mistério
profundo nesta ligação entre a matéria e o espírito, e a questão das relações
entre o corpo e a alma é que tem verdadeiramente constituído o que pode chamar-se
o desespero dos filósofos. O espírito é uma função do organismo e tem o seu
centro no cérebro. Mas como se explica que o cérebro, órgão da consciência
seja, de si mesmo, inconsciente? Não é somente o cérebro, mas todo o sistema
nervoso que é o inconsciente. É certo que os nervos agem e é por esta ação dos
nervos e, em particular, do cérebro, que pensamos; mas desse trabalho puramente
mecânico, fisiológico, dos nervos e do cérebro, não temos consciência. É o que
não se poderá contestar, e os casos de autoscopia lembrados por Tassy, em seu
recente livro — Le travail d’idéation,
além de que são anormais e patológicos, não são de natureza a convencer-nos.
Poder-se-á observar: mas também
não temos consciência dos processos pelos quais se realiza em nosso organismo o
fenômeno da nutrição; entretanto, é certo que nos nutrimos. Do mesmo modo
podemos explicar o pensamento como função do cérebro, se bem que não tenhamos
consciência dos processos pelos quais aí se realiza o pensamento. Mas não será
isso explicar a consciência pelo inconsciente, a luz pelas trevas?
Seja, porém, como for, é certo
que as funções psíquicas se ligam necessariamente ao sistema da organização
fisiológica e vêm, assim, em desenvolvimento contínuo, como uma gradação
ascendente, desde as primeiras manifestações da simples irritabilidade na
matéria viva inicial, até as mais altas elucubrações do homem culto moderno.
Esta simples consideração, fundada na mais elementar observação dos fatos, é
bastante para justificar o movimento extraordinário da psicologia moderna, no
sentido da interpretação fisiológica dos movimentos psíquicos. A causa,
entretanto, é muito mais complicada do que se supõe; e o ponto de vista moderno
prende-se a correntes históricas que tem suas raízes na revolução radical por
que tem passado e continua a passar o espírito humano, a partir dos grandes
descobrimentos com que foi iniciado o período da civilização moderna, e em
particular, a partir da descoberta da imprensa; mas ainda não se pode prever
quais deverão ser as suas conclusões definitivas e finais. Para formar, porém,
uma ideia mais precisa dos fatos, é necessário partir de mais longe e
considerar, desde o seu começo, o movimento da filosofia moderna. Só assim
poderemos indicar, como mais segurança, a verdadeira fonte de inspiração a que
se ligam os psicólogos contemporâneos, compenetrando-nos do espírito que
preside as suas construções mais ousadas. É também como melhor poderemos
orientar-nos no caos que se faz pelo desmoronamento das ideias tradicionais.
FIM
Nenhum comentário:
Postar um comentário