sexta-feira, 1 de agosto de 2008

A filosofia brasileira como superação do aristotelismo português

Luiz Alberto Cerqueira

Excertos da obra Filosofia brasileira. Ontogênese da consciência de si. Petrópolis: Vozes, 2002.


Introdução
O conceito de filosofia como disciplina normativa na educação brasileira remonta à reforma da universidade portuguesa no século XVI, quando, em 1555, o rei D. João III entregou aos jesuítas o Colégio das Artes, por ele fundado em 1548 e destinado ao ensino público de latinidade e filosofia.[1] A partir desse fato, o ensino de filosofia no Brasil se deu, ao longo de quase dois séculos, sob a vigência da Ratio Studiorum, método pedagógico dos colégios da Companhia de Jesus, cuja edição definitiva foi promulgada como lei em 1599, após cinqüenta anos de experiência.[2] 

Concebido no auge da Contra-Reforma e no bojo da luta entre aristotélicos e antiaristotélicos, que antecedeu a irrupção da ciência e da filosofia modernas, a Ratio Studiorum estabeleceu, para o ensino de lógica, de psicologia, de ética, das matérias referentes às ciências da natureza (especialmente a física) e de metafísica, não só a sua subordinação à teologia, como também a sua fundamentação na doutrina aristotélica.[3]

Não obstante o caráter escolástico do ensino de filosofia sob a Ratio Studiorum, em sua subordinação à teologia, convém ressaltar que o aristotelismo defendido no Colégio das Artes, desde a sua fundação, não é o mesmo aristotelismo escolástico combatido por humanistas como Pierre de la Ramée (Petrus Ramus). Tendo como referência histórica o exacerbado antiaristotelismo deste filósofo francês, cuja dissertação de mestrado subordinou-se ao título Quaecumque ab Aristotele dicta essent, commentitia esse (1536),[4] e cujo magistério na Universidade de Paris envolveu famigerada controvérsia com seu colega português Antônio de Gouveia, o aristotelismo conimbricense foi, acima de tudo, uma reivindicação de validade objetiva no ensino de filosofia. Tal reivindicação apoiou-se na imprensa, para a elaboração de compêndios, e na exegese do Aristoteles Latinus, cujo pensamento foi considerado falseado pelas interpretações e interpolações inseridas nas sucessivas transmissões, recepções e adaptações do Corpus de texto do Estagirita. Desse empreendimento resultaram as três obras conhecidas de Pedro da Fonseca - Institutionum dialecticarum libri octo (1564), Isagoge philosophica (1591) e Commentariorum in libros metaphysicorum Aristotelis (1577-1612) - e as dez obras (em oito volumes), publicadas de 1592 a 1606, sob o título geral Commentarii Collegii Conimbricensis Societatis Jesu, também referidas como Cursus Conimbricensis, ou simplesmente Conimbricenses [5].

No âmbito da mudança de uma tradição científica decadente - o aristotelismo escolástico - para o modelo matemático-experimental das ciências da natureza, a introdução da necessidade de validade objetiva no ensino filosófico permitiu aos jesuítas contribuírem, através da Ratio Studiorum, não só para a formação de homens como Galileu e Descartes, como também para a superação definitiva do dogmatismo de que se revestira o aristotelismo escolástico.

Independentemente de qualquer avaliação da qualidade de filosofia nos Conimbricenses, em termos de originalidade, autonomia e autodeterminação de pensamento,[6] a exigência de validade objetiva no estudo filosófico é por si só suficiente para caracterizar um autêntico aristotelismo português como sendo o âmbito das primeiras pesquisas filosóficas no Brasil.

De fato, ainda sob a vigência da Ratio Studiorum, mas como um passo adiante das obras produzidas por brasileiros nascidos no século XVII (como, por exemplo, o Tratado de philosophia ecclesiastica, do franciscano Manoel do Desterro, e a Theologia dogmatica e scholastica, do beneditino Mateus da Encarnação Pina), já se verifica, no século XVIII, um conceito de filosofia em função da análise e discussão de controvérsias. Famoso documento de 1747 registra, no colégio jesuíta de São Sebastião do Rio de janeiro, a defesa de teses que nada teriam a invejar aos programas de controvérsias filosóficas das grandes universidades católicas de então. Nesse contexto, o beneditino Gaspar da Madre de Deus, com sua Philosophia platonica seu rationalem, naturalem et transnaturalem philosophiam sive logicam, physicam et metaphysicam complectens (1748), não se restringe a Aristóteles.

Considerado desde a sua origem, isto é, desde a reforma da universidade portuguesa no século XVI, até à sua supressão pelas reformas pombalinas da instrução pública, na segunda metade do século XVIII, o aristotelismo português assume no Brasil, tanto quanto em Portugal, uma posição média e estratégica para uma perfeita concepção da filosofia, não só como disciplina normativa suscetível aos condicionalismos históricos, mas também como atitude reflexiva atemporal: o aristotelismo português configura-se hoje como um meio exclusivo, uma porta independente, pela qual tanto se pode chegar à filosofia medieval e daí à filosofia antiga, como se pode chegar à filosofia moderna e daí à filosofia contemporânea. 

1. Aristotelismo português 
Sabemos que por volta de 1150 a manifestação da consciência de si em Portugal era provavelmente nula. Não se verificam textos em que o homem se eleve ao nível de universalidade da razão: nenhum sermão ou homilia, nenhuma carta de caráter doutrinal, nenhuma obra teológica ou filosófica, nenhum tratado moral ou espiritual. Mas, já no final do século, houve um surto de progresso intelectual. Os monges portucalenses cultivavam o conhecimento de latim e de música, ampliavam suas bibliotecas, estudavam direito civil e canônico, promoviam o ensino das primeiras letras, perpetuavam a memória de fatos notáveis, aprendiam a compreender a Bíblia, as obras dos Santos Padres e ensaiavam formas de oração mais pessoais e menos supersticiosas do que a dos agricultores, cavaleiros e senhores da mesma época. Como se explica esse surto de progresso intelectual? Somos levados a crer que resultou da implantação do trivium, organização pedagógica baseada em estudos de gramática, retórica e dialética. Introduzido na escola do Mosteiro de Santa Cruz de Coimbra, fundado em 1132, consistia esse modelo, na prática, à inclusão do ensino de lógica aristotélica no currículo mínimo das escolas episcopais portuguesas.

Juntamente com a decisão do rei D. Sancho I, em 1192, de conceder bolsas de estudo aos monges de Santa Cruz de Coimbra que quisessem estudar na França (nomeadamente medicina em Montpellier e teologia em Paris), a adaptação da lógica aos objetivos específicos de formação religiosa assinala em Portugal a projeção do aristotelismo como atitude sintonizada com o espírito do tempo, à semelhança do que já ocorrera em outras partes da cristandade desde Boécio, quando Aristóteles se difundiu a partir da logica vetus. Por isso não parece estranho que após a fundação da universidade portuguesa (1290), pelo rei D. Dinis, Aristóteles continuasse a ser objeto de estudo na disciplina Dialética, que no decurso do tempo passou a receber também as denominações de “Lógica” e “Súmulas”, designação esta que provavelmente se universalizou em virtude da extraordinária fortuna escolar das Summulae logicales, nome pelo qual ficou conhecido o Tractatus de Pedro Hispano.

Hoje sabemos que o autor do Tractatus nasceu no centro norte de Espanha e não em Portugal, como sempre se imaginou; que a universidade portuguesa não adotou este manual de lógica à época de sua fundação, nem foi ele traduzido ou comentado por qualquer português, e que referências à obra só vão aparecer a partir do século XV. Entretanto, o primeiro português a notabilizar-se no âmbito do aristotelismo, ainda no século XIII, em Paris, foi Petrus Hispanus Portugalensis,[7] que não deve confundir-se com o Pedro Hispano gramático, do século XII, autor da Summa “Absoluta cuiuslibet”, nem com o Pedro Hispano lógico, autor do Tractatus, nem com o autor de um comentário ao De animalibus,[8] Pedro Hispano médico, provavelmente o mesmo Pedro Julião Lisbonense que se tornou o Papa João XXI.

Do ponto de vista do pensamento filosófico português, somente a partir das obras de caráter político e moral dos Príncipes de Avis, no século XV, se verifica o uso da doutrina aristotélica com vistas à fundamentação da própria experiência. É evidente nessas obras o quanto elas dependem de Aristóteles (Política e Ética a Nicômaco) e de São Tomás (Regimento dos príncipes), caracterizando-se assim os primórdios do aristotelismo português. O apogeu, de meados do século XVI a meados do século XVII, corresponde à exigência de validade objetiva no ensino de filosofia e é marcado pela reforma da universidade e pela participação da Companhia de Jesus nessa reforma, quando sobressaem a elaboração dos Conimbricenses e a contribuição pessoal de Pedro da Fonseca, celebrado como o “Aristóteles Português”. Ao apogeu sobrevém a decadência a partir do final do século XVII até à supressão do aristotelismo oficial sob as reformas pombalinas da instrução pública.

1.1 primórdios: valoração moral do saber
A verdadeira introdução dos estudos de filosofia aristotélica na universidade deu-se no século XV sob a dinastia de Avis. Conservando as disciplinas existentes, o Infante D. Henrique completou o ensino das artes liberais com as disciplinas do quadrivium (aritmética, geometria, astronomia e música) e criou as cátedra de filosofia natural e filosofia moral. Esta era inspirada na Ética a Nicômaco, sendo discutível, porém, se era professada juntamente com a filosofia natural, em cuja cátedra seguia-se presumivelmente a Metafísica de Aristóteles.


Embora estivesse sob o influxo da decisão papal de 1366, que tornou obrigatório o estudo de Aristóteles no ensino oficial de filosofia, a atitude de D. Henrique revela uma novidade importante no cenário cultural português. Essa novidade diz respeito à consciência da necessidade de reforma da universidade portuguesa segundo o novo modelo introduzido pelas universidades de Paris e de Oxford. Além da ênfase sobre os studia humanitatis, esse novo modelo corresponde à substituição do ensino filosófico de caráter geral e contemplativo, destinado a imprimir na alma a ordem total do universo e de suas causas, pelo ensino de caráter analítico e moral destinado, em última instância, à formação e qualificação de servidores para os diferentes ofícios. Já o rei D. João I chama a atenção para as qualidades desse saber:

"assim o serviço que o servidor faz ao senhor pelo bem que dele recebe, não é o conhecer, que ele conhece, mas é a demonstração de que conhece aquele bem que recebe: e assim bem parece que o conhecer não está no corpo, nem nos sentidos, mas que está na força da alma, e isso por si se entende sem ajuda de outro nenhum: porque assim o disse Aristóteles no livro terceiro da alma, que o conhecer humano conhecendo e tendo notícia das coisas por ele conhecidas, se voltava sobre si, conhecendo de si mesmo as coisas por si mesmo conhecidas." (D. JOÃO I, 1981: 57)

Coube, porém, ao Infante D. Pedro ressaltar a necessidade política “de se tirar a ignorância por estudos continuados, os quais deve suportar qualquer senhorio que os pode manter, ordenando universidade solene” (D. PEDRO, 1981: 614). Refletindo a doutrina política de Aristóteles, segundo o qual (i) “a autoridade e a subordinação são condições não somente necessárias, mas também úteis” (Política I, 5), e (ii) “quanto mais perfeita é a natureza dos subordinados tanto mais perfeita é a autoridade que sobre eles se exerce” (ibidem), D. Pedro considera que a condição essencial para o ato de virtuosa benfeitoria, que procede do senhor em proveito do súdito, é a intencionalidade do ato, que envolve o modo do saber analítico:

"E de tal benefício temos conhecimento da seguinte maneira: nós vemos que a ajuda feita a outro não vem geralmente por natureza (...) E como esse ato que devem fazer não é natural, nem casual, convém que seja voluntarioso, tendo sua origem no querer da vontade. E porque não se pode a coisa desejar, sem que dela se tenha conhecimento, convém que primeiramente se conheça a necessidade e a coisa com que se pode acorrer, e então queira, e depois tomando intenção determinada para dar com presteza e cuidado, comece sua obra." (D. PEDRO, 1981: 539-540)

Evidentemente, o benefício é um ato intencional não só porque convém que seja voluntarioso, mas também porque deve estar em conformidade à razão. Neste sentido, D. Pedro argumenta que “Aristóteles, filósofo muito sutil, querendo ensinar o modo pelo qual vivemos em conhecimento das coisas, diz no posterior livro da lógica [Analytica posteriora] que primeiramente devemos de saber das coisas se ela é, e depois perguntar especialmente o que é” (idem: 538).

O conhecimento a priori torna-se, portanto, não só condição em virtude da qual o senhor se propõe prestar benefícios em vista do bem comum - como a reforma da universidade proposta por D. Pedro - , mas também a medida pela qual “os súditos oferecem ledos e voluntariosos serviços àqueles que por natureza vivem sujeitos, e são obrigados pelo bem que recebem” (idem: 533). Por este meio se ligam espiritualmente extremos que têm a sua essência na desigualdade, daí surgindo enfim a harmonia numa “sociedade perfeita” desejada por todos, indiferentemente da condição social:

"E portanto está escrito no primeiro livro da Política que a vontade move por seu mandado os poderes defensor e desejador, os quais lhe obedecem, não como servos em constrangida sujeição, mas segundo homens livres em obediência desejosa." (Idem: 567)

Nem D. Duarte, que sucedeu ao rei D. João I, nem o Infante D. Henrique, que pelos benefícios prestados recebeu o título de Protetor da Universidade, fizeram a reforma da universidade proposta pelo irmão. Esta só se concretizou um século mais tarde, com a fundação do Colégio das Artes.

Coube a D. Duarte, autor do Livro da ensinança de bem cavalgar toda sela e do Leal conselheiro, destacar-se mais pela observância do princípio aristotélico-tomista de que nihil est in intellectu quod non prius fuerit in sensu. Isto é o que se verifica claramente no seu texto mais apreciado, o segundo, que consta de 103 capítulos, nos quais D. Duarte trata das paixões, das virtudes e das correções de males e pecados. Neste sentido, o Leal conselheiro é um livro de moral “feito principalmente para senhores e gente de suas casas” (D. DUARTE, 1981: 238), sendo na matéria, e sobretudo na circunstância de ter sido “lealmente [...] todo escrito” que se encontra a razão do título. Suas introspecções sobre a vanglória ou vaidade, a inveja, a sanha ou ira, o ódio, a melancolia, o enfadamento, a tristeza, o nojo, o pesar, o desprazer, o aborrecimento e a saudade, o colocariam hoje numa linha de investigação hermenêutico-fenomenológica, uma vez que, para além de sua preocupação conceitual, “tendo mais intenção de bem mostrar a substância do que escrevia que a formosa e guardada maneira de escrever” (ibidem), D. Duarte esclarece que “sobre isso mais escrevo porque sinto e vejo na maneira de nosso viver que por estudo de livros nem ensino de letrados” (ibidem). É exatamente esta maneira de pensar um problema vivido no âmbito da cultura nacional, associada à percepção da necessidade de se pensar em Português (idem: 434), que nos permite considerar o aristotelismo em Portugal já numa dimensão própria a partir do século XV. 

1.2 apogeu: Pedro da Fonseca 
Em meados do século XVI, sob o influxo das obras e do magistério de humanistas como Erasmo (1467-1536), Juan Luis Vives (1492-1540) e Pierre de la Ramée (1515-1572), a universidade deixara de ser, como fora na Idade Média, uma instituição de cultura geral, para se tornar profissional e científica, orientada para a especialização e para a investigação. Como condição desta nova estrutura impunha-se uma preparação adequada para os estudos superiores, tanto mais que a Renascença havia transformado os estudos de língua e literatura latina e grega (os studia humanitatis) de meras disciplinas propedêuticas em estudos fundamentais e autônomos.

Em 1548, com a intenção de criar um instrumento de renovação da cultura nacional, D. João III fundou o Colégio das Artes em Coimbra, para onde, mais uma vez, fora trasladada a universidade portuguesa desde 1537. Logo nos dois primeiros anos do seu funcionamento, publicou-se uma miscelânea das obras que constituem o organon aristotélico, numa versão latina da autoria de Nicolau de Grouchy, professor bordelês que lecionou no Colégio das Artes de 1548 a 1550. A iniciativa do autor tinha em vista colocar à disposição dos alunos de filosofia a lógica de Aristóteles conforme o modelo humanístico de inspiração ciceroniana, sem que isso implicasse uma ruptura com a terminologia tradicional já consagrada nas versões latinas da escola de tradutores de Toledo. Por outro lado, a intenção de Grouchy era afastar-se do modelo escolástico baseado na forma e na temática das Summulae logicales (Tractatus) de Pedro Hispano, modelo esse que resultava muita vez num formalismo abstruso e sofístico. No entanto, a obra de Grouchy teve um êxito limitado, sendo substituída, a partir de 1556, pela do jesuíta João Argirópulo, realizada num estilo mais sintético e, por isso mesmo, mais próximo da tradição escolástica. Este fato é significativo considerando-se que o Colégio das Artes já fora entregue, desde 1555, aos jesuítas, para quem a tentativa de adaptar as obras de Aristóteles ao condicionalismo humanístico - que impunha como acréscimo à arte de discorrer ou dissertar (ars disserendi) uma expressão latina de natureza não formalista - incorria no risco da falta de rigor.

O intuito dos professores jesuítas de filosofia era de fato manterem-se fiéis à doutrina de Aristóteles e dos seus comentadores mais qualificados, razão pela qual não podiam prescindir de uma terminologia precisa e já consagrada no decurso de muitos séculos de especulação filosófica. Isso, porém, não impediu, que eles, já imbuídos do espírito do Humanismo, soubessem conciliar o propósito de rigor com uma expressão latina escorreita e elegante, fazendo uso da retórica sempre que não estivesse em jogo uma preocupação puramente conceitual. Advertiam, por exemplo, que “será acusado o orador que, suprimindo todo o ornamento, quiser tecer o seu discurso de razões matemáticas ou de pura filosofia. De igual vício se argüirão os matemáticos e os filósofos, que tratarem as coisas matemáticas e filosóficas ao modo da oratória, isto é, segundo os enfeites das figuras e do ritmo” (FONSECA, 1964: 515).

O desejo de fidelidade a Aristóteles no pensamento português dessa época está expresso nos Estatutos da Universidade de Coimbra, que impuseram, quase exclusivamente, as obras do Estagirita como texto para o curso de Artes. Os Estatutos de 1559 indicavam as seguintes obras em texto latino: Categoriae, De interpretatione, Analytica priora, Analytica posteriora, Topica, Sophistici elenchi, Ethica, Physica, De coelo, De generatione, Meteora, De anima e Metaphysica. E vão no mesmo sentido a letra e o espírito da Ratio Studiorum, ordenando que os professores de filosofia não deveriam apartar-se da doutrina aristotélica. Devido ao monopólio jesuítico da instrução pública, esta orientação não foi seguida apenas em Coimbra, mas em todo o extenso reino português, inclusive no Brasil, desde o primeiro curso de filosofia lido em 1572 (no Colégio de Todos os Santos, Bahia), extinguindo-se com as reforma pombalina da Universidade em 1772. Constituiu-se, assim, no Colégio das Artes da Universidade de Coimbra, um centro de irradiação de aristotelismo no Ocidente que se manteve ao longo de 200 anos, desde o século XVI ao XVIII.

Dentre os autores portugueses dessa época, merece destaque Pedro da Fonseca (1528-1599), cuja obra mais importante, pela sua extensão, construção e, sobretudo, pelas novas idéias, são os Comentários à Metafísica de Aristóteles. Realizados segundo o sistema escolástico das quaestiones, mas partindo do texto original aristotélico estabelecido pelo próprio Fonseca com o recurso ao método histórico-filológico, os comentários são acompanhados de uma nova tradução dos textos metafísicos para o latim, também de autoria do filósofo português. Todavia, não obstante o enorme esforço deste trabalho, que muito contribuiu para a moderna padronização do texto da Metafísica de Aristóteles, a obra mais acabada e conhecida de Fonseca, e de maior repercussão na história da filosofia ocidental, foram, sem dúvida alguma, as Instituições dialéticas. Tal consideração parece-nos hoje merecedora de especial atenção pelo estudioso brasileiro quando vemos entre as “Regras do Professor de Filosofia”, na Ratio Studiorum, a que determina o seguinte: "No primeiro ano explique a lógica, ensinando-lhe o mesmo no primeiro trimestre, menos ditando do que explicando os pontos mais necessários por Toledo ou Fonseca".

Em Fonseca, a lógica aristotélica é apresentada na perspectiva do Humanismo em resposta à condicionalidade histórica do saber, mas sem prejuízo das exigências de universalidade de pensamento e de rigor de linguagem inerentes à disciplina. O aspecto mais característico de suas Instituições dialéticas é o da valorização filosófica da dialética, não a restringindo ao domínio da simples probabilidade. Esta restrição estava presente, por exemplo, nos próprios humanistas, com a tendência para o estudo exclusivo dos Topica de Aristóteles, como consequência da redução do ideal científico, expresso por inferências válidas e verdadeiras, ao ideal da persuasão, cujo pressuposto, conforme sustentara Vives, era a idéia de que toda a filosofia se fundamenta em opiniões e conjeturas apenas verossímeis. Não temos dúvida de que esta percepção do estudo da lógica encontra-se intimamente associada ao ambiente cultural da época, em que as preocupações referentes aos problemas práticos da vida humana se sobrepunham ao caráter meramente formal das “disputas” escolásticas. Deste modo, o que importava era de fato a constituição de uma lógica que servisse de instrumento útil nos domínios político, jurídico, moral e pedagógico, onde as questões a resolver são por natureza controversas e por isso não suscetíveis de soluções categóricas e absolutas. A importância de Fonseca está precisamente em ter mostrado que a dialética não constitui uma forma estéril de estudo filosófico, como de fato aconteceria se se preocupasse exclusivamente com a demonstrabilidade da argumentação. Ao contrário, a dialética se define como “doutrina do discorrer, como arte que ensina todas as fórmulas de discorrer, isto é, de revelar pela oração o desconhecido a partir do conhecido” (FONSECA, 1964: 21). Deste modo, a dialética tem um compromisso com a verdade, sendo inteiramente solidária da analítica, servindo-lhe de instrumento, contendo a reflexão sobre o discurso em geral, no interior do qual se pode distinguir a reflexão sobre o discurso científico no sentido estrito do termo. Foi assim que Fonseca pôde superar o probabilismo dos "dialéticos" renascentistas e como que salvar o conceito aristotélico de ciência, se considerarmos que Aristóteles concebeu a dialética como útil e necessária à ciência, na medida em que somente a partir de proposições “prováveis” ou “plausíveis” toda a criatura racional pode participar diretamente na descoberta da verdade.

No que respeita ao pensamento metafísico, Fonseca procurou conciliar tomismo e escotismo, mas de forma a atender as objeções de Duns Escoto ao tomismo sem prejuízo da síntese de São Tomás. Distinguiu escrupulosamente a metafísica da teologia e deu grande ênfase à unidade de essência do ser, no que influenciou Francisco Suárez. Nos Comentários (L. IV, c. 2, q. 2, s. 3), o conceito formal de ser é unívoco, e não analógico, em sua referência à realidade singular das coisas. Se o objeto da metafísica é o ser enquanto ser (ens ut ens), comum ao Criador e às criaturas, não há lugar para uma abstração que possibilite uma metafísica especial do Criador, distinta da metafísica da criatura (idem, c. 1, q. 1, s. 2). Quanto à distinção entre essência e existência, esta distinção é só de razão ou consideração, correspondendo apenas aos dois modos do ser, sendo a essência o modo necessário, intrínseco à natureza de uma coisa, e a existência o modo contingente que se acrescenta a esta natureza (idem, c. 2, q. 4, s. 2). Tal distinção torna Fonseca parcialmente responsável pela introdução da terminologia dos modos na metafísica moderna. Sua independência de pensamento leva-o a afastar-se do tomismo oficial, ao rejeitar, por exemplo, a “matéria designada pela quantidade” (materia quantitate signata), segundo a definição de São Tomás (De princ. Ind., I, 76, a. 6; Quaest. disp. de anima, 9), como princípio de individuação (principium individuationis). Para São Tomás, na perspectiva da igualdade de essência das coisas, o princípio de individuação não seria mais que o princípio de multiplicação da mesma forma. Não podendo uma só e mesma forma por si mesma multiplicar-se, a multiplicação só se explicaria por algo que lhe adviesse e que fosse, ao mesmo tempo, intrínseco ao ser. Este “algo” seria a matéria enquanto se dá a conhecer pela quantidade. E como somente as coisas materiais têm esta propriedade quantitativa ou dimensiva, somente as coisas materiais poderiam ser diferentes entre si sem prejuízo de sua identidade ontológica. Neste ponto, Fonseca não diverge da tradição tomista. Para ele, a diferença (differentia) propriamente dita é a “diversidade daquelas coisas que, não obstante isso, são absolutamente de uma mesma natureza” (FONSECA, 1965: 107). Entretanto, orientando-se pela tradição escotista, ele entende que a individuação se deve ao acréscimo de uma diferença positiva à essência de uma coisa, sendo o princípio de individuação simplesmente o princípio intrínseco pelo qual o indivíduo excede a própria condição de espécie ínfima, a qual, segundo Fonseca, é aquela que “sendo espécie de superiores, não é gênero de inferiores e abaixo da qual não há outras espécies, como no caso de homem, que de tal modo é espécie de animal, mas não é gênero de cada um dos homens; os homens, com efeito, não diferem entre si especificamente, senão em número” (idem: 97). Constando já formalmente a espécie nos diferentes homens, e não podendo eles individuarem-se nem pela matéria nem pela forma, conclui Fonseca que se individuam por qualquer outra coisa intrínseca que, à maneira da diferença específica, chama de diferença individual, porque sendo a diferença específica “aquilo pelo que a espécie excede o gênero, do mesmo modo pode dizer-se que a diferença individual excede a espécie ínfima. Efetivamente, assim como o homem, na sua essência, tem mais que o animal o fato de ser dotado de razão, assim Sócrates, na sua essência particular, supera a essência do homem comum pelo fato de ser este homem singular e determinado” (idem: 111).

Contra o aristotelismo dogmático, Fonseca questionou o número de causas. Sem dizer abertamente que as causas são cinco e não apenas quatro (formal, material, eficiente e final), como desde Aristóteles se vinha repetindo, acrescentou a causa exemplar como sendo outro gênero de causa, com base na imitação. Se, pela forma interna, os seres vivos são determinados para a morte enquanto causa final de sua natureza, pela forma externa procuram superar esse determinismo reproduzindo outro(s) semelhante(s) a si, o que significaria a imortalidade da alma, senão em número, pelo menos em espécie. Isto parece claro, quando Fonseca oferece a seguinte explicação:

"Da forma externa, que chamamos exemplar, Aristóteles (De anima, II, 4) mostra porque é que todos os seres vivos perfeitos buscam procriar outros semelhantes a si para uma certa continuação: para que, deste modo, diz, existam sempre e se revistam, o quanto possam, de uma condição divina." (FONSECA, 1964: 517)

Acima, porém, de todas essas análises e sutis considerações, o caráter construtivo e positivo do trabalho filosófico de Fonseca revela-se na célebre doutrina da ciência condicionada ou “ciência média”. Sem querer ocultar o perfil neo-escolástico dessa doutrina, conforme sua afirmação de que “não houve até agora quem conciliasse deste modo claro e (como se costuma dizer) em termos próprios a liberdade do nosso arbítrio e a divina presciência ou providência” (Comentários, L. VI, c. II, q. IV, s. VIII), acreditamos que deve destacar-se nessa doutrina não só o intuito de conciliar a presciência divina e a liberdade do agir humano, mas, sobretudo, a idéia de que, mediante o conceito de uma ciência condicionada ou relativa, e não absoluta, se preserva a liberdade humana. No tempo de Fonseca, a tradição escolástica consagrara duas concepções de ciência divina: a de simples inteligência e a de visão. Pela primeira, Deus conhece todas as coisas no seu estado de mera possibilidade; pela segunda, Deus vê as coisas e fatos futuros como futuros absolutos. As coisas passam do estado de pura possibilidade ao de futuro absoluto em função do modo necessário intrínseco à lei ou determinação divina, da qual o homem não participa. Como o modo necessário da lei divina é conveniente ao agir humano, especialmente no caso das leis morais, sob a condição de que “é necessário que assim seja e que assim se faça”, a questão que se impunha era a seguinte: Como é possível justificar a liberdade humana nas ações virtuosas ou morais? Para conciliar a presciência divina e a liberdade humana, Fonseca introduziu entre as duas concepções vigentes de ciência divina - a de simples inteligência e a de visão -, uma outra, a de ciência média (scientia media). ‘Média’ não só no sentido de que medeia entre as outras duas concepções, mas também porque delas participaria da seguinte forma: se é pela ciência de simples inteligência que Deus obtém o conhecimento a priori de todas as possibilidades de ação, pela ciência média examinaria o futuro contingente da transformação dessas possibilidades em ações necessárias no mundo, isto é, “veria” como um mundo possível se atualiza necessariamente no tempo e no espaço. Como somente um de infinitos mundos possíveis ultrapassa os limites da possibilidade e da futuribilidade para se transformar em mundo atual (que Deus contempla na ciência de visão), Fonseca procurou reduzir o problema dos futuros contingentes à questão de uma ciência média ou condicionada. O ato livre seria precisamente a escolha (da parte de Deus, dos anjos ou do homem) que realiza a transformação de um mundo possível em mundo atual com base na ciência média ou condicionada. Aqui entra também, como componente teórica importante, a doutrina do tempo e do espaço imaginários desenvolvida por Fonseca. Segundo essa doutrina, Deus encontra-se no tempo e no espaço imaginários, participando, assim, em toda a transformação possível. Mas no caso da transformação promovida pela escolha humana, qual o sentido de ‘participação’ se e na medida em que o conceito de ciência média participa das outras duas concepções de ciência divina? Esse sentido corresponde àquele mesmo sentido de participação da lei divina pela criatura racional, conforme a explicação de São Tomás (Summa theologiae, I-II, q. XCI, a. II). Por outro lado, segundo São Tomás, “a ciência depende do modo do cognoscente, pois o objeto conhecido está naquele que conhece segundo o modo deste” (idem, I, q. XIV, a. II. Assim sendo, a participação da presciência divina pela criatura racional seria a condição do mundo atual fundado na necessidade, mas sem prejuízo da liberdade. A análise de Fonseca deste complexo de temas vem no 3º volume dos Comentários, publicado postumamente. Independentemente das questões de ordem textual que este fato pode suscitar, e da controvérsia em torno da autoria da conciliação de presciência e liberdade (se é de Fonseca ou de Luis de Molina), interessa sublinhar o alcance teórico da concepção de ciência em Fonseca. O filósofo português visava realizar uma síntese coerente e integradora da tradição clássica e medieval que pudesse responder às exigências de uma modernidade que já despontava naquele último quartel do século XVI, mas cujos contornos ele não podia entrever claramente.

Ainda no tempo de Fonseca, o aristotelismo português teve uma expressão exaustiva nos célebres Conimbricences, constituído por comentários à obra aristotélica escritos por outros professores do Colégio das Artes. Tais comentários obtiveram, no seu conjunto, pelo menos 112 edições, a maior parte no estrangeiro.[9]

 1.3 decadência
 O caráter renovador do aristotelismo desenvolvido pelos mestres portugueses da Companhia de Jesus, fundado na retomada dos textos originais de Aristóteles, entra em decadência a partir da segunda metade do século XVII, a despeito do empenho de reformadores como Francisco Soares Lusitano (Cursus philosophicus, em 4 tomos, de 1651), Inácio Carvalho (Compendium logicae conimbricensis, de 1677) e Antônio Cordeiro (Cursus philosophicus conimbricensis, em 2 tomos, de 1714). Nestes autores, contrariamente aos do século XVI, a atenção aos modernos (recentiores) não serve senão para adulterar o aristotelismo. Isto parece claro, não obstante a intenção de preservar o espírito originário dos Conimbricenses. A adulteração do aristotelismo transparece na confusão da causalidade intrínseca formal com a eficiente; na dificuldade em distinguir no ser a unidade per se da unidade per accidens; na sugestão de que a forma material é uma substância completa capaz de existir separada da matéria; e em outras confusões do pensamento português - então sob a influência indireta de Copérnico, Tyho Brahe, Kepler, Galileu e outros - que apenas perverteram o aristotelismo dos Conimbricenses. O fato é que a decadência da atitude filosófica portuguesa mostra-se evidente nos manuais da época, por exemplo, na literatura lógica. As diferenças mais assinaláveis situam-se na supressão do texto de Aristóteles antes de cada capítulo e do respectivo comentário exegético, na omissão de referência ao autor, ao título, à divisão, ao conteúdo e à ordem dos tratados aristotélico e sobretudo no desenvolvimento desproporcionado de temas com grande carga metafísica (ens rationis, universais, predicamentos e predicáveis), em detrimento dos aspectos formais da lógica, principalmente da doutrina do De interpretatione e dos Analytica priora. O procedimento desses autores afastou ainda mais a lógica da sua significação original, transformando-a num palco de disputas para esclarecer problemas de caráter metafísico-teológico. 

1.3.1 ecletismo
 No século XVIII, acentuou-se a perversão do aristotelismo conimbricense na medida em que os responsáveis romanos pela Companhia de Jesus, na 16ª Congregação Geral (1730-1731), sancionaram uma abertura às idéias modernas, partindo, entretanto, do princípio de que as explicações dos fenômenos da natureza, segundo o método matemático-experimental, não só não estavam em oposição à filosofia aristotélica, mas com ela concordavam perfeitamente. Essa “abertura” promoveu a presença política do “estrangeirado”, nome pelo qual ficou conhecida a intelectualidade portuguesa que, ciosa de sua formação no estrangeiro, passou a denunciar como causa dos males e da decadência nacionais a educação pública, chamando a atenção para a necessidade de reforma curricular no curso de filosofia. Em resposta a esse jogo de forças políticas, houve a iniciativa da Corte, em 1731, de divulgar o Novum organum, de Francis Bacon, de cuja tradução foi incumbido o estrangeirado Jacob de Castro Sarmento (Theorica verdadeira das marés conforme à philosophia do incomparável cavalheiro Isaac Newton, Londres, 1737). A iniciativa malogrou, ficando claro, neste sentido, que prevaleceu a orientação romana, de compromisso com a tradição aristotélica. Na linha desse compromisso configurou-se um ecletismo, a exemplo da Philosophia universa eclectica (1754), de Inácio Soares, que indica o rumo que os jesuítas se propunham seguir no ensino filosófico, aproximando-se das novas concepções de natureza e de lei natural. Outro exemplo é o de Inácio Monteiro, que na sua Philosophia libera seu eclectica rationalis et mechanica sensuum (1775) afirma ter percorrido e superado sucessivamente as divergências entre Aristóteles, Descartes, Gassendi e Newton, para concluir que nenhum sistema pode arrogar-se o direito da verdade absoluta e que só o ecletismo é a garantia de um pensamento livre. Mesmo no estrangeirado Jacob de Castro Sarmento tal ecletismo é evidente: 

"o verdadeiro e imutável modo de filosofar consiste, como nos ensina o nosso autor ilustre [Newton], em observar atentamente os fenômenos da Natureza e deles deduzir tais causas que possam produzir universalmente os mesmos fenômenos por leis mecânicas [acrescentando que] achadas ditas causas se devem admitir como leis ou causas secundárias pelas quais se governa e se conserva a Natureza." (Idem: 10-11)

Ora, ao identificar as leis da natureza com as “causas secundárias” - terminologia de significação escolástica -, ele preserva a legitimidade plena da metafísica tomista e da ação de Deus como Causa Primeira ou Primeiro Princípio.

A mesma abertura à filosofia moderna estabeleceu-se entre os oratorianos, padres seculares da Congregação do Oratório (fundada em Roma, 1564), que aparece em Portugal na segunda metade do século XVII. Também aí o aristotelismo a ser superado se identifica com a forma do ensino filosófico, na medida em que as questões versadas no campo da lógica e da metafísica são as mesmas encontradas em autores jesuítas. João Baptista, por exemplo, na sua Philosophia aristotelica restituta et illustrata qua experimentis qua raciociniis nuper inventis (1748), ainda que tenha expressado o propósito de abreviar e suprimir questões inoportunas no domínio da lógica, não deixa de tratar longamente do problema dos universais. Por outro lado, o intuito de "restituir" Aristóteles não visa devolvê-lo ao passado, senão reconduzi-lo à condição de primazia, provando que as supostas novidades modernas já se encontram no Estagirita.

Somente a partir de Luís Antônio Vernei (1718-1792) esta situação se altera substancialmente entre os oratorianos. Em suas obras Verdadeiro método de estudar (1746) e De re logica (1751), Vernei, reiterando o antiaristotelismo do limiar da filosofia moderna, acomete com ardor contra a lógica ensinada em Portugal, acusando-a de obscura, de ensinar apenas a disputar sobre coisas sem utilidade, de prescrever regras complicadas sobre as proposições e os silogismos, dedicando-se menos ao ensino do método de julgar e raciocinar do que a preservar o senso comum acerca da verdade. Influenciado pela lógica de Port-Royal, através de Bernard Lamy (1640-1715), do Oratório francês, seu interesse concentra-se nas questões gnosiológicas e metodológicas referentes à origem e à natureza das idéias, aos critérios de verdade e aos processos de expressão e comunicação do pensamento. Revolucionário no domínio pedagógico, é no domínio da metafísica, entretanto, que se revela francamente conservador. Na parte do seu Verdadeiro método de estudar dedicada à física, após a exposição minuciosa dos novos preceitos metodológicos e epistemológicos desta disciplina, e a consequente rejeição da "física peripatética", Vernei argumenta que a indagação sobre o Espírito Eterno e Incriado, "causa e princípio de todas as coisas", deverá constituir "o principal empenho do filósofo, pois é esse o fundamento de toda a filosofia e religião". Ora, se é essa a finalidade da filosofia da natureza, então há uma relação de causa e efeito entre o absoluto e o mundo possível, cujo fundamento se encontrará não nas “leis da natureza”, mas na “lei de Deus” e na idéia de criação. De fato, explica Vernei, em seu livro De re metaphysica (1753), que nada está no efeito que não esteja na causa, seja de um mesmo modo ou de um modo mais perfeito. De um mesmo modo, mecanicamente; de um modo mais perfeito, pela ação criadora. Defendeu, assim, o princípio escolástico segundo o qual todas as coisas existentes estão contidas de um modo mais perfeito na mente do Criador, pois na criação a causa excede o efeito. Esta concepção está de acordo com Aristóteles (Metafísica IX), quando prova que o ato é anterior à potência, neste tipo de prioridade, e a denomina prioridade de substância e espécie, isto é: o que é posterior em geração, diz Aristóteles, é anterior em substância e espécie. Eis, portanto, o verdadeiro caráter filosófico do "iluminismo" que Vernei instituiu entre os padres de sua Congregação: sem abdicar do aristotelismo português, condena o aristotelismo como orientação filosófica exclusiva. A metafísica é anunciada como uma teoria geral da ciência, incidindo quer sobre os seus fundamentos subjetivos, ao investigar o modo de conhecer as primeiras verdades ou princípios, quer sobre a estrutura da realidade conhecida, ao expor as verdades fundamentais comuns às diversas ciências. A campanha iniciada por Vernei contra o ensino filosófico português, que culminou na reforma pombalina da Universidade (1772), teve como conseqüência mais imediata e perversa a proscrição do nome de Aristóteles, no ensino filosófico oficial, e a adoção de uma atitude frouxa, indefinida, entre empirismo e racionalismo, em lugar do aristotelismo conimbricense, até às primeiras décadas do século XIX, atitude essa denominada ‘empirismo mitigado’. 

1.3.1.1 empirismo mitigado 
No quadro do empirismo mitigado, cabe destacar, após a transferência da Corte Portuguesa para o Brasil (1808), o magistério do oratoriano Silvestre Pinheiro Ferreira. Em seu curso de filosofia no Rio de janeiro, publicado sob o título Preleções filosóficas e acompanhado de uma tradução das Categorias de Aristóteles “para uso das Preleções filosóficas do mesmo tradutor”, o filósofo português, não obstante sua atenção para com o sensualismo de Condillac e o empirismo de Locke, revela não só uma preocupação em preservar o nome de Aristóteles das acusações decorrentes do antiaristotelismo, como também um sentido de modernização, sem prejuízo da doutrina aristotélica. Isto é evidente tanto no prefácio às Categorias como especialmente em sua Nona Preleção:

"Seria impróprio deste lugar o aplicar-me a demonstrar-vos que Aristóteles, pela vastidão do plano e sublimidade da execução que se fazem admirar nas suas obras, assim como é incomparavelmente superior a todos os filósofos, cujos escritos nos são conhecidos, assim também deve ser o primeiro que figure nesta espécie de Biblioteca Filosófica com que iremos acompanhando o Curso desta Preleção. Só depois de havermos analisado os tratados que nos restam daquele grande filósofo, e de os termos comparado com o que depois dele até agora sobre os mesmos objetos se tem escrito, é que de um rápido golpe de vista poderei convencer-vos da justiça com que acabo de tributar-lhe as homenagens que o nosso século amigo das luzes lhe não teria negado, se a estulta idolatria de absurdos escolásticos dos dois séculos precedentes não tivesse indisposto os ânimos até mesmo contra o nome de Aristóteles, como aquele em cujas obras eles protestavam haverem copiado os delírios das suas desvairadas fantasias." (FERREIRA, 1996: §311)

Sua incursão no sensualismo envolve, na mesma medida do empirismo de Vernei, uma preocupação de caráter estritamente prático e pedagógico. Sua atenção a Leibniz, entretanto, tem outra medida. Diferentemente de Vernei, Silvestre procura na filosofia moderna uma hipótese de preservar a dimensão criacionista das “provas cosmológicas” da existência de Deus, encontrando-a em Leibniz. Inspirado na Monadologia, Silvestre entende que “cada um dos fenômenos que acontecem em qualquer substância é um efeito que tem por causa [...] o estado precedente do mesmo Universo” (idem: §187), deduzindo daí não só a necessidade de Deus como Causa Primeira, bem como o sentido aristotélico-tomista da natureza como criação:

"É neste sentido que, falando-se de algum daqueles fenômenos em particular, se diz ser efeito ou obra da Natureza. Expressão mui sensata e filosófica, contanto que se não aplique, como alguns pseudo-filósofos o têm feito, ao fato da Criação [...] Entende-se por Criação o primeiro de todos os estados do Universo, remontando do atual para o passado."(Idem: §§188-189)

Assim sendo, a modernização do ensino filosófico vale menos pela assimilação de questões próprias à filosofia moderna do que pela intenção de harmonizar a tradição viva do aristotelismo português com a inovação e a renovação historicamente condicionadas. 

2. Caráter relativo da filosofia no Brasil: filosofia luso-brasileira 
‘Filosofia luso-brasileira’ exprime uma relação de reciprocidade única e exclusiva das filosofias portuguesa e brasileira em razão do aristotelismo como tradição filosófica comum. Isto quer dizer: o estudo filosófico no Brasil, durante cerca de dois séculos, é relativo ao aristotelismo português no sentido de que (i) a este se converte, assim como este àquele se converte; (ii) porque é simultâneo, na natureza, com o aristotelismo português a que se refere; finalmente, (iii) porque conhecendo-se o ensino filosófico sob a Ratio Studiorum no Brasil, conhece-se o aristotelismo português, e vice-versa. Neste sentido, a filosofia luso-brasileira é o passado no modo do ser brasileiro, cujos representantes históricos, a exemplo do Padre Antônio Vieira S.J., são aqueles que fizeram seus estudos filosóficos nas instituições brasileira de ensino sob a Ratio Studiorum, procurando fazer uso da razão de modo a transcender os limites da própria experiência, porém dentro dos limites do aristotelismo português.

Esse caráter relativo das primeiras manifestações filosóficas no Brasil não parecerá estranho se considerarmos que a filosofia moderna, num certo sentido, saiu de dentro do aristotelismo.[10] Não queremos dizer que a filosofia luso-brasileira e a filosofia moderna tiveram o mesmo princípio. Pelo contrário, enquanto a filosofia moderna instituiu-se com base no cogito cartesiano, a filosofia luso-brasileira apoiou-se no princípio religioso da conversão. Entretanto, mesmo sendo princípios contrários quanto aos procedimentos empregados para fazer a distinção entre a alma e o corpo, o cogito e a conversão não se excluem na medida em que não só estabelecem a anterioridade da alma em vista da sabedoria, como, acima de tudo visam à autoconsciência.

Em meados do século XVII, à mesma época em que Descartes publicou suas Meditationes de prima philosophia (1641), visando a demonstrar a necessidade da autoconsciência como evidência apodítica e primeira em si, a filosofia luso-brasileira procurou mostrar - a exemplo dos autores coloniais referidos acima, e de outros porventura desconhecidos, mas sobretudo a exemplo do Pe. Antônio Vieira - a necessidade da conversão como condição de o ser humano ver a si mesmo como inteligência e vontade, sendo capaz não só de compreender as “palavras de Deus”, mas também de querer o que elas dizem enquanto coisas boas e belas, reincidindo assim sobre a antiga tradição filosófica dos Príncipes de Avis, que ressaltaram a dimensão moral do saber. 

2.1 Antônio Vieira 
Antônio Vieira (1608-1697) nasceu em Lisboa, mas aos seis anos de idade veio com os pais para a cidade do Salvador, no estado da Bahia, então a sede do governo geral português no Brasil desde 1549. Em Salvador, iniciou seus estudos no colégio dos jesuítas como aluno externo. Aos quinze anos tornou-se seminarista nesse mesmo colégio. Um ano após o noviciado, aos dezoito anos, já era incumbido de escrever em latim a Carta Ânua que a província costumava enviar ao Geral da Companhia em Roma. Aos dezenove, encontrava-se encarregado de ensinar retórica no colégio de Olinda, em Pernambuco. Após três anos de magistério, regressou ao colégio de Salvador para estudos complementares de filosofia (aristotelismo) e teologia, sendo aí ordenado padre (1634) e encarregado da cadeira de teologia em (1635). Denunciado pela Inquisição seguidas vezes, por causa de sua obra “herética” (Quinto Império; História do futuro; Clavis prophetarum) inspirada no sebastianismo[11], chegou a ser desterrado para Coimbra e proibido de retornar ao Brasil. Em 1683, realizou-se na Universidade do México a primeira defesa de tese sobre a obra de Vieira. Morreu na cidade do Salvador, com exéquias em Lisboa.

Além de suas preocupações de missionário, percorrendo aldeias do interior da Bahia, e de seu perfil como conselheiro real e diplomata, em Vieira distinguiram-se desde cedo as virtudes oratórias do pregador que iria seduzir os auditórios de Lisboa e Roma. Com inteira justiça, célebre tornou-se a sua obra literária, elevando-o à categoria de escritor sui generis em língua portuguesa. Em seus sermões revelam-se não só o uso prático da razão, quando, por exemplo, pensa a liberdade em face da escravidão no Brasil, tanto a escravidão dos indígenas (Sermão da primeira dominga da quaresma, de 1653) quanto a dos negros (Sermão XIV da Série Maria Rosa Mística, de 1633), mas também o uso teórico da razão, quando fala da própria arte de discorrer em vista da conversão (Sermão da sexagésima, de1655).

A consideração da obra do orador como um exemplo do mais puro “pensamento barroco”, ou do “barroquismo conceitualista”, pode ser compreendida em função da sua técnica de construir o sermão mediante a interpretação do sentido das palavras, ou de orações, fazendo “distinções conceituais”. Tais distinções não são procedimentos lógicos, senão que pelo artifício de uma simples imagem, recorrendo a um fato ou a uma frase da Bíblia, Vieira se propõe inculcar um princípio moral. Desse modo, os sermões de Vieira muito devem, em sua estrutura, à parenética de Santo Antônio. “Ecce exiit, qui seminat, seminare”,[12] assim abre Vieira o Sermão da Sexagésima, e logo se põe a fazer uma hermenêutica de ‘saiu’ (exiit) para efeito de distinguir o mau pregador, que só pregava ao abrigo da civilização, do verdadeiro pregador que, visando a conversão das almas rudes e alheias à espiritualidade da vida, chegava ele mesmo a afastar-se da civilização, pois “Entre os semeadores do Evangelho há uns que saem a semear, há outros que semeiam sem sair” (ibidem). Neste sentido, os pregadores que semeiam sem sair não são pregadores senão de nome, pois não há que confundir ‘semeador’ e ‘pregador’, enquanto nomes, com o que semeia e o que prega, enquanto ações, porque são as ações, os exemplos, as obras enfim, que conferem ao indivíduo o nome próprio do seu ser, e não o contrário. Ter nome de pregador, ou ser pregador de nome, não exprimem o modo próprio do ser segundo a obrigação moral, pois “Se com cada cem Sermões se convertera e emendara um homem, já o mundo fora santo” (ibidem).

Tendo em vista o sermão como instrumento da conversão, há que considerar-se primeiramente em Vieira a sua dialética, isto é, a sua habilidade em revelar a outrem, através da linguagem, o que está em oculto - o desconhecido - a partir do conhecido. Neste sentido, a intenção doutrinária nos sermões de Vieira não se configuraria sem uma teoria acerca do uso da linguagem.

Evidentemente, Vieira não concebe o discurso apenas como expressão e comunicação de pensamento, como é próprio do espírito do tempo sob o racionalismo do século XVII. Para ele, assim como para toda a filosofia cristã, desde Sto. Agostinho, o falar revela o “homem interior” no sentido de que ele usa de um sistema de sinais para significar a própria vontade (Confessiones I, 8). Partindo desse princípio, Vieira, preocupado com a ineficácia do sermão como instrumento da conversão, interpela os pregadores sobre um dilema crucial quanto ao uso das palavras: se devemos (i) “trazer as palavras [de Deus] a que digam o que nós queremos”, ou (ii) se “havemos de querer o que elas dizem” (Sermão da sexagésima, IX). Na primeira hipótese, acusa ele, verifica-se a equivocidade e “muitas vezes as tomais pelo que toam e não pelo que significam, e talvez nem pelo que toam” (ibidem).

Deste modo, o sermão não espiritualiza, isto é, não leva ninguém a pensar objetivamente aquilo que ouve como sinal ou revelação do dever, por exemplo, se o pregador não reconhece nas palavras, em princípio, um primeiro sentido - o seu sentido literal -, que é o modo relativo como elas se apresentam em função das condições a priori do sistema de significação, isto é, da Gramática. Porque não obstante a possibilidade de uso da sintaxe para significar diferentemente a mesma coisa, inclusive de forma ambígüa, todos os sentidos possíveis de uma mesma palavra ou frase se reduzem, em última instância, ao seu sentido literal. Por isso mesmo, é com base no sentido literal que os diferentes sentidos de uma palavra se articulam.[13] Estas são as razões da seguinte advertência de Vieira:

"como cuidais que pregais a palavra de Deus? Mais. Nesses lugares, nesses Textos que alegais para prova do que dizeis, é esse o sentido em que Deus os disse? É esse o sentido em que os entendem os Padres da Igreja? É esse o sentido da mesma Gramática das palavras?" (Ibidem)

Em vista do sentido literal, revestir-se-ia de autoridade moral todo o pregador que, ao conhecimento da linguagem como sistema de significação, acrescentasse a própria vontade em relação às coisas significadas no sermão como sinal do que se deve fazer. Esta compreensão é evidente já em Pedro da Fonseca, quando ensina o seguinte:

"Na autoridade humana requerem-se ordinariamente duas condições: conhecimento das coisas (que se contém na ciência ou na experiência dessas coisas) e virtude. Aquele, para se saber o que se diz; esta, para se querer o que se diz. (FONSECA, 1964: 574)
Significar nada mais é que representar algo a uma potência cognoscente [...] Por isso, quando se diz que aquele que fala ou escreve significa a sua sentença, ou vontade, isto não se deve entender senão no mesmo sentido em que se diz que aquele que põe fogo à lenha ele mesmo queima a lenha." (Idem: 34)


A finalidade da conversão no âmbito da dialética levou Antônio Vieira a explorar aos limites a língua portuguesa para convencer e persuadir, razão pela qual o seu discurso tem um caráter literário e, por isso mesmo, um valor estético. Atualmente, mesmo que o leitor se recuse a seguir até onde Vieira se esforça por conduzi-lo, o sermão enquanto obra estética pode, por si só, realizar alguma coisa: obrigá-lo a tornar-se atento, obrigá-lo a pensar as palavras, obrigá-lo a julgar. Como autor estético, Vieira se propõe cativar os piores ouvintes, os de vontade endurecida e os de entendimento agudo, que “vêm só a ouvir sutilezas, a esperar galantarias, a avaliar pensamentos” (Sermão da sexagésima, III).

Constitui-se uma ilusão, nesse sentido, a idéia de que a revelação do “homem interior” vem exclusivamente da razão, por abstração da experiência e dos sentidos, como poderiam supor os racionalistas do século XVII. Porque “somos compostos de carne e sangue, obre de tal maneira o racional, que tenha sempre respeito ao sensitivo” (Sermão de Santo Antônio, 1642, III), recomenda Vieira.

Nesta perspectiva de entendimento, seu desempenho como autor estético implica uma perfeição da inteligência através do ato de fala do mesmo modo que, na Ética a Nicômaco, o bem constitui a perfeição da vontade. O homem verdadeiro não corresponde, assim, apenas a um acordo interno do espírito consigo mesmo ou com as representações por ele elaboradas, mas conformidade da consciência com uma experiência da qual o sujeito participa concreta e historicamente segundo a própria vontade. Vieira condena aqueles pregadores que se comportam no púlpito como se comportam os atores no palco, sem qualquer compromisso com a verdade, levando os ouvintes a apartarem-se dos fatos e da experiência:

"São fingimentos, porque são sutilezas e pensamentos aéreos sem fundamento de verdade; são comédia, porque os ouvintes vêm à pregação como à comédia; e há pregadores que vêm ao púlpito como comediantes." (Sermão da sexagésima, IX)

Mais uma vez, a fonte é Aristóteles, onde ele afirma que o fato de existirem homens “que empregam a linguagem que procede da ciência não prova em nada que a possuam” (Ética a Nocômaco I, 3), e que, por isso mesmo, “temos de supor que os incontinentes falam à maneira dos atores de teatro” (ibidem).

Portanto, se havemos de proclamar a relação íntima entre a conversão e a dialética em Vieira, de modo que seu uso da palavra exprima uma unidade de pensamento e ação subjacente à sua personalidade múltipla de escritor, conselheiro real, diplomata e, principalmente, de pregador, havemos de considerar qual o seu conceito de dialética:

"Há de tomar o Pregador uma só matéria, há de defini-la para que se conheça, há de dividi-la para que se distinga, há de prová-la com a Escritura, há de declará-la com a razão, há de confirmá-la com o exemplo, há de amplificá-la com as causas, com os efeitos, com as circunstâncias, com as conveniências que se hão de seguir, com os inconvenientes que se devem evitar, há de responder às dúvidas, há de satisfazer às dificuldades, há de impugnar e refutar com toda a força da eloquência os argumentos contrários, e depois disto há de colher, há de apertar, há de concluir, há de persuadir, há de acabar. Isto é sermão, isto é pregar, e o que não é isto, é falar de mais alto." (Sermão da sexagésima, VI)

Parece evidente também que a estrutura do sermão em Vieira, juntando o rigor demonstrativo da lógica aristotélica à arte da retórica latina, corresponde perfeitamente àquela passagem de Fonseca onde se adverte que assim como serão interpelados os matemáticos e os filósofos que se valerem da oratória, também será interpelado o orador que, suprimindo todo o ornamento, quiser basear o seu discurso em razões matemáticas ou filosóficas. O que não parece evidente é se e em que medida é possível a discussão do seu pensamento em termos de doutrina filosófica, não só do ponto de vista da projeção do aristotelismo português no Brasil, mas também na perspectiva de posteriores desenvolvimentos. 

2.1.1 a conversão como autoconsciência
Consta que Vieira teve um desempenho intelectual medíocre durante o período em que foi aluno externo no colégio dos jesuítas. Somente após ouvir uma pregação, quando tinha quinze anos, descobriu sua vocação. Iniciou assim o seu noviciado, revelando-se, a partir de então, aluno disciplinado, talentoso e brilhante, transformação essa que ele mesmo passou a associar ao episódio de sua conversão, quando, segundo suas próprias palavras, se produziu em sua mente algo como um estalo - o “estalo de Vieira”.

A questão de se saber como pode o homem libertar-se da concupiscência, isto é, do jugo do corpo e dos sentidos do corpo que limitam o seu poder, transformando-se assim numa inteligência enquanto o poder “ver dentro” todas as coisas, a começar por si próprio, pode ser levantada a partir da conversão em Vieira (Sermão da sexagésima, III):

"Para uma alma se converter por meio de um Sermão há de haver três concursos: há de concorrer o pregador com a doutrina, persuadindo; há de concorrer o ouvinte com o entendimento, percebendo; há de concorrer Deus com a graça, alumiando. Para um homem se ver a si mesmo são necessárias três coisas: olhos, espelho e luz. Se tem espelho e é cego, não se pode ver por falta de olhos; se tem espelho e olhos, e é de noite, não se pode ver por falta de luz. Logo há mister luz, há mister espelho e há mister olhos. Que coisa é a conversão de uma alma senão entrar um homem dentro em si, e ver-se a si mesmo? Para esta vista são necessários olhos, é necessária luz, e é necessário espelho. O pregador concorre com o espelho, que é a doutrina; Deus concorre com a luz, que é a graça; o homem concorre com os olhos, que é o conhecimento."

Refletindo a doutrina aristotélica, a função do pregador implica a necessidade de doutrina que estabeleça a comparação entre a luz natural, sob a qual o homem se vê como realidade externa, e a “luz interior”, sob a qual ele se “vê” como realidade interna independente do corpo. Neste sentido, não se concebe a formação do pregador sem uma compreensão clara da necessidade da “luz interior”. No âmbito do aristotelismo português, a fonte para essa compreensão da conversão em geral remonta a São Bernardo (De conversione) e a Santo Agostinho (De confessione VIII); a fonte mais próxima da doutrina da “luz interior” é Pedro da Fonseca. Depois de explicar a concepção do objeto de conhecimento com base na distinção aristotélica entre o intelecto agente e o intelecto passivo, Fonseca assim se exprime:

"Efetivamente, o intelecto agente é uma certa luz interior e espiritual, fazendo de coisas universais em potência universais em ato, de algum modo como a luz corporal faz das cores visíveis em potência visíveis em ato, como diz Aristóteles." (FONSECA, 1965: 54s) 

2.1.2 moral e política: o dever-ser
Correspondendo à distinção entre essência e existência em Fonseca, Vieira distingue no homem os dois modos do ser: o ser natural e o ser moral. Pelo primeiro modo, o ser consiste na união de corpo e alma; pelo segundo, só na alma, como resultado de separar-se a alma do corpo no processo de autoconsciência inerente à conversão. Resultaria dessa separação um prejuízo no ser do homem, como se assim ele passasse a ter “menos” ser? Pelo contrário, mediante a consciência de si como sendo essencialmente alma, dotado de inteligência e vontade, o homem revela-se a si mesmo como sujeito de transformar-se, pela conversão, em outro; de adquirir uma atitude nova, independente, e novas habilidades; de adquirir, enfim, “mais” ser, ampliando assim o seu ser, para além do mero determinismo natural:

"Quando S. Paulo (e eu com ele) chama homem à alma, não fala da parte do homem, senão de todo o homem; mas não do homem físico e natural, senão do homem moral, a quem ele queria instruir e formar; bem assim como em outro lugar distingue no mesmo homem dois homens: a constituição do homem moral é mui diversa da composição do homem natural: o homem natural compõe-se de alma e corpo: o homem moral constitui-se, ou consiste só na alma. De maneira, que para formar o homem natural, se há de unir a alma ao corpo; e para formar ou reformar o homem moral, há-se de separar a alma do corpo." (As cinco pedras da funda de Davi, III)

Os dois modos do ser do homem não se excluem, ressalte-se. Mas, se pelo primeiro modo a essência do ser é a natureza, cuja determinação de que a alma se una ao corpo é a condição mesma de que o corpo sirva à consciência de si na conversão, pelo segundo, que implica o separar-se a alma do corpo, a essência do ser excede aquela determinação da própria natureza, tornando-se, assim, a independência da alma em relação ao corpo, na essência mesma do ser do homem. Há, portanto, no homem, o modo (i) do ser, segundo a doação da natureza, em virtude da qual a vontade depende da corporeidade, o que, por isso mesmo, reduz a ação humana, igualmente à dos outros animais, ao domínio de uma causalidade mecânica; e o modo (ii) do dever-ser, segundo a consciência de si, através da qual o homem se vê, desde a origem, muito obrigado pelo benefício da doação, isto é, não só em dívida como também agradecido pelo próprio ser-no-mundo, e reconhece a necessidade de acrescentar ao seu ser o dever como causa e fim de sua ações.[14] O viver, enquanto o ser-no-mundo, deixa de ser meramente uma função de poder para transformar-se num compromisso ontológico em função do dever como causa e fim das próprias ações. O dever como causa e fim, configurando uma causalidade final para além da indiferente causalidade mecânica, porque o fim, enquanto querido, move o indivíduo a empenhar sua inteligência e sua vontade nas próprias ações, cujo penhor a resgatar é o direito real à independência da alma. “Vivamos como almas separadas”, proclama Vieira (idem, IV), porque se a morte, que é o fim do homem natural, “há de fazer por força esta separação, por que a não faremos nós por vontade?” (ibidem), nós que, pela inteligência, e pela imaginação, nos tornamos criadores, e assim nos libertamos das limitações impostas pela corporeidade: “Por que não fará a razão desde logo, o que a morte há de fazer depois? Oh que vida! Oh que obras seriam as nossas tão outras do que são!” (ibidem).

Neste sentido, a consciência moral, fundada na causalidade final que promove a independência da alma, é a essência do ser do homem, mas não de um homem abstrato, como razão pura, e sim a essência deste homem como razão concreta e histórica, que, para além da definição aristotélica de que o homem é animal racional, pode identificar-se com daquilo que Pedro da Fonseca, pondo-se de acordo com Duns Escoto, chamou de diferença individual.

Cabe aqui uma observação sobre o pensamento político de Vieira. Sendo o dever a superação do poder determinado por natureza, ficaria o homem moral, em seu poder de autodeterminação, livre das cargas mais pesadas na vida social como, no caso dos impostos, a isenção eclesiástica e os privilégios da nobreza, e, no caso da mão-de-obra, a exclusividade do povo? Vieira esclarece que o poder de autodeterminação não exclui a necessidade a que vive sujeito o homem natural por força da corporeidade, e que, além disso, o homem moral se reconhece na independência de fazer o que quer, e não na dependência de padecer o que não quer, mesmo nas situações extremas, como no caso do negro africano introduzido no Brasil como escravo.

No Sermão XIV, da série Maria Rosa Mística, pregado à Irmandade dos Pretos de um engenho na Bahia (1633), Vieira compara o trabalho escravo ao suplício de Cristo: “Cristo despido, e vós despidos: Cristo sem comer, e vós famintos: Cristo em tudo maltratado, e vós maltratados em tudo. Os ferros, as prisões, os açoites, as chagas, os nomes afrontosos” (parte VII). Por meio do exemplo de Cristo, ele procura convencer o oprimido de que a condição originária do ser humano consiste em padecer o que não quer, e não fazer o que quer, razão pela qual “quis Deus que nascessem [os negros] à Fé debaixo do signo da sua Paixão, e que ela [a fé], assim como lhe havia de ser o exemplo para a paciência, lhe fosse também o alívio para o trabalho” (idem, VIII). Entretanto, se nem todos se encontram no mundo sob o signo da paixão, em razão dos privilégios de que desfrutam em seus estados naturais, essa desigualdade não exime nenhum deles do compromisso ontológico. Pelo contrário, do ponto de vista da sorte, isto é, de uma determinação superior absolutamente indiferente à inteligência e à vontade humanas, a desigualdade natural remete aos “mistérios” gozosos, dolorosos e gloriosos:[15] “Bom era que nos igualáramos todos: mas como se podem igualar extremos que têm a essência na mesma desigualdade? Quem compõe os três estados do Reino [igreja, nobreza e povo], é a desigualdade das pessoas. Pois como se hão de igualar os três estados, se são estados porque são desiguais?” (Sermão de Santo Antônio, V). A resposta de Vieira é clara: a condição de possibilidade da igualdade é o compromisso ontológico de cada um, individualmente, em função do dever como ofício, a exemplo dos apóstolos:

"Vos estis sal terrae. O que aqui pondero é que não diz Cristo aos Apóstolos: Vós sois semelhantes ao sal; senão: Vos estis. Vós sois sal. Não é necessária Filosofia para saber que um indivíduo não pode ter duas essências. Pois se os Apóstolos eram homens, se eram indivíduos da natureza humana, como lhes diz Cristo que são sal?: Vos estis sal? Alta doutrina de estado. Quis-nos ensinar Cristo Senhor nosso, que pelas conveniências do bem comum se hão de transformar os homens, e que hão de deixar de ser o que são por natureza, para serem o que devem ser por obrigação. Por isso tendo Cristo constituído aos Apóstolos ministros da Redenção, e conservadores do Mundo, não os considera sal por semelhança, senão sal por realidade: Vos estis sal: porque o ofício há-se de transformar em natureza, a obrigação há-se de converter em essência, e devem os homens deixar o que são, para chegarem a ser o que devem. Assim fazia o Batista, que, perguntado quem era, respondeu: Ego sum vox: Eu sou uma voz. Calou o nome da pessoa, e disse o nome do ofício, porque cada um é o que deveser, senão não é o que deve. Se ostrês estados do Reino, atendendo a suas preeminências, são desiguais, atendam a nossas conveniências, e não o sejam. Deixem de ser o que são, para serem o que é necessário, e iguale a necessidade os que desigualou a fortuna." (Ibidem)

Para essa transformação educativa no ser do homem dentro das condições mesmas em que ele vive no mundo, o que significa transformar em um e o mesmo os “diferentes mundos” referentes aos diferentes “estados” na vida social, o princípio é a conversão. Eis a mundividência em Vieira: pela conversão e a introdução do dever no ser do homem os “diferentes mundos” (supondo que só podemos ser nós mesmos em “nosso” mundo e através dele, no sentido de que o “nosso” mundo morrerá conosco enquanto que “o” mundo continuará sem nós), se reduzem a um e o mesmo mundo da vida em que todos se encontram em função do dever como ofício, razão pela qual Vieira observa aos escravos convertidos: “deveis dar infinitas graças a Deus por vos ter dado conhecimento de si, e por vos ter tirado de terras, onde vossos pais e vós vivíeis como gentios; e vos ter trazido a esta, onde instruídos na Fé, vivais como Cristãos, e vos salveis” (idem, VI). Neste sentido, ele chega a concordar com “aquela breve e discreta definição de quem chamou a um Engenho de açúcar doce inferno [porque] se as vozes que se ouvirem, forem as do Rosário, orando e meditando os mistérios dolorosos, todo esse inferno se converterá em Paraíso” (idem, VIII). O escravo basicamente padece, reconhece Vieira. Mas não é pela exclusão do padecimento que se alcança a liberdade. Mesmo o oprimido, uma vez convertido, seria capaz de ato livre, contrariamente ao que se verifica no mecanismo da natureza, como o “trabalho” das abelhas “que fabricam o mel, sim; mas não para si” (ibidem):

"Que tem que ver a liberdade de uma ave com penas e asas para voar, com a prisão do que se não pode bulir dali por meses e anos, e talvez por toda a vida? Aqui vereis quais são os poderes e transformações que obra o Rosário nos que oram e meditam os mistérios dolorosos (...) se não só de dia, mas de noite vos virdes atados a essas caldeiras com uma forte cadeia, que só vos deixe livres as mãos para o trabalho, e não os pés para dar um passo; nem por isso vos desconsoleis e desanimeis (...) nessa triste servidão de miserável escravo tereis o que eu desejava sendo Rei (...) Oh quem me dera asas como de pomba para voar e descansar! E estas são as mesmas que eu vos prometo no meio dessa miséria (...) porque é tal a virtude dos mistérios dolorosos da Paixão de Cristo para os que orando os meditam (...) que o ferro se lhes converte em prata, o cobre em ouro, a prisão em liberdade, o trabalho em descanso, o inferno em paraíso, e os mesmos homens, posto que pretos, em Anjos." (Ibidem) 

2.2. a modernização como problema filosófico 
Em Portugal, o conflito ideológico entre “antigos” e “modernos” arrastou-se, desde o final do século XVII, para as necessárias reformas pombalinas na segunda metade do século XVIII. Muito contribuiu para essas reformas a participação do estrangeirado. Dentre os estrangeirados distinguiu-se o oratoriano Luís Antônio Vernei, cujo “modernismo” teve forte influência sobre a Junta de Providência Literária, incumbida de redigir o novo Estatuto da Universidade (1772). Com o seu Verdadeiro método de estudar,[16] ele pôs a descoberto as deficiências do sistema de ensino português em face de uma cultura ocidental já marcada pelo espírito científico-racional. Caracterizando esse espírito como o interesse nos conhecimentos exatos e na educação pela razão, ele fez a crítica do ensino de filosofia em Portugal à luz do ideário iluminista, mas sem nunca pôr em dúvida a superioridade da Revelação e da Graça divinas sobre o mecanismo da natureza e da razão humana. A presença desse princípio escolástico no bojo do “modernismo” português é uma prova de que não se pode, impunemente, ver no momento das reformas pombalinas da instrução pública uma atitude filosófica absolutamente contrária à tradição espiritualista portuguesa.

Qual a novidade desse espírito até então “mais recente”? A novidade estava no método como se elevava a razão concreta e histórica do indivíduo ao nível de universalidade da “lei ontológica” que rege a existência das coisas. Aqueles que viam a pessoa do legislador humano maior que a lei consideravam a lei ontológica como a expressão de uma vontade criadora, única e livre, imutável e eterna - a “lei de Deus”. Mas aqueles que viam a pessoa do legislador humano também submetida à regularidade uniforme e impessoal da experiência concebiam a lei ontológica como sendo a expressão das “leis da natureza”.

No século XVII, o conhecimento da natureza está dentro do alcance da inteligência humana. A partir de Descartes, o sujeito comum já não depende da ajuda de outro (a intermediação do pregador) para aceitar a jurisdição universal de leis que determinam a existência das coisas. Eis a novidade do método cartesiano, razão pela qual ele é considerado, com justiça, o fundador da filosofia moderna: pela própria razão o homem revela-se como uma inteligência, como sujeito de conhecimento, ao mesmo tempo em que conhece a si mesmo como objeto submetido a leis necessárias e universais, sem necessidade de outro que lhe sirva de espelho. Desse modo, a filosofia se liberta da tutela da teologia. Em outras palavras: em lugar da conversão, o cogito cartesiano.

Mas à mesma época em que Descartes estabelecia, com suas Meditações, o moderno princípio ontológico de que a própria existência tem o seu fundamento na consciência de si como pensamento, no Brasil se mantinha inalterável, sob o método pedagógico dos jesuítas, o antigo princípio teológico de que a própria existência se funda na universalidade da conversão.

Ao final do século XVIII, não obstante o caráter revolucionário das reformas pombalinas na instrução pública, como que abrindo as portas da Universidade à ciência “até então proibida em Portugal, por motivos religiosos” (como alegou o Marquês), o problema da modernização consistia em reconhecer a necessidade das leis da natureza, sem que para isso fosse preciso renunciar à lei de Deus. 

3. Nascimento da filosofia brasileira 
Como autor estético, Vieira construiu uma obra literária notável tendo em vista o indivíduo, categoria que, opondo-se à de público, exprime já uma mentalidade moderna e não meramente escolástica. Neste sentido, a contribuição da parenética de Vieira para o nascimento da filosofia brasileira poderia ser comparável à de Santo Antônio, que, num certo sentido e à luz da história da filosofia e da teologia do século XIII, pode ter o seu nome associado à gênese de uma nova mentalidade, no mundo ocidental. Mas se o princípio da conversão em Vieira não pode distinguir-se inteiramente do Cogito cartesiano, também com ele não pode confundir-se, porque em Vieira, assim como em Santo Antônio, o âmbito da reflexão não é o da razão pura, senão misturada com as preocupações teológicas.

Obviamente, a filosofia no Brasil durante o período colonial não se concebe senão como disciplina normativa da Ratio Studiorum. O fato de considerarmos digno de interesse filosófico o Pe. Antônio Vieira, não quer dizer ipso facto que o consideremos um filósofo. Pelo contrário, se se justifica um interesse filosófico em seus textos, isto não se deve às questões nem aos problemas por ele suscitados no intuito de converter os homens à religiosidade cristã e católica, senão à universalidade de suas concepções ao pensar tais questões e problemas na perspectiva do aristotelismo português. Não obstante seu talento para a reflexão teórica, ressalte-se que Vieira jamais pensou questões ou problemas fora dos limites do aristotelismo oficial, como foi o caso de outro jesuíta português, Pedro da Fonseca, com as suas concepções de causa exemplar, tempo imaginário e ciência média ou condicionada.

A filosofia só ganha nacionalidade brasileira no século XIX mediante a superação do dogmatismo. Mas é um erro crasso imaginar que a superação do dogmatismo decorreu da mera supressão do aristotelismo pelas reformas pombalinas da instrução pública. Se o sistema de ensino só veio a dar sinais de modernização mais de 30 anos após a expulsão dos jesuítas, a assimilação dos princípios da filosofia moderna ainda levou mais tempo.

Assim como no século XVII a passagem do aristotelismo para a filosofia moderna foi marcada por uma experiência crítica, a chamada crise epistemológica, que gerou uma mudança de princípio quanto ao fundamento do saber científico, no Brasil oitocentista essa mesma mudança de princípio correspondeu a uma experiência crítica de outra natureza - uma crise estética.

Dado o caráter humanístico e literário da formação cultural brasileira, não seria de estranhar que no Brasil a mudança de princípio, na passagem do aristotelismo para a filosofia moderna, se desse no âmbito de uma crise estética e não metodológica. Mas qual o fator dessa crise estética na cultura de língua portuguesa? Não foi uma “revolução científica”, é claro. Mas foi uma consequência dela: o cientificismo.

A resistência à moderna concepção de natureza e ao estudo das modernas disciplinas científicas, como a física, a química e as ciências matemáticas, prolongou-se até meados do século XIX. Essa resistência gerou o cientificismo enquanto propaganda e exaltação do novo ideal científico do saber baseado na visão racional e matemática da natureza.

A ação do cientificismo no Brasil ganhou força no processo mesmo da modernização cultural após a introdução do romantismo e, sobretudo, durante o influxo do positivismo, quando se concebeu a formação profissional como ofício, já agora desvestido da sua significação vieiriana de compromisso ontológico, senão apenas como fator de progresso e unidade nacional.

Ora, o sentido da modernização cultural com base nos princípios que fundam a filosofia moderna começam a ser assimilados sob a égide do romantismo de Domingos José Gonçalves de Magalhães, que promoveu não só a reforma da literatura, com a edição de Suspiros poéticos e saudades (1836), como também a necessária mudança de princípio, no que diz respeito à exigência de liberdade na consciência de si, com Fatos do espírito humano (1858).

Gonçalves de Magalhães tomou a si a tarefa de fazer a mudança de princípio segundo uma compreensão implícita de que a liberdade intrínseca ao cogito e o compromisso ontológico, a que se obriga todo o homem pela conversão, não se excluem, antes se conciliam, na medida em que têm na mesma consciência de si o seu fundamento. Se considerar-se que a expressão ‘consciência de si’ implica não só o conhecimento de si por si mesmo, mas também o conhecimento de si como objeto da observação alheia, poder-se-á concluir que a conversão e o cogito não se confundem, e que a diferença entre eles está em que (i) na conversão, a autoconsciência se caracteriza pela dependência de um fator externo, o pregador, enquanto que (ii) no cogito, a autoconsciência se caracteriza-se pela independência em relação a qualquer fator externo, isto é, pelo seu caráter a priori.

O cientificismo no Brasil, na medida em que se opôs ao espírito conservador das reformas promovidas por Gonçalves de Magalhães, e procurou desmitificar o sentido da criação, isentando seu processo de qualquer determinação sobrenatural, promoveu a crise que tornou possível consolidar a mudança de princípio na cultura brasileira. Essa consolidação envolve a crítica de Tobias Barreto ao espiritualismo de Gonçalves de Magalhães, bem como a análise e discussão das teses daquele por Farias Brito, aprofundando-se assim a inserção do pensamento brasileiro nos quadros da filosofia moderna e da filosofia contemporânea. 

3.1 Gonçalves de Magalhães 
A transferência da corte portuguesa para o Rio de Janeiro (1808), após a invasão de Portugal pelas tropas de Napoleão Bonaparte, mudou completamente a forma da vida brasileira. Além da abertura dos portos brasileiros ao comércio estrangeiro, o Príncipe Regente D. João fundou a Imprensa Régia, a Academia de Marinha, a Academia Real Militar, os cursos de cirurgia, anatomia e medicina, a Escola Real de Ciências, Artes e Ofícios, etc. Houve também a presença na corte do português Silvestre Pinheiro Ferreira, que ministrou o curso de suas Preleções filosóficas (1813-1816). Foi nessa ambiência de otimismo nacional, marcado pela abertura à novidade e pelo forte influxo da cultura francesa, que nasceu (1811, Rio de Janeiro) e cresceu Domingos José Gonçalves de Magalhães. Foi a época dos artistas franceses: Lebreton, Debret, os Taunay, Ferrez, Grandjean de Montigny. E foi sobretudo a época em que se tomou consciência da necessidade de modernização e emancipação cultural, quando brilhava na capital do país o Fr. Francisco do Mont’Alverne, OFM (1784-1858), cuja palavra, então considerada sublime, já refletia, do púlpito e da cátedra de filosofia, o influxo do moderno pensamento francês.

Gonçalves de Magalhães encontrou nas instituições de cultura do Rio de Janeiro todos os elementos que lhe deram uma formação de caráter humanístico. Antes de graduar-se em medicina, estudou na Academia de Belas Artes e publicou, aos vinte e um anos, Poesias. Começou seus estudos filosóficos ainda no Rio de Janeiro (1832) sob a orientação de Mont’Alverne, que o apoiou e estimulou a aperfeiçoar-se. Em 1833 partiu para a França na condição de adido à legação brasileira em Paris. Aí estudou ciências e filosofia, tendo acompanhado os cursos de Jouffroy, discípulo de Cousin. Ainda em Paris, em 1836, fundou a Niterói, Revista Brasiliense e publicou os Suspiros poéticos e saudades, obra que introduziu o romantismo na literatura brasileira, reformando-a inteiramente. Voltou dessa viagem em 1837. Além do título de Visconde de Araguaia, recebeu em vida as mais altas distinções, falecendo em Roma (1882) como Ministro Plenipotenciário do Brasil junto àquela corte. Obras de caráter teórico mais importantes: Ensaio sobre a história da literatura do Brasil (Paris, 1836), Fatos do espírito humano (Paris, 1858) e A alma e o cérebro (Rio de janeiro, 1876).

3.1.1 a mudança de princípio: da conversão ao cogito 
O fato que marca o nascimento da filosofia brasileira no século XIX é a introdução da liberdade como princípio de ação moral. Cabe a Magalhães esse mérito, que só se justifica porque a sua exigência de liberdade, embora refletindo o influxo do espiritualismo francês, resgata o pensamento de Vieira, bem como é o elo de ligação com Tobias Barreto e Farias Brito.

Quando trata da situação do escravo, Vieira procura mostrar que a consciência de si promovida pela conversão religiosa é a condição não só de pensar a desigualdade e a injustiça determinadas pelo nascimento, como também, mediante a idéia do reino de Deus inerente à própria conversão, conquistar o benefício de participar em outra realidade, onde não há sofrimentos físicos nem morais, onde todos se reconhecem em absoluta igualdade de essência, numa visão da realidade que não depende da experiência e, de certo modo, se propõe exatamente transcender os limites da experiência. Em outras palavras: pela autoconsciência decorrente da conversão religiosa todo o sujeito se revela a si mesmo submetido ao determinismo da natureza, descobrindo porém, na mesma revelação, uma via de escape dessa “prisão”. Neste sentido, e somente neste sentido, a fé se constitui no primeiro grau de liberdade na medida em que, em face da dor e da morte, celebra a vida.

A fé, no entanto, pode transformar-se em princípio de alienação na medida em que se transferem para o domínio de Deus todas as aspirações de justiça, implicando isto, no processo da conversão, uma separação real, porquanto vivida, entre os dois domínios. Tal separação, que caracteriza a vida contemplativa, constitui-se numa indiferença negativa, no mesmo sentido cartesiano (Meditação Quarta), na medida em que o sujeito não exerce, moralmente falando, o seu livre arbítrio como um princípio positivo, de maneira a poder escolher e praticar a verdade universal com base apenas na consciência de si. Neste sentido, a errância, enquanto o poder enganar-se que implica o perder-se da idéia do ser completo e independente como um absoluto, supõe a decadência moral na vida contemplativa.

Essa capacidade moral, de querer necessariamente aquelas coisas que pela inteligência prevemos como certas, não é compatível com a vida contemplativa. Ela envolve a seguinte questão: como é possível que o ser humano seja capaz de prever pela inteligência a realidade de algo sem assumir, de certo modo, que é também responsável pela sua existência? Isto quer dizer: na vida contemplativa o sujeito não é capaz de agir, como especificara Descartes, de maneira a sentir que nenhuma força exterior o obrigue a tanto. Neste sentido, a fé, para Magalhães, se constitui no mais baixo grau de liberdade:

"Podia Deus sem dúvida criar uma sociedade de espíritos puros, não obrigados a coisa alguma, não sujeitos à menor dor, seres angélicos que vivessem em uma eterna bem-aventurança, só contemplando as maravilhas do seu criador. Mas qual seria o mérito desses espíritos para tanta ventura? Necessita Deus de admiradores inúteis? (...) Concebemos que a vida humana e a ordem social podiam ser melhores do que são; que não estivéssemos sujeitos a tantas aflições e enfermidades; que fôssemos todos bons e belos; que não necessitássemos de tão rudes trabalhos para esta vida transitória; que justas fossem todas as nossas inclinações; que não houvesse ódios e guerras; que Deus mesmo nos governasse. Mas o que seria então a liberdade humana [isto é: o livre-arbítrio], se estivesse inteiramente subjugada a instintos naturais? Qual seria o nosso mérito, se nenhum obstáculo se nos apresentasse? O que seria a virtude, se a não praticássemos com algum esforço, vencendo as dificuldades e os vícios com que nos opomos uns aos outros? Qual seria a nossa ciência, quais as nossas artes, a nossa indústria, se as necessidades, as privações e as misérias humanas, a que chamamos males físicos e morais, não nos instigassem a uma contínua atividade livre, a um trabalho incessante?" (MAGALHÃES, 2001: 264-265)

Do ponto de vista da vida contemplativa, a tarefa da modernização no Brasil oitocentista reduziu-se ao âmbito da presciência divina, de modo que o simples conhecimento, por um ato de inteligência humana, da possibilidade e da necessidade de uma certa transformação no mundo da vida, não implicava a liberdade humana de opção pela transformação. Entendia-se, assim, o vivido da verdade como sendo apenas a participação humana na ciência de Deus, chegando-se a conceber e prever toda a mudança necessária sem necessidade de mudar coisa alguma.

Em suma, na vida contemplativa há uma verdadeira separação entre a subjetividade e a objetividade, entre consciência e corporeidade. Em Vieira, entretanto, não é isto o que se verifica, uma vez que, para ele, na consciência de si “há de servir o corpo ao próprio conhecimento, como o aço no espelho serve à vista (...) de maneira que o mesmo que impede o conhecimento direto, serve ao conhecimento reflexo” (As cinco pedras da funda de Davi, II). E é nesta perspectiva que Magalhães, atendendo à historicidade da cultura brasileira, propõe um sentido da liberdade como ampliação do significado meramente subjetivo do termo já pensado em Vieira: indo ao encontro do Cogito cartesiano, mas sem prejuízo da conversão religiosa, ele reconhece que “o que limita o nosso poder é o corpo animal” (MAGALHÃES, 2001: 264); contrariamente, porém, ao modo como na vida contemplativa se estabelece uma separação real entre consciência e corporeidade, restringindo-se a liberdade à indiferença negativa na vontade, Magalhães ressalta o caráter positivo dessa separação necessária, que é só de razão, ao observar que “só com esta triste condição poderíamos ser entes morais” (ibidem), pois o “que convém ao corpo nos é anunciado pelos apetites e desejos periódicos, que não dependem de cálculo algum, e cuja satisfação natural nos dão prazeres, e pode dar-nos algum mérito, combatendo-os quando desordenados, e tendentes a embrutecer-nos” (idem: 275).

Essa “triste condição” remete, sem dúvida alguma, a Descartes, uma vez que, para Magalhães, é no âmbito da corporeidade que o ser humano se reconhece como ser finito e dependente em face do ser infinito e independente, ou dir-se-ia criatura, ou fenômeno “sujeito a leis necessárias, independentes da nossa vontade” (idem: 368); do mesmo modo, é no âmbito da corporeidade que ele é capaz de desejar o que não conhece, donde se originam os erros, pois o “corpo não nos foi dado como uma condição de saber e de querer” (ibidem). Entretanto, dessa “triste condição” depreendemos que toda a vida psíquica do indivíduo está fundada na corporeidade e toda a vida em comunidade está fundada nos corpos dos membros individuais dessa comunidade, uma vez que, segundo suas palavras, o corpo nos foi dado “como uma sujeição que coarctasse esse poder livre [o livre-arbítrio] de que abusaríamos, chamando-nos à vida prática” (ibidem). Seguindo a Descartes, quanto à opinião de que no ser humano a inteligência é muito limitada e a vontade ilimitada, Magalhães, também aqui sem prejuízo das fontes da tradição filosófica luso-brasileira, conclui que toda a discordância deriva do concurso da inteligência e do livre-arbítrio, “porque bastariam estas duas condições para que cada indivíduo pensasse, discorresse, e quisesse ordenar as coisas a seu jeito (...) e não haveria acordo” (idem: 265).

Na perspectiva de uma visão positiva da separação necessária entre a consciência e a corporeidade, ele defendeu a tese de que a inteligência e o livre-arbítrio não constituem em si mesmos a condição humana da errância porque são dons divinos, coincidindo aqui com a posição cartesiana. Mais do que isso, porém, ele está em perfeita sintonia com a reação metafísica do espiritualismo francês contra o sensualismo de Condillac e o positivismo de Comte: “Não compreendemos o desdém ridículo, o estúpido sorriso com que alguns homens, que se dão por mui positivos, olham para as ciências metafísicas” (idem: 55).

Para Magalhães, a razão pela qual a inteligência e o livre-arbítrio originam o erro deve-se ao fato de que o indivíduo historicamente passou a desdenhar e a esquecer-se da própria imagem concebida mediante a participação na ideia de Deus, como absoluto ou mistério, que a razão exige no âmbito da consciência de si. Essa participação é que garantiria a liberdade de cada um sem prejuízo da possibilidade de conciliação e concordância em função da necessidade do ser em comum. Portanto, não seria por causa da fé, da Providência e em nome da presciência divina que se colocaria em dúvida a liberdade humana. Pelo contrário, a religiosidade cristã, fundada na idéia do ser infinito e independente, constituiu-se, em Magalhães, no ponto de partida mesmo de toda a argumentação em favor da liberdade humana como expressão de esforço, conquista e civilidade:

"A glória do espírito humano consiste em conhecer por seus próprios esforços as leis das relações das coisas finitas, e distingui-las do que é real e infinito, que ele sabe existir em uma só realidade única, indivisível e eterna, a que se eleva, partindo da percepção das coisas sensíveis, que ele, por assim dizer, desmascara, para vê-las como elas são, e o que são. E isso se deve à aplicação voluntária da sua faculdade de saber."(Idem: 216)

Quem nega a liberdade humana cai em uma contradição manifesta; porque, negando-a, prova que sabe o que é liberdade; que quis, e deixou de querer alguma coisa em oposição a outra; que fez esforços para resistir; que pensou sobre os meios de subtrair-se à necessidade (...) e que só deixou de executar o que livremente quis, porque a execução depende de de coisas estranhas à sua livre vontade. Se esse poder de efetuar fosse tanto como o de querer, imagine-se que ordem haveria neste mundo! Aniquilada estaria a espécie humana, ou seria a terra um verdadeiro vale de lágrimas. A liberdade de muitos só era possível com algum elemento fatal, que as reunisse, e as harmonizasse." (Idem: 266)3.2 Tobias BarretoAssim como Gonçalves de Magalhães foi o responsável pela inserção do pensamento brasileiro nos quadros do racionalismo espiritualista francês (Descartes, Malebranche, Maine de Biran, Cousin), Tobias Barreto de Menezes (1839, Campos, no interior de Sergipe – 1889, Recife) introduziu o pensamento brasileiro na filosofia do neokantismo alemão (Dilthey, Windelband, Rickert, Eduard von Hartmann), tendo sido ele o primeiro no Brasil a estudar Kant no original.

Formado pela Faculdade de Direito do Recife, onde tornou-se professor a partir de 1882, Tobias Barreto, preocupado em defender uma concepção do direito como ciência, mas sem prejuízo da especificidade das ciências sociais e humanas, foi levado a pensar o princípio kantiano de relatividade do saber, no que consolidou a modernização do pensamento brasileiro iniciada por Gonçalves de Magalhães.

Contrariamente a este, porém, sua atitude ficou marcada pela inconciliabilidade em relação à tradição. Neste sentido, refutou o espiritualismo de Magalhães, classificando-o de tradicionalista. Ao exercer essa função crítica relativamente à própria tradição filosófica, credenciou-se como o fundador da historiografia filosófica brasileira, pois soube reconhecer, em sua análise de Fatos do espírito humano, que o autor “em nome da civilização e do progresso, [tentou] naturalizar entre nós a filosofia, conceder-lhe direito de cidade; porquanto não havia, antes dele, como não há ainda a par dele, obra digna de atenção” (BARRETO, 1990: 83).

Seja pelo vigor com que procurou incutir o sentido da modernização a partir de uma intuição científica do direito, seja pela originalidade com que pensou a cultura por oposição à natureza, e combateu o determinismo no âmbito de uma distinção entre ciências da natureza e ciências do espírito (ou da cultura), Tobias Barreto exerceu notável influência sobre figuras destacadas da história da cultura brasileira nas últimas décadas do século XIX, cujo centro de referência foi, sem dúvida alguma, a renovação de idéias por ele promovida em seu magistério na Escola de Direito do Recife.

Do ponto de vista dessa renovação de idéias, Sílvio Romero, seu mais importante sequaz, chamou a atenção para a geração, entre 1884 e 1889, de todo um grupo de intelectuais formados nesse novo horizonte, fato este que posteriormente se julgou, sem razão, suficiente para caracterizar a “Escola do Recife” como corrente filosófica. 

3.2.1 combate ao cientificismo: natureza e cultura 
Contrariamente a Gonçalves de Magalhães, cuja doutrina da conciliação vai ao encontro da natureza, Tobias Barreto propõe uma doutrina da cultura como antítese da natureza. O que muda em torno à idéia de natureza? Para Magalhães, a natureza é algo que precisa ser alcançado em sua inteligibilidade segundo suas próprias leis, mas sem prejuízo da “lei de Deus”. Para Tobias, a natureza passa a ser considerada na dimensão ontológica de modo originário do ser, correspondendo, no ser humano, à concepção moderna do lupus hobbesiano, cuja essência é a irregularidade, que se contrapõe à regularidade da lei, da regra e da norma; é a ferocidade, que se contrapõe à civilidade; é a falta de limites, que se contrapõe à moralidade:

"O estado originário das coisas, o estado em que elas se acham depois do seu nascimento, enquanto uma força estranha, a força espiritual do homem, como a sua inteligência e a sua vontade, não influi sobre elas, e não as modifica - esse estado se designa pelo nome geral de natureza. (BARRETO, 1990: 247)

A moral, como o direito, é um sistema de regras. Toda regra é uma limitação; o que fica de fora, ou sai desses limites, é o irregular, o imoral por conseguinte. Mas os limites da moral, ou sejam traçados pelo indivíduo mesmo, ou pela sociedade a que ele pertence, são sempre posteriores a um estado de ilimitação e irregularidade, que no todo, ou em parte, é o primitivo estado natural. Logo, o seguir a natureza, em vez de ser o fundamento da moral, pelo contrário, é a fonte última de toda imoralidade." (Idem: 305)

Em Tobias, portanto, já não se tratava de considerar as condições de singularidade e universalidade da existência humana como “o grande problema da conciliação do livre-arbítrio e da presciência divina, tão discutido pelos maiores teólogos e filósofos cristãos”, conforme Magalhães, mas de considerar a liberdade perante uma concepção mecânica da natureza que predominou desde a Revolução Científica até ao século XIX. O que houve, de Magalhães a Tobias, foi desbastar-se um velho problema de seu conteúdo religioso, sem prejuízo das preocupações de caráter moral:

"Já uma vez declarei (...) que não estava longe de crer serem as leis da liberdade as mesmas leis da natureza; e permaneço nesta opinião. Mas importa não confundir coisas distintas. Dizer que a liberdade tem leis não é negá-la, e bem assim afirmar que essas leis são as mesmas da natureza, não é reduzir o processo da vida moral à pura mecânica dos átomos, a ações e reações químicas." (Idem: 294)

Em sua versão moderna, o problema filosófico quanto ao desafio de conciliar a necessidade de leis universais e a liberdade humana remonta à aporia cartesiana referente ao fato de que, por um lado, o poder da vontade (i) não se determina pela necessidade inerente à corporeidade, a ponto de sermos capazes de agir de maneira que “não sentimos absolutamente que alguma força exterior nos obrigue a tanto” (Meditação Quarta, 9), e, por outro lado, esse mesmo poder da vontade (ii) se determina pela necessidade de concordância sempre que há “uma grande clareza (...) no meu entendimento” (Meditação Quarta, 11). Eis, portanto, a questão que, de um modo geral, se apresentou - As nossas ações são ou não são determinadas pela necessidade?

Preocupado em refutar a aplicação do modelo de explicação das ciências naturais ao comportamento humano, conforme a sociologia proposta por Comte como “física social”, Tobias Barreto procura ir ao âmago da questão e se propõe falar da questão do determinismo, que, na história da filosofia moderna, distinguiu primeiramente o nome de Hume, cuja tese nesse sentido não deixa dúvidas: para Hume, a evidência natural e a evidência moral são da mesma natureza e derivam dos mesmos princípios. Ora, sendo essa “mesma natureza” o método indutivo, baseado na observação empírica, é compreensível que Tobias refira-se à “escola de Hume” para incluir todos aqueles que, rejeitando o dogma da explicação causal, passaram a considerar os princípios que regem o comportamento humano, quer psíquico quer social, como sendo os mesmos que regem a mecânica a que se reduzem as explicações dos fenômenos naturais:

"É digno de nota: os modernos contraditores da liberdade, os que pretendem mecanizá-la e destruí-la, filiam-se em geral à escola de Hume. Ora, este filósofo, como é sabido, contestava que a idéia de causa fosse mais que um resultado do hábito de ver certos fatos sempre juntos, pelo qual chegamos a crer na união necessária desses mesmos fatos; mas essa crença não tem realidade objetiva! Já se vê que, sendo assim, ao menos para os deterministas sectários de Hume, a causalidade e a liberdade duas grandes ilusões metafísicas, não há justiça nem lógica em submeter a liberdade à causalidade, em sacrificar uma ilusão a outra." (Idem: 298).

Sustentando que a liberdade é um fato de consciência, Tobias opõe-se radicalmente a Hume no tanto quanto este define a liberdade como fato empírico, a saber: que a liberdade incondicional encontra-se em todo o homem que não esteja prisioneiro ou acorrentado. Mas o que significa, em Tobias, dizer que a liberdade é um fato de consciência? Significa que a dimensão da liberdade não é a mesma da mecânica inerente às ciências da natureza, porque mesmo naquele estado, assinalado por Descartes, em que o poder da vontade se determina pela necessidade de concordância e depende do entendimento, não se pode provar que tal dependência seja mecânica:

"Os filósofos costumam distinguir no conceito da liberdade dois momentos diversos: o momento empírico e o momento racional, ou a liberdade de poder e a liberdade de querer. A liberdade empírica é um fato de consciência; para reconhecê-lo não há mister de tomar o partido de um espiritualismo fantástico e impossível. Que o homem pode o que quer é uma verdade experimental (...) Se, porém, o que ele quer é sempre o resultado necessário da sua organização, é um ponto este que, sendo admitido, como aliás o admito, não traz todavia luz alguma para a solução do problema; porquanto, nem destrói o fato da liberdade empírica, objeto de observação imediata, nem deixa esclarecido que a dependência, em que o homem se acha, da sua organização seja realmente de natureza mecânica." (Idem: 294-295)

A liberdade que não se confunde com indiferença tem, para Tobias, uma dimensão própria e não depende da experiência. Mas é justamente esse poder da vontade de agir independentemente de causas externas que se constitui, para além das necessidades materiais da vida, no fundamento das experiências ética e estética, no fundamento da vida propriamente humana, no fundamento da cultura. Assim considerada, a liberdade tem um caráter transcendental, no mesmo sentido em que os conhecimentos a priori servem de fundamento à verdade experimental: 

"quando o homem inteligente e ativo põe a mão em um objeto do mundo externo, para adaptá-lo a uma idéia superior, muda-se o estado desse objeto, e ele deixa de ser simples natureza (...) A cultura é, pois, a antítese da natureza, no tanto quanto ela importa uma mudança do natural, no intuito de fazê-lo belo e bom." (Idem: 247)

Mas acreditar que sejam as “leis” da liberdade as mesmas leis da natureza, como afirma Tobias, não é, de alguma maneira, por-se de acordo com Hume? Antes de responder, cabem aqui parênteses, na medida em que só mais tarde, em Farias Brito, cuidarei desta questão de maneira produtiva, e não meramente descritiva. Trata-se de assinalar a tentativa de Tobias Barreto de conferir rigor científico à sua concepção de que “a cultura é a antítese da natureza” sob a égide da filosofia naturalista de Haeckel. Respodendo agora à questão: não, na medida em que, para Tobias, “A liberdade humana é um fato da ordem natural, que tem a sua lei [ou necessidade], porém não se deixa explicar mecanicamente” (idem: 294). Em outras palavras: se e na medida em que a liberdade é um fato de consciência, ela não está submetida à necessidade inerente ao mecanismo que determina os fatos da natureza, mas está submetida à necessidade inerente à causalidade que rege os fatos do espírito humano, como diria Magalhães, ou de consciência, a saber - a causalidade final. Neste sentido, o simples fato de o ser humano civilizado reconhecer a necessidade de leis universais e aprender a comportar-se de acordo com regras e normas não implica a supressão da liberdade, desde que ele seja movido a comportar-se dessa forma pelo fim visado enquanto querido:

"Quer o homem seja, conforme a velha definição, um animal racional, um animal que pensa, quer se chame um animal que faz trocas, ou um animal que reza, ou (...) um animal que cozinha (...) o certo é que cada uma dessas definições indica alguma coisa de contrário e superior à pura animalidade, marcando assim um momento da evolução cultural do mesmo homem. Mas nenhuma delas envolve o verdadeiro característico do ente humano, que todas aliás pressupõem, com exceção talvez da primeira, por isso mesmo a menos aceitável, isto é, nenhuma delas envolve a capacidade de conceber um fim e dirigir para ele as próprias ações, sujeitando-as destarte a uma norma de proceder." (Idem: 307)

O que seria, portanto, a liberdade, em vista do fim que se quer alcançar, senão “uma conquista, um hábito ou um jeito, que o homem adquire, de dirigir seus atos para um alvo real ou ideal, por ele prefigurado” (idem: 310), de modo que se possa conceber “graus de aperfeiçoamento” (ibidem) e, em conseqüência, concluir que ela pode “melhor definir-se como uma facilidade, disciplinar e artisticamente adquirida” (ibidem)?

Esta definição coincide, no geral, com aquela de Descartes em carta a Mesland.[17] Entretanto, deve destacar-se na definição de Tobias o caráter transcendental da liberdade como condição de possibilidade da experiência, o que o situa claramente no campo da influência de Kant. Desse ponto de vista, a liberdade é uma facilidade adquirida que está “quase sempre em oposição ao pendor da natureza, da mesma forma que se pode adquirir o hábito de nadar contra as correntes” (ibidem), o que está em sintonia com a definição kantiana. Observe-se também que o objeto visado na ação livre é um objeto não necessariamente existente, mas intencional, uma vez que se trata de “alvo real ou ideal (...) prefigurado” (ibidem). Esta última observação é importante para entendermos os posteriores desdobramentos do pensamento de Farias Brito, que segue o mesmo caminho aberto por Tobias na crítica à aplicação do modelo de explicação das ciências da natureza às ciências do comportamento humano, particularmente à psicologia:

"Não basta reconhecer e alegar a existência dos fatos internos (...) Eles fazem arte da vida: eles são a vida mesma (...) Eu já o disse: o defeito capital da psicologia, como ciência de observação, é a falta absoluta de dados para se formarem exatas e profundas previsões (...) Não canso de repeti-lo: a ciência do eu implica contradição. Abstraído da pessoa, e do caráter que a constitui, o eu é coisa nenhuma, nada significa." (Idem: 138-153)

Foi a necessidade de uma compreensão ontológica quanto à diferença entre os objetos da cultura e os objetos da natureza que levou Tobias a estudar a “revolução copernicana” de Kant. Do ponto de vista da trajetória de seu pensamento, vemos porque o seu estudo sobre a teoria kantiana da relatividade do conhecimento, essencial à compreensão da filosofia moderna, só vai aparecer depois que ele apresenta sua “nova intuição do direito” como objeto cultural por oposição aos objetos naturais (idem: 228-256), quando introduz a idéia de que o belo e o bom são valores relativos e não absolutos. 

3.3 Farias Brito 
Raimundo de Farias Brito (1862, São Benedito, interior do Ceará – 1917, Rio de Janeiro) constitui-se num caso sui generis de reconhecimento da filosofia brasileira. Por ocasião do IV Congresso Nacional de Filosofia, promovido pelo Instituto Brasileiro de Filosofia, e dedicado ao primeiro centenário do seu nascimento, o norte-americano Fred Gillette Sturm, doutor em filosofia pela Universidade de Columbia, apresentou uma surpreendente tese sobre “os motivos existencialistas no pensamento de Farias Brito”, além de assinalar um desenvolvimento paralelo entre a metodologia do filósofo brasileiro e a fenomenologia de Edmund Husserl. Consciente de que o filósofo brasileiro jamais tivera notícia do pensamento de Husserl, Fred Gillette soube distinguir em Farias Brito, além do vigor e da profundidade de pensamento, uma originalidade que até então nenhum brasileiro soubera reconhecer.

Pouco estudado em vida, o pensamento de Farias Brito ficou marcado, logo após a sua morte, pelo interesse despertado junto ao movimento de renovação católica das primeiras décadas do século XX, numa época em que o aristotelismo português se encontra definitivamente superado e o Brasil se empenha numa consciência crítica da própria formação social. É uma época de refluxo da meditação metafísica. É a época de uma safra de livros que inclui Os sertões (1902), de Euclides da Cunha, Casa-grande & senzala (1933), de Gilberto Freyre, e Raízes do Brasil (1936), de Sérgio Buarque de Holanda. É a época do Modernismo (1922-1945) que, enquanto revolução estética e psicológica remonta, ao mesmo cientificismo que se opôs ao romantismo decadente, aos excessos do espiritualismo e ajudou a solapar as bases da monarquia.

Influenciado pela atitude teórica de Tobias Barreto, cujo magistério na Escola de Direito do Recife foi decisivo em sua formação intelectual, Farias Brito iniciou sua obra filosófica pelo exame crítico das teses do então famoso mestre do Recife. Disto resultou Finalidade do mundo (1895-1905, 03 vols.), o mais completo estudo de filosofia moderna realizado até então, que o levou a defender a necessidade de uma nova ciência do espírito que desse conta não apenas do sujeito “psicológico”, como a psicologia “científica” ou “experimental”, mas que fosse capaz de fundamentar o objeto de conhecimento científico e servir de método para a investigação metafísica.

Em sua visão crítica da psicologia, ele foi beneficiado, tanto quanto Husserl, pela leitura de The principles of psychology (1890), de William James, quando este assinala o caráter provisório da psicologia oitocentista. Eis aqui um ponto de convergência inicial para o estudo comparativo entre a metodologia de Farias Brito e a de Husserl.

Observe-se que, embora jamais tenha feito qualquer referência a Gonçalves de Magalhães, Farias Brito se manteve na mesma perspectiva metodológica do autor de Fatos do espírito humano, isto é, de uma compreensão da realidade das coisas e do mundo e da vida fundada no âmbito da consciência e por meio do método psicológico. 

3.3.1 a introspecção como método filosófico
A indexação da filosofia de Farias Brito ao existencialismo e à fenomenologia de Husserl, muito apropriada à qualificação de um precursor, por si só seria suficiente para salvar do limbo da cultura ocidental a obra de um homem cujo “pecado original” foi não ter nascido na Europa. Mas Fred Gillette Sturm não se restringiu à indexação, como se isso pudesse prejudicar a visão do brasileiro em sua originalidade. Ele soube distinguir no autor cearense uma problemática que nenhum brasileiro reconhecera, pois, até então, a historiografia filosófica brasileira praticamente definira Farias Brito como um metafísico alheio à realidade cultural brasileira, atribuindo-lhe, quando muito, o crédito de ter aprofundado o estudo da filosofia moderna, nos três volumes de Finalidade do mundo, a partir das teses de Tobias Barreto. Este crédito é válido, mas torna-se irrelevante se considerarmos que Farias Brito, beneficiário direto do legado filosófico de Tobias Barreto, esteve mais ligado à língua francesa e ao espiritualismo francês, enquanto leitor atento de Bergson, do que ao germanismo do mestre do Recife. Segundo a opinião de Fred Gillette Sturm, a originalidade de Farias Brito consiste no fato de que ele se transformou no intérprete da crise cultural brasileira oitocentista (que culminou com a abolição da escravatura e a proclamação da república), situando-a no âmbito de uma crise da cultura ocidental que remonta ao Renascimento.

De acordo com esta opinião, a trajetória de Farias Brito para a universalidade da crise da cultura ocidental tem o seu ponto de partida na singularidade de uma crise estética brasileira como forma de experiência crítica. Desse ponto de vista, encontramo-lo entusiasta de uma “reação contra o materialismo e a positividade brutal dos últimos tempos” (BRITO, 1914: 11), opondo-se ao cientificismo e ao ideal estético de “descrever a realidade nua e crua”, considerando excreção “uma escola de poesia chamada científica, como uma espécie de romance - o romance experimental” (idem: 32), e opondo-se também à idéia de uma “filosofia científica, tratando-se aí de uma direção, segundo a qual a filosofia, absorvida pela ciência, perde a sua significação particular e o seu destino próprio” (BRITO, 1912: 26). Em conseqüência de suas opiniões lúcidas, apaixonadas e corajosas, numa época em que o cientificismo carregava a bandeira da modernização, Farias Brito foi saudado ainda em vida como a fonte de inspiração para um movimento nacional de renovação católica, que teve lugar no Rio de janeiro como reação às reformas republicanas que, sob forte influência de algumas idéias positivistas, não apenas laicizaram o ensino, como também suprimiram do ensino oficial a disciplina Filosofia.

Em suma: a originalidade filosófica de Farias Brito vem da realidade cultural brasileira como origem das preocupações e inquietações que fizeram com que ele, em vista da mudança essencial na maneira moderna de pensar, conforme a “revolução copernicana” de Kant, se pusesse a investigar acerca da necessidade de um novo conceito de filosofia que, por um lado, não se reduzisse ao domínio da explicação científico-natural, e, por outro, não prescindisse daquela exigência de rigor intrínseca ao método das ciências da natureza. Neste sentido, considerou necessário “distinguir duas espécies de filosofia: uma filosofia pré-científica - é a atividade mesma do espírito elaborando o conhecimento, o espírito mesmo investigando o desconhecido e produzindo as ciências; e uma filosofia supercientífica - é o espírito partindo das ciências e procurando dar a interpretação do verdadeiro sentido da existência, ou lançar as bases de uma concepção do Universo. É neste último sentido precisamente que a filosofia se chama metafísica, filosofia primeira, ou simplesmente filosofia” (BRITO, 1914: 33). Isto quer dizer: o advento da Revolução Científica não significou desprestígio para a filosofia nem descrédito para qualquer pretensão metafísica. Pelo contrário, se a ciência tornou-se condição da filosofia, isto deve entender-se no sentido de que, para Farias Brito, a filosofia se impõe no limite da explicação científica, a exemplo de sua metáfora da montanha:

"É como se alguém subisse a uma montanha para daí lançar uma vista sobre o mundo. Ao chegar no ponto culminante, teria de verificar que tudo está por fazer, porque o mistério cresce à proporção que os horizontes se afastam (...) a montanha é a ciência e esta vai sempre tomando maiores proporções. A filosofia é a intuição que se forma do mundo, partindo do alto da montanha da ciência (...) Compreende-se assim como é que a ciência, que é um produto da filosofia, por sua vez, se faz condição da filosofia, e deste modo se torna fator essencial na obra do pensamento." (BRITO, 1912: 61)

Que significa, então, a idéia de que a ciência, enquanto fato histórico do século XVII, é um produto da filosofia enquanto atividade permanente do espírito? Significa, do ponto de vista teórico, que a vontade consciente de ciência estrita dominou já a revolução socrático-platônica em filosofia, tanto quanto dominou a reação científica contra a escolástica no limiar dos tempos modernos, especialmente a revolução cartesiana. Significa, do ponto de vista prático, que essa vontade consciente se reveste de condicionalismos que supõem diferentes formas de autoconsciência nas diferentes épocas da história da filosofia, desde a filosofia antiga à filosofia moderna, passando pela filosofia medieval, e, por isso mesmo, passando pela conversão religiosa como forma de autoconsciência, a exemplo de Santo Agostinho, no domínio da cultura ocidental, e do Padre Antônio Veira, no domínio da cultura brasileira. Tal compreensão é evidente em Farias Brito, quando, contrariamente ao entendimento daqueles que viam na religiosidade um obstáculo à modernização, julga não haver conflito ou antagonismo entre ciência e religião:

"A religião não é ciência, mas governo (...) todo o conflito ou antagonismo que se supõe existir entre a ciência e a religião, é simplesmente o resultado de um equívoco, não sendo permitido comparar a religião e a ciência como se fossem duas modalidades ou formas distintas do conhecimento, porque a religião deriva, sim, do conhecimento, mas é forma, não do conhecimento, mas da ação. Mas esse governo ou ação em que se resolve a religião, supõe como condição essencial uma intuição da vida e uma interpretação da realidade, numa palavra, uma concepção do mundo; o que significa que a religião não é ciência, mas tem por fundamento a ciência; não a ciência da matéria, destinada a (...) estabelecer o domínio do homem sobre a natureza; mas a ciência do espírito ou a filosofia moral, destinada a orientar-nos na vida e a estabelecer o domínio do homem sobre si mesmo (...) A religião é, pois, a própria filosofia, passando da ordem teórica para a ordem prática, saindo, como doutrina, da consciência do sábio, para dominar como lei ou como fé na consciência das multidões." (BRITO, 1914: 105-107)

Ora, não há dúvida de que o método psicológico, tendo a sua origem no “Conhece-te a ti mesmo” socrático, conduz à descoberta do espírito como atividade independente e incessante. Toda a filosofia consiste, pois, historicamente falando, no movimento de autoconsciência do espírito enquanto “a energia que sente e conhece, e se manifesta, em nós mesmos, como consciência (...) um princípio vivo de ação, essa força criadora (...) é também fato que resiste a toda a dúvida (...) O espírito é, pois, o princípio dos princípios e a verdade das verdades, o fundamento de toda a realidade e a base de todo o conhecimento” (BRITO, 1914: 18-21), princípio esse que carece de uma ciência própria, mas uma ciência que não se confunda, observa Farias Brito, com a dos filósofos e psicólogos “naturalistas” que, usuários do método das ciências da natureza, ingenuamente procuravam “localizar o que é independente do espaço e não se pode conceber como corpo, traduzir na linguagem dos fatos objetivos o que só se pode explicar e compreender como modificação puramente interna, como fato subjetivo, numa palavra: objetivar a consciência” (idem: 10). Tal ingenuidade não fora evidente para Tobias Barreto, que afinal de contas tentou conciliar sua concepção teleológica da cultura com a filosofia naturalista de Haeckel; mas foi evidente para Husserl, que, simultaneamente a Farias Brito, denunciou a atitude naturalista, referindo-se à “naturalização da consciência”,[18] e o objetivismo dela decorrente.

Resumindo: a ingenuidade dos naturalistas implica um sentido pobre da natureza que, para Farias Brito, remonta à própria origem da filosofia, na medida em que “os filósofos da escola jônica eram físicos e como físicos, era por ação das forças mesmas da natureza que procuravam explicar, não somente os elementos exteriores (...) como ao mesmo tempo o pensamento e a vida” (BRITO, 1914: 33-34), enquanto que os eleatas, que, para além da realidade externa, concebiam uma uma realidade interna, “eram psicólogos, e era assim pelo espírito que explicavam toda a realidade (...) E é esta a tradição a que se ligam Sócrates, Platão, Aristóteles e todo o sistema espiritualista” (BRITO, 1914: 33-34). No mesmo sentido, Husserl refere-se ao sentido mais rico da physis grega, explicando que a natureza, para os gregos, não é a natureza no sentido científico-natural, pelo contrário, os antigos gregos consideravam como natureza o que tinham presente como o mundo circundante, isto é, sua concepção subjetiva do mundo, com todas as realidades para eles vigentes neste mundo: os deuses, os demônios, etc. (HUSSERL, 1965: 149-192).

O problema básico no pensamento britiano é a fundamentação da realidade histórica com base numa compreensão científica do espírito humano. Ele vê como necessário “distinguir duas espécies de domínio: o domínio do homem sobre a natureza e o domínio do homem sobre si mesmo. O primeiro alcança-se pelas ciências da matéria; o segundo, pela ciência do espírito ou pela psicologia. Mas se um destes dois domínios deve ter preponderância sobre o outro, decerto é ao domínio do homem sobre si mesmo [ao domínio da moralidade] que cabe este privilégio, pois é daí que dependem a disciplina e a ordem, e tais são as condições essenciais e fundamentais de todo o progresso” (BRITO, 1914: 24). Daí a importância que ele atribui à necessidade de uma ciência do espírito, de uma “psicologia”, que, neste caso, não se confunde com a “psicologia científica” ou “psicologia experimental” que se conhece a partir do primeiro laboratório de Wundt (1879). Farias Brito propõe, então, a idéia de uma psicologia transcendente:

"entende-se por transcendente o que fica em esfera superior à experiência e não pode ser atingido pela experiência. É o termo oposto a imanente, entendendo-se por imanente, em sua significação precisa, exatamente o que fica dentro dos limites da experiência e pode, por conseguinte, ser explicado pela experiência e de conformidade com os métodos da experiência (...) Neste sentido, transcendente significa alguma coisa de superior, de estranho à ordem natural da existência, de inacessível às vias ordinárias do conhecimento." (BRITO, 1912: 71-72)

É neste sentido que Farias Brito diz que a filosofia supercientífica também se chama metafísica, porque não depende da razão especulativa e se estende para além dos limites da sensibilidade. Sendo assim, pode acrescentar-se que embora ele a denominasse psicologia “transcendente”, essa psicologia é efetivamente transcendental, na medida em que não depende da experiência mas serve-lhe de fundamento. Isto fica muito claro quando ele, preocupado com a hipótese de ser mal interpretado, esclarece que seu uso de ‘transcendente’ não significa de modo algum que estivesse propondo abstrair a experiência para estudar a consciência, o que, em última instância, consistiria na prática do assim chamado ontologismo:

"E, cogitando-se aqui da idéia de uma psicologia transcendente, é natural que se venha a imaginar tratar-se de algum trabalho meramente fantástico, feito fora dos processos regulares do raciocínio, sem consultar os critérios da lógica, nem respeitar a experiência (...) Tratando-se, pois, do que chamo psicologia transcendente, ninguém suponha que eu, por ventura, pretenda ultrapassar a esfera da experiência comum, para entrar, como em visão de profeta ou fantasia de visionário, na região fantástica do sonho e da quimera." (Idem: 72-73)

Farias Brito fala da necessidade de uma ciência do espírito que não se limita ao domínio da explicação científico-natural, mas que nem por isso exclui a natureza. Esta idéia parece clara a Farias Brito, quando ele, referindo-se à morte enquanto expressão mais transparente do determinismo da natureza, observa que o desenlace com a vida do espírito é, do ponto de vista científico-natural, inteiramente certo, mecânico, previsível; mas, do ponto de vista psíquico, “o desenlace final desse drama (...) em que se resolve a vida de cada organismo (...) todavia fica sempre envolvido no mistério quanto às condições em que terá de realizar-se (...) o que prova que na própria morte, que por isto mesmo está em ligação imediata com a vida do espírito, existe um certo grau de liberdade” (BRITO, 1914: 29).

Há, portanto, o sentido psíquico da morte e da vida que não se confunde com o sentido fisiológico. Neste sentido, a natureza é criação: “A liberdade - eis realmente o fato decisivo que marca a separação absoluta entre o espírito e a matéria (...) Bergson deu como símbolo de sua concepção da vida esta fórmula eloquente - Evolução criadora (...) realmente viver é criar. Mas é preciso, além disto, reconhecer que criar é ser livre” (ibidem). O mesmo se verifica em Husserl que, contrariamente a uma concepção mecânica da vida, se propôs desenvolver a idéia histórico-filosófica (ou o sentido teleológico) da humanidade européia (ibidem). Isto quer dizer: para Farias Brito, a palavra ‘vida’ não tem sentido fisiológico; significa atividades e relações em conformidade a fins que criam formas espirituais; atividades e relações que instauram a cultura no sentido mais amplo de uma unidade histórica.

Assim sendo, uma coisa é reconhecer a necessidade de leis puramente racionais que caracterizam o conhecimento científico da natureza; outra, explicar a natureza no seu sentido mais amplo por essas mesmas leis. Neste ponto, Farias Brito uma vez mais vai ao encontro de Husserl, quando este pergunta se ”não é um absurdo e não constitui um círculo querer explicar de um modo científico-natural o acontecimento histórico que é a “ciência da natureza”, explicar este acontecimento mediante a ciência da natureza e suas leis naturais que, enquanto criação espiritual, pertencem, elas mesmas, ao problema?” (ibidem).

Farias Brito reconheceu a necessidade de leis invariáveis no homem, mas apenas como “abstrações em nós”, como referência lógicas para a interpretação da realidade, e não como as leis do mundo da vida humana, que são fatos do espírito humano, como diria Gonçalves de Magalhães. Ora, como estas leis têm a sua origem no espírito e nele mesmo se verificam mediante o método introspectivo, a exemplo das leis morais, fica claro que esta seria a via pela qual se explica o uso de ‘transcendente’ em Farias Brito para significar um objeto verdadeiro, eventualmente exterior, de uma representação, conforme o uso de Husserl para a mesma palavra. Eis a explicação de Farias Brito:

"somos consciências e é neste caráter que formamos o mundo ético-psíquico e este tem também suas leis; mas são leis morais, não leis materiais: o que quer dizer que como consciências, somos nós mesmos que estabelecemos as leis que nos regem. Estas são as leis éticas ou morais, e ligam-se ao espírito mesmo, à existência verdadeira; e são, por isto mesmo, leis reais e concretas, leis que exercem ação como forças. As leis naturais, ao contrário, são simples abstrações em nós, da ordem dos fenômenos. As primeiras são fatos; as segundas são apenas processos lógicos para interpretação da realidade." (BRITO, 1914: 476-477)

Do reconhecimento do sentido psíquico da vida, para além do fisiológico, resultou o motivo existencialista na visão britiana da atividade de filósofo no mundo moderno, quando ele fala do “esforço pela interpretação do verdadeiro sentido da existência” (BRITO, 1966: 404). Trata-se da consciência do ser-situado, do modo do ser no mundo entre a idéia de Deus e o nada em sua imperfeição, numa eterna luta contra o erro, caminhando no escuro entre abismos, sem o auxílio de guia, sem contar com o benefício da luz, senão da própria razão vacilante, trabalhando incessantemente para corrigir-se, sem jamais aspirar à posse da verdade:

"Indagando do sentido e valor do mistério que representamos, sou como um cego que tateia nas trevas: nenhum clarão se acende no alto, nenhuma luz se manifesta exteriormente para guiar-me na escuridão que me cerca. É por isto talvez que apenas proponho questões e nada resolvo, guiado unicamente pela luz sempre vacilante e incerta da razão. Um esforço, um esforço doloroso e triste - eis em verdade o que tem sido em mim o trabalho do espírito. E conquanto já bem longo seja o caminho percorrido, o certo é que ainda não fui, quanto à posse da verdade, além do ponto de partida (...) E comecei interrogando e é interrogando que termino. E sobre os grandes problemas que são o objetivo próprio do pensamento e têm até aqui constituído o trabalho dos séculos e da história, comecei fazendo conjeturas e continuo ainda sinplesmente fazendo conjeturas. Interrogo, interrogo sempre. E nenhuma voz me responde, permanecendo sempre impassível e muda a natureza." (BRITO, 1966: 402-403) 

Conclusão 
O estudo do aristotelismo português é imprescindível à noção de filosofia brasileira. Sem prejuízo do conceito de aristotelismo, que remonta à filosofia medieval, particularmente à escolástica, o aristotelismo português quinhentista constitui-se numa tradição filosófica exclusiva dentro da qual a filosofia brasileira nasceu. Além do interesse específico na história do aristotelismo, e do interesse genérico na história da filosofia ocidental, por causa de sua posição crucial entre aristotélicos e antiaristotélicos no limiar da filosofia moderna, o aristotelismo português também desperta interesse em virtude dos Conimbricenses, especialmente pelo valor permanente da obra de Pedro da Fonseca.

Não obstante o seu caráter relativo, a filosofia luso-brasileira é o passado no modo do ser brasileiro, sendo Antônio Vieira o seu representante máximo. Enquanto autor religioso, Vieira, é bem verdade, não questionou o dogmatismo escolástico do ensino filosófico sob a Ratio Studiorum. Entretanto, enquanto autor estético, ele foi levado a pensar a conversão como problema em função da consciência de si, de modo a despertar no indivíduo, valendo-se da arte da dialética, o homem moral. Suas reflexões sobre a necessidade da consciência de si, uma vez consideradas em relação com o sentido da conversão na filosofia cristã, e em paralelo com o cogito cartesiano, constituem-se numa abertura para a idéia de historicidade da filosofia como atividade do espírito, e da própria da filosofia moderna como um fato histórico. Desse ponto de vista, a obra de Vieira adquire, para além do seu sempre renovado interesse literário, uma significação filosófica decisiva à idéia de nascimento da filosofia brasileira no século XIX.

Mais do que qualquer outro que o tenha antecedido, incluindo-se o Frei Francisco do Mont’Alverne e o português Silvestre Pinheiro Ferreira, o qual promoveu a inserção da cultura brasileira nos quadros da filosofia moderna mediante o seu curso das Preleções Filosóficas, Gonçalves de Magalhães não só foi o primeiro a pensar a modernização da cultura brasileira como problema filosófico, mas, sobretudo, foi o primeiro a pensar o cogito cartesiano como princípio da consciência de si. Neste sentido, a reflexão filosófica de Gonçalves de Magalhães em Fatos do espírito humano, ressaltando a liberdade como propriedade do modo do ser humano, tem efetivamente um caráter fundador.

Tobias Barreto foi o verdadeiro responsável pela definitiva superação do aristotelismo no Brasil. Ele não só assimilou a dimensão metafísica da “revolução copernicana” de Kant, como chegou a distinguir ontologicamente cultura de natureza em razão de sua forte reação à expansão do espírito positivo no século XIX, o que o levou a consolidar, após Gonçalves de Magalhães, uma posição autônoma do pensamento brasileiro em face da filosofia moderna.

A obra filosófica de Farias Brito significa o coroamento dessa experiência de pensar que representa o nascimento da filosofia brasileira. Seu aprofundamento no estudo da filosofia moderna e a sua proposta de uma psicologia transcendente como método próprio da filosofia, não só incorporam e ampliam as teses apresentadas pelos antecessores, como colocam o pensamento brasileiro na perspectiva do pensamento filosófico contemporâneo no que diz respeito a tematizações de caráter existencial e à fenomenologia como método.

Consequência heurística dessa fase de afirmação da filosofia brasileira em função da consciência de si é o assim chamado culturalismo brasileiro de Miguel Reale. Tendo como ponto de partida a teoria da cultura de Tobias Barreto, Miguel Reale não só chamou a atenção para a necessidade de se pensar o sentido de ‘filosofia brasileira’ em relação à origem portuguesa da formação cultural brasileira, como promoveu a renovação dos estudos historiográficos. Neste aspecto, foi acompanhado principalmente por Luís Washington Vita (1921-1968) e Antônio Paim.

Este modo de ver uma relação originária entre Antônio Vieira, Gonçalves de Magalhães, Tobias Barreto e Farias Brito, como referência básica para a compreensão da ontogênese da consciência no Brasil, estabelece as condições suficientes e necessárias para uma verdadeira história da filosofia brasileira no século XIX que, neste sentido, ainda está por fazer. De qualquer modo, tais condições podem ser aqui enunciadas à maneira de conclusão: (i) visão da necessidade de modernização como o problema da superação do determinismo da própria natureza; (ii) visão da “mudança de princípio” como a assimilação do Cogito cartesiano sem prejuízo da autoconsciência inerente à conversão religiosa; e (iii) visão do aristotelismo português como um ponto de vista exclusivo da cultura de língua portuguesa em que se cruzam, no século XVI, os caminhos das filosofias antiga, medieval e moderna. 

Notas 
[1] Desde então, até à sua expulsão do reino português pelo Marquês de Pombal (1759), a Cia. de Jesus deteve o monopólio do ensino médio. 
[2] O primeiro esboço da Ratio Studiorum é de 1549, ano em que os jesuítas chegaram ao Brasil. O primeiro curso de filosofia no Brasil, para membros da Companhia de Jesus e estudantes externos, foi ministrado na Bahia (cidade do Salvador) pelo Pe. Gonçalo Leite, de 1572 a 1575. 
[3]. As “Regras do Professor de Filosofia” são claras:
1. Fim - Como as artes e as ciências da natureza preparam a inteligência para a teologia e contribuem para a sua perfeita compreensão e aplicação prática, e por si mesmas concorrem para o mesmo fim, o professor, procurando sinceramente em todas as coisas a honra e a glória de Deus, trate-as com a diligência devida, de modo que prepare os seus alunos, sobretudo os nossos, para a teologia e acima de tudo os estimule ao conhecimento do Criador.
2. Como seguir Aristóteles - Em questões de alguma importância não se afaste de Aristóteles, a menos que se trate de doutrina oposta à unanimemente recebida pelas escolas, ou, mais ainda, em contradição com a verdadeira fé [...].
 

[4]. Tudo que Aristóteles disse é falseado (commentitia esse) e não “é falso”, como em geral se traduz. 
[5]. Usaremos Conimbricenses para designar o conjunto destes livros, inclusive os de Pedro da Fonseca. 
[6]. Em geral, os Conimbricenses são lembrados apenas por sua contribuição pedagógica, distorcendo-se o sentido de sua contribuição filosófica. Em Pedro da Fonseca, por exemplo, importa ressaltar que os seus “Comentários à Metafísica de Aristóteles apresenta-se-nos com quatro níveis ou componentes principais: (1) estabelecimento do texto grego [...]; (2) versão latina deste texto; (3) explicação do texto aristotélico; (4) finalmente, as “quaestiones” onde já não está em causa, primariamente, uma reprodução fiel do texto do Estagirita ou do sentido do seu texto, mas antes a discussão da própria temática da metafísica. 
[7]. Teria sido efetivamente o autor de uma rebuscada Scientia libri de anima, inspirada no De anima de Avicena, e de um Liber de morte et vita et de causis longitudinis ac brevitatis vite, sobre um dos temas dos Parva naturalia de Aristóteles. 
[8] Título das obras de caráter biológico de Aristóteles traduzidas para o latim, em 19 livros, por Miguel Escoto (1175-1234). 
[9]. Commentarii Collegii Conimbricensis Societatis Jesu in Octo Libros Physicorum Aristotelis Stagiritae, por Manuel de Góis; Commentarii Collegii Conimbricensis S. I. in Quatuor Libros De Coelo Aristotelis Stagiritae, por Manuel de Góis; Commentarii Collegii Conimbricensis S. I. in Libros Meteororum Aristotelis Stagiritae, por Manuel de Góis; Commentarii Collegii Conimbricensis S. I. in Libros Aristotelis, qui Parva Naturalia apellantur, por Manuel de Góis; In Libros Ethicorum Aristotelis ad Nicomachum, aliquot Conimbricensis Cursus Disputationes in quibus praecipua quaedam Ethicae Disciplinae capita continentur, por Manuel de Góis; Commentarii Collegii Conimbricensis S. I. in duos Libros De Generatione et Corruptione Aristotelis Stagiritae, por Manuel de Góis; Commentarii Collegii Conimbricensis S. I. in tres Libros De Anima Aristotelis Stagiritae, por Manuel de Góis (incluídos neste volume o Tractatus de Anima Separata, por Baltazar Álvares, e o Tractatio aliquot problematum, ad quinque sensus spectantium, por Cosme de Magalhães); finalmente, os Commentarii Collegii Conimbricensis S. I. in Universam Dialecticam Aristotelis Stagiritae, por Sebastião do Couto. 
[10] Estudos recentes (WALLACE, 1992) levam a crer que o paradigma demonstrativo usado por Galileu para a nova ciência da mecânica, que ele ligou à cosmologia, foi decisivamente influenciado pela apropriação que ele fez de teses centrais dos Segundos analíticos, de Aristóteles, através da mediação de um comentário proveniente do Colégio Romano, fundado pelos jesuítas em 1551. 
[11] A crença messiânica no regresso do Rei D. Sebastião, após a fragorosa derrota na batalha de Alcácer Quibir (1578), da qual resultou um período de domínio da Espanha sobre Portugal (1580-1640), transformou-se, no imaginário político de Vieira, em doutrina da restauração e conservação do reino de Portugal para efeito da implantação de uma nova ordem ecumênica. 
[12]. “Saiu a semear aquele que semeia”. Lc 8, 11. 
[13] Conforme a explicação de Santo Tomás, “O autor da Sagrada Escritura é Deus, em cujo poder está dar significação não só às palavras, o que também o homem pode fazer, mas ainda às próprias coisas. Por isso (...) as coisas mesmas significadas pelas palavras (...) também significam. Ora, a primeira significação, pela qual as palavras significam as coisas, é a do primeiro sentido, que é o histórico ou literal. E a significação pela qual as coisas significadas pelas palavras têm ainda outras significações chama-se sentido espiritual, que se funda no literal e o supõe. Mas este sentido espiritual tem três subdivisões [os sentidos alegórico, moral e anagógico] (...) esses sentidos se multiplicam não por ter uma palavra muitas significações, mas porque as próprias coisas significadas pelas palavras podem ser sinais de outras coisas. Donde o não haver nenhuma confusão na Sagrada Escritura, por se fundarem todos os sentidos em um, o literal, com o qual somente se pode argumentar”. Cf. Summa theologiae I, q. I, a. X.* II Cor 4:16 [Por isso, não desfalecemos; mas, ainda que o nosso homem exterior se corrompa, o interior, contudo, se renova a cada dia.] 
[14] Obviamente, cabe aqui uma referência direta à doutrina da “virtuosa benfeitoria” do Infante D. Pedro (D. PEDRO, 1981: 533). 
[15] Com base na fórmula de medida e repetição, a finalidade do rosário, com sua enfiada de 165 contas, correspondentes a 15 dezenas de ave-marias e 15 padre-nossos, é o ato reflexivo da consciência em termos de con-formação com a “sorte” ou “destino” de cada um, mas, sobretudo, com o sofrimento dos oprimidos. Reduzindo o sofrimento humano, particularmente o do negro escravizado, ao padecimento de Cristo, Vieira entende que pensando no exemplo de Cristo se possa deixar de pensar na própria dor, do que resultaria a libertação da alma. Eis o que diz Vieira: “a perfeição do Rosário consiste em se conformar quem o reza com os mistérios que nele se meditam, gozando-se com os gozosos, doendo-se com os dolorosos, e gloriando-se com os gloriosos (...) Os dolorosos (ouçam-me agora todos), os dolorosos são os que vos pertencem a vós, como os gozosos aos que devendo-vos tratar como irmãos, se chamam vossos senhores (...) sois companheiros de Cristo nos mistérios dolorosos de sua Cruz; assim o sereis nos gloriosos de sua Ressurreição e Ascensão” (Sermão XIV, da série Maria Rosa Mística, VIII). 
[16]. Além do Verdadeiro método de estudar, foram importantes no mesmo sentido as Cartas sobre a educação da mocidade e o Método para estudar a medicina, de Antônio Ribeiro Sanches. 
[17] Carta de 09/02/1645. 
[18] O texto de Husserl A filosofia como ciência estrita, no qual faz a crítica da filosofia naturalista, é de 1911.

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