quarta-feira, 30 de maio de 2012

Dialética das consciências

Vicente Ferreira da Silva

Notas ao fim do texto.


Introdução à problemática das consciências
Qual o orbe próprio em que se acha implantado o nosso ser? Qual a ordem de realidades que nos envolve de maneira mais próxima e imediata? Eis uma questão que se relaciona intimamente com as reflexões que desenvolveremos e cuja solução nos deverá pôr numa perspectiva mais exata do próprio problema.

O naturalismo de todos os tempos imergiu-nos profundamente na physis, nesse contexto infinito da vida telúrica, cercando-nos de uma proximidade de coisas e não de atos. A realidade histórica do homem, esse conjunto de ações e reações em curso interpolar-se-ia, segundo essa perspectiva, num conjunto maior, numa presença absorvente e avassaladora, a dimensão natural ultrapassando a dimensão propriamente humana. A experiência exterior, conferindo-nos informações acerca da realidade existente, dar-nos-ia consciência das coisas naturais e das coisas humanas, indiferentemente.

No transcorrer do pensamento filosófico, foi João Batista Vico quem teve, pela primeira vez, o pressentimento de que o pensamento da realidade social humana e o pensamento intelectualístico-naturalista diferiam fundamentalmente. Para Vico, o termo que fica mais próximo do homem é a linguagem imediata da ação e do drama humano, isto é, toda a série episódica de lutas, grandezas e fragilidades que compõem nossa circunstância existencial. Em seu célebre dito segundo o qual a verdade e a ação se identificam, a verdade sendo considerada como uma forma de autognosis das possibilidades do comportamento humano, Vico prefigura a revolução do pensamento que mais tarde se compendiou na eclosão do pensamento historicista. Dilthey, afirmando que os conceitos das ciências naturais são conceitos derivados, construídos e hipotéticos, em contraposição à verdade da vida e do vivido donde arranca sua hermenêutica histórica, deu uma formulação definitiva à antevisão viquiana.

Interessa-nos por enquanto unicamente anotar esta rotação que subordinou o natural ao histórico, fenômeno este que tem sido ultimamente examinado com grande frequência. Desta mudança de prestígio da sistemática naturalista para a conexão da realidade social-humana, cabe ressaltar o fato de que o homem toma consciência de sua proximidade como proximidade de próximos, isto é, de que a fisionomia a ele contígua é, desde que abre os olhos, uma fisionomia humana e não uma determinação abstrata e natural. Deste deslocamento da tônica filosófica deriva o crescente devotamento da meditação filosófica ao problema da gnosiologia e da experiência do outro. Quando refletimos sobre a importância dos enigmas implicados nesta problemática assombramo-nos de que este círculo de realidades não tivesse despertado há mais tempo o interesse dos homens de pensamento. As figuras capitais que dominam o panorama deste tema são: Fichte, Hegel, e em nossos dias Husserl, Scheler, Heidegger, Gabriel Marcel, Jaspers. Estes grandes espíritos tiveram consciência de que a nossa conexão com os outros homens, de que o vínculo do eu e do tu transcendem o fato da justaposição espacial, da mera interação externa ou mesmo social, erguendo-se ao nível de conexão ontológica do nosso eu. A presença do outro em nossa consciência e de nossa presença na consciência do outro não é algo de incidental ou periférico, mas uma dimensão essencial da condição humana. A esta relação das consciências, a esta movimentada dialética do eu e do tu que se nos apresenta não apenas como uma estrutura do ser humano, mas também como um elemento criador da sua própria realidade, dedicaremos esse trabalho. A interação das consciências, em seu esforço de afirmação e de reconhecimento, é o momento morfogenético essencial do nosso ser. O homem forma-se, educa-se e desenvolve-se num certame de “eus” que constitui a substância original do mundo. Podemos dizer que a pugna do homem com os elementos externos e com os obstáculos da natureza, considerada por alguns pensadores como a tarefa humanizadora por excelência, nada mais é do que o elemento transitivo neste diálogo de homem a homem. É assim que Hans Freyer considera que toda ação formadora e criadora de objetos, toda construtividade externa própria do homem é uma linguagem nesse colóquio autoformador da consciência. Pretendemos encarar este movimento da subjetividade de forma a determinar um conceito que concilie as diversas dialéticas até hoje propostas e que se mostraram parciais e abstratas. O nosso trabalho, portanto, procurará recolher o já feito, indicando uma possível ampliação da problemática proposta. Podemos agora voltar ao problema das condições do clima filosófico que suscitaram o desenvolvimento desta acuidade e deste novo sentido do fenômeno intersubjetivo. Como dissemos acima, a vinda para o primeiro plano da realidade propriamente humana, da realidade como obra espiritual e criadora da história, isto é, a mudança de interesse do simples objeto para as objetivações humanas, determina o pórtico da nova cogitação. É evidente que numa esfera de realidades onde a obra espiritual dos homens, seus anseios, empreendimentos, lutas e todo o ambiente móvel de sua liberdade in fieri ocupa o centro, a inteligência estará pronta a propor-se o problema da conexão e intercurso das consciências. O interesse que as filosofias do ser exterior demonstraram na compreensão do tipo de atuação mútua das forças em jogo transferiu-se para o mundo da interioridade humana, aí procurando seu dinamismo interno. Esta revolução foi acompanhada de uma alteração de ordem lógico-gnosiológica, proveniente da estrutura própria dos objetos visados. As coisas humanas não podem ser captadas pelos processos cognitivos com que são apreendidos os entes naturais. Podemos adotar aqui a distinção estabelecida por Weizsäcker entre a existência ôntica e a existência pática (ontish und pathish Existenz) que tão bem caracterizada a diferença entre os juízos do ser (ist-Aussage) e os juízos existenciais (ich-Aussage). O ôntico é aquilo que cabe no inventário circunstanciado das coisas, o que se deixa apresar, numa classe, o já dado. O pático é o não-ôntico, isto é, o que transcende, exorbita e nega o já dado. Somente entre existências páticas deparamos com fenômenos como o do encontro, pois como diz Weizsäcker: “enquanto os objetos inanimados estão sempre em algum lugar e de qualquer forma relacionados, dos seres vivos diz-se que encontram alguma coisa ou alguém.” (Während die leblosen Gegenstände immer irgendwo sind und sich irgendwie verhalten, kann man bei den Lebenwesen sagen, dass sie etwas oder einander begegnen)[1]. Esse fenômeno tão familiar e no entanto estranho do encontro, que Gabriel Marcel coloca sob a rubrica do mistério, é um dos aspectos mais importantes da problemática das consciências, que abordaremos mais adiante. Um novo sistema de categorias foi elaborado para traduzir este campo de ocorrências que escapavam à grosseira óptica do pensamento científico-natural. Todo o empenho de Dilthey ao querer dar uma fundamentação às ciências do espírito, procurando substituir as “formas explicativas” da investigação naturalista pelo “sentido compreensivo e hermenêutico” dos estudos humanos, é um índice eloquente do anseio de uma nova tábua categorial, que apela para os conceitos do ritmo, desenvolvimento, totalidade, estilo, plenitude, declínio, crise, etc.; como vemos, conceitos de índole musical, temporal e agônica, que aderem admiravelmente à dimensão própria do histórico. Com o primado deste mundo móvel e sempre aberto da ação humana, impôs-se a análise dos pressupostos do seu exercício, pois é evidente que esta ação não se desenvolve no vácuo, não constituindo um atuar imanente em sim e para si, mas pressupondo uma larga série de mediações. A estrutura do comportamento humano tornou-se o tema preferencial da meditação filosófica, não como problema psicológico, mas como atinente ao desempenho metafísico do homem. Tal acepção do problema metafísico primordial devia colocar, como o fez, a mera atualidade da ação, antes das determinações estáticas do ser. O ser manter-se-ia, desta forma, como contínua conservação e reiteração de um mesmo ato. A coisa produzida continuaria perpetuamente ligada ao produzir-se fundador, como queria Vico ao colocar a verdade das coisas em seu próprio fazer-se. Desta forma é óbvio que todos os momentos objetivos se diluiriam no caudal morfogenético que os performou. A “forma” nada mais seria do que um “formar-se”, e este impulso de dar forma, de instituir um contorno e um cenário de vida substituiu a pura contemplação do já formado. O naturalismo, o realismo e todas as outras correntes que davam o primado a um conhecimento das coisas, esquecendo a atividade cognoscente que as havia projetado numa conexão exterior, perderam todo prestígio no campo filosófico. Da díade pessoa-coisa, o acento passou do segundo para o primeiro termo. Portanto, em lugar de o homem estar interpolado num mundo independente do seu modo de ser, seria o mundo que receberia do homem o seu ser. Tudo que se refere, neste clima de pensamento, à estrutura própria do homem, principalmente no que concerne à dialética formadora do eu, cobra um relevo de extraordinária importância. O pensamento filosófico tendo-se desvencilhado, em sua polêmica com o realismo, do preconceito substancialista, evitou desde o início, com Fichte e Hegel, a reintrodução da ideia de substância na estrutura da vida espiritual. Esta precaução foi de grande importância para o assunto que nos preocupa, pois o complexo das relações intersubjetivas foi assim reconhecido em seu puro dinamismo criador. Os interlocutores do diálogo ilimitado das consciências não preexistem em sua identidade própria ao desenrolar-se de suas fases, mas vão tomando corpo e realidade no processo desse diálogo. “Nós somos um diálogo” dissera Hölderlin. A mesma afirmação, encontramo-la na Fenomenologia do espírito, onde Hegel anuncia que somos a luta do mútuo reconhecimento, o afirmar-se e o desenvolver-se desse processo de conhecer no outro a subjetividade que somos. Em nossos dias Sartre chega a conceituar o “por si” como contínua superação do ser-para-o-outro, como superação de nossa queda na esfera das objetividades mundanais. Portanto, o esquema de nossa estrutura ontológica é o de uma relação, de uma referência a um outro eu que, segundo as várias direções do pensamento existencialista moderno, pode ser encarado como ameaça, limite ou confortante proximidade. Esta referência a qualquer coisa que ultrapassa os limites do eu, no encontrar-se com o outro eu, é a condição formal de nossa estrutura, pois a consciência é esta relação, não como relação dada, mas como contínuo relacionar-se. Segundo a expressão feliz de Vedaldi, o homem não tem relações com os outros homens, mas é essa relação. Podemos contrastar esta caracterização do ser humano com a condição magnífica atribuída por Aristóteles ao ser absoluto, que, segundo ele, viveria só e a sós consigo mesmo. Estamos aqui diante de uma existência conclusa, fechada em si mesma, sem resistências a vencer ou obstáculos a transpor e sem qualquer possibilidade a atualizar. Bastando-se plenamente a si mesma, não tem portas ou janelas para qualquer coisa além de si, já que não necessita de pessoas que lhe sejam úteis, nem de amigos, nem da vida em comum. Para tal tipo de ser, a solidão não é uma possibilidade aberta à sua escolha, mas uma qualidade inalterável. Como o sol brilha, tal ser é solitário. Inversamente, o homem, projetando sempre o mundo diante de si e relacionando-se continuamente com esse ser exterior a si mesmo que é o outro, depende da vida em comum, sendo uma criatura dessa comunicação existencial. Os dois conceitos que acabamos de analisar, o conceito de insubstancialidade e da pura atualidade da conexão intersubjetiva e o conceito da referencialidade própria da consciência humana, ligam-se intimamente, representando dois aspectos de um mesmo fato. Se o homem tivesse plena consciência de suas possibilidades, recursos e maneiras de ser, independentemente de sua relação com o outro, esta relação não viria acrescentar qualquer elemento essencial à sua presença solitária. O ente humano preexistiria, como uma substância, à comunicação com o outro. Por outro lado, os possíveis contato e cooperação inter-humanos representariam o mero choque de coisas exteriores e não uma polaridade indissolúvel e constitutiva. A afirmação da pessoa como autoexecução e pura atividade implica ser o vínculo da comunicação, não o de uma relação externa e indiferente, mas o de uma relação de compromisso que atinge de forma bilateral a consciência que temos de nós mesmos. O discurso constitutivo do nosso existir é um expressar-se que envolve um meio espiritual transcendente e que se resume neste puro expressar-se. O ser-com-o-outro não é uma vicissitude contingente da vida, mas, como queria Hegel, uma transição necessária na formação da consciência em si: “Cada extremo é, para o outro, o termo médio através do qual entra em relação consigo mesmo e se une consigo mesmo; e cada um é para si mesmo e para o outro uma essência imediata que é por si, mas que ao mesmo tempo é por si somente através dessa mediação.”[2]

Se o outro surge como condição de nossa consciência particular, se é um elemento permanente de nossa conduta, isto se manifesta em primeiro lugar na forma pública e genérica do existir em comum, como momento mais imediato do que o recolhimento e o sentido da interioridade. Sabemos que a antropologia trouxe à luz o fato de que a vida psíquica dos primitivos é um mero reflexo dos processos mentais coletivos e que nesse estádio o homem só sente, age e pensa segundo o que o seu clã determina. O homem, não tendo ainda uma vida psíquica própria fora ou acima da coletividade, não encontra espaço para o complexo de comportamentos possíveis em relação ao outro. Para nós, entretanto, o outro se apresenta como um feixe de comportamentos que virtualmente poderíamos assumir em relação a ele, como a consciência e a percepção da compatibilidade de comportamentos paralelos. Em nosso estádio histórico, uma determinada convivência nunca se nos apresenta como um ditado ineludível, pois não somos obrigados a traçar nossa vida dentro de um esquema inexorável. De fato, sempre encontramos o outro, mas nunca estamos atados socialmente a um outro determinado e particular. A sociedade em que vivemos se nos apresenta, em certa medida, como uma sociedade escolhida, como uma sociedade possível entre muitas outras. Há sempre um caminho que nos leva ao outro, porém esse caminho não é mais necessário e natural. Exporemos subsequentemente a dialética hegeliana das consciências como ponto de partida de nossa investigação; antecipamos, entretanto, a oposição que levantaremos contra a ideia, defendida por Hegel, da inexorabilidade do desenvolvimento atribuído ao curso do espírito em seu regresso a si mesmo. A luta de puro prestígio entre o senhor e o escravo deve desembocar fatalmente, segundo Hegel, no estágio da consciência pensante no qual o homem reconhece no outro o que é em si mesmo. Negamos, não a existência dessa relação de domínio e servidão, mas o automatismo de seu desenvolvimento e sua vigência histórico-universal. Como Sartre viu muito bem, a jurisdição dessa forma da interação das consciências se estende também à relação do eu e do tu particulares, às consciências individuais que se defrontam no impulso de auto-afirmação. Ao surgirmos diante dos outros, somos escravos de seu olhar que nos projeta, numa nua transparência, entre as coisas do mundo. A expressão mais imediata de nossa conexão com o outro é esse ser-fora-de-nós, essa alienação do imediato ser-para-o-outro. A recuperação da iniciativa existencial, a capacidade de emanciparmo-nos do jugo da objetividade constitui para Sartre o mais alto sentido ético da existência. Esse movimento é governado pelo sentimento de que somos mais do que somos, de que não coincidimos com o papel que os outros nos atribuem, de que as relações que nos unem aos demais desmerecem o sonho de nossa interioridade. A diferença entre o externo e o interno, a desigualdade entre o que somos e o que nos propomos ser é a força que determina a interação do reconhecimento mútuo. Se o nosso ser se esgotasse no ser-para-o-outro, nosso estatuto fundamental seria o do puro objeto, pois que o outro vê em nós unicamente o ser dado. A contínua polêmica interna que nos leva a transcender o consenso em que somos tidos, as imagens e estimativas vigorantes a nosso respeito e a medida limitadora que se nos impõe, determina a dinâmica do nosso vir a ser. Como afirma Sartre, a forma de apreensão e as imagens que os outros formam de nós não constituem uma representação gratuita da qual pudéssemos nos desinteressar. Sentimo-nos responsáveis pela vida que levamos na alma dos outros, somos essa vida. Assim, pois, toda ideia, opinião ou juízo alimentado a nosso respeito compromete-nos inexcusavelmente. Ao desmentirmos a forma que se impõe, ao reclamarmos o reconhecimento de nossa índole e valor próprios, exigimos que nossa liberdade seja livre na consciência dos outros. Não se trata de uma liberdade em exercícios unicamente na esfera do mundo, mas principalmente de uma liberdade que se afirma no complexo de experiências de outra subjetividade. Queremos, em suma, que a nossa vontade seja a vontade de outra vontade, que o nosso espírito afeiçoe a si os outros espíritos. Hegel já havia admitido que enquanto nossos apetites ficam adstritos às coisas do mundo, não saímos da esfera animal; somente quando o desejo versa sobre outro desejo ascende o homem à esfera propriamente humana. No reino da determinação ôntica, como já tivemos ocasião de afirmar, o reflexo das coisas entre si não é de molde a sair da identidade do já dado. Ao contrário, no reino da subjetividade prática, o não dado, o inédito, o possível, é que sugerem a pauta do existir. Se o homem, em oposição às outras consciências, mantivesse um ser fixo e estável, se fosse algo de determinado para si e para os outros, a realidade humana confundir-se-ia com a realidade ôntica. Uma consciência refletir-se-ia na outra num jogo estático de reflexos imóveis. A experiência decisiva que nos proporcionam as lutas e contrastes das vicissitudes inter-humanas e o empenho do eu em fazer prevalecer a sua vontade contra as limitações exteriores, provam que não é esta a verdadeira natureza do jogo das consciências. O eu se põe diante do tu, não como um ser objetivo diante de outro ser objetivo, mas como impulso de negatividade, isto é, como ação livre diante de outra realidade móvel e instável. Esta dupla operação das consciências configura o modo de ser do comportamento espiritual do homem. O outro é levado por uma inclinação natural a fixar-nos, a determinar-nos, a unir-nos a uma objetividade dada, e o mesmo fazemos relativamente às outras consciências. A imposição de uma forma exterior que nos reduz à simples objetividade é o suplício que deve afrontar nossa liberdade militante. Tendo a certeza interior de que somos mais do que somos, ou, como prefere Gabriel Marcel, não podendo ser feito o inventário objetivo do que somos, procuramos transcender e negar o nosso ser determinado. Queremos reconquistar e conformar livremente nossa realidade alienada e para isso endereçamos a vontade no intuito de identificar a interioridade e a exterioridade de nossa consciência. O eu = eu é a meta infinita de todo empenho humano, agilidade perfeita que permitiria a plena expansão de seu fundamento ontológico. O sinistro Algabal, de Stefan George, sequioso de que sua liberdade não fosse contrastada por nenhuma liberdade discordante e caprichosa, de que nenhuma consciência medrasse além da sua, isola-se num palácio subterrâneo, rodeado apenas pelos testemunhos mudos de sua desolada liberdade; se nenhuma voz diz “não” aos seus desejos, nada também consagra seu valor íntimo. Pedras preciosas reluzem, não como aplausos aos seus gestos, mas em virtude de sua natureza imutável e indiferente.

Como viu certamente Hegel, o drama da vontade de poder e da consciência de dominação reside em que, em sua plenitude, imperam sobre coisas inertes e dependentes. Em lugar de unir-se ao outro convocando-o para a comunicação existencial, o impulso de dominação reduz o outro a instrumento de seus desejos, negando a própria realidade que pretendia conquistar. O resultado da realização dominadora não se consuma no gozo da vitória sobre o outro, pois é acompanhado imediatamente pelo sentimento de degradação do adversário. A autêntica convivência dos espíritos não pode ser conciliada com a unilateralidade do poder consciente. Quem não sente disponibilidade para as outras consciências, quem só vê nos outros meios para a realização de si mesmo, destrói a possibilidade da comunicação existencial. No entanto, a receptividade para o outro não deve ser entendida no sentido de uma vida continuamente exposta e pública, de um descentramento total do existir. O afastamento, o silêncio e o recolhimento não traduzem sempre uma oclusão e recusa do outro, pois podem significar estágio e preparação para um contato mais verídico; aliás, toda a verdadeira formação de um elo mais profundo supõe esta prévia ruptura do convívio banal. Transcendendo, através das máscaras da reserva, do segredo e do silêncio, o burburinho da vida quotidiana, reservamos a efusividade do nosso espírito para quem possa compreender sua natureza verdadeira. O conjunto das reflexões que Nietzsche dedicou ao que poderíamos chamar a “teoria das máscaras”, trata dessa necessidade que sentimos de afastar-nos para nos unir, de calar para falar, aguardando o encontro verdadeiro. Existem, entretanto, outras formas de isolamento e de reserva que não estão fundadas na esperança de uma comunicação mais alta: é o que poderíamos denominar a má solidão, o completo emuramento no próprio eu. Este afastamento não é passagem para um novo diálogo, mas significa apenas o completo desespero de toda palavra comunicativa. Kierkegaard dedicou páginas definitivas à análise desta forma de reserva e de solidão que considerava uma das manifestações do demoníaco. A vida e as relações implicadas no convívio social dos homens não deixam de oferecer um enorme risco para a nossa realização pessoal. O poder despersonalizante e dissolvente do quotidiano social assola a nossa intimidade, tolhendo o impulso da espontaneidade criadora. Há, como viu muito bem Jaspers, um paradoxo no fato de que, para sermos nós mesmos, devemos dar acesso ao outro, devemos ser-com-o-outro. O ser-si-mesmo e o ser-com-o-outro formam a polaridade que permite o exercício mais amplo de nossos poderes pessoais. O homem nada é sem o outro, não só no sentido empírico e no que concerne ao provimento de suas necessidades biológicas e naturais, mas também no que respeita às suas possibilidades subjetivas e espirituais. Como vimos acima, a liberdade requer o testemunho de uma presença, é a ratificação além do mundo dos objetos, numa outra consciência. A circunstância em que deve exercer-se o comportamento do homem é um mundo de vontades em jogo e oposição. Neste contexto é que surgem os dilemas e as alternativas extremas do nosso querer. Através das exigências, dos apelos, dos obstáculos e das possibilidades que os outros nos proporcionam nós nos inserimos no contexto social onde desenvolvemos nossa personalidade. Se o outro pode ser para nós uma presença confinante e embaraçosa, se pode paralisar o jogo de nossa consciência, pode representar também um poder liberador. Possibilidades que não seriam entrevistas pelo nosso espírito isolado surgem repentinamente diante do apelo de outra consciência. Assim, pois, a presença do outro não é uma realidade de consequências fixas e determinadas, o outro podendo significar um princípio inibidor ou uma força de promoção do valor pessoal. Se não houvesse a possibilidade de engrandecimento pessoal, através da comunicação das consciências, não se compreenderia a potenciação crescente do pensamento no decorrer da continuidade histórica. É certo que o comunicável de eu a eu cifra-se no geral, no racional, naquilo que desconhece a nossa própria singularidade. Não obstante, a partir das sugestões de significado universal podemos encontrar de maneira mais expedita o caminho da realização pessoal. Para não nos perdermos no puro não-ser dos eventos multitudinários devemos ser nós mesmos, escolhendo na sabedoria universal os estímulos e os elementos para a nossa obra personalíssima.

O outro como problema teórico e como problema prático
Desde que surgiu no horizonte da cogitação filosófica o problema da experiência do outro, o objetivo da indagação filosófica centrou-se na tarefa de demonstrar como, no conhecimento de nós mesmo, está implicado o conhecimento do outro. O outro revelar-se-ia imediatamente a nós, no próprio dar-se a nós mesmos de nossa própria consciência. O cogito revelador da realidade pessoal implicaria imediatamente a intuição da existência do outro. Entretanto este acesso teórico à existência do outro encontra obstáculos intransponíveis, pois o outro como representação de nosso eu, como conteúdo de pensamento, pode ser arrastado na dúvida e na suspensão fenomenológica. A conseqüência natural da transcrição deste problema em termos teóricos é, como demonstrou Sartre, o solipsismo. A presença do outro, no campo cognitivo, é uma experiência particular no conjunto global de nossa experiência; portanto o outro, como realidade transcendente a essa experiência, teria no máximo o valor de uma hipótese. Servir-nos-íamos assim da ideia do outro para coordenar e sistematizar um certo setor do nosso campo perceptivo, relegando sua realidade transcendente ao papel de mera ficção. De uma forma geral podemos afirmar que, com o auxílio dos moldes da representação e do conhecimento, não podemos transcender o círculo da consciência pessoal, alcançando o conhecimento de outra subjetividade. Não é lícito, porém, esquecer que o outro se apresenta não só como um elemento do nosso mundo, mas principalmente como um ponto de vista independente e diverso em relação ao mundo. A experiência capaz de nos dar notícia e certeza acerca dessa presença transcendente ao nosso mundo e, apesar disto, inserida nele não só através de sua forma corporal como também através de sua imediata repercussão em nosso espírito, essa experiência, repetimos, não pode ser um puro juízo intelectual. Desde Fichte, a investigação referente ao problema das relações intersubjetivas inclinou-se a considerar esta conexão mais como um fenômeno prático do que como um fenômeno teórico. Somente na recíproca interação do agir é que se manifestaria como resistência, oposição ou apelo à realidade e à colaboração do outro. A nossa ação não é do mesmo tipo que o conhecimento, este último podendo ser obra de um espectador solitário; ela envolve em sua ideia a ação dos outros eus. Neste sentido podemos citar as palavras de Fichte: “Sabemos da ação dos outros somente a partir de nossa própria ação. Em suma: cada um sabe acerca da própria ação, na medida em que sabe da ação dos outros; pois o caráter de sua ação particular determina a totalidade.” (Jeder weiss vom Handeln anderer idealiter nur durch sein eigenes aus sich heraus. Endlich; jeder weiss vom seinem Handeln nur, inwiefern er vom Handeln anderer weiss, realiter; denn der Charakter seines bestimmten Handeln der Gesamtheit)[3]. A consciência de nossa própria ação constitui esse complexo de vivências que se expressa nas mais variadas objetivações. A compreensão das formas de atuação das outras consciências descansa evidentemente num acervo de experiências próprias e pessoais. Assim é que compreendemos e sentimos o valor de uma obra de arte, não pelo simples fato de podermos percebê-la em nosso campo perceptivo, mas por podermos referi-la às nossas vivências. A nossa liberdade evolui entre os produtos da liberdade do outro e na ação encontramo-nos sempre envoltos num mundo de objetividades e utensílios criados pelas outras existências. O problema diltheyano da inteligência e da apreensão dos fatos culturais relaciona-se intimamente com esta capacidade de compreender o que está fora de nós, reproduzindo-o e recriando-o em nosso espírito. O nosso eu encontra-se com o outro e constata a sua realidade não só no intercurso imediato da ação como também ao ascender à esfera dos produtos dessa liberdade transcendente. Manifesta-se, pois, na execução de nosso impulso existencial, uma referência aos demais, uma saber dos demais que não tem o caráter de mera verificação intelectual. Da elaboração histórica desta problemática depreende-se o fato de que o aparecimento do outro não se pode equiparar a qualquer conteúdo de nossa consciência. Enquanto todos os demais elementos do nosso campo de experiência não nos comprometem na categoria de centros autônomos de experiência, esse particular conteúdo que é a representação do outro nos empenha de uma forma radical e irresistível. Já foi dito que o homem é essencialmente um querer. Pois bem, é na ordem do querer e na de um saber derivado deste querer que percebemos a realidade desse conteúdo de consciência que é a pessoa do outro. “Que um tu ou um ele apareçam diante de um eu”, diz Dilthey, “não significa outra coisa senão que minha vontade experimenta algo de independente dela. Estão presentes duas autonomias, duas unidades volitivas, e esta é a experiência que se encontra na base de expressões tais como unidade, divergência e multiplicidade de vontade ou de objetos.”[4] O que daria peso e realidade às imagens do mundo seria este índice volitivo que consolidaria o fluir das nossas representações na solidez de obrigações e conexões fixas. A demonstração da realidade e da exterioridade das coisas dar-se-ia, segundo esta ordem de ideias, segundo princípios morais e não segundo formas racionais. A mesma orientação prática na elaboração de uma dialética das consciências encontra-se na Fenomenologia do espírito de Hegel. O eu defronta-se aí com o tu como uma vontade diante de outra vontade e não como um espectador teórico diante de outro espectador teórico. “A consciência de si atinge sua satisfação somente numa outra consciência de si.” Hegel sugere que a independência do espírito manifesta-se de forma mais poderosa na negatividade do desejo em relação ao seu objeto, do que em qualquer forma de captação intelectual. O “por si” comparece como força universal de assimilação do seu contrário, como desejo em sua expressão absoluta. Se o espírito é a verdade, o objeto não pode manter sua independência diante dessa autonomia soberana, devendo portando ser negado, destruído e suprimido em sua independência, para renascer como criatura do “por si”. A manifestação desta criatividade absoluta se traduz na satisfação e no sentimento de sua própria força. Porém, diz Hegel, este impulso espiritual de autonomia somente alcança sua plena satisfação, quando em lugar de se exercer sobre coisas se exerce sobre outros impulsos. A forma original de conexão das consciências aparece no pensamento hegeliano traduzida em termos de luta, oposição e ação criadora de contrastes e não como movimento puramente noético. A grandeza da tese hegeliana consiste justamente em ter colocado o problema não num plano contemplativo, mas num plano de desenvolvimentos e atitudes volitivas. “O problema do outro é que faz possível o cogito, como momento abstrato em que o eu se apreende como objeto.” (Loin que le problème de l’autre se pose a partir du cogito, c’est, au contraire, l’éxistence de l’autre qui rend le cogito possible, comme le moment abstrait où le moi se saisit comme objet)[5]. As interpretações subsequentes que podem surgir a respeito do outro se baseiam nas determinações oriundas dessa primeira interação prática das consciências. O “senhor” torna-se em primeiro lugar “senhor”, criando sua personalidade dominadora no risco e na incerteza da luta, para depois, como momento reflexivo, adquirir consciência de sua própria autonomia, de sua figura existencial. Acompanhando o surgir reflexivo que segue a efetivação desta figura existencial, irrompem correlativamente a consciência e o conhecimento (não o reconhecimento) do outro como “escravo”, isto é, como aquele que depende da autonomia do “senhor”. A subordinação do conhecer ao ser, no capítulo da dialética das consciências, não constitui uma infidelidade ao axioma idealista, pois o ser de que se trata é interpretado como movimento, luta, ação (Tun). Para Hegel, o homem é uma “falta de ser”, isto é, nada de fixo e determinável, mas a pura transcendência de todas as formas. Através da ação o homem chega ao conhecimento de si mesmo e do outro, ao cogito ampliado que revela o seu “ser-com-o-outro” (Miteinandersein). Um aspecto importante que encontramos no célebre capítulo IV da Fenomenologia do espírito, é a referência ao terror e à angústia que colhe a alma do escravo na contenda de vida e morte que decide acerca de seu próprio destino. Essa angústia é reveladora do secreto destino do ser-para-si e o escravo que “estremece em suas profundezas, sentindo que tudo quanto era fixo vacila”, no medo diante da morte, toma consciência da absoluta negatividade da consciência humana. Assim, pois, a comunicação entre as consciências e sua recíproca apreensão é colocada, de modo incisivo, no terreno das vicissitudes ateoréticas.

Em nossos dias, Heidegger pronunciou-se de forma inequívoca a favor desta determinação vital do nosso ser-com-o-outro. Diz ele que o nosso encontro com o outro não deve ser entendido como se um eu isolado se pusesse, depois, em contato com um outro sobrevindo. Estamos com o outro imediatamente, estamos como ser-no-mundo-com-o-outro, como seres-arrojados-no-mundo-com-o-outro. Este outro com o qual me encontro originalmente não se põe como o fundo do qual me diferencio; o outro não é distância, mas proximidade da qual não me destaco. O “estar com” designa, segundo Heidegger, não um termo categorial aplicável a objetos em conjugação, mas uma significação existencial que esclarece este primitivo estar implicado na conexão mundanal. Guardemo-nos, entretanto, da propensão que nos leva sempre a interpretar a presença do outro segundo formas teóricas. Neste sentido adverte Heidegger que sempre devemos ter presente a forma original do nosso ser-no-mundo-com-o-outro. O mundo da existência é um mundo compartilhado (ein Mitwelt) e o estar-no-mundo-com-o-outro é um modo de ser constitutivo da própria existência, já que a existência é essencialmente coexistência. O mundo não se nos oferece unicamente como um campo de presenças objetivas mas também como uma região de co-presenças às coisas. O ser-com-o-outro não designa, no pensamento de Heidegger, qualquer constatação fática, como se fosse um juízo derivado da nossa convivência empírica. O ser-com-o-outro determina existencialmente a existência, mesmo quando não é praticamente perceptível ou presente. “O estar-só do Dasein (estar-aí) é também um estar-com-o-outro no mundo.” (Auch das Alleinsein des Daseins ist Mitsein in das Welt)[6]. O afastamento espacial do grupo social, o viver fora do horizonte humano, em que nada diminui esta nossa radical abertura para os outros. Portanto, a ausência do outro, o afastamento e a solidão constituem, como diz Heidegger, modos deficientes do nosso Mitsein e de maneira alguma comovem ou contestam esta estrutura fundamental. Como vimos, encontramo-nos originalmente a nós mesmos e aos outros, num mundo de coisas e de utensílios, imersos nas ocupações quotidianas. É neste umweltliche besorgten Mitwelt que se manifestam primariamente as nossas possibilidades do ser-com-o-outro. O mundo de ocupações e de solicitudes no qual surgirmos na primitiva ligação com as outras existências determina, pelo tipo de significações que nele se manifesta e predomina, as interpretações que atribuímos a nós mesmos e aos outros. Como sabemos, para Heidegger, a compreensão (Verstehen) não é o conhecimento nascido do conhecimento, mas do modo de ser original da existência. Portanto, a compreensão que temos de nós mesmos e dos outros depende primordialmente do modo de ser do nosso ser-com-o-outro. Uma existência perdida na não-verdade, que rompeu toda e qualquer possibilidade de comunicação, só pode interpretar-se e aos demais segundo a óptica obliterada do seu modo de ser. Observamos, além disso, que a imagem que temos de nós mesmos deriva, em grande parte, do complexo social em que vivemos e de modo de ser de nossa existência. Com a tese que liga o conhecimento possível de nós mesmos, de nossa inclusão na dimensão do ser-para-o-outro, Heidegger desvendou um campo extraordinário para o conhecimento existencial. Neste breve quadro do pensamento heideggeriano, no que concerne à dialética das consciências, podemos constatar a subordinação total da apreensão teorética do outro a um modo de revelação fenomenologicamente descritível, como seja o modo originário do encontrar-se com o outro na atitude do cuidado e da solicitude. Se quisermos trazer mais argumentos a favor desta conexão ateorética das consciências, poderíamos aferir no pensamento de Jaspers esta mesma concepção. Para Jarpers, nosso ser-com-o-outro (Miteinandersein), não é uma construção racional, mas uma condição do próprio desenvolvimento do ser-para-si-mesmo. Através dos múltiplos modos do encontro com o outro na comunidade social, profissional, no pensar teorético e na luta extenuante para uma comunicação autêntica, afirma-se o fato original de que a nossa existência é sempre uma experiência comunicativa. Como sabemos, a filosofia de Jaspers é uma filosofia existensiva e não existencial, não o preocupando, portanto, a fundamentação ontológica do nosso ser-com-o-outro (Miteinandersein); o que mais o preocupa é a superação das formas deficientes da comunicação, numa luta sempre em desenvolvimento. Desde o início, porém, das formas mais rudimentares do intercâmbio humano, das formas heterônomas do eu perdido no complexo social, até às formas mais sublimes, do amor e da experiência unitiva, vemos transitar esse impulso que vai além do simplesmente conhecido e dado em busca de uma identificação incondicional. O impulso comunicativo, para Jaspers, se mantém sempre em devenir, nunca podendo alcançar sua meta. É-nos dado observar essa eterna insuficiência do movimento das consciências no fenômeno da linguagem e das formas expressivas. Parece que toda expressão acaba sempre por trair a intenção que lhe deu origem, o mais profundo do homem não podendo jamais assumir a forma de uma forma. Assim, pois, parece que Jaspers se inclina para uma espécie de dialogue du silence, mais denso de interioridade que as exteriorizações verbais. A inadequação entre interioridade e a exterioridade, na condição humana, é um índice, ao mesmo tempo, da impotência e da insigne grandeza de nossa liberdade. A revelação recíproca dos “eus”, como mútua operação de liberdade em jogo, não pode ser vazada em qualquer estatuto fixo e objetivo, mantendo-se sempre no puro jogo da emulação amorosa. Tornando-nos nós mesmos, provocamos, como prolongamento natural desse gesto, o surgimento do outro enquanto ele mesmo, porque — acrescenta Jaspers — não posso ser livre se o outro não o for, não posso estar certo de mim se o outro não estiver certo de si mesmo, na minha possibilidade mais autêntica estando contido o meu ser-com-o-outro. A meditação de Jaspers no tocante à relação do eu e do tu decorre na dimensão da ordo amoris, da subjetividade apaixonada que se desencadeia num movimento criador original. Não se classificando esta visão filosófica nos termos de uma teorética do outro, vemos como isto vem corroborar a tese de que uma problemática das consciências só pode desenvolver-se em função da razão prática. Um princípio que poderia governar a especulação que ora desenvolvemos está resumido na seguinte afirmação de Martin Buber: “As bases da linguagem não são nomes de coisas, mas relações.”[7] Como veremos, há uma correlação íntima entre a atividade enunciativa da consciência e a experiência em que se acha comprometida. Essa linguagem de que nos fala Buber, em lugar de revelar o ser das coisas, formando um sistema de notação objetiva, é o apelo e a convocação para a comunicação possível dos espíritos. Nesta linguagem valem também os intervalos de silêncio, pois, como diz Jaspers, o poder calar pode ser a expressão de uma extraordinária força comunicativa, enquanto a mais transbordante loquacidade pode ser o anteparo de um coração reservado e egocêntrico. Neste delicado terreno da consciência, uma dada aparência pode ser justamente o sintoma do estado contrário. O silêncio, sendo uma não-atividade, pode significar uma atividade particular que sugere e atrai pela força própria de sua expressividade. A palavra da ciência é sempre impositiva e coercitiva, é o verbo próprio do “estar aí” das coisas; a sua forma se atém ao que é e existe, constituindo o que chamamos a palavra ôntica. A palavra, sendo o índice de meu ser-para-o-outro, sua forma original não deve ter sido a palavra ôntica, mas a relação de uma consciência com outras. Assim é que Sartre vê na palavra-sedução um modo de ser primitivo da expressividade humana. Como solicitação, exigência ou apelo a uma aventura e a um desenvolvimento que ainda não estão inscritos no já dado, como ruptura dos simples estar-aí, surge originalmente essa linguagem relacional das consciências. Estamos nessa linguagem, mas do que a proferimos, e através dela recebemos nosso ser. Já tivemos ocasião de insistir que no concernente à conexão intersubjetiva, os termos em relação não preexistem, mas são postos pelo elo relacional. Eis porque a palavra comunicativa é uma palavra fundadora que traz em si a virtualidade criativa essencial. Em seu ensaio Hölderlin ou a essência da poesia, Heidegger discorreu sobre esse verbo mitopoiético que, circulando através dos espíritos, abre à história o espaço de seu desenvolvimento próprio. Essa é a linguagem poética que se contrapõe à linguagem degradada no quotidiano.

Estas considerações semânticas, longe de nos terem afastado do itinerário que nos propusemos, conduziram-nos ao coração mesmo da problemática inicial. Admitindo, como axioma de nossas reflexões, a conexão estrutural entre vivência e a expressão, o tipo semântico original corresponde a uma experiência do outro. Superamos nessa experiência a consciência do “coisismo” geral do ser, a relação teorética sujeito-objeto, numa consciência pulsional que nos descobre a realidade do outro. Através desta praxis original propõe-se ao nosso eu o enxame dos outros “eus”, podendo ela ser considerada como o sensório ativo da realidade do outro. Assinalamos, no desenvolvimento histórico deste problema, uma singular concordância em sua colocação. Vimos como Fichte admitia que só como seres práticos, rompendo o solipsismo da intuição, podemos ter acesso à existência do outro. A liberdade só é autêntica na liberdade geral, na realidade transcendental das subjetividades. Encontramos idêntica acentuação do papel da consciência volitiva na determinação do nosso ser-para-o-outro, na dialética de Hegel. A consciência genética da relação das consciências funda-se na base impulsiva do desejo, na negatividade infinita do ser-para-si, que, tendendo a suprimir e negar todo o estranho a si, termina seu drama no reconhecimento do outro. O pensamento existencialista hodierno propõe, no concernente à mesma problemática, uma formulação aparentada a esta dialética, admitindo pois que em todos os misteres, ocupações e propósitos encontramos complicada a presença e a atividade do outro, numa comunidade de relações que precede o nosso ser-para-nós-mesmos. O ideal especulativo máximo da filosofia, no tratamento desta questão, seria o da demonstração a priori dessa pluralidade de sujeitos e não o da simples mostração fenomenológica de sua conexão existencial. No entanto, esse ideal de uma compreensão exaustiva e radical do porquê da multiplicidade dos “eus” é uma ficção da esperança racional. A mesma opacidade que encontramos na necessidade própria do eu de estar sempre envolto numa circunstância, numa particular e determinada situação, encontramo-la também no referente a essa estrutura plural das consciências. Se o estar em situação já é uma situação, e, como formulou Jaspers, uma situação-limite, o outro é um ingrediente necessário desse estar-em-situação, um modo irredutível do existir. A vida, como polêmica incessante, luta e contraste, é uma decorrência da diversidade de centros existenciais. Trazer à luz, como tentou Heidegger, a estrutura do nosso ser-com-o-outro através da descrição fenomenológica de uma situação de fato, não é de forma alguma compreender a sua razão última e sua teleologia imanente. Uma hermenêutica da existência não poderá proporcionar uma nova inteligência da multiplicidade da subjetividade, pois seu fim é o de analisar a existência como existência, em seu movimento interno — que se manifesta desde logo como pluralidade existencial — e não o de procurar uma explicação extra-existencial da própria estrutura da existência. Dilthey já afirmou que o conhecimento deve procurar na própria vida o sentido da vida. Ora, a vida manifestando-se na consciência mais ampla de suas possibilidades como vida plural, este é o fato último, irredutível a toda penetração racional. As tradições míticas milenares falam-nos de fantásticos desmembramentos divinos, em que uma unidade superior se fragmenta em gêneros e espécies. Esta pulverização da unidade e, ao mesmo tempo, a consciência de um elo primigênio não parecem constituir a projeção mítica da possibilidade de unificação das consciências?

O processo do reconhecimento
O tema do reconhecimento, que passaremos a desenvolver, identifica-se com a tese da verdade existencial, com a vida que se conquista a si mesma, superando as circunstâncias desmerecedoras de suas possibilidades mais autênticas. O reconhecimento não é o exame circunstanciado de uma objetividade dada, mas a exposição da subjetividade que assimila a sua forma alienada de ser. O não-ser-si-mesmo é, neste caso, a não-verdade, a alienação nas formas degradadas do existir. A meditação filosófica, em nossos dias, se tem detido largamente no campo da não-verdade, da vida esquecida de si mesma e de seu mais entranhado destino. As análises de Gabriel Marcel sobre o desbordamento da ideia de função no contexto da sociedade atual, são aptas a nos instruir acerca deste fenômeno fundamental. O homem moderno, diz Marcel, tem a tendência de interpretar os outros e a si mesmo como um conjunto de desempenhos, a sua realidade e unidade existenciais desdobrando-se num sem-número de funções: a do cidadão, a do consumidor, a do profissional, etc. Este mundo, reduzido à fisiologia de seu modo de ser objetivo, dá-nos assim a impressão de uma opressiva tristeza, em seu vazio abismal. Além de Marcel, outros filósofos entre os quais Berdiaeff e Jaspers, conscientes da perda de substância de nossa época, procuraram analisar a gênese desse refluxo para as formas meritórias do existir. Um ente natural, idêntico a si mesmo, no qual o ser possível é idêntico ao ser atual, terá a sua não-verdade unicamente fora de si, na consciência que o contempla. Em si e por si, o seu modo de ser é idêntico à sua verdade. A pedra é sempre pedra, podendo não o ser apenas no reflexo de uma consciência cognoscente. Não é este, entretanto, o caso de uma realidade como a do homem em que o possível não se identifica com o simples estar-aí e no qual convivem as possibilidades da verdade e da não-verdade. Num tal tipo de existência, estas determinações polares podem dar-se no próprio círculo de sua realidade e não unicamente fora de si. O homem pode obscurecer para si mesmo a própria índole, e, na má-fé de seu sentimento, renegar a confissão de sua intimidade, na reverberação de perspectivas ilusórias. Este poder de assumir outra forma que não a sua, esta heteromorfose originária constitui a antífona da teoria do reconhecimento. O homem, como movimento de reconhecimento, quer conformar o seu “em si” à forma do seu ser “para si”. Indo além de sua transcrição objetiva na consciência dos outros, de sua escravidão diante do testemunho efetivador do outro, a livre subjetividade procura suprimir e recuperar a imagem perdida de si mesma. Não é a nossa facticidade, a simples capacidade de movimento físico que anseia pelo reconhecimento, mas a nossa capacidade pessoal de ser. Em linguagem hegeliana poder-se-ia dizer que o que tende para o reconhecimento é o nosso ser como negatividade, como liberdade. Está implicado também no problema do reconhecimento, o fato de que deparamos com um não-reconhecimento originário, que desencadeia o processo da afirmação pessoa do “por si”. Este, ao surgir na esfera de outras consciências, reveste-se inevitavelmente — segundo Sartre — de um dehors, de uma alteridade que se propõe imediatamente como objetividade a ser transcendida, o nosso “por si” não sendo mais do que o movimento de superação desse ser perdido nas outras consciências. Portanto, o sim do reconhecimento supõe, dialeticamente, o não dessa alteridade do em-si-para-o-si-outro. Ao surgirmos, porém, diante do outro, este surge diante de nós; essa alteridade objetivante do ser-com-o-outro e o não-reconhecimento original das subjetividades constituem o ponto de arranque da dialética das consciências. Não devemos, entretanto, entender esse estado como qualquer coisa de fixo, compreendendo ser o reconhecimento uma operação sempre em curso e sempre comprometida em sua plenitude comunicativa. Como diz Jaspers: “A comunicação nunca deixa de ser uma luta. Somente num caso particular pode a luta chegar a um fim: no plano geral, isto jamais se dará, pelo fato mesmo da infinitude da existência, sempre incompleta, sempre em vir a ser, por mais longe que vá.” (Kommunication hört nie auf, eine kämpfende zu sei. Nur partikular kann der Kampf zu einem Ende kommen, im Ganzen niemals: wegen das Unendlichkeit der Existenz, die, in der Erscheinung nie sich vollendend, nicht aufhört zu werden, soweit sei auch kommt)[8]. O reiterado sentimento da “insuficiência” (Ungenügend) das formas comunicativas e de compreensão recíproca dos espíritos é o índice do eterno limite oposto pelos outros “eus” ao nosso eu. Com isto não queremos contestar a possibilidade de uma relação promotora e efusiva entre as consciências e o poder de reconhecimento do amor. Na relação amorosa, de fato, o outro surge em nossa consciência na plenitude de seus valores, não como objetividade, mas como liberdade. Contestamos unicamente a possibilidade de estas relações conflituais ilidirem o eterno jogo da subjetividade e da alteridade, intrínseco à dialética das consciências. Devemos, entretanto, esclarecer melhor o sentido profundo do processo de reconhecimento com que deparamos no pórtico da vida espiritual. Como vimos, a questão se refere ao reconhecimento da presença pessoal e não da simples presença material do homem. Pelo fato de a consciência rebelar-se contra toda determinação ôntica de seu ser, sendo como é pura negatividade, origina-se o drama da liberdade. Fosse a multiplicidade dos “eus” um simples agregado de entidades ônticas que se esgotassem em sua presença e não poderíamos sequer pensar neste evento existencial. Desencadeia-se, pois, esse certame humano porque, para o homem, o “estar aí” é a não-verdade, a contrafação de seu modo autêntico de existir. O primeiro movimento da consciência, que lhe dá a satisfação de sua verdade plena, é o movimento de supressão do objeto. Transcendendo o seu em-si-para-o-outro, isto é, seu ser confinado e fixo, o espírito procura um espaço livre de desenvolvimento. A doutrina do reconhecimento supõe, evidentemente, como já afirmou Hegel, que a verdade da consciência não está no objeto, mas na subjetividade. Toda determinação, objetivação ou definição manifestam-se como impedimentos a este ir-além-de-si-mesmo da realidade humana. Nietzsche valorizou particularmente o impulso de auto-superação, de domínio e de vitória sobre si mesmo que regem a nossa dinâmica interior, vendo no poder interno de superação a medida da força espiritual do homem. Este caminho heróico, segundo Grassi, representa a estrutura transcendental do humano, a capacidade de desvencilhar-se das coisas em lugar de ser por elas dominado. “Pertence à vida individual e culta o fato de o homem nunca aderir ao meramente objetivo e existente.” (Daher gehört es auch zur Forderung des individuellen Leben und der Bildung, dass der einzeine niemals an den Gegenständen, an den Vorhandenen hafte)[9]. Como negatividade absoluta, o ser autêntico do homem não pode se acumpliciar com o meramente dado, não se lhe podendo atribuir qualquer categoria ôntica já que escapa a todas as leis do determinado. Assim é que a satisfação e a certeza de seu cumprimento existencial se aliam sempre aos movimentos criadores e exuberantes da personalidade. No delírio das manifestações dionisíacas, na transgressão das formas consuetudinárias manifesta-se, de forma exemplar, a índole original do homem. A alegria do encontro consigo mesmo e da atuação nesta linha vocacional última não exclui o que há de obscuro e funesto na vida, a destruição e o malogro de grande parte de nossos objetivos. A felicidade oriunda do exercício e da realização do valor pessoal é uma felicidade que ultrapassou provocações e desgarramentos, sabendo no entanto manter-se fiel a si mesma, como vontade que é de superação. Somente enquanto transcendência e compreensão desse movimento, a consciência pode descobrir o seu caminho heróico. Nenhuma forma insidiosa de desencanto, desalento ou pessimismo pode impor-se a uma consciência educada neste grande sentido. O pessimismo afirma que nada existe além da flutuação incerta no existir. A filosofia que se orienta no sentido do possível reconhece também a vaidade de todo o finito e a evanescência das coisas que porventura amamos; porém, enquanto o pessimismo atende aos resultados, desesperando-se pelo fato de nada existir de permanente na Terra, o homem educado no possível (como queria Kierkegaard) vê a plenitude e a recompensa da existência no próprio exercício do viver. Nietzsche, por outro lado, viu muito bem que o sintoma do acerto ontológico e da verdade íntima reside no sentimento estuante do acréscimo de nosso poder, na agilidade crescente de nossas faculdades, na disponibilidade superior de nós mesmos. Não é pelo robustecimento do objeto, mas por sua supressão através da negatividade e da força criadora que se desdobra a potenciação do nosso eu. Se encontramos o perfil verídico de nosso eu na atuação negadora, é certo que o seu domínio de jurisdição deve estender-se a todas as relações humanas. Como dissemos acima, a negatividade própria do homem manifesta-se na dimensão do ser-para-o-outro, como vontade de reconhecimento. O movimento de auto-afirmação e superação não se cumpre no espaço monádico da consciência, mas na dimensão ek-stática do ser-para-o-outro. Se a presença do outro nos arroja na minoridade do ser-entre-as-coisas, é diante do seu testemunho e em seu espírito que devemos operar a emancipação do nosso “em si”. Desejamos adquirir a plena agilidade, a graça superior que permite sermos exteriormente o que somos interiormente. Somente a livre disponibilidade dos poderes internos e a realização desembaraçada da subjetividade podem proporcionar a plena satisfação existencial. Como viu muito bem Hegel, não é a vida por si mesma, em seu puro exercício, que proporciona a fruição de nossos próprios poderes. O homem não é o ser imediato à vida, porém um mais que a sua própria vida, um mais que procura o seu direito e o seu reconhecimento. Não é nosso intento descrever aqui, pormenorizadamente, a dialética da consciência no sentido hegeliano. Bastam, para o nosso fito, algumas indicações que mais de perto interessam à meditação em curso. Considera Hegel que, estando as consciências originariamente imersas no imediato da vida, refletindo-se reciprocamente como meras objetividades restritivas, o seu primeiro movimento é o de extirpar de si todo o ser imediato, tornando-se o puro ser negativo da consciência igual a si mesma. Este processo, traduzido em outra linguagem, significa que cada homem tende à destruição do outro, desse outro que o faz nascer em sua realidade confinada e fáctica. Expressa-se nessa luta mortal o princípio da negatividade que, pondo o homem como obra de si mesmo, é o supremo repúdio da sua realidade simplesmente vital. Arriscando a vida nessa luta de puro prestígio, o homem se afirma como um princípio superior ao princípio vital, como negação de todo ser dado. Como sabemos, o resultado dessa guerra meta-histórica é o dimorfismo da consciência dominante e da consciência servil: o homem que aceita o risco dessa luta levando-a a seu termo vitorioso, forma a casta dos senhores, enquanto os contendores que recuam diante da possibilidade da morte, por apego à vida, definem-se como naturezas dependentes e servis. Sustenta Hegel que as duas expressões ou figuras vitais desse certame manifestam-se nas atividades da luta e do trabalho. Através da vitória sobre o outro, o senhor afirma sua plena independência em relação ao objeto, na luta e nos prazeres de uma existência sem entraves. O escravo, por se ter intimidado diante do perigo, acha-se em dependência das coisas, e a única negação ou transformação que pode exercer sobre elas manifesta-se na negatividade do trabalho; através deste, o escravo consegue a supremacia e libertação que lhe foram negadas no tocante à sua auto-afirmação inicial. Assim é que o binômio luta-trabalho representa para Hegel os dois princípios da dialética das consciências. Parece-nos, no entanto, insuficiente esta concepção do reconhecimento, pois as formas agonais em que se exprime o testemunho de nossa consciência não se realizam unicamente na seriedade da luta mortal e do trabalho.

Huizinga, em seu livro Homo Ludens, demonstrou, se bem que visando outros propósitos e aplicando seu material antropológico a uma tese diferente, tudo o que há de festa, regozijo e pura expansão lúdica na evolução da cultura e da consciência humanas. A crítica mais séria à antropogênese hegeliana é, entretanto, a que nasce da valorização existencial das conexões da consciência. Hegel projetou a sua dialética no plano da história universal, referindo sempre suas noções aos grandes momentos da vida espiritual do mundo e não ao eu e ao tu particulares. Esta determinação abstrata do intercâmbio do espírito denuncia o desconhecimento dos direitos da individualidade existente. Kierkegaard condenou justamente esta forma da não-verdade do existir como redução que é do homem ao ethos geral. O homem, embora participe do processo histórico-mundial, não se esgota em suas finalidades coletivas. O que deve mostrar e esclarecer uma filosofia, no referente à problemática das consciências, é o fenômeno singular da minha, da tua consciência em sua interação formadora e não as grandes figuras abstratas da consciência geral. O existir dá-se sempre como este ou aquele existir particular e os grandes princípios do jogo do “por si” e do “para o outro” devem ser vividos em sua concreção singular. Jaspers também se refere à consciência dominante e à consciência servil, ao herrchen e ao dienen, colocando porém as relações de domínio e de sujeição entre as demais situações comunicativas, sem qualquer preponderância fundamental no processo histórico-universal. Acrescenta, entretanto, que a força, em qualquer de suas formas, física, vital ou espiritual, determina relações de subordinação entre os homens, constituindo uma realidade existencial universal. Jaspers não confere, todavia, a essa dialética conflitual de subordinação, nenhum papel axial e exclusivo no movimento comunicativo. Sartre, que parece se inclinar pela tese de que todas as relações humanas se classificam na dinâmica da transcendência transcendente e da transcendência transcendida, projeta, no entanto, esta contínua interação no plano da realidade singular. Sou eu, em minha singularidade pessoal, que vejo perecerem minhas possibilidades próprias, superadas e envolvidas no projeto de um tu dominador. A luta pelo domínio desenrola-se, para ele, no palco das personalidades singulares, constituindo a dificuldade que devemos enfrentar na persecução de nossa auto-realização. Resumindo as ideias desenvolvidas até aqui, vimos como a realidade humana é suscetível de assumir formas coerentes ou discordantes em relação à sua maneira de ser fundamental. A capacidade de instalar-se na má-fé, de perder-se na não-verdade e alienar-se é a prerrogativa mais perigosa do homem. Os tipos nos quais se exprime essa determinação da não-verdade não são todos homogêneos, mas pertencem a dimensões diferentes. O homem pode alienar-se devido às suas relações ontológicas com as outras consciências ou devido a circunstâncias histórico-sociais particulares. Indicamos acima como Gabriel Marcel denuncia o mundo social contemporâneo em sua exacerbada falsificação existencial e em seu processo de materialização progressiva de todos os valores. O homem é, nele, rebatido para o plano das coisas e da mera funcionalidade social; esta é a não-verdade da consciência, originária das condições exteriores do todo coletivo. Muito mais importante, porém, para as nossas cogitações, é a forma de heteromorfose originária de nossa dimensão ontológica do ser-para-o-outro. Nesta situação, o existir transita para a não-verdade ao identificar-se com as formas do “em si”, a corporalidade do “em si” roubando a força da verdade interior. Todo o processo do reconhecimento estriba-se na exigência de exteriorização e de manifestação do nosso ser, na necessidade de tornar patente para o outro e para nós mesmos a nossa figura existencial. Somente requer reconhecimento o que não é imediatamente, o que deve produzir-se, isto é, adiantar-se e transcender-se para se patentear plenamente. Por isto, a revelação comunicativa do eu é um movimento de negatividade negadora que, superando os limites do meramente dado, vai em busca de seus próprios possíveis. A liberdade, como poder de autocriação do destino, parte em busca de seu ser alienado, num desejo de recuperação e de fundação ontológicas. Podemos identificar, portanto, a tese do reconhecimento com a tese da verdade existencial. Vimos como podemos ser nós mesmos reconhecendo a existência em liberdade do outro, e como a operação que nos funda na autenticidade é a mesma que dota o outro de plena independência em relação a nós mesmos. O desenvolvimento do processo do reconhecimento da consciência do outro identifica-se com a manifestação de nossas possibilidades autênticas de ser. Por outro lado, o desconhecimento das prerrogativas do outro e a ruptura da comunicação provocam, através de uma dialética implacável, a paralisação de nossas próprias possibilidades. O senhor passa, então, a ser escravo de seu próprio escravo, e a consciência, no deserto infinito de seu isolamento, não encontra mais estímulo para a sua liberdade.

Formas do reconhecimento
Das considerações anteriores depreende-se que o sentido último da dialética das consciências consiste no advento da presença humana, dessa presença que se afiança continuamente através dos acontecimentos históricos. Lavelle vê o sentido do decurso espiritual da história no surgir e debruçar-se da consciência sobre o mundo das coisas, no contínuo esforço de transformação da ausência pessoal na atenta vigília da pessoa; o fenômeno de patenteação da presença pessoal não segue uma linha monádica, mas é o resultado do entrechoque formador das consciências e da verdade que nasce da dor, do esforço e do sofrimento. Já dissemos que a emergência da presença é idêntica ao sentido existencial da verdade, é a própria verdade como vida centrada em si mesma, como ser-junto-de-si. A garantia da presença é a garantia da verdade mesma, em todas as ordens de suas manifestações; somente poderá conceber a verdade a consciência que previamente se tenha posto em verdade consigo mesma. Neste capítulo examinaremos as grandes formas em que discorreu e discorre a atualização da verdade existencial. Hegel, tendo restringindo à luta e ao trabalho os momentos propulsores da consciência de si, se por um lado inaugurou genialmente o estudo da problemática das consciências, por outro restringiu as formas em que se traduz o reconhecimento intersubjetivo. Num de seus fragmentos de juventude, vislumbra no amor o impulso que se desdobra e unifica e que provoca esse “conhecer-se” dos espíritos, além de toda corporalidade. Na multiplicidade do mundo, que deve ser unificada na chama do amor, exprime-se o esboço da mediação que supõe sempre o não-ser de uma determinada coisa como premissa de seu próprio desenvolvimento. Segundo A. Kojève, Hegel não insistiu na doutrina do amor como autentificação da verdade existencial porque temia que o reconhecimento derivado do amor só se pudesse exercer no plano pessoal e particular. “L’Amour (humain) est lui aussi un désir de reconnaissance: l’amant veut être aimé, c’est-à-dire reconnu comme valeur absolue ou universelle dans sa particularité même, quis le distingue de tous les autres [...] Ce que Hegel reproche (implicitement) dans la Phénoménologie à l’Amour, c’est d’une part son caractère privé (on ne peut être aimé que par très peu de personnes tandis qu’on peut être universellement reconnu).”[10] Nesta primeira tentativa de Hegel de encontrar o motor da emergência e patenteação pessoais, vemos que o problema é suscetível de diversos acertamentos. Se, posteriormente, a Fenomenologia prefere dar acento exclusivo à atividade negadora e criadora da luta e do trabalho, isto se deve em grande parte a motivos histórico-políticos. O material antropológico e etnográfico de que dispunha Hegel não lhe permitia uma compreensão exata da conduta dos povos primitivos e dos grandes fatores atuantes da história. Vendo, no decurso dos fatos históricos, unicamente a antitética da consciência nobre e da consciência trabalhadora, isto é, projetando na totalidade da história do espírito os fenômenos revolucionários de seu tempo, Hegel comprimiu a fluidez do jogo das consciências no esquema redutor da luta e do trabalho. Apelando, porém, para um conceito mais amplo da interação humana, veremos como a luta e o trabalho passam a figurar entre as formas possíveis do vir a ser da consciência, não constituindo, entretanto, sua forma exclusiva. Nas manifestações humanas em que deparamos com a vontade de preponderar, de exceder, de manifestar uma superioridade de natureza corporal ou espiritual, podemos encontrar um momento promotor da personalidade e da cultura. No jogo particularmente e em todas as competições em que o homem põe à prova sua força, destreza e habilidade, manifesta-se a vontade de assegurar seu prestígio pessoal. A importância do sentido agonal da vida, como expressão de um impulso de perfeição e beleza, foi destacada ultimamente de maneira incisiva, como fator dinâmico do desenvolvimento cultural. Estamos muito longe das ideias utilitaristas do século passado que viam nas objetividades culturais e nos valores que determinam o nosso comportamento o resultado de uma atividade forçosamente “séria” e dirigida ao imediato. Como observou muito bem Ortega y Gasset, na formação de um complexo cultural há muito de festa, exuberância, impulso lúdico e desportivo de viver. O homem fortifica e assegura sua superioridade sobre as coisas na atividade agonal e lúdica e em todas as formas de competição, de desafio e de emulação. Hegel afirmara que somente no risco da própria vida e na luta pela supremacia, na seriedade desesperada da consciência de si é que poderíamos reconhecer uma experiência de índole criadora. Entretanto, as modernas contribuições ao estudo do homem mostraram que a atividade histórica transcorre muitas vezes em terreno menos sério e conspícuo. A vida conflitual assume nas diferentes comunidades históricas formas imprevistas e inclassificáveis a priori. O homem sempre manifestou o gosto da porfia, da emulação e da luta pelo reconhecimento. O jogo, entretanto, em seu mais amplo sentido abarca todos os ramos possíveis da árvore cultural. Encontramos o impulso lúdico, como demonstrou fartamente Huizinga, não só nos embates da guerra, como também nos fenômenos religiosos, artísticos, jurídicos, políticos, filosóficos, etc. “A cultura surge em forma de jogo, a cultura no princípio é jogo. Não se deve, entretanto, compreender esta afirmação no sentido de que o jogo se transformasse ou transmutasse em cultura, porém no sentido de que a cultura, em suas fases primárias, tem algo de lúdico, isto é, desenvolve-se nas formas e com ânimo de um jogo.” O que nos compete demonstrar conclusivamente é o papel da atividade lúdica no estabelecimento da presença pessoal. O jogo não é unicamente a manifestação de uma pletora, de uma excedência, de um impulso de auto-afirmação. No jogo, o homem é — como no caso do conhecimento — determinado pelo objeto que lhe confere apenas o ponto de partida para o exercício de sua fantasia figurativa. Como demonstrou Buytendijk, o jogo implica sempre um jogar com figuras, com as possíveis formas de conduta do contendor ou daquilo com que se joga. O “espaço do jogo” é justamente o campo onde se inscrevem essas possibilidades com que temos que nos haver e onde se exerce nossa liberdade. Não há possibilidade de jogo quando não podemos transcender o dado em vista de sua possibilidade figurativa. Essa fantasia que cria um mundo de ocasiões, onde se insere o nosso comportamento, é a força que negando o mundo corrente, instala o campo da ação lúdica. A absorção e a abstração próprias ao fenômeno do jogo derivam dessa imaginação produtiva que funda o espaço onde se desenrolará a representação ou a competição agonal. O jogo não consulta o dado, mas é uma atividade fantástica e criadora que encena um complexo de sentidos e práticas dinâmicas. Com referência ao papel da ação lúdica diz Leo Frobenius que toda a grande força criadora e civilizadora procede da fonte fundamental do jogo da criança que traz em si uma força demoníaca e criadora. Toda a realidade cultural, para Frobenius, é uma realidade “representada”, isto é, uma reação espontânea e livre dos poderes demoníacos do nosso eu. Vemos, portanto, que em toda a extensão do problema lúdico vem à luz algo de livre, espontâneo e vitorioso sobre o limite constrangedor do dado. É nesse sentido que devemos compreender o célebre dito de Schiller: “O homem só é verdadeiramente grande quando joga.” Schiller via, pois, no jogo, isto é, no desenvolvimento da fantasia produtora, a genuína encarnação da liberdade subjetiva. Em que sentido devemos compreender o papel de reconhecimento recíproco inerente à atividade lúdica? Se no jogo propõe-se à consciência uma dificuldade, obstáculo ou conduta a superar, patenteando a capacidade e força pessoais, é claro que na cena lúdica se evidencia o poder da liberdade. O prestígio e a fama que envolviam, na Grécia antiga, os vencedores das competições e dos jogos olímpicos são um índice deste papel revelador e autentificador do jogo. Na atividade do jogar expressa-se um desejo de independência, liberdade de movimentos, agilidade e vigilância, que conferem à sua natureza uma dignidade ontológica superior. Em geral, o jogo supõe sempre um antagonista, estando, pois na dimensão do ser-para-o-outro; mesmo nos jogos solitários dá-se esta referência a um testemunho que pode virtualmente aferir o nosso acerto. Ao jogar, pois, somos objetos de jogo e é nesta determinação particular que aportamos a afirmação de nosso poder e destreza pessoais. Numa pugna intelectual, os contendores, através de um complexo de questões, procuram paralisar a capacidade discursiva do interlocutor, pretendendo reduzi-lo à sua desvalida e nua objetividade. O não-saber funciona neste caso como uma incapacidade de desvencilhar-se de uma situação, acarretando a sujeição à transcendência do outro. Na atividade lúdica manifestam-se todos os requisitos exigidos pelo processo do reconhecimento das consciências que é, em última instância, o ato decidido do “por si” que quer apoderar-se do seu ser imediato. No desenrolar-se do processo lúdico constatamos a enérgica atualização das possibilidades humanas, a tentativa da redução do não-eu ao eu. Como diz Sartre, “le jeu en effet comme l’ironie kirkegaardienne, délivre la subjectivité. Qu’est-ce qu’un jeu, en effet, sinon une activité dont l’homme est l’origine première, dont l’homme pose lui-même les principes et qui ne peut avoir de conséquences que selon les principes posés? Dès qu’un homme se saisit comme libre et veut user de sa liberté, quelle que puisse être d´ailleurs son angoisse, son activité est de jeu.”[11] O importante no exercício dessa liberdade agonal é justamente o seu alcance intersubjetivo, isto é, o ser-diante-do-outro e a conexão de reconhecimento que estabelece. O jogador se põe no espaço de seu em-si-para-o-outro e é nesta determinação que se assevera o seu projeto de recuperação. Como, porém, o projeto de recuperação é o próprio esquema do reconhecimento, o jogo se identifica com uma das formas da realização da consciência de si. O jogo, em seu sentido mais amplo, é um movimento de superação do nosso ser imediato ou, como queria Hegel, uma supressão do objeto. O sonho secreto do jogador é o de uma absoluta liberdade de gestos, movimentos e possibilidades, o de uma agilidade pura, capaz de vencer todas as resistências. Esse desideratum realizar-se-ia mediante a total apropriação do “em si”, mediante a purificação de toda carga objetiva. Idêntica finalidade se aninha na vontade de promoção do nosso eu pessoal, que sonha com a absoluta criatividade. Eis porque podemos considerar a porfia lúdica, em sua tendência recíproca de superação, como um jogo de transcendências que clamam pelo reconhecimento. Como afirmou Sartre, no jogo tudo é posto pelo eu que se comporta de um modo livre e criador. Esta liberdade que consideramos o núcleo ontológico do homem, a expressão da consciência de si, afiança-se formalmente na praxis lúdica. No espaço do jogo, o homem exibe e produz sua prioridade ontológica relativamente às coisas. Uma ilustração marcante do sentido de auto-afirmação pessoal através do impulso agonal, encontramo-la numa referência de Huizinga acerca de um costume existente em certas comunidades primitivas. Referimo-nos ao potlach. Em determinadas épocas certos grupos de uma tribo se defrontam e numa demonstração paroxística de generosidade e de ostentação distribuem, doam ou destroem a totalidade de seus bens. O alcance deste despojamento material vai a limites inconcebíveis. Afirma Huizinga que nas práticas do potlach se manifesta o instinto agonal de um grupo, o jogo de uma sociedade que potencia e eleva a uma esfera superior a personalidade individual e coletiva. Não há exemplo mais eloqüente do que este da vontade humana de prestígio e de glória, do reconhecimento de sua superioridade sobre o meramente material. Este fenômeno social transcorre num ambiente de celebração e de festa, com ânimo puramente lúdico. Estamos muito longe daquele ambiente cruento e feroz em que Hegel procurou exclusivamente situar o advento da consciência de si. Todo jogo e principalmente as manifestações agonais primitivas podem degenerar em práticas sangrentas, estas ocorrências não pertencendo entretanto à sua natureza íntima. O lúdico pode, pois, se apresentar ao lado da luta de vida e morte e do trabalho, como forma universal da antropogênese. O jogo, libertando a subjetividade, propicia a emergência do homem verdadeiro, sendo, pois, uma forma de transcendência do mero estar aí. Além de Schiller, Schlegel também pressentiu o papel purificador da disposição lúdica, vendo a ironia e no chiste uma explosão de espírito e da liberdade. Como sabemos, a atitude irônica foi reconhecida por todos os românticos como o fenômeno primordial da liberdade. Ironizar é jogar com as coisas, com todas as coisas que se apresentam ao eu como expressões de sua figurabilidade infinita. O eu irônico não se atém a nenhuma dessas figuras particulares, mas joga com todas, em sua genialidade titânica. No aforisma de Novalis “alles zu frivolizieren”, desejo de frivolizar tudo, está contida essa doutrina de independência genial do eu em relação a todas as suas figuras particulares, isto é, o sentido de destreza lúdica ilimitada. A linha de pensamento que desenvolvemos até aqui é de índole a nos convencer de que as formas de comunicação e intercurso das consciências exorbitam a determinação hegeliana da consciência dominadora e da consciência servil. Os expedientes e tipos de atividade através dos quais emerge a consciência de si não obedecem a qualquer legalidade exaustiva. Somente a história pragmática da liberdade é que pode nos instruir acerca das formas que o processo do reconhecimento revestiu através da história. O homem afirmou sua realidade ontológica pela linguagem variada da luta, do jogo, da imaginação criadora e de todas outras especificações do impulso de negatividade. Nesta obra histórica não interveio unicamente a operosidade do trabalho, como quer o materialismo dialético, mas toda a energia estuante e despreocupada que se manifesta nos concursos, porfias e em todos os movimentos festivos dos grupos sociais. Devemos incluir entre essas forças jovens e criadoras a faculdade mitopoiética que desenvolve o âmbito representativo de todas as culturas. A capacidade do fantástico atua na fixação do campo de jogo mitológico que está à base de todo o edifício cultural, tendo sido muitas vezes identificada com a atividade imaginativa da criança em seu abandono lúdico. No ensimesmamento do brinquedo, a criança exterioriza um mundo de realidades que formam o décor próprio de sua representação lúdica. Este fenômeno é muito análogo à determinação do imaginário original de uma comunidade humana em suas vicissitudes primitivas. Tanto a criança como o homem, em sua índole sociológico-cultural, reprovam qualquer determinação naturalística, tanto a primeira como o segundo criando seu mundo próprio, sua interpretação do contorno envolvente. A este poder inerente à realidade humana, Frobenius dá o nome de impulso demoníaco, acrescentando que a vida na dimensão demoníaca, isto é, como “impulso de jogo é o criar, o transformar, a criatividade em si mesma”[12]. O jogo, na acepção aqui usada, tendo como elemento a prospecção fantástica de um mundo de possibilidades, comparece de maneira ostensiva entre os elementos morfogenéticos da cultura e da personalidade humana. Vemos através da história o homem asseverando suas possibilidades originais e requerendo o reconhecimento de suas prerrogativas, num exercício de múltiplas formas de exteriorização e plasmação criadoras. É nossa opinião, entretanto, que ao adicionar à dialética do senhor e do escravo a dialética agonal e lúdica, não esgotamos as formas possíveis que pode assumir o fecundo jogo das consciências. Hegel, ao escolher um modelo único de interação, falseou e empobreceu a infinita complexidade do problema. A vontade de alcançar um conceito da conexão das existências não deve prevalecer sobre o respeito às manifestações concretas desta mesma conexão. Se seguíssemos a ponte que nos leva à simplificação, diríamos que entre os homens só podem existir dois movimentos: o do amor e do ódio, este reduzindo o “outro” a uma objetividade incômoda, criando distâncias e rompendo qualquer comunicação, e o amor, inversamente, dissolvendo as concreções objetivas numa unidade de vida, aproximando e preparando os espíritos para uma homologia superior.

A dialética da solidão e do encontro
Os moralistas de todas as épocas descreveram a sociedade em que se desenvolve a nossa existência pública, como uma esfera de contrafação, dissímulo e hipocrisia. A vida que cumprimos nesse contexto é um contínuo afastamento de nossas possibilidades pessoais, um papel que não decorre dos reclamos de nossa vocação original, mas que se impõe pelas circunstâncias da exterioridade coletiva. A diferenciação entre um eu exterior, social e público e um eu profundo, genuíno e irredutível é uma experiência de nosso senso interno. A consequência da projeção exterior de nossa consciência manifesta-se na subordinação da verdade-pessoal ao sentido de um complexo de atitudes, pensamentos, crenças e palavras que recobrem a nossa fisionomia personalíssima. O alcance desta constatação serviu de tema ao pessimismo filosófico que viu na contingência de nossas relações com os outros homens a marca da miséria radical do nosso estado. A condição da convivência com os outros seria o equívoco, o erro, a completa falsificação de nosso estatuto hominal. A sociedade, como espaço total da ação inter-humana, seria, como afirmou Schopenhauer, um baile de máscaras, uma pseudomorfose inexorável onde não se apresentariam ocasiões para a sinceridade pessoal. Este quadro esboçado pelos moralistas corresponde, entretanto, a uma reflexão unilateral e imanentizadora que fixa uma determinação ôntica em sua pura intransitividade. O importante, porém, neste capítulo do comportamento do homem não é apenas o exercício da reflexão que dá as coordenadas do desespero humano, mas o eterno anseio de superar a alienação na não-verdade. Com isto, não queremos negar totalmente a importância da reflexão que se detém no quadro negativo do comércio das consciências, preferindo a enumeração do pecado da mentira e da deterioração das relações humanas, à mostração das tendências de autentificação da convivência espiritual.

Na história do pensamento moderno assistimos ao desenvolvimento desta reflexão pessimista da conduta, principalmente no conceito do racionalismo do século XVIII. A visão atomizadora, que então predominava, justapôs as consciências como átomos egoísticos e fechados que só tinham a noção do seu prazer e satisfação individuais. Num tal sistema de egoísmos é evidente que a argúcia, o dissímulo e a mentira e, em geral, todas as formas fictícias do comparecimento diante do outro deveriam prevalecer sobre o gesto generoso da confissão e amor pessoais. A máscara que o homem exibia diante do outro era mais conveniente para seus fins e apetites do que a tradução fiel de sua realidade como pessoa. Os homens relacionavam-se como átomos isolados e na busca desvairada do prazer organizavam-se como determinações exteriores, num entrechoque periférico de desejos exacerbados. O outro era, nessa situação, o exterior, o instrumento indiferente de um capricho momentâneo e, na melhor das hipóteses, a possibilidade de contrato egoístico. No entanto, tal caracterização do mundo das relações humanas repousa no exercício de uma determinada óptica dos fatos. Max Scheler viu nesta possibilidade intelectual a categoria interpretativa do ódio, do impulso que separa, fixa, reduz e objetiva. O hábito mental que se expressa na pulverização do nexo dos espíritos denuncia o emprego desatinado de uma reflexão imanentizadora e objetivante. Ao ver na sociabilidade do homem apenas o entrechoque de vontades exclusivas e exteriores, traduzimos em termos do “em si” o que é compreensível somente como colaboração da intimidade do “por si”. Um mundo que não é surpreendido na conexão unitária das presenças pessoais, mas considerado unicamente segundo a vertente da vontade egoística, é um mundo desarticulado e prestes a sucumbir na insubstancialidade do não ser — “le monde cassé”, de que fala Gabriel Marcel. Destas considerações podemos depreender que a relação fundadora do ser-com-o-outro passa pelo campo inobjetivo do eu-tu e não do isto-aquilo, segundo a terminologia de Martin Buber. Em outras palavras: somos interiores à relação intersubjetiva, estando nela antes de nos apreendermos como singularidade pessoal, as relações das consciências apresentando, pois, um caráter interno e não externo. A reflexão espacializante é incapaz de surpreender este nexo transobjetivo do miteinandersein (ser-com-o-outro). A emergência simultânea do eu e do tu dá-se nas possibilidades da existência perdida e exteriorizada, da vida alienada e perdida, tanto quanto na dimensão da verdade e reconquista pessoais. Ver um só lado dessa alternativa, isto é, ater-se ao lado da não-verdade social é o destino da lógica atomizadora. Admitir as duas vertentes é a prerrogativa da meditação informada pelo sentimento da liberdade humana. Se o momento pessoal aparece, na esfera da existência coletiva, desfigurado pelas formas coercitivas da mentalidade impessoal, isto não nos autoriza a cercear a possibilidade de uma comunicação e afirmação subjetivas no plano da realidade ontológica. Sentir as insuficiências de um dado intercâmbio pessoal equivale a sentir o apelo de uma compreensão e unificação subjetivas mais profundas, a constante inquietude que percorre o circuito da comunicação sendo o sintoma da orientação vetorial que a anima. A sociedade e suas estruturas — instituições, formas e modos de ser — não se manifestam como um estar aí heterogêneo à nossa atividade, à maneira de um objeto que confisca a nossa liberdade. O ser das figuras e relações inter-humanas é suscetível de uma contínua alteração a favor de uma expressão mais legítima da criatividade que nos é própria. A sociedade, como quer Vedaldi, é uma atividade, ou melhor, é a atividade de cada qual: “La società non è nelle leggi e nelle istituzioni che mi trovo davanti, ma nell’attività che svolgo per superarle, rovesciarle, sostituirle; nella mia attività che è lotta, rivoluzione o altro.”[13] O homem não pode encontrar equilíbrio e estabilidade em ordenamentos que frustram o desenvolvimento de sua personalidade fundamental, mas é movido sempre a denunciar e comover os sistemas de convivência que desmerecem a sua verdade interior. A dialética, a oposição dinâmica entre a estrutura social e a vida que procura continuamente uma expressão mais fiel de suas possibilidades, delineiam o grande mural do processo histórico. A história humana é, como disse Hegel, uma façanha da liberdade. A vontade de fundamentação existencial impede que se possa eternizar um sistema de relações baseado nos módulos da impessoalidade, do anonimato e da não-verdade. A certeza interior da verdade existencial tende a implantar-se fora de nós, estabelecendo o regime da comunicação das consciências. O mero estar aí das individualidades, como contiguidade de centros egoísticos, deve ceder lugar a um convívio reciprocamente promissor de liberdade. Esta exigência, como impulso ideal, alimenta a dinâmica da dialética das consciências. Se não houvesse no coração do homem esta vontade de fundamentação metafísica, se o homem não fosse animal metafísico de que falou Schopenhauer, nada o impediria de evanescer na insubstancialidade e dispersão do puro acontecer. O que confere, entretanto, força dialético-construtiva e unificadora à realidade humana é justamente o anseio de superar o já dado do nosso ser-com-o-outro, em formas cada vez mais amplas e transparentes de nossa fisionomia ontológica. A consecução do pleno reconhecimento das consciências em ordenamentos sociais e privados que traduzam a possibilidade total de comunicação é um ideal infinito, uma tarefa ilimitada da vontade de fundamentação. Na dimensão temporal, entretanto, a comunicação é sempre incompleta e precária, constituindo uma sucessão de movimentos que nunca podem estabilizar-se numa forma definitiva. O estabelecimento de um elo necessário e fixo entre os homens, que não abrisse mais espaço para o jogo de aprofundamento das próprias relações, equivaleria à suspensão da vida intersubjetiva. O reconhecimento e a recíproca aproximação das consciências não pode produzir-se sob a ação de um ditado ou de uma imposição exterior. Um estado definitivo e acabado das relações inter-humanas representaria o esclerosamento de um vínculo necessariamente vivo e sempre novamente escolhido, mediante a reciprocidade dos dois pólos subjetivos. Como diz Jaspers, a insuficiência (Unvollendung) do elo comunicativo é uma das manifestações de que, para o homem, a verdade só é dada como verdade em devenir. A presença pessoal que assoma no contato dos espíritos não está a salvo da degradação subsequente, na distância do objeto. A possibilidade de não-comunicação assedia continuamente a verdade provisoriamente alcançada e o sentimento da radical penúria de todo regime unitivo, como limite intransponível, é um dos grandes problemas que se propõe à reflexão filosófica. Supor que a revelação das consciências possa se tornar algum dia posse definitiva do espírito, equivale a desconhecer o fundamento mesmo da vida espiritual. A diferença entre o interno e o externo, entre a verdade como subjetividade e a verdade como realidade objetiva, opõe um veto a qualquer satisfação no já conseguido. Assim, pois, a sociedade, no que tem de produto exterior à nossa consciência, aparece aos espíritos mais profundos e inflamados de verdade, como qualquer coisa de material e limitante. A vontade de superação desse estado de coisas que se manifesta não raro na busca do silêncio, da solidão e do afastamento da praça pública, ilustra esta oposição entre o exterior e o interior, no sentido da comunicação. O afastamento de determinados homens, ambiente e setores da sociedade não equivale ao abandono de qualquer trato humano, mas ao desenvolvimento, em outros planos e direções, de um convívio mais aderente à própria consciência. Nietzsche, com o seu amor ao mais longínquo, ilustra admiravelmente essa solidão populada a que nos referimos. A solidão é, em sua essência, a escolha de um outro convívio, uma forma de superação que se dirige para um Encontro decisivo. Romper com o mundo é um ato de liberdade, uma obra do espírito e não qualquer coisa de imediato e natural. Se o nosso ser se esgotasse na coexistência bio-social, se o dado social fosse tudo, não sentiríamos, às vezes, essa coexistência como um depauperamento do ser, procurando na solidão a reconquista de um bem superior. Vendo o equívoco em nós e em torno de nós, procuramos um novo direito para a existência. A solidão é, portanto, o índice do poder de franquear e transgredir a lei do imediato e de vencer todo um conjunto de mecanismos, hábitos e inércias biossociais, instituindo em nós e fora de nós um novo contorno existencial. Fala-se comumente na solidão das praias, em palmeiras ou bosques solitários. Essas expressões são, entretanto, meras analogias, pois somente ao homem é dada a solidão. As coisas são exterioridade pura, incapacidade de recolhimento e de autodistanciamento. Unicamente o nosso ser, como não-coisa, como excedente ao dado, como espírito, pode produzir-se como destino solitário e distante. O problema da solidão relaciona-se essencialmente com a dialética das consciências, pois envolve todo um conjunto de comportamentos possíveis entre o eu e sua circunstância social. É de interesse, portanto, que nos detenhamos um momento na análise do comportamento solitário.

A ruptura do convívio humano não é um fato unívoco e simples, mas comporta toda uma gama de motivações e tonalidades que podemos fixar. Não existe uma só espécie de solidão e isolamento, mas inúmeras: autênticas e falazes, de carência e de plenitude, de ressentimento e de simpatia. A superação inerente ao isolamento, o seu movimento próprio de transcendência, tanto pode significar triunfo sobre o dado e libertação, como em outros casos, tortuosa abdicação da própria alma. Neste último caso, ao negar o outro, ao insular-se em seu espaço próprio, o solitário apenas procura uma nova imunidade para a sua mais íntima escravidão. Escapando ao olhar do próximo, o homem não proporciona a si mesmo qualquer nova possibilidade, não potencia a sua faculdade de comunicação, mas somente se contrai num mutismo sedutor. Encontramos esta disposição para a reserva e para o isolamento espiritual no caráter psicológico do demoníaco. Neste caso, a ruptura de comunicação não promana de uma necessidade de convívio superior, do sentimento oprimente de uma presença limitante, mas do repúdio à superação da reserva demoníaco, através do apelo de outra liberdade. Como afirmou Kierkegaard, o demoníaco é a liberdade que se volta contra si mesma, e bem podemos compreender esta afirmação, se nos lembrarmos de que só podemos iniciar-nos na liberdade no campo de força das outras liberdades. A separação oposta pela reserva e pelo mutismo assinala o enrijecimento da consciência em seu “estar aí” pecaminoso, a sua renitência em relação ao já cumprido. Na intransitividade e na angústia do mal, a alma escravizada ao “em si” furta-se ao diálogo fluidificador das outras consciências. Ao lado desta forma privativa de solidão, devemos anotar a grande solidão dos que se afastam do ruído, do estrépito do mundo, para se unirem, num momento de amor, a uma presença que excede a todas as outras. Não encontramos neste caso, evidentemente, a indisponibilidade malevolente e recalcitrante como fundamento da separação, mas, pelo contrário, deparamos com uma maior abertura (Offenheit) para o sentimento comunicativo em seu adensamento ontológico. A santidade tem em si este sentido de silêncio, de solidão interior, como preparação para o encontro definitivo, para esse estar “só, a sós, com o Solitário”. Mesmo nos casos menos extremados de comportamento reclusivo encontramos, como prelúdio a todo verdadeiro movimento de autentificação e verdade existenciais, a volta, o recolhimento em si mesmo. Como diz Jaspers, “não posso tornar-me eu mesmo sem comunicar-me e não posso comunicar-me sem conhecer a solidão. Em toda superação de solidão, através do processo comunicativo, desenvolve-se uma nova solidão que não pode desaparecer sem que eu mesmo, como condição do processo comunicativo, desapareça.” (Ich kann nicht selbst werden, ohne in Kommunication zu treten und nicht in Kommunication treten, ohne einsam zu sein. In aller Aufhebung der Einsamkeit, durch Kommnication wächst eine neue Einsamkeit, die nicht verschwinden kann, ohne dass ich selbst als Bedingung der Kommunication aufhöre)[14]. Ao transcender solitariamente para um novo contexto de sociabilidade, não cesso de ser-com-o-outro, dispondo-me no entanto a uma sociabilidade virtual e possível. O ens a se aristotélico vive em solidão por ditado de sua própria essência, não derivando seu isolamento de uma opção a favor de uma coexistência livremente posta. A solidão no homem, entretanto, é uma preparação, uma disposição para a verdade existencial e não a realização automática de um desenho essencial. Na realidade humana, a solidão é intrinsecamente dialética e transitiva, não constituindo um fim em si mesmo. A estrutura ontológica do homem, como realidade que complica a colaboração do outro em sua própria execução, faz que todas as formas de separação se orientem intencionalmente para uma nova comunicação. Esta dialética entre os movimentos de afastamento e contato com os outros, de reflexão interior e de comércio com os outros “eus”, constitui a temática de nossa trajetória existencial. Nenhum dos extremos, seja a comunicação compulsória ou o enclausuramento irrevogável, podem propiciar, como momentos rígidos e incomovíveis, o advento da verdade pessoal. A comunicação entendida neste sentindo de evento social irredutível, sem trégua que possibilite a volta do homem a si mesmo, em nada se distingue do divertissement e da dispersão absoluta na pura ação insubstancial. A consciência que não dispõe de um instante de ensimesmamento e que vê seu ser mais íntimo constantemente exposto e devassado será colhida pelo desespero. Do tormento da vida exposta falou Dostoievsky nas páginas inesquecíveis da Recordação da casa dos mortos. A outra alternativa — a solidão que não desemboca num novo e mais caloroso encontro — traduz igualmente uma forma privativa da revelação da consciência de si. O estar condenado à não-convivência por este ou por aquele motivo, seja por uma decisão interior, como no demoníaco, seja por uma circunstância alheia à nossa vontade, reflete-se na consciência como um modo deficiente de nossas possibilidades, como o sentimento de um vazio em relação ao desempenho de determinados atos intencionais que envolvem a presença de um tu em geral. Assim, pois, os pares opostos da comunicação inautêntica e da solidão compulsória devem resolver-se nesse momento de fluxo e refluxo que constitui a dinâmica do exercício vital. Toca-nos agora estudar outro fenômeno cuja incidência modifica ponderavelmente o tipo de relação inter-humana do sujeito. Referimo-nos à doença. Na ocorrência patológica a realidade somática, que se manifestava à consciência em sua pura transitividade, cobra um relevo e uma gravidade incomuns, a ponto de perturbar o trato normal do doente com os outros homens. Como diz Philippe Müller, “dans sa conséquence la plus immediate, la maladie exclue le malade des relations sociales où se déroulait jusque là sa destinée. C’est que par nature, la maladie, tant qu’elle dure, ferme l’avenir au malade et l’empêche d’en disposer.”[15] O homem absorvido em sua corporalidade, transformado em coisa, não possui domínio de seus gestos e movimentos, não podendo portanto participar do complexo de atividades da sociedade dos sãos. O que verdadeiramente se interpõe na doença, entre o doente e o espaço social, é a presença hipertrófica da facticidade biopsíquica — pois a doença também pode ser de origem mental — que de mero traço expressivo e significativo se transforma em conteúdo absorvente. Não podendo participar dos propósitos, iniciativas e afazeres do grupo social, o homem enfermo fica à margem do curso das coisas. Este afastamento pode adquirir um significado espiritual extraordinário para o que se sente momentânea ou definitivamente desligado das atividades grupais. A meditação existencial sempre conferiu à doença — com exclusão da que representa um aniquilamento do eu — um papel importante na evolução interior do homem. O doente, por não ter os olhos ofuscados pelos tópicos do momento e pelos conteúdos imeritórios da conversa banal, é capaz de transcender para uma zona inacessível aos demais. Caberia dizer aqui alguma coisa acerca das doenças mentais que de forma decisiva afastam o eu do comércio social. A condição de possibilidade do trato social é a participação da comunidade das consciências num mesmo mundo. Ora, como sabemos, em muitas figuras patognomônicas, o doente projeta um mundo alucinatório diverso da realidade ambiente, que o distancia de qualquer diálogo. Durante o sonho, diz Heráclito, cada homem vive em seu mundo próprio, voltando na vigília a coabitar no mundo dos demais. A pluralidade de contornos mundanais, como elemento de diferença entre as consciências, é o interruptor de uma linguagem universalmente validade. A heterogeneidade de conteúdos representativos manifesta-se particularmente no que diz respeito à dimensão psicológica do homem, em relação à qual cada um vive perdido em seus estados e sentimentos próprios. A consciência humana sempre se revoltou contra essa segregação do sujeito em seu próprio mundo, contra o solipsismo inato de sua condição. O objetivo máximo do conhecimento, no idealismo, consistiu em transcender as impressões e sensações particularíssimas do eu num mundo objetivo e comum a todos. Partindo de dados e conteúdos incomunicáveis à razão elaboradora, o esforço humano erigiu uma representação universalmente válida e legítima para todos. A tarefa da racionalização estaria sujeita não ao eu empírico, mas ao eu transcendental, como princípio de comunicabilidade universal das consciências. Enumeramos acima alguns fatos que podem, de certa maneira, paralisar e deter o processo do recíproco reconhecimento das consciências, seja desorientado-as em seu modo de ser, seja opondo resistências ao seu comércio mútuo. Não devemos compreender estas ocorrências que obstruem a revelação da verdade existencial, como qualquer coisa de adventício à liberdade humana. Pelo contrário, muitas vezes, para ocultar a si mesmo o peso de sua condição, o homem se lança espontaneamente num existir anômalo e inautêntico. Heidegger mostrou admiravelmente como os modos de ser inautênticos da palavra, da interpretação e da Befindlichkeit, se originam por uma iniciativa culposa do eu, que premido pela revelação do nada, se engolfa no mundo aparencial do “todo mundo” (Man). A responsabilidade dessas formas deficientes e privativas de convivência recai no próprio eu e não em obstáculos ocasionalmente dados. O homem, como fonte incondicional de sua realidade, como ipseidade pura, é o responsável pela separação e afastamento da verdade existencial que envenena o ambiente social. A atitude que convém ao espírito que, através de todas as insídias e obstáculos da não-verdade, propende para uma fidelidade ontológica, deve ser a da plena disponibilidade para o mistério de si mesmo e do outro. Poderíamos caracterizar esta atitude como uma espécie de respeito piedoso por tudo que existe de latente, potencial, de mistério irrevelado no outro e em nós mesmos, como uma decidida oposição à atitude que fixa, objetiva e cerceia toda esperança de novos desenvolvimentos da liberdade. Nessa altura de nossa investigação, parece-nos importante lembrar a fundamental diferença entre uma filosofia entendida como um sistema cerrado de “verdades”, como um conjunto de evidências dadas e uma filosofia elaborada como movimento de transcendência, como idioma do apelo e da liberdade. A primeira tendência se materializa em todas as correntes que tomam como princípio a ciência realizada, o pensamento pensado, isto é, qualquer objetividade fixa e invariável. Neste grupo se incluem as filosofias da essência, da forma e da coisa, em oposição às filosofias do eu e da ação. A segunda tendência se encarna em toda a meditação que proclama ser a verdadeira objetividade a própria subjetividade, a realidade do ator, do sujeito implicado na peripécia existencial. Nesta última acepção do filosofar que se procura manter na pura atualidade do pensamento pensante, resolvendo o ser no fazer, o horizonte de possibilidades do real não se apresenta como um conjunto circunscritível, como um todo cerrado. A realidade tem sempre uma dimensão excêntrica, um “por si”, qualquer coisa que se anuncia além de toda angústia e limitação do já dado. Tal realidade só pode ser traduzida numa filosofia da esperança. Por mais que acentuemos a infinitude inexaurível do Todo e a plenitude insuperável do ser, diante de um sistema do ser dado, não nos podemos furtar à impressão de que estamos diante de uma realidade irrevogável e cumprida, de algo que se impõe inapelavelmente. O pensamento pelo qual propugnamos supõe um horizonte sempre aberto para o novo e para o original, uma historicidade procedente do poder criador da liberdade humana. Assim, pois, não é possível falar de uma visão histórica como totalidade, como objeto, pois o próprio do existir histórico é ser como sistema inacabado, como ação que propõe outras ações, como fato sempre em questão. Se compreendermos este conjunto ilimitado de ações que preenchem a dimensão histórica como um contínuo operar e cooperar, poderemos valorizar justamente tal filosofia, no que concerne à conexão ontológica das consciências. O horizonte sempre aberto da historicidade é o possível da presença espiritual, a perspectiva do determinável que se perfila diante do “por si”. A conexão do já dado permanece como um espaço de movimentos possíveis, como o puro determinável, como a ocasião para uma expansão mais íntegra das forças do “por si”. A não-comunicação, tomada no sentido de ausência pessoal de intolerância e aversão pelo que há de mais íntimo no outro, como força não-congratulatória, propõe-se nesta perspectiva como contingência franqueável pelo sentido edificante da presença e da palavra propiciatórias. Os limites (entendendo-se o “em si” do não-reconhecimento como limite) que se levantam continuamente no caminho da consciência como elementos de separação e de interrupção do poder comunicativo, nunca se propõem ao nosso espírito sob a forma de um destino inflexível. Os vínculos já existentes entre as consciências, em sua mescla de ocultação e presença recíprocas, são sempre contornados pela negatividade do poder ser que vai encontrando novas possibilidades comunicativas além do comércio estabelecido. Se a doutrina do reconhecimento é, em resumidas linhas, o desenvolvimento da lógica da verdade existencial, e se além do terreno desta verdade só existe a aparência e o não-ser, vemos o que há de caduco, de ilusório nos momentos limitantes do “em si”. Ninguém tratou de maneira mais impressionante desta revelação da nulidade das barreiras humanas, que separam as consciências, do que Tolstoi, em sua novela Amo e servo. A supressão da forma de coexistência, como determinação meramente objetiva, é o escopo de todos os planos da atuação humana, da vida política, religiosa, artística, etc. Esta substituição equivale à transformação da ordem natural na ordem humana. A suspensão do regime do ser natural, do estar aí, através da negatividade infinita da consciência não se dá, como pensavam os antigos filósofos da história, segundo um processo linear e contínuo. A história não é o cenário da Igreja triunfante, mas sim o da Igreja militante. Cada época realiza o sentido próprio da presença espiritual, a sucessão dos momentos históricos não constituindo uma potenciação progressiva da explicitação espiritual do homem. Como característica geral do regime de presença e da forma de atualização da liberdade, devemos ressaltar essas alternâncias de plenitude e de declínios espirituais, de estabilidade e de crise, que pontilham a odisseia da consciência. Não devemos supor que a evolução histórica é acompanhada variavelmente pelo aprofundamento constante das relações intersubjetivas, por uma promoção cada vez mais intensa das possibilidades próprias e do outro. A sociedade, em sua evolução, pode ir secretando um conjunto cada vez maior de elementos que atenuam ou que estorvam a realização de uma vida radicada nas matrizes ontológicas. Podemos classificar entre os fatores que interceptam qualquer desenvolvimento espiritual fundado na verdade, o regime das massas que predomina no quadro histórico de nossos dias. A ação imediata das massas é a de projetar a consciência fora de si mesma, revestindo-a de uma personalidade adventícia e multitudinária. Como conjunto psicológico autônomo, a massa, com os apetites, preferências e valores que lhe são próprios, absorve e aniquila a singularidade pessoal. Enquanto átomo do ser coletivo, o homem vive fora de si mesmo, na exterioridade pura das relações sociais, sem qualquer notícia de sua verdade própria. Como já afirmamos anteriormente, somente quem procura ser si mesmo pode entabular vínculos autênticos com o outro. Ora, num sistema de convivência em que todos vivem alterados e perdidos na inautenticidade, é evidente que não há espaço para uma comunidade assentada em bases ontológicas. A vida social, num tal regime, adquire o aspecto de um espetáculo de títeres, onde todos os movimentos da alma são regidos por cordéis invisíveis. Não é mais o homem singular que quer, sente e pensa, mas são as mãos, os olhos e o coração do todo que pensa, sente e quer, através da partícula individual. A possibilidade de uma comunidade vivente de pessoas, cujo trato recíproco tem uma fisionomia particular, degenerar na formação coletiva da massa, é um fenômeno recorrente através da história. Os felahs egípcios e a plebe romana exemplificam o contínuo retorno deste processo. Vemos, pois, como a eventualidade da ausência pessoal se cerne sempre sobre o impulso autentificador da consciência. Outro fenômeno que devemos acentuar é o que Martin Buber denomina o contínuo crescimento da esfera do objeto, do “isso” através da história: “L’histoire de l’individu et l’histoire de l’humanité, si grandement qu’elles s’écartent l’une de l’autre par ailleurs, concordent en ce qu’elles marquent toutes deux une croissance continue du monde du cela.”[16] O significado deste conceito de um simples isto ou aquilo, aponta para uma entidade destituída de qualquer interioridade, de qualquer realidade existencial, sendo, em si mesma, mera relação com outra coisa. O mundo do “isso” é o mundo dos meios, das coisas utilizáveis, de todo o campo do auxiliar, coadjuvante e transitivo em nossa circunstância. Estas coisas das quais nos servimos são coisas e, portanto, mera exterioridade, carente de um dentro, e assim plena solubilidade em outras coisas. A ideia de meio, de “coisa para”, implica evidentemente o “para que” que condiciona o próprio conceito de coisa. Se iludirmos esse centro de referência, aplicando a tudo a mesma categoria funcional e transitiva de meio, esvaziaremos a realidade de toda a dimensão existencial e plena de sentido. A crescente importância dos meios no exercício da vida levou os homens a estender esta óptica ao campo total da realidade apreensível. O próprio sujeito foi submetido a esta ideia e compreendido como função particular dentro de hipóteses maiores, como o Estado, o Progresso, a História, a Igreja, etc. Como já tivemos ocasião de lembrar, sob o ponto de vista social, essa ampliação da esfera impessoal do “isso” traduziu-se, como bem observaram Jaspers e Marcel, na compressão e redução do homem ao limite de sua função profissional, dentro do mecanismo total. O homem passa a ser o que faz, não em sua expressão genuína, mas em sua acepção restritamente social. Assim é, que vivemos num mundo de médicos, engenheiros, professores, carteiros, etc., num mundo em aquilo que não representa uma utilidade social, uma “coisa para”, perde toda e qualquer possibilidade de reconhecimento, negando-se a possibilidade de uma vida transfuncional, de uma vida que é para si mesma e não para outra coisa. É muito fácil capacitarmo-nos de que neste mundo da terceira pessoa, todas as relações humanas estão distorcidas pela catalogação meramente funcional do outro. O outro é para mim, não outro, mas o que me serve no desempenho de sua personalidade profissional. Aparece aqui outra propensão da mentalidade científico-classificatória de certas épocas que substituem à riqueza e variedade das aparências os esquemas unificadores da razão. Determinados por esta tendência, somos levados a ver mais o geral do que o particular, mais a classe do que o indivíduo, mas a ideia do que a existência. Os homens se classificam nessa perspectiva em classes, raças, profissões, sindicatos, partidos, em tudo o que há de genérico e comum, de puramente espacial, perdendo-se assim toda a substância particular do existir. As relações que passam então a vigorar estão condicionadas pela interposição desse esquema e, em lugar de dirigirmo-nos ao homem singular e particular que encontramos, vemos nele unicamente a entidade que representa. A possibilidade desses fenômenos que entorpecem o diálogo profundo entre os homens, demonstra-nos estar a relação entre o eu e o tu sempre exposta à degenerescência, a esfera do “isso”, do abstrato esquemático e impessoal ameaçando constantemente o trato interpessoal autêntico. Este risco é, em suma, o risco da vida na terceira pessoa, o naufrágio da impessoalidade do “se”. Esta problemática foi desenvolvida de modo admirável por André Gide em seu livro Paludes, narrativa simbólica do que ele chamou “l’histoire de l’homme couché” isto é, da vida que perdeu toda relação consigo mesma e com a fonte de sua produtividade interna. Acrescenta Gide que essa história é a do território do Man na terminologia de Heidegger. O homem deitado, o homem na terceira pessoa é essa determinação primária do existir que foge à responsabilidade da escolha, das alternativas inquietantes, preferindo o fácil aconchego do “todo mundo”. Evidentemente nesse terreno pantanoso não podem vingar as formas mais altas da fidelidade a si mesmo e ao outro, nem a força que pressupõe o empenho decidido da própria existência.

Se quisermos completar a análise das experiências que nos incapacitam para o desempenho da existência na verdade, devemos dizer algo acerca dos fenômenos do tédio e da náusea. O tédio é a indiferença do homem em relação ao ser, é o deslocamento no que diz respeito a todas as coisas, a sensação de que o mundo, em seu conjunto, se funde numa total insignificância. No tédio, a consciência adquire um ritmo mais rápido do que os das coisas, saciando-se antecipadamente de todos os espetáculos e oportunidades vitais. A dialética própria do tédio assenta na desproporção entre a amplitude do espírito e a exiguidade do real; não encontrando apoio na flutuação do mundo, o entediado está continuamente exposto aos afluxos do nada. Poderíamos descrever esta experiência, em outras palavras, como a irrupção do nada na existência implantada numa determinação particular. O entediado, perdendo o sentido do valor das coisas, sente a vida como algo isócrono e pesado, e não encontra forças para estabelecer vínculos com o mundo e com o outro. A experiência do tédio interrompe o comércio das consciências, introduzindo um espaço refratário entre as subjetividades. Na náusea, assistimos igualmente a uma derrocada de todas as estruturas do real, de toda organização inteligível do mundo. Entretanto, a percepção da consciência afetada pela náusea é suscetível de captar a dissolução dos ordenamentos e das formas, na maré crescente da facticidade. A irrupção do elemento fáctico, material e visceral do mundo, na esfera da consciência, ocasiona a sensação de repugnância e de nojo em relação ao real. Se o tédio se traduz na experiência negativa da indiferença e da saciedade, a náusea remete para uma força positiva de repulsão e de recuo diante do existente. Como força interceptora da corrente comunicativa, a náusea é mais poderosa ainda do que o tédio. Afirmou Kierkegaard que existir é manifestar um interesse infinito por si mesmo, é querer ser si mesmo e não algo de adventício e exterior. Ora, como vimos, através da dialética das consciências, esta volta a si mesmo não se pode realizar sem o reconhecimento da autonomia existencial do outro. Somos nós mesmos, na medida em que nos interessamos profundamente no sentido de que o outro alcance sua verdade existencial. Essa paixão infinita por nós mesmos revela-se assim como paixão infinita pelo outro, como solicitude que tende para uma coexistência na verdade de si. Nesta ordem de ideias, o homem se confunde com o ato da volta a si mesmo, e assim, todas as conjunturas e situações que procuram desviá-lo desse impulso interno se lhe oferecem como “material do seu dever”. Há sempre uma dialética que pode transformar o não no sim, a suprema separação na suprema harmonia e o mundo do erro no mundo da verdade. Jaspers afirmou serem o regime e o aparato das massas, o nivelamento de todos os valores e capacidades, no mundo atual, o que dialeticamente produziu esta nova acuidade para a exceção e para o sentido singular do existir. Como movimento de negatividade, a nossa consciência está sempre em relação com seu oposto, com a negação de sua negação; porém, se não podemos pensar num asseguramento definitivo da verdade, numa vida segura e satisfeita de si, também não podemos perder-nos no sentimento de impotência e fatalidade determinística. Esta verdade foi resumida na afirmação de que o “em si”, o dado, a passividade do real, forma o campo do determinável do “por si”. Não há portanto situação — a não ser aquelas que enquadram nossa estrutura ontológica — que não seja susceptível de inúmeros desenvolvimentos, no caminho de uma autentificação dos laços intersubjetivos. Ao transcendermos em direção a nós mesmos, transcendemos ao mesmo tempo as muralhas que nos separam do outro, ou melhor: a transcendência em direção ao outro é a mesma que nos põe numa segura autoconsciência. Eis porque a dialética do encontro significa simultaneamente um encontro do outro e de si mesmo. Inversamente, a perda de si mesmo arrasta a perda e o desconhecimento do outro, acarretando a alienação de todos os vínculos entre as consciências. Escravizar o outro é escravizar o que há de substantivo em si mesmo; ser indiferente para com o outro é ser indiferente para consigo mesmo; em resumo, negar as possibilidades inerentes à pessoa do outro é impedir o próprio poder ser. A liberdade, em seu sentido dialético próprio, não se exerce a expensas da liberdade do outro, mantendo o outro como oposto ou como simples realidade intramundana. O amor, através do movimento de criação e promoção do valioso, tende justamente a superar os opostos, a unificar o que se estratificou na contraposição do simples estar aí. A obra veridicamente humana é aquela que se propõe comover os limites do que é separado, numa vida que se põe como criação a si mesma.

Sentido da dialética intersubjetiva
Ao perguntar pelo sentido da dialética das consciências, da atividade e da passividade do nosso ser-com-o-outro, devemos precaver-nos contra a interpretação desse sentido como sendo uma finalidade exterior e à qual esse processo deveria conduzir. Essa finalidade somos nós mesmos, e não algo de exterior a nós; o sentido que procuraremos revelar será, pois, o da própria natureza e essência do humano. As relações com as outras consciências promovem direta e indiretamente o acesso do homem ao próprio homem, pela forma de atuação do surgimento da alteridade. É o outro que nos dá consistência, que nos faz tatear os próprios limites, que nos dota de um eu exterior. Sem este ponto de apoio, dispersar-nos-íamos no vago dos impulsos e movimentos subjetivamente vividos, sem atingir jamais a medida do nosso próprio estado e valor. Se faltasse à consciência esse “fora” do existir com o outro, ela estaria impossibilitada de determinar-se na particularidade de sua escolha, de ser isto ou aquilo, pois lhe faltaria o princípio de consolidação de todas as suas opções. A nossa ação tem importância porque fica consignada nas outras consciências e aí se inscreve de forma indelével. O homem que não existisse na dimensão do outro, não poderia dotar suas ações de qualquer irreversibilidade. Todo o feito poderia ser refeito, todos os seus movimentos seriam revocáveis e destituídos, portanto, de qualquer peso ou gravidade. Se o outro integra as coordenadas de nossa finitude é justamente porque não podemos ser humanos sem a solidariedade da operação das consciências. Segundo afirma Sartre, a multiplicidade das consciências é uma síntese e não uma coleção, isto é, as relações que vinculam os sujeitos entre si são anastomoses internas e não princípios de justaposição. O surgimento do eu e do tu é o resultado de uma operação dupla e simultânea, em que apareço em meu ser-para-o-outro devido à transcendência do outro e em que o outro aparece em seu ser-para-mim, devido à minha própria transcendência. Este duplo movimento, entendido em seu sentido universal, forma a totalidade do ser-com-o-outro da realidade humana, constituindo o jogo que origina a presença de consciência a consciência, que põe um eu diante de um tu teatro vivo do desempenho intersubjetivo. A natureza de síntese deste processo unitário é devida ao fato de que um dos termos surge apenas com a cooperação do outro, a relação eu-tu sendo anterior ao eu e tu isolados. “No princípio era a relação” diz Martin Buber, isto é, no princípio é dada a síntese.

Hegel via na evolução desta síntese, nas fases de autorrevelação desta unidade, o processo do espírito em sua volta a si mesmo. Para ele, este todo era de certa maneira um todo dado que passava, de um estado virtual e infuso, à atualização de todas as suas virtualidades. A esta finalidade obedecia a interação das consciências, que deveria provocar a verdade da consciência de si. A luta, a invocação, o apelo, a conversão, todas essas formas da pedagogia histórico-universal deviam, segundo Hegel, propiciar o advento da era da consciência pensante em que, como o reconhecimento pleno das prerrogativas do espírito, cessariam de atuar. O sentido da ação e reação interpessoais assentaria, pois, na superação de sua realidade. Do ponto de vista que endossamos, entretanto, a condição nominal está intimamente ligada ao diálogo, é esse diálogo na multiplicidade de suas possibilidades e dimensões. A dialética que se desenvolve não “serve” a nada, não “prepara” nada, não “leva” a outra instância, mas é o próprio cumprimento das possibilidades humanas. Não pretendemos, entretanto, afirmar que através do comércio das consciências o homem não se apure e edifique, já que esse comércio é em grande parte apelo e invocação. O que rejeitamos é a possibilidade de um epílogo concludente desse processo, num estágio de reconhecimento definitivo. A finitude radical de nossa condição trabalha contra qualquer determinação, contra qualquer vitória definitiva. Como diz Pascal, a condição humana é o movimento. Um comportamento interpessoal que se estabiliza numa atitude, que não procura a sua superação, ascendendo a formas mais profundas, involui imediatamente para a ocultação de seu fervor comunicativo. A vontade de comunicação deve permanecer sempre acordada para que não degenere em rotina, em exterioridade de gestos e palavras e ausência de empenho interior. Como dissemos atrás, a presença está sempre ameaçada pela ruptura, pela separação, pela mera coexistência do estar aí. “O que se detém na permanência já está morto” (Was sich ins Bleiben verschliesst schon ists das Erstarrte), diz Rilke num dos Sonetos a Orfeu. Se o movimento espiritual que comanda este processo, este colóquio de espírito a espírito, nunca se fecha num sistema cerrado e circunscrito, isto não significa que a liberdade afirmadora não tenha uma certa orientação. O homem é um ser orientado, um ente vetorial. Esta orientação o encaminha para a verdade própria, para a revelação do sensus sui. Evidentemente não se trata aqui de um desenvolvimento de juízos ônticos, da exploração da realidade fáctica, da verdade do que existe. A verdade do homem é de natureza prática, é uma verdade de seu poder ser, do espaço de sua transcendência. A verdade a que nos referimos não é, pois, a de um espetáculo, mas a verdade móvel da operação da negatividade, a verdade de que o homem não é o ser. Mediante essa operação, o homem ascende à verdade de si mesmo, em si e em sua dimensão do ser-para-o-outro, ou melhor: a operação de promoção da verdade do outro é aquela que abre espaço à nossa própria verdade. Se encararmos nesta démarche de fundamentação o desejo e a protoforma do existir, poderemos desvendar na dialética das consciências o processo da atualização e patenteação desse desideratum. Afirmou Hegel que “a consciência de si atinge sua satisfação unicamente numa outra consciência de si”[17]. Esta satisfação a que se refere Hegel é o sentimento da verdade existencial, o sentimento de viver no fundamental. Vemos assim como, segundo Hegel, a verdade pessoal implica a solidariedade das outras verdades existenciais. Ao convocar o outro para o exercício de sua realidade fundamental, realizo-me como liberdade; e ao congratular-se o outro com a minha liberdade, cerra-se o círculo do reconhecimento. O projeto fundamental do meu ser-com-o-outro não é a ordem, a imposição, a palavra imperiosa, ou qualquer tipo de segregação do espaço do exercício espiritual, mas o conjunto das expressões que, se dirigindo ao tu, abrem diante dele horizontes infinitos de possibilidades. Qualquer outro projeto de comportamento interpessoal está fadado ao fracasso e à decepção. A liberdade que se lança na empresa de domínio e sujeição da outra consciência, bem cedo se convence do malogro do seu projeto de reconhecimento. As formas superiores de atividade cultural de índole axiológica, como arte, a filosofia, a religião, a moral, atuam conclamando o eu para a livre intuição de sua realidade valiosa e não para o acesso e inteligência de sua realidade simbólica. Podemos verificar este fato particularmente na esfera da criação artística. A obra de arte, como afirmou Ortega, é formalmente um aparato de significar, uma atividade semântica. Através dela o artista quer transmitir um dado conteúdo, sentimento, impressão ou experiência de seu espírito. Esse transmitir é essencial ao fenômeno artístico, como referência formal a um outro eu. Porém, o que implica esse dizer particular da obra de arte? A arte é um transcender o mundo natural, uma determinação de seus limites e ao mesmo tempo uma ampliação do campo de realização existencial. “El arte”, diz Julián Marías, “es una fabulosa potencia de virtualidad en cuanto tal, una fuente de posibilidades sensu stricto, y por tanto envuelve una incomparable ampliación del horizonte humano; por la misma razón, es una potencia de evasión de la circunstancia efectiva, que permite al hombre apartarse o divertirse de la vida real, tal vez miserable o angustiosa, en todo caso grave e llena de responsabilidad, preocupación y problematismo.”[18]. Como forma de expressão humana, a obra de arte, quer no romance, na peça musical, na estátua ou na tela, é um convite para a transcendência, para uma ordem de experiências que derrogam a lei da praxis. A intenção do artista, em sua linguagem, é justamente provocar o arrebatamento, o movimento do eu que se põe em sua criatividade própria. A estrutura formal intersubjetiva do prazer estético está intimamente ligada à participação num mesmo entusiasmo, a uma solidária superação da finitude como experiência estética fundamental. No próprio eidos do objeto estético encontramos esta nota de algo aberto ao outro e existente no espaço da presença intersubjetiva. O gesto formal da criação artística já indica a atividade expressiva que como tal não pode ser guardada só para si, pondo-se, ao contrário, como incitamento universal. Estas afirmações continuam válidas, mesmo para as almas extemporâneas que criam aparentemente só para si ou que não encontram a compreensão imediata do público, pois o importante é o fazer estético que traz em sai a marca da invocação à transcendência. Nestas considerações, quisemos unicamente ilustrar o fato de que na plasmação cultural, e em particular na atividade artística, a comunicação expressiva se manifesta sempre como uma franquia e um abrir espaço à personalidade do outro. A operação da negatividade que origina a obra estética e sua experiência peculiar propaga-se indefinidamente, convocando as consciências para a mesma aventura. Assim, como dissemos, o escrever, o pintar, o compor, como atividades, orientam-se para esse apelo, conclamando a atenção dos outros eus. Aprofundemos agora a ideia que se nos afigura fecunda de que a transcendência para a própria verdade é, simultaneamente, a vontade de pôr em movimento a consciência do outro, examinando um dos fenômenos éticos fundamentais, consubstanciados na ideia do “modelo”. Já foi fartamente discutido o problema que propõe a moral, menos como uma questão de doutrinas e de ideias do que como uma atuação do exemplo. Os homens respondem, de fato, mais pronta e fervorosamente aos princípios encarnados em grandes personalidades, em exemplos vivos, do que à essência translúcida das ideias. Max Scheler, em seu ensaio O Santo, o gênio e o herói desenvolveu admiravelmente a doutrina das vidas exemplares e de sua ação sobre a formação e as possibilidades do homem. Segundo o seu pensamento, as sociedades humanas são regidas pelo dinamismo das grandes personalidades, dos chefes e dos modelos, que através de seus atos, atitudes, opiniões e entusiasmo orientam o movimento do ser social. Esses homens, exemplares pela energia que infundem à sua existência, falam imediatamente às outras vontades, insinuando-se em suas estimativas, preferências e modos de pensar. O modelo existe como forma intersubjetiva, isto é, se erige num exemplo atuante, porque exige de todos os “eus” a mesma medida e o mesmo fervor por ele realizados. Assim como a obra artística não pode existir num espaço recluso, pois que sua natureza é sedução e convite à aventura, assim também o modelo e a personalidade carismática, só podem ser como transcendência em relação ao outro, como promoção do outro. Se atendermos a que a consciência é essencialmente ato, fazer-se a si mesma, compreenderemos porque a auréola de grandeza que circunda as personalidades exemplares nada mais é do que o reflexo de se terem tornado esses homens, como diz Max Scheler, “o campo de ação de nosso querer e de nosso agir em seu conjunto”[19]. A operação centrífuga transforma-se, aqui, em operação centrípeta e o poder de relação que anima o seu querer confere às suas figuras uma eminência axiológica. Em relação a este fenômeno podemos aquilatar a profundidade da asserção que afirma ser o dar, em sua essência, um receber. Por serem capazes da doação incondicional, por viverem num desdobramento e num esquecimento completo de si mesmos, é que esses seres receberam um contorno preciso e indelével e uma figura existencial incomparável. Mas Scheler compara a forma de atuação desses tipos excepcionais com a criação artística. O poder de transfiguração que habita o impulso estético manifesta-se também no gesto transfigurador do incitamento das grandes personalidades. Neste caso propõe-se também uma outra figura, uma transfiguração da existência que se propaga infinitamente através das consciências. O fato de propor às vontades alheias uma vida transfigurada, de determiná-las nessa negatividade, resume a grande significação da eminência moral desses líderes. E da mesma forma que a incompreensão momentânea da mensagem artística não anula o seu sentido intersubjetivo, assim também, no caso que ora examinamos, a falta de apreço e consideração momentâneos não atinge sua estrutura formal. Os que clamam no deserto, os extemporâneos, incompreendidos e solitários, participam dessa mesma atitude comunicativa fundamental: a sua força transfiguradora fica vibrando no espaço, à espera dos espíritos que atendam à sua mensagem edificante. Destas considerações já podemos depreender que a liberdade se exerce fundamentalmente criando liberdade em torno de si, sendo esse o seu projeto fundamental. A prova disto encontramo-la no fato de ser o movimento de comunicação o que mais importa no vir a ser da verdade subjetiva. Tornar-se subjetivo, como proclama Kierkegaard, é transcender em relação ao tu autêntico e sobretudo em relação ao tu eterno. A subjetividade nunca deve ser entendida como reparação, alheamento, a menos que entendamos essa separação no sentido platônico de separação do ser do não ser e da verdade do erro. Acrescenta Kierkegaard que o absoluto separa, asserção esta que deve ser entendida como uma seleção, como uma triage relativamente às formas degradadas e impróprias do existir. Estar separado, tornar-se subjetivo, não acarreta indisponibilidade para o outro; antes, pelo contrário, implica uma infinita paixão pelo encontro verídico, muito além de todos os impedimentos da não-verdade. A ordem de ideias que vimos seguindo, tentando um aprofundamento da temática das relações interpessoais, mostrou-nos como as consciências evoluem num jogo de recíproca atuação e apelo e como este atuar proporciona a geração interior de sua verdade. Vimos também como atuar no outro é, para a consciência, atuar em si mesma, e, reciprocamente, como atuar em si mesma é atuar no outro. A produção da verdade ontológica, como regímen de presença, dá-se nesse desenvolvimento, nesse contínuo movimento de transcendência. Na ação mútua dos “eus”, devemos naturalmente supor que nem todos estão no mesmo grau de veracidade e certeza interiores, somente alguns sendo portadores da mensagem de recuperação da própria origem. Devemos supor também que, no regímen intersubjetivo, a situação se organiza numa hierarquia de mestres e de discípulos, de guias e de guiados, de alertadores e de alertados. Este desnível, no que concerne ao existir na verdade, faz que a dialética propulsora da pessoa se estruture sempre na forma de um ensinamento, isto é, na forma de uma doação generosa daquele que possui àquele que não possui. Qual o estado peculiar daquele que não está na verdade, antes de receber essa revelação? Claro está que, não conhecendo a verdade, ou melhor, a sua verdade, ignorando o tipo de ser ao qual pertence, o discípulo da verdade deve encontrar-se em estado virtual em relação a ela. Kierkegaard, em seu livro Migalhas filosóficas, querendo opor a ação do ensinamento filosófico à ação da mensagem religiosa, contrapõe o discípulo de Sócrates ao discípulo de Cristo, e, paralelamente, a ordem da ignorância à ordem do pecado. Os interlocutores de Sócrates – seguindo a linha de pensamento de Kierkegaard – já traziam a verdade consigo, se bem que a tivessem esquecido ou desprezado em função das representações enganosas dos sentidos; a presença do ser estaria entretanto em sua alma, aguardando ocasião de manifestar-se. Os discípulos de Cristo, pelo contrário, estavam completamente separados das raízes ontológicas de seu ser, em estado de perdição e de pecado, de forma que nenhum sinal, a não ser o do Mestre, poderia devolvê-los ao seu centro de vida e de liberdade. A diferença que Kierkegaard procura acentuar entre essas duas formas dialéticas, promotoras da consciência de si, traduz-se na importância da particularidade histórica do encontro. Para Kierkegaard, Sócrates como mestre, poderia ser substituído por qualquer outro capaz de realizar a maiêutica do espírito; assim pois, no fundo, não representaria ele mais do que a ocasião indiferente da atualização da possibilidade preexistente do discípulo. Cristo, pelo contrário, seria o encontro único e insubstituível, pois somente seu contato divino, na particularidade de sua manifestação histórica, permitiria o acesso à vida verdadeira. O homem traz em si a possibilidade de viver em função de sua origem ontológica ou afastado e desradicado dela. A situação do discípulo socrático como depositário da ideia perfeita de si mesmo, ainda que em estado infuso e irrevelado, é a situação mesma do homem segundo o ponto de vista que endossamos. O pecador, por mais longe que esteja de sua própria realidade, acaso não se liga em última instância a ela, dela recebendo a sombra tênue e incompleta de sua existência?

Não podemos supor, como estádio inicial da relação entre mestre e discípulo, que este último esteja irrevogavelmente imerso na não-verdade, o que significaria estar imerso no nada. O não-ser, como início do apelo comunicativo, não é uma posição defensável filosoficamente. As diversas atitudes em que o homem pode estar em relação à sua própria realidade, desde a completa ocultação até à vida na plena aceitação de sua verdade, não implicam na ruína ontológica de sua realidade, mas em formas gradativas de indisponibilidade e de alienação. O espírito é fundamentalmente relação consigo mesmo e no próprio estar fora de si vincula-se a si mesmo, através da forma da negação de si. Assim, pois, o homem novo que surge da volta a si mesmo, pela conversão ou mediante o apelo, estava de certa forma desenhado como existência possível no homem antigo e extraviado. Certamente não preexistia na forma de um homunculus ou de realidade pré-formada, mas como inquietação do espírito, angústia e protesto da consciência.

O antigo dito “Sê o que tu és”, que nos sugere a ideia de uma reintegração num estado de perfeição perdida, deu margem a muito equívocos, sem entretanto deixar de envolver uma grande verdade. O momento de integridade existencial e de cumprimento do nosso estatuto ontológico apresenta-se como ser do nosso poder ser. A verdade à qual nos devemos referir não é a de uma realidade pretérita e adâmica, de natureza fixa mas corrompida pelo pecado e portanto destituída de seu antigo prestígio. Devemos reconhecer o traço de nossa verdadeira natureza ontológica unicamente nessa verdade suprema, que especifica o nosso modo de ser fundamental como um “poder fazer”, como um conjunto de possibilidades atualizáveis através da realidade corpórea. O homem essencial não deve, pois, ser considerado algo de dado e fixo à maneira da coisa, sendo como é “uma criatura de tipo indefinido”, como já queria Pico della Mirandola; daí o seu poder de tornar-se todas as coisas, produzindo-se de diversas maneiras. À autoconsciência dessa categoria de ser orientado para aquilo que o ultrapassa, deve-se referir portanto o sentido do “sê o que tu és”. A posse de si mesmo deve representar para o homem, não a devolução de um bem já existente, mas a determinação ativa de um projeto personalíssimo. O encontro e a comunicação dos espíritos não se põem assim como experiência de arrependimento, de nostalgia de uma pureza pretérita, mas como a emancipação do espírito das potências imanentizadoras de sua propulsão transcendente. O mestre, em seu impacto sobre a alma entorpecida do discípulo, age como estímulo e força entusiástica, no sentido de seu poder ser. Sua palavra tem sempre o sentido do “sê o que tu és”, pois que somos sempre a possibilidade de nós mesmos. Este é, pois, o sentido recôndito de todo apelo, conversão, ensinamento ou edificação. Devemos supor no homem a capacidade, sempre em vigor, de receber e de reagir à palavra que quer determinar a sua liberdade. Por mais obscurecido que seja o senso de nossa própria condição, não podemos admitir, no território da filosofia, uma total incapacidade para a revelação ativa de nosso fundamento existencial. O homem antigo, alienado, perdido na não-verdade é sempre o determinável, isto é, a possibilidade do homem novo. A eclosão de uma nova forma de viver é sempre condicionada pela categoria do encontro, toda forma de esclarecimento, sugestão, conhecimento e pedagogia dando-se na forma da comunicação, do intercâmbio espiritual do dar e do receber. Quem recebe, recebe-se a si mesmo, e, quem dá, proporciona unicamente a ocasião do exercício de outra liberdade. Como vimos antes, proporcionar essa recepção de si a si mesmo é a própria essência do “dar” como mensagem existencial e condição da plenitude mesma do que dá. Assim, o Zaratustra de Nietzsche, retirando-se para a solidão das montanhas não fez mais do que destilar o mel de uma sabedoria tendida para as mãos carentes dos homens da planície, a sua riqueza residindo toda no sentido desbordante da doação, na relação particular mantida com os outros homens: “Necessito de mãos que se estendam para mim.” Através desta ilustração deparamos mais uma vez com o fato da dupla operação das consciências, em que o atuar sobre o outro é o verdadeiro sentido do atuar sobre si mesmo e vice-versa. Dissemos atrás que a atuação do espírito se dá na forma do encontro e da comunicação existencial. No encontro, a ação polarizadora de uma presença modifica a relação de outra consciência consigo mesma. O efeito desse impacto é a conversão, o autoconhecimento, o abrir-se de novos horizontes, a libertação. A atuação do mestre não é, assim, a de impor uma forma, mas a de permitir que o discípulo se encontre. A ação transitiva do encontro, sempre superada no desenvolvimento autônomo das possibilidades do discípulo, não implica a acidentalidade do fenômeno da comunicação. Só um determinado “tu”, na particularidade de seu existir, pode atuar sobre uma determinada consciência. O ensinamento e o incitamento são ultrapassados, mas não, como pensou Kierkegaard, na forma do eterno. O instante da conversão não fica pontualmente restrito ao passado, mas persiste e se historiza, incorporando-se ao novo devenir pessoal. Antes de traçar uma conclusão no sentido geral da problemática proposta, deter-nos-emos no exame da forma mais importante da comunicação existencial: referimo-nos ao amor. A experiência do amor pode ser caracterizada sumariamente como um sair fora de si, como um viver-no-outro vivendo em si mesmo. Esta incorporação do eu ao tu ou do tu ao eu confere ao que ama, no próprio impulso dessa unificação, a ocasião de sua realização pessoal. Como diz Jaspers: “Amando, sou eu mesmo. Eis a origem da minha independência, na qual recebo o dom de mim mesmo.” (Liebend bin ich selbst. Hier ist der Ursprung meiner Unabhangigkeit, in der ich mir geschenk werde)[20]. O amor é fonte da independência da alma, pois não se subordina a qualquer imposição ou necessidade. A experiência amorosa não é tropismo, impulso cego ou química secreta, nem, por outro lado, dever ou obrigação. O amor, no que tem de importante para o advento da verdade existencial, é o resultado da livre disposição de nós mesmos. A consciência deve se desvencilhar de tudo quanto é externo, para poder amar a partir de si mesma. Outro aspecto que liga profundamente a vivência erótica à consciência da liberdade manifesta-se no fato de que a classe de seres que amamos ou preferimos depende, em última instância, do nosso projeto existencial. O ato de revelação dos valores, das coisas e das pessoas é solidário à opção do nosso próprio esquema vital. Tudo quanto, de certa forma, se compagina ao modelo que pretendemos realizar em nossa existência adquire categoria de valioso e de estimável, candidatando-se ao nosso afeto. O que amamos denuncia o que somos e o que pretendemos ser; vemos refletida na hierarquia das coisas belas, amáveis e apetecíveis a própria escala de nossa transcendência. O objeto amado, de fato, põe-se como uma transcendência do nosso existir, como algo a que aspiramos veementemente unir-nos para a realização de nosso projeto original. Como aspiração, tendência e impulso ascendente, o amor é por natureza movimento. Max Scheler, em seu estudo fenomenológico sobre o amor, afirma acertadamente que não se pode compreender a experiência amorosa como contemplação imóvel de qualquer coisa de fixo, dado e inalterável. O amor é história, movimento, tendência para valores cada vez mais altos e para possibilidades inéditas de ser. O amor, portanto, não se traduz no existente, mas naquilo que supera, despreza e destitui o prosaísmo da vida e dos quadros sociais, pois na experiência amorosa as pessoas nunca se dão como pessoas sociais. Quem ama vive além das coisas e de seus limites, num prolongamento sui generis da vida. Qual o sentido profundo dessa metamorfose, dessa transfiguração ínsita no fenômeno erótico? Diz Max Scheler que o amor é o movimento a favor do qual o objeto individual e concreto realiza o valor ideal inerente à sua natureza. A presença do objeto amado não se dá à consciência em sua pura objetividade, mas elevada e potenciada pela luz do ideal. Já no pensamento antigo, o fenômeno do amor foi visualizado em sua relação com a esfera dos valores e principalmente com a esfera do belo. O amor seria uma forma de tender, de aspirar e de engendrar na beleza. Tanto a arte como o amor, nesta linha de consideração, seriam formas de aproximação, imitação ou revelação desses valores transcendentes. Para Platão, o amor é um daimon, isto é, um ser intermediário, algo que leva de algo a algo. A vida amorosa não seria nada de valioso e de criador em si, mas unicamente uma forma peculiar de transitividade para o valioso. Paralelamente, a arte seria uma imitação do valioso e não a produção original de idealidade. A nossa concepção da vida espiritual e da negatividade própria do espírito colocou em outro sistema de ideias a totalidade do campo da arte e do amor; a arte passou a ser símbolo de si mesma e o amor passou a significar uma vida autóctone e original. A função emotiva cumpre-se superando e anulando a relação puramente ôntica do humano, numa promoção intersubjetiva da verdade existencial. Em seu impulso amoroso, o homem descerra todo um campo de potencialidades, qualidades e valores inerentes a outra consciência. Este dar espaço a outro eu, esta confiança promotora da transfiguração do outro é um traço típico da acolhida amorosa. O outro passa a viver uma vida nova em nós, que na qualidade de participantes dessa vida potenciada, nasceremos para uma nova vida. “El amor”, diz Zubiri, “antes que una relación consecutiva a dos personas, es la creación originaria de un ámbito efusivo dentro Del cual, y solo dentro del cual, puede darse el otro como otro.”[21] Promovendo o advento da verdade pessoal o amor é criador, desde que essa verdade que somos nós mesmos seja criatividade em si. Sustentar-se na absoluta negatividade do movimento, transcender o imeritório, é a condição da experiência amorosa. O que se opõe à visão amorosa é justamente a recaída nos aspectos banais e insípidos das coisas, a consciência submergindo nas preocupações imeritórias e prosaicas da existência. A ampliação de sentido que pressupõe a consciência amorosa não é a projeção de algo subjetivo, artificial e inexistente sobre uma realidade externa e privada em si de qualquer halo ideal. A vida amorosa não consiste em conferir uma existência imaginária a um ente privado da idealidade, mas é justamente um descobrir propiciatório, um descobrir que é um permitir, um franquear a idealidade ínsita atual ou potencialmente no objeto amado. Amar alguém é atribuir-lhe um prolongamento de sentido e de possibilidades, ampliando o âmbito de seu exercício existencial, outorgando-lhe uma categoria superior. Enquanto o comportamento adverso e hostil procura anular de todos os modos o significado do outro, reduzindo-o a uma pobre coisa desamparada e ignóbil, o comportamento afetivo dilata ao máximo o relevo e o alcance do outro ser. A consciência amorosa destaca o objeto amado como núcleo de valor no cenário total das coisas, relacionando-o com todas as coisas que através desse vínculo se enriquecem. O ser amado é uma fonte doadora de sentido. Mencionemos também o fato relevante de que nos movimentamos através dos quais conferimos ao outro a qualidade de objeto amado, somos levados ao nosso próprio fundamento originário. O sair-de-si-mesmo do amor é, no fundo, um voltar a si mesmo. Ampliando as possibilidades do outro, dotamo-nos de novas dimensões; enriquecendo o significado existencial do outro, enriquecemo-nos a nós mesmos e passamos a viver uma nova vida, através do novo nascimento que facultamos ao outro ser. Amar é descobrir-se, é tomar consciência do que há de fundamental em si mesmo. Diz Jaspers: “O amor faz o eu encontrar-se com o eu do outro, para a realização das máximas possibilidades do homem; ele é o tornar-se si mesmo com o outro através da comunicação.” (liebe trifft auf gleicher Ebene als Selbst auf Selbst um die höchste Möglichkeit des Menschen zu vollziehend sie ist Selbstwerden mit dem anderen Selbst in Kommunication)[22]. O amor é a forma eminente do reconhecimento das consciências e o processo supremo de anulação da objetividade. Hegel considerou a experiência amorosa como a forma suprema da anulação do oposto, isto é, de tudo o que há de inerte, fixo e não vivo na realidade. Entretanto, como no projeto do amor está implícito o de ser amado, a relação do duplo reconhecimento das consciências pode estacionar na relação de senhor e escravo. Hegel denunciou esta relação na consciência religiosa israelita, onde o homem amando o seu Deus, mas não sendo por ele amado, era o alvo inerme do seu despotismo caprichoso. O amor pode manifestar-se como escravização ignóbil do ente humano quando, dando-se como relação unilateral, o amante é objeto da vontade caprichosa da outra parte. Neste caso, a dialética do amor assume a forma da relação senhor-escravo, pois o vínculo amoroso, traduzindo-se numa relação de dependência em face do objeto amado, torna a consciência humana desarmada diante de uma vontade externa e implacável. Afirmamos acima que o amor é um gesto de independência do ser, uma forma de doação do homem que se traduz em viver sua via numa outra vida. Assim, pois, o amante escolhe livremente sua própria dependência, arrastando a aventura de seu viver amoroso. A experiência amorosa como ação de amar é, como já afirmou Aristóteles, ontologicamente superior à experiência de ser amado. Apesar de ser uma atitude exposta aos perigos que já apontamos, o comportamento amoroso, pela ocasião que oferece de acesso da consciência a si mesma, põe-se como um desenvolvimento libertador da consciência de si. Dentre todas as formas de realização do eu e de promoção da presença pessoal, o amor é, sem dúvida, a conduta comunicativa por excelência. Se o sentido último da dialética das consciências pode ser considerado como suscitar recíproco da verdade existencial, o amor deve ser avaliado como a própria operação desta verdade. O amor é um ato que se cumpre em vista de si mesmo e não, como pensava Platão, em vista de um desenlace transcendente. Se a maior parte das ações humanas se concretiza na série dos meios e dos fins, o amor, pelo contrário, tem seu fim em si mesmo, constituindo a possibilidade mais própria do homem. Através desta força, o mundo abre-se para o valioso e para o sagrado, conhece o sacrifício e o devotamento, distingue as suas preferências de suas repulsões e se organiza como um mundo de sentido. Todas as grandes realizações históricas e culturais do homem, todos os prodígios de coragem, da inteligência e do gênio foram realizados na incitação do amor e da paixão, no delírio da sua força transfiguradora. Entretanto, do nosso ponto de vista, não devemos apreciar o significado da atividade erótica em função de suas obras, pois a virtude educadora do amor reside em seu próprio movimento. O amor é a conduta suprema do homem, como ato humanizador por excelência. Compreendemos o sentido desta afirmação, tendo em mente que a característica da realidade humana em relação a todas as outras regiões ontológicas, é justamente a de ser uma realidade inconclusa e aberta. Ora, é justamente o entusiasmo do amor que lança o homem além de todos os limites, no espaço da indeterminabilidade infinita. Enquanto o ódio impede, cerra, restringe, fixa e objetiva, o amor executa o trabalho contrário, educando as consciências para a efusividade mútua. Amar é algo mais que ser amado, já que a atividade é superior ao modo de ser da passividade. Consagrando-se ao amor, o homem relaciona-se ativamente com seu fundamento próprio na ação mesma do amar, ao passo que, sendo amado, apenas encontra a oportunidade que favorece ocasionalmente sua máxima realização. Cristo, amando os homens, infundiu-lhes a virtude e a graça como repertório de forças à sua disposição. Estas dádivas, que podem ou não ser empregadas, constituem a oportunidade de nossa salvação. Esta é a diferença essencial entre o verbo ativo e o passivo no que respeita à conduta amorosa. Amar equivale à realização imediata da dimensão ontológica, enquanto ser amado significa receber passivamente essa oportunidade. “Amar é durar, ser amado é passar” afirmou Rilke, acentuando o que há de densidade metafísica no exercício amoroso em contraposição à mera virtualidade do que recebe essa doação. O sonho de todos os utopistas foi o reino de Deus e do amor sobre a Terra. Esta imagem hipotética negligencia um fato fundamental da estrutura mesma da vida espiritual, isto é, a verdade comezinha de que todo amor a alguma coisa implica ódio a outra, não se podendo, portanto, pensar numa ordem universal do amor. O amor traz em si a possibilidade do ódio, sendo dialeticamente o ódio superado e podendo anunciar o amor como emergência resolutória. O amor implica sempre algo fora de si que é justamente a polaridade do desvalor, do mesquinho, do desprezível. A vida espiritual move-se entre polaridades que só podem ser concebidas e sentidas em sua conexão mútua. Este regímen impede uma determinação unilateral a favor de um valor ou de seu contrário, e mantém a constante tensão da vontade em relação a determinados fins. Por mais que progrida a ordem social, haverá sempre no mundo amigos e inimigos, almas que se querem e que se odeiam, forças que se atraem e que se repelem. O desaparecimento de um dos momentos redundaria no desaparecimento do outro. Esta característica dual de nossa atividade acarreta a contínua vigilância do existir, que ao superar limites opostos pelo erro, pelo desamor e pela desarmonia sabe, entretanto, que essa vitória é um permanecer na luta. O amor procura estender continuamente a sua esfera, mas sabe que sem antagonismos e oposições nada teria a unificar; supõe ele a separação, o desentendimento e a oclusão do homem à sua verdade fundamental e é justamente referindo-se a esta não-verdade que realiza obra da unificação. Como tudo que é humano, a experiência amorosa também é regida pelo movimento dialético. Assim, pois, o advento de um reino de amor entre os homens manifesta-se somente em forma episódica e provisória. A consciência amorosa não constitui uma atitude de ânimo que se possa estabilizar e fixar facilmente, requerendo um constante exercício do amar. Espreitando seu decurso, representando deformações e caricaturas de natureza verídica, aí estão o pieguismo, a sentimentalidade falsa, a debilidade emocional, a deliquescência afetiva e as demais formas de degenerescência do autêntico impulso amoroso. A existência do amor é uma existência continuamente ameaçada, impugnada pelo hábito, pelo automatismo e pela distensão de sua energia própria. Destas considerações podemos assim depreender o fato fundamental de que o amor não se tornará jamais a lei do mundo, pois, como todas as realidades que nos dizem respeito, sua existência se resolve num processo. Ao corre deste capítulo fomos assinalando diversos traços concordantes no movimento da dialética intersubjetiva, todos eles convergindo num perfil único. O homem que se volta para o outro, na seriedade de seu entusiasmo espiritual, tende sempre a despertá-lo para o seu existir autêntico. Este zelo pelo outro não é qualquer coisa de acessório a um solilóquio espiritual completo em si mesmo; pelo contrário, somente através da comunicação das consciências é dado ao homem ascender à mais alta forma espiritual. Procurando interpretar esse recíproco endereçamento das consciências, constatamos o incitamento à transcendência como gesto fundamental do convívio autêntico. Sacudir as consciências, retirá-las de seu sono indiferente, conturbar a paz da superfície, denunciar o compromisso consigo mesmo, lembrar ao homem sua condição, ampliara a consciência de seu próprio poder ser, tais são os efeitos decorrentes do verdadeiro contato interpessoal. Através da interação dos comportamentos humanos, a consciência vai desabrochando para os seus modos de ser mais peculiares, para a sua conduta fundamental, emergindo deste diálogo o próprio perfil humano como existir aberto para a transcendência, como viver na proximidade daquilo que o supera.

Considerações finais
Referimo-nos neste trabalho a uma dialética das pessoas e não a uma teoria das relações intersubjetivas, pois o desenrolar-se dos momentos na vida das consciências cumpre-se entre oscilações contraditórias. A realidade que exploramos se apresenta, não na potência do objeto, que é sempre aquilo que é, mas na forma elíptica e furtiva dos processos dialéticos. O trânsito da não-verdade para a verdade, que procuramos analisar, consubstancia o que denominamos processo do reconhecimento. Essa passagem não deve ser compreendida, porém, como um fato meramente histórico, com a sucessiva emergência da fisionomia humana de um estádio primitivo e obscuro. Hegel parece supor uma tal seriação de momentos, pondo na origem do movimento que leva à consciência de si a mera justaposição de individualidades imersas no simples estar aí. A partir dessa relação externa realizar-se-á, segundo ele, a operação recíproca do reconhecimento. No início — esta concepção implicando um começo, um meio e um fim — deparamos com a consciência perdida no reino da coisa, da individualidade biológica, da determinação. Esta situação apresenta-se como um fato passado, quando predominava o regímen universal do “isso ou aquilo”. O homem ainda não havia adquirido para o outro o sentido de seu valor singular; os traços do caráter e da particularidade do eu ainda não se haviam sobreposto à fisiognomia da espécie, o homem não passando então de um exemplar da série biológica. Diz Hegel: “Um indivíduo surge em face do outro indivíduo. Surgindo assim, imediatamente, eles são, um para o outro, objetos quaisquer; são figuras independentes, e devido ao fato de os objetos existentes se terem determinado como vida, são consciências mergulhadas no ser da vida, consciências que ainda não cumpriram, uma em relação à outra, o movimento de abstração absoluta, movimento este que consiste em extirpar de si todo ser imediato e ser somente o puro ser negativo da consciência igual-a-si-mesma.”[23] Este nã-ser-si-mesmo da consciência como fase inicial do processo de reconhecimento, deve ser encarado como condição dialeticamente essencial, mas não historicamente ordenada. O que foi continua sempre como uma possibilidade aberta para o homem, o “isso” sendo uma eventualidade recorrente e sempre possível. A dialética das consciências não apresenta figuras que se superpõem temporalmente, mas formas de conexão dos “eus” que se dispõem como figuras possíveis da vida espiritual. Com isto, não pretendemos afirmar a recorrência fáctica da história ou qualquer organicismo de tipo spengleriano; afirmamos unicamente que as atitudes assumidas pelo homem em face dos outros e em face de si mesmo não constituem uma seriação temporal, mas um feixe de possibilidades de comportamento. Mencionamos anteriormente que, através da história, a determinação do “isso”, em lugar de decrescer, estende-se cada vez mais, abarcando homens e coisas; assim, em nossa civilização, o regímen social da massa, com seu poderoso efeito despersonalizante, lançou o homem novamente no estado de justaposição da coisa. Para ilustrar a contemporaneidade dos comportamentos intersubjetivos que defendemos, contra Hegel, podemos lembrar o fato de que as relações conflituais entre as consciências acompanham, como uma melodia contínua, o desenrolar da convivência humana, sendo que a possibilidade do trato escravizador do tu é uma nota constante da relação interpessoal. Inserir o outro como instrumento na prossecução de nossas finalidades é uma eventualidade sempre aberta do nosso ser-com-o-outro e não um estágio na evolução da dialética temporal das consciências. A recorrência desta forma de conduta não deve levar-nos a supor, como já acentuamos, que a vida possa se repetir e que o passado possa propor-se novamente como destino do nosso destino. “Ante nosostros”, diz Ortega, “están las diversas posibilidades de ser, pero a nuestra espalda está lo que hemos sido. Y lo que hemos sido actúa negativamente sobre lo que podemos ser.”[24] A história é o cenário de contínuas transformações e modificações, nada se apresentando nela de fixo e estável; a ação humana vai alterando continuamente as condições da própria ação, tornando impossível qualquer repetição da mesma. Podemos dizer que esta irreversibilidade vale no que diz respeito à matéria e não à estrutura do comportamento humano. Em relação a esta estrutura, o acontecido se propõe, não como uma forma superada de comportamento, mas como um conjunto de vias abertas. As reflexões de Kierkegaard acerca do problema do necessário e do possível recebem seu pleno sentido, referidas a este tema. O conteúdo da ação passada não se torna de forma alguma necessário e coercitivo pelo fato de se ter transformado em passado. Esta asserção que Kierkegaard focaliza, tendo em vista outros problemas, pode ser aplicada à elucidação das figuras da dialética intersubjetiva. O complexo de atitudes que o homem desenvolveu em relação ao próximo não representa formas abolidas do trato humano, mas contínuas possibilidades de coexistência. A expedição dos 10.000, as guerras púnicas, a invasão dos bárbaros, o advento do cristianismo, são ocorrência históricas ultrapassadas no fluir temporal. Entretanto, a relação de homem a homem, como estrutura ontológica, permanece como âmbito invariável de determinação. Cada geração humana é colocada diante do mesmo quadro de desenvolvimentos, de ocasiões de atividade, para, segundo a índole e a profundidade de sua radicação metafísica, realizar o seu traçado histórico. O que foi feito pelos outros homens não assiste aos novos como uma garantia segura de desenvolvimento. Pico della Mirandola aludia a esta disposição humana de opção quando, referindo-se à faculdade conferida ao homem pela suma liberdade de Deus, disse serem aqueles os plasmadores e cunhadores honorários de si mesmos, podendo, segundo o teor de sua atividade, revestir as formas da animalidade ou ascender às formas superiores e divinas. Se o que se realizou historicamente, como ação memorável e de significado histórico-universal, não pode mais retornar ao plano da ação histórica, o que se apresenta como alternativa de superação ou degenerescência, transcendência ou transdescendência, cerne-se imutavelmente sobre o nosso caminho. Assim, pois, a possibilidade dialética original, a ausência da presença humana que Hegel colocou como um momento abolido no movimento do espírito, se nos apresenta como uma ocorrência sempre possível. O humano não está salvo da paixão da inumanidade, a sabedoria não o está da barbárie, o refinamento cultural não o está da bestialidade dos apetites, a harmonia dos espíritos não o está do rancor e da inimizade. A ideia de mediação e superação dialética é, pois, muito mais complexa do que o supunha o pensamento hegeliano, como sentenciou Kierkegaard, o que foi ainda continua possível. Ao otimismo da mediação indefinida e das formas temporais ascendentes, substituiu-se a consciência do risco infinito da existência e da constante presença do tenebroso e informe em nossa existência. O homem sem face, a criatura brutal das origens, o homem-coisa é uma possibilidade iminente e próxima. A vocação do homem não é uma necessidade legal e inflexível, mas o resultado de uma escolha contínua. A ideia de uma interiorização dos momentos sucessivos do homem na atualidade do existir relaciona-se à ideia, de certa maneira análoga, da contemporaneidade do relato mítico e religioso. A história mítica não é um sucesso do passado, apesar de se revestir da forma do acontecido, mas é o que acontece ou está em vias de acontecer a todo instante, constituindo a representação simbólica de nossas possibilidades. Prometeu não existiu outrora, na particularidade de sua concreção espácio-temporal, mas é a figura sempre atual e eloquente do nosso próprio destino. Esta interpretação da sucessão histórica rompe a imagem linear da série temporal que supõe os instantes como pontos exclusivos e sucessivos, relacionando-se a uma nova concepção da sua polaridade. Nesta nova captação do fenômeno temporal, o presente contém o passado na atualidade do seu existir, o passado tornando-se um ek-stase ou extensão da temporalidade. O passado vive em nós, confunde-se conosco e é por nós determinado como passado, como aquilo que recusamos ser em nossa negatividade própria. A esta história, que pode ser ultrapassada no contínuo fazer histórico, se antepõe a história dos deuses, suas genealogias e todo o quadro de representações religiosas que, se bem localizadas temporalmente, não são superadas em nossa atuação criadora. Deus está continuamente nos arrancando do barro da materialidade, através do apelo de sua palavra divina. Cristo nasce e morre perenemente. O que foi, no campo do relato religioso e mítico, é e continua a ser. A fé religiosa e, de uma forma geral, o conjunto de crenças e representações mitológicas alude a conteúdos que transcendem a mera transitividade das realizações particulares, do homem, relacionando-se imediatamente com a finalidade do homem enquanto homem. O relato religioso, não se atendo à particularidade do fazer humano, não é ultrapassado pelas ondas sucessivas desse fazer, permanecendo como contínua alusão às nossas possibilidades fundamentais.

Esta digressão é suficiente para elucidar a dualidade que se põe entre o irreversível e o continuamente reversível na condição humana, entre o meramente superável e o que nos supera e transcende. O processo de reconhecimento, em sua contextura dialética, está sempre referido ao seu próprio contrário, isto é, à alienação do homem em seus modos deficientes de ser. O fenômeno do reconhecimento não se esgota em qualquer comunicação particular, em qualquer gesto de liberdade especial, realizando-se no cumprimento existencial do homem. O homem nada mais é do que o ato vivo do reconhecimento: a luta, o esforço, a aproximação e o zelo pelo advento de suas mais altas possibilidades. Vimos anteriormente como o tipo de realidade do homem não é a do ser dado da realidade ôntica e que, em vista disto, o seu modo de ser se dá como uma nadificação do ser dado. Este é o motivo pelo qual a verdade existencial cobiçada pelo processo do reconhecimento não pode ser atingida dentro de qualquer disposição do ser. O testemunho que o homem deve dar a si mesmo e aos outros não é o da cumplicidade com as coisas, mas o de sua plena independência em relação a qualquer configuração particular e a qualquer validez relativa. “Deparamos aqui com a subjetividade irônica. Para ela a realidade dada perde toda validez, tornando-se uma forma imperfeita que a constrange continuamente. Ela sabe somente que o presente não corresponde à Ideia.” (Hier treffen wir das ironische Subjekt. Für es hat die gegebene Wirklichkeit ihre Gültigkeit schon verloren, aber anderseits das Neue besitz es nicht. Es weiss bloss dieses, dass das Gegenwartige der Idee nicht entspricht).[25] Parece-nos que a atitude espiritual da ironia descreve de modo exemplar o movimento de nossa própria realidade. O fim do homem não descansa numa realização objetivante, mas na conquista de sua independência em relação às coisas e através delas. Afirmamos não ser qualquer espécie de comportamento capaz de revelar a nossa origem, já que atividade comum do homem, o quotidiano do seu existir, representa uma ocultação e não uma iluminação de seu fundo ontológico. Acrescentamos que a experiência tradutora desse acercamento da verdade não é a de uma vida segregada das outras, mas de um existir consagrado à verdadeira comunicação existencial. A atividade que funda nossa realidade própria não é qualquer atividade do eu, isolado de sua convivência. Tal tipo de atitude não é contrária ao ensimesmamento ou à solidão, que formam, como já vimos, a propedêutica indispensável ao intercâmbio humano autêntico. O comportamento corrente do homem, contaminado como está pela alienação na não-verdade, torna a consciência insensível às revelações mais profundas do ser. A nossa própria realidade é o ponto em que o real se torna discurso e palavra, não só existindo, como sabendo que existe na expressão de sua própria intimidade. O homem é o revelador das verdades das coisas, aquele que transforma em verbo, em linguagem, em expressão, o que jaz na obscuridade do irrevelado. A forma pela qual se apresenta esta emergência da verdade é a palavra e, neste sentido, o próprio homem, como entidade particular e finita, como figura histórica, é interior à palavra. A realidade captada já é a realidade expressada, dita, articulada num conjunto simbólico. O homem aparece-nos ao mesmo tempo como habitando o recinto da palavra e criando em seu momento transcendental o próprio âmbito do dizível; expressa-se na função da linguagem a capacidade de negatividade que o define essencialmente. A palavra transcende o puramente dado, a favor de uma nominação fundadora. É ela o que há de mais espiritual no conjunto das coisas, abrindo espaço a todas as realizações humanas. Entretanto, esta faculdade suprema não é imune à degradação e ao extravio que pode torná-la um instrumento incompetente para revelar o sentido último do real. Designamos anteriormente essa palavra incapaz de dar acesso à verdade das coisas, como verdade coercitiva ou limitante. A esfera de jurisdição desta linguagem é a da pura objetividade, do momento cerceante do real. Em contraposição a este verbo objetivante, realçamos a palavra original e objetivadora que guarda em si o sentido incontaminado da verdade, sendo especialmente idônea para traduzi-lo. Esta palavra comparece, em seu sentido eminente, na poesia, na filosofia e no verbo anunciador das religiões. Se o discurso corrente move-se entre o meramente dado, entre as coisas frequentadas pelas preocupações imediatas do homem, o discurso a que nos referimos, na opulência de seu sentido, vai muito além do horizonte delimitado do existente. Se a primeira palavra confina, recorta e exclui, a segunda põe o homem diante da totalidade do revelado, constituindo-se em palavra-apelo, reportando o homem àquilo que lhe convém. Heidegger, em seu ensaio Da essência da verdade, contrapõe dois comportamentos em relação à verdade do ente, que esclarecem com exatidão esses dois tipos do dizer. A primeira forma de linguagem a que nos referimos é a que acompanha, formula e determina os nossos propósitos, práticas e atividades imediatas, formando um sistema concluso nesse campo aparentemente auto-suficiente. Como esta palavra só atende aos programas que se oferecem no recinto da quotidianidade, desprezando e esquecendo a totalidade do que existe além dessas fronteiras, podemos chamá-la a palavra do esquecimento. Não é a palavra que lembra, mas a que adormece e extravia. A consciência que, baseada nas determinações desta linguagem, procura interpretar o quadro de seu destino, só poderá constituir uma filosofia do esquecimento, da alienação, do extravio. Em profunda oposição a esta palavra, podemos iluminar o sentido do verbo convocante que nos expõe à totalidade do real. Estas considerações sobre a natureza da linguagem e de seu papel na expressão da verdade guardam estreito vínculo com o problema proposto desde o início. Um mesmo fato é o existir na inautenticidade, no mero intercâmbio exterior que nada exige, e o desenvolvimento das formas degradadas da linguagem. Por outro lado, a determinação de uma existência fundada na verdade da consciência de si tem o seu análogo na palavra autêntica ou na expressividade do silêncio — podendo o silêncio expressar —, na linguagem que não recua nem esconde, mas que concita o homem à aventura do mútuo conhecer-se, aventura esta que, segundo Morente, é a manifestação do interior e do peculiar, do próprio e do único, do íntimo, em suma. O sentido de colóquio desta relação é um transcender para a sinceridade, para a expansão da alma, rompendo contudo que há de secreto, dissimulado e insidioso na consciência. Eis porque assinala Heidegger ser a linguagem da verdade uma ex-posição do homem à potência do ser, um permitir e um libertar a ordem do real através da palavra reveladora. A atitude que envolve este comportamento autentificador não é a que fixa, determina e impede, a que correlaciona duas objetividades dadas. A atitude que define é também a que cerceia as possibilidades do outro, reduzindo-o ao seu simples estar-aí, ao modo coercitivo da objetividade. Esta forma de conhecer leva ao fastio, ao cansaço mútuo, ao sentimento de que uma dada relação está esgotada. Não respeitando o que há de indeterminado e potencial na intimidade do outro, não amando a orla de devenir que há em toda personalidade, esta relação exaure sua possibilidade de desenvolvimento. Não respeitar em si e nos outros este fundo irrevelado e misterioso, ou ainda mais, torna-se a si mesmo e aos outros como uma superfície explorada em todas as direções, equivale a cerrar o espírito para as verdades mais profundas. O cansaço mútuo, o sentimento do tédio e de fastio pessoal origina-se não só da incapacidade de amar e, portanto, de incitar o outro ao movimento interior, como também da inaptidão de transcender em relação ao mistério do outro. O homem não é um todo circunscritível, algo que possa brilhar como figura delimitada, mas algo que permanece sempre inapreensível em sua totalidade e, em sua raiz, enigmático. O intercâmbio pessoal, fundado na circulação comunicativa, supõe justamente a não-ocorrência do desespero em relação ao outro, que se manifesta no cansaço e no aparente esgotamento da vida comunicativa. Em todo comércio do espírito que se propõe um alcance existencial, está implícito, ao mesmo tempo um respeito fundamental pela índole e peculiaridade do outro, um incitamento à sua autorrealização. A ironia socrática que aparentemente manifesta um desamor pela posição do interlocutor é realmente maiêutica, isto é, endereçada ao nascimento de um novo espírito. O objetivo verdadeiro do empreendimento socrático manifesta-se no intento de fazer que o outro supere a aversão incongruente que tem de si mesmo, transcendendo em relação a si próprio, através de todos os disfarces que ocultam sua verdadeira realidade. Diz-se comumente que os diálogos socráticos não chegam a um resultado definitivo, a aproximação da verdade sendo abandonada antes de uma conclusão satisfatória. Esta característica da obra platônica pode servir de tema às mais ousadas reflexões. A inconclusividade do diálogo é um símbolo, não só da procura infinita da verdade, como da comunicação existencial em que esta verdade se origina, pois se virtualmente o conhecimento pode ser obra do eu isolado, como categoria histórica só se dá no intercâmbio comunicativo. Como diz Jaspers: “O movimento do pensamento tem sempre a forma do comércio como o outro, ou da consciência consigo mesma. O fenômeno da pergunta e da resposta, como elemento do movimento pensante, é um sintoma característico desta ocorrência.” (die Bewegung des Denkens hat die Gestalt des Miteinandertauschens, sei es zwischen Bewusstsein und anderen Bewusstsein, esi es des Bewusstsein mit sich selbst. Das Phänomen von Frage und Antwort als Glieder der Denkbewegung ist dafür ein charakteristiches Symptom)[26]. O exercício da forma coloquial pressupõe não só um desenvolvimento da esfera do conhecimento, como, complexivamente, uma promoção do outro através do acesso à verdade do ser. Num tal tipo de ser-com-o-outro, a linguagem intersubjetiva, pelo fato de nascer de uma atitude de franquia em relação às mensagens do real, é uma linguagem espontânea e verídica. Esta linguagem é uma abertura para o que há de irrevelado e de profundo, um ir ao encontro do sentido oculto das coisas. Dissemos anteriormente não ser qualquer tipo de atividade apto para nos conduzir ao campo de nosso exercício existencial e acentuamos que o sentido da maioria das nossas ocupações nos desloca desse eixo original. Acrescentamos também que a conquista da nossa consciência pessoal, e, correlativamente, do nosso viver na verdade e a partir dela, é sempre um fato precário. A verdade só se dá como verdade inclusa, em devenir. Mesmo o amor, que é o gesto legítimo por excelência desse poder interno, é de natureza instável e dialética, devendo continuamente reafirmar-se em seu próprio movimento. Mais do que isto, dissemos ser o amor movimento mesmo, existindo somente como tendência de plenitude e de valorização do existente. A índole precária e militante da dialética das consciências dá a todas as suas manifestações um sentido de porfia, de jogo, de luta. Assim é que o amor está sempre em pugna com o reconhecimento do mérito que o destitui de sua gratuidade e infinita magnanimidade. O amante, na generosidade de sua doação afetiva, é perturbado pelo mérito do ser amado que vincula e explica demasiado o seu anseio, seu amor sendo reduzido à simples constatação de um valor. As acerbas polêmicas que a dialética do amor e do mérito desencadeou outrora na esfera teológica, no campo da doutrina da graça e da predestinação, liga-se em última instância ao fenômeno originário da livre doação e do reconhecimento.

A interação recíproca dos “eus”, como síntese instável de posições, assume ante nossos olhos o aspecto de um jogo titânico. Trata-se de um espaço próprio, onde o espírito, de acordo com determinada regras, executa seu movimento peculiar. Como vimos, o que há de importante na atividade lúdica relativamente ao fenômeno do reconhecimento é o fato de, no jogar, patentear-se um poder fazer, uma produtividade interna que o marca espiritualmente. O jogo quer manifestar uma destreza, um soberano poder realizar e vencer, uma superabundância e de energias e de capacidades. Como no jogo a consciência não persegue diretamente a eliminação do outro, mas unicamente a supressão de seu em-si-para-o-outro, a atividade lúdica tende à determinação de um ideal e não à limitação do horizonte do outro. Poderíamos acrescentar que, no jogo, ao mesmo tempo que o entrechoque de forças, manifesta-se a cooperação dos contendores na elevação de um ideal e de uma nova medida. A vitória, escopo da realização lúdica, consubstancia não só a ideia de sobrepujar o antagonista, como a da realização de uma performance humana. Sob um certo ponto de vista, a parte vencida colaborou dialeticamente na obtenção desse novo padrão do feito humano. Como já acentuamos, o jogo constituiu no decurso dos séculos um grande fator da formação e desenvolvimento humanos, pela sua capacidade de estimular o esforço e a vontade de auto-superação. A revelação sugerida pelas atividades agonais é justamente a do sentimento superior de um “poder fazer”, de uma excedência sobre o meramente dado, de um desenvolvimento e ampliação do “por si”. O papel educativo e formador do jogo reside justamente nesta referência do sujeito a algo que o transcende e que ele deve realizar, esta transcendência sendo a livre figurabilidade do “por si”. Toda educação reveste-se do significado profundo de uma condução da consciência para suas possibilidades mais próprias. A educação pelo conhecimento é, antes de tudo, produzir em si a possibilidade de um tal advento, libertando-se para a verdade. Portanto, se em toda educação vai implícita esta operação reveladora de possibilidades, na paideia lúdica afirma-se a revelação do homem em sua independência e autonomia. O jogo, essa atividade que se cumpre em vista de si mesma, sendo em última instância o atuar do atuar, reflete exemplarmente a essência da realidade humana como ação. Vemos assim afiançar-se no terreno lúdico a forma da presença humana, como regímen de autodeterminação e incondicionalidade. O agir-a-partir-de-si-mesmo do jogo, que procuramos elucidar como regímen de figurabilidade, não deve, entretanto, arrastar-nos à suposição de que no jogo se manifesta uma instância antropológica fechada. A divinização dos jogadores olímpicos na Grécia, o sentido transcendente dado às suas façanhas, já nos devem alertar contra essa falsa interpretação dos fatos. A autodeterminação do homem refere-se à sua ação própria que é aberta em si mesma para a transcendência. No jogo, abre-se um certo setor dessa prospecção além do existente, e assim, em lugar de uma relação fechada encontramos, como norma do agir lúdico, a referencialidade a algo que nos ultrapassa. Em nosso intento de descrever sucessivamente os tipos de interação das consciências, destacamos o comportamento amoroso como forma primordial da autorrevelação subjetiva. Cumpre-nos agora examinar conclusivamente quais as relações existentes entre a aproximação amorosa das consciências e o conjunto das outras atitudes interpessoais.

Antes de mais nada, ressalvemos o fato de que compreendemos o amor em seu sentido autêntico e mais largo, como atitude congratulatória e viril do reconhecimento. O mútuo conhecer-se que se efetua na relação amorosa não exime a consciência da percepção dos defeitos do objeto amado, nem dos gestos de severidade e de justiça por parte do que ama. Se não compreendêssemos o amor como esta lucidez do valioso e do meritório, como esta confiança no que há de melhor no outro, em lugar de se apresentar como força exaltadora do melhor, apresentar-se-ia o amor como absolvição arbitrária de todas as deficiências e confusão de todos os valores. Em sua qualidade de tendência e movimento, o amor é também uma força de separação, que aparta o menos do mais, que provoca continuamente a transcendência de um para outro desses momentos, não permitindo, portanto, a aceitação indiferenciada do valioso e do imeritório. Nesta linha de ideias, a misericórdia divina, por exemplo, não deve ser entendida como aceitação do pecado, mas como infinito reconhecimento do que há de incontaminado nos que pecaram.

Une-se o amor aos demais comportamentos tendentes à promoção do mútuo reconhecimento das consciências, pelo caráter discriminativo e autentificador da verdade existencial. Esta analogia com as demais disposições da consciência comunicativa significa que em sua natureza reside a tendência profunda à realização pessoal, através de uma consagração à existência do outro. Se através do esforço, do trabalho, da reflexão, do estudo, o homem tende à conquista e afirmação de sua personalidade, no amor esta tendência encontra seu espaço mais peculiar de realização.
Em todas as orientações do impulso amoroso percebe-se a vontade de magnificar e enaltecer o significado do outro e de, vivendo no outro e para o outro, viver para o melhor de si mesmo. O existir-fora-de-si-do-amor é, no fundo, uma forma de interiorização, pois a exterioridade da oposição dos sujeitos é superada na unificação interior dos espíritos. Neste sentido é que devemos compreender a afirmação de Hegel segundo a qual “o amor destrói completamente a objetividade e portanto anula e transcende a reflexão, despoja o oposto de todo caráter estranho e descobre a própria vida sem nenhum outro defeito. No amor, o separado continua separado, mas como algo unido e não como algo separado.”[27] Caracterizando a competência própria do amor, podemos dizer que é a força humanizadora por excelência, pois através de sua incitação a nossa experiência se amplia e se valoriza. Dissemos que o amor é uma interiorização, isto é, uma superação do que há de exterior, por representar exemplarmente a lei do “por si”. Com efeito, é no amor que o homem se torna fonte original de comportamentos, de intuições e de sentimentos, ou como diz Jaspers: “Somente amando, vivo a partir da liberdade; amando, sou no outro, eu mesmo... O amor é a forma pela qual o homem pode viver a partir de si mesmo” (Nur liebend lebe ich aus der Freiheit; liebend erst bin ich im anderen zugleich ich selbst... Liebe ist die Weise inder der Mensch aus sich selbst leben kann)[28]. Como esta forma de existência não se dá na relação de exterioridade, mas como transcendência e determinação da subjetividade, caracterizamos este processo como interiorização. A volta a si mesmo proposta pelo amor é uma interiorização em termos da polaridade eu-tu e não uma interiorização do homem singular, ou melhor: essa interiorização manifesta-se como volta a si do homem singular, na medida em que essa volta se põe como determinação intersubjetiva. No movimento amoroso, por outro lado, está implícita a tendência para a verdade, para a sinceridade, para a confissão. Como já assinalamos anteriormente, não é possível compreender o amor complicado com a dissimulação, com a impostura e com a deslealdade. Eis porque podemos dizer que o amor aguça a visão espiritual, provocando em si e em torno de si a irrupção do verdadeiro. Com isto, não pretendemos identificar o amor, em toda a sua extensão, como sua forma pedagógica segundo o esquema socrático, mas unicamente acentuar uma nota comum à essência do fenômeno geral que se dá sempre como um existir na verdade de si. Sob o ponto de vista que ora examinamos, a realidade intersubjetiva do homem se nos oferece como a cena móvel de uma contínua abertura para o possível. Esta realidade não possui outra substancialidade além de seu próprio transcender. Existir, nesse sentido, é transcender. No entanto, o enxame de pontos em desenvolvimento que são os múltiplos centros pessoais não constitui um sistema de mônadas estanques, mas uma unidade articulada por meio de anastomoses internas, funcionando de forma reciprocamente determinada. Essa unidade revelou-se-nos, através deste trabalho, como unidade dialética, isto é, como fixação e superação de posições e contínua manifestação de contrários. A abertura para o possível revelou-se dessa forma como o sentido superior da dialética das consciências. Na possibilidade de transcender o meramente dado descobrimos o humano do homem, que nos permitiu caracterizar a totalidade da realidade intersubjetiva, como totalidade humana. A evolução interna do homem não é, diga-se mais uma vez, um sistema fechado, sua essência residindo no livre defrontar-se com o horizonte aberto da transcendência. Não somos humanos, pois, como se é pedra, céu ou árvore, mas tornamo-nos humanos, isto é, somos convocados à humanidade. A unidade sintética do transcender é uma força de contínua comoção e superação do já dado. O horizonte da transcendência a que nos referimos, por outro lado, não deve ser compreendido como uma realidade inerte e objetiva, mas como uma irresistível sucção que nos arranca da permanência satisfeita no já dado e cumprido. Não somos proprietários de nossa transcendência, mas súditos seu poder autentificador. Todos os comportamentos do reconhecimento que se apresentaram à nossa consideração são especificações desse poder de co-moção e promoção que advém da transcendência. O fenômeno da comunicação existencial liga-se, pois, à unidade sintética intersubjetiva, em sua qualidade de estrutura transcendente. Giordano Bruno, em diálogo Degli eroici furori, trata, numa poesia, da prosopopeia de Atteon, caçador temerário que se adentrando na floresta das ideias vislumbra o vulto divino da transcendência: “e’l gran cacciator dovenne caccia”, conclui o poema. A liberdade humana determina um destino que se alça como um poder superior sobre o mero estar aí. Sentimo-nos sob o mandato, sob a concitação e a vigilância desse poder instaurado por nós mesmos; somos, como Atteon, perseguidos, arrastados e dilacerados pela força corrosiva do “por si”, e como ele, de caçadores tornamo-nos caça. A lei do “por si”, como poder de transcendência, traduz-se em todas as formas do processo de reconhecimento. A superação da não-verdade é um apelo dirigido pela transcendência, que nos força a abandonar os moldes do existir impróprio e extraviado. A forma própria de atração da transcendência reside no processo comunicativo, o encontro do outro pondo em movimento a consciência de si. Através do comportamento convivencial, do ser-com-o-outro, educamo-nos, pois, para o sentido de nossa verdade própria.

Notas
[1] Vikto Von Weizsäcker, Anonyana. Berna: Verlag A. Francke, 1947, p. 12.
[2] Hegel, La phénomenologie de l’esprit, t. I. Paris: Aubier, p. 157.
[3] Fichte, Wissenschaftslehren, Cedam, 1939.
[4] Wilhelm Dilthey, Psicologia y teoria del conocimiento, Fondo de Cultura Economica, 1945, p. 200.
[5] Jean Paul Sartre, L’être e le néant. Paris: Gallimard, 1943, p. 292.
[6] Heidegger, Sein und Zeit. Halle: Max Niemayer Verlag, p. 116.
[7] Martin Buber, Je et tu. Paris: Aubier, 1938, p. 19.
[8] Karl Jaspers, Philosophie, Springer-Verlag, 1948, p. 354.
[9] Ernesto Grassi, Verteidigung des individuellen Lebens, A. Francke, 1944, p. 170.
[10] Alexandre Kojève, Introduction à la lecture de Hegel, Gallimard, 1947, p. 512.
[11] Jean Paul Sartre, L’être et le néant, Gallimard, 1943, p. 669.
[12] Leo Frobenius, La cultura como ser viviente, Espasa-Calpe, 1934, p. 100.
[13] Armando Vedaldi, Essere gli altri, Taylor, 1948, p. 209.
[14] Karl Jaspers, Philosophie, Springer-Verlag, 1948, p. 348.
[15] Philippe Muller, De la psychologie à l’antropologie, Éditions de la Baconnière, 1946, p. 65.
[16] Martin Buber, Je et tu, Aubier, 1938, p. 63.
[17] Hegel, La phénomenologie de l’esprit, t. I, Aubier, p. 153.
[18] Julián Marías, Introdución a la filosofia, Revista de Occidente, 1947, pp. 382-383.
[19] Max Scheler, Le savant, le génie, le héros, Egloff, 1944.
[20] Karl Jaspers, Von der Wahrheit, Piper Verlag, 1947, p. 1011.
[21] Xavier Zubiri, Naturaleza, historia, Dios, Editorial Poblet, 1948, p. 445.
[22] Karl Jaspers, Von der Wahrheit, Piper Verlag, 1947, p. 1009.
[23] Hegel, La phénomenologie de l’esprit, t. I. Paris: Aubier, p. 158.
[24] Ortega y Gasset, Historia como sistema, Revista de Occidente, 1942, p. 56.
[25] Rudolf Meyer, Der protest des Gewisses in der Philosophie, Leemann Verlag, 1941, p. 82.
[26] Karl Jaspers, Von der Wahrheit, Piper Verlag, 1947, p. 370.
[27] Hegel, Early theological writings, The University of Chigago Press, 1948, p. 305.
[28] Karl Jasper, Philosophie, Springer- Verlag, 1948, p. 354.

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