segunda-feira, 15 de julho de 2013

A coexistência de contrários: lógica do privado/lógica do público

Rosiska Darcy de Oliveira

Excerto de Elogio da diferença: o feminino emergente. São Paulo: Brasiliense, 1991, p. 75-90.
Notas ao fim do texto.

"O feminismo da igualdade se prolonga como feminismo da diferença (...) Não se trata aqui, como se poderia pensar, de uma qualquer essência que, submissa à Natureza, erradamente tomada por imutável, imobilizasse a História. Muito pelo contrário, trata-se de quebrar a oposição anacrônica entre Natureza e Cultura e surpreender-se em pleno curso de uma 'história humana da Natureza'." Rosiska Darcy de Oliveira

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O caminho que leva as mulheres da demanda de igualdade à afirmação da diferença atravessa a no man’s land da ambiguidade, situada a meio caminho dos territórios do masculino e do feminino.

As mulheres têm vivido mergulhadas em plena ambiguidade, fazendo coexistirem em si mesmas as contradições impostas de fora. Respondem às escolhas impossíveis pela não escolha e esgotam, no exercício da ambiguidade, a energia pessoal. Daí, para muitas, o cansaço, a perplexidade, a angústia e a frustração.

Na linguagem corrente, chamamos ambíguo aquilo que pode ser entendido de várias maneiras, a que se podem atribuir vários sentidos ao mesmo tempo. A clínica psicanalítica define como ambígua a pessoa cujo comportamento se presta a diferentes interpretações e provoca, por conseguinte, dúvida, incerteza e confusão.

No entanto a ambiguidade só é perceptível àquele que a observa de fora, posto que, para a pessoa ambígua, não há incerteza ou confusão, apenas indiferenciação, uma falha na capacidade de discriminação e identidade.

Apesar da assimilação corrente entre os dois termos, a ambiguidade difere profundamente da ambivalência. Este último termo, tomado emprestado por Freud a Bleuler, que o forjara, desenvolvido em seguida por Karl Abraham e Melanie Klein, serve para qualificar a presença simultânea, num mesmo sujeito, de sentimentos ou comportamentos antinômicos e contraditórios. Na ambivalência a afirmação e a negação, o sim e o não, o amor e o ódio coexistem conflituosamente.

O componente positivo e o componente negativo da atitude afetiva estão simultaneamente presentes, indissociáveis, e constituem uma oposição não dialética, intransponível para a pessoa que diz ao mesmo tempo sim e não.10

Ambivalente é a pessoa que vive ou exprime a contradição e o conflito; ambígua é aquela que não consegue se dar conta do que lhe ocorre, que não consegue identificar ou discriminar contradições que se traduzem em atitudes ou comportamentos que não se excluem uns aos outros mas que, pelo contrário, aparecem juntos ou alternadamente, coexistindo no mundo interior e no psiquismo do indivíduo sem que este sinta contradição ou conflito. A ambiguidade é “um tipo particular de identidade ou de organização do eu que se caracteriza pela coexistência de múltiplos núcleos não integrados que podem, por conseguinte, coexistir e alterar-se sem implicarem confusão ou contradição para o sujeito”.11

Essa definição de ambiguidade nos permite compreender melhor o que sentem as mulheres que atravessam a fronteira do mundo dos homens. “A personalidade ambígua apresenta a característica de não assumir a situação, de esquivar-se a ela, de não se comprometer, ou, ainda, de não assumir a responsabilidade nem pela situação em si nem pelo seu sentido nem por suas motivações e consequências. A personalidade ambígua não é, portanto, fruto de uma negação, mas de uma falta de discriminação, onde nada é totalmente afirmado nem totalmente negado.”12 Ela se sente capaz de pular indefinidamente de um papel para outro e, quando confrontada com uma escolha precisa, prefere recuar e tergiversar a enfrentar os dados da realidade concreta, que comprometeriam a ilusão de onipotência.

Contrariamente, entretanto, às situações consideradas pela clínica psicanalítica, a ambiguidade nas mulheres não é um problema pessoal e individual mas antes a resposta inevitável – e, até, sadia e normal – às mensagens diferentes e contraditórias que elas recebem – e acatam – da sociedade moderna.

Estudando os traços etiológicos da esquizofrenia, Gregory Bateson chama “dupla coerção” (double bind)13 a situação em que se encontra uma pessoa submetida, permanentemente, a ordens que se excluem ou se negam umas às outras, sem que ela tenha possibilidade de escapar do campo onde interagem essas “injunções contraditórias”. Quem está submetido ao double bind sempre sai perdendo. “Seja homem, mas continue mulher” constitui um double bind suficientemente grave para que dele as mulheres tentem escapar pela ambiguidade. O ser ambíguo, na medida em que não se percebe como tal, faz ou tenta fazer coexistirem em si mesmo forças conflitivas, desejos que se anulam ou que se superpõem sem integração possível. Ele se desloca de um desejo a outro, de uma existência a outra, de uma personalidade a outra, num esforço desesperado para não perder nada, para ser tudo ao mesmo tempo. O ser ambíguo é aquele que não admite a perda, incapaz de luto por um desejo.

Na ambiguidade, a pessoa existe mas não é; a pessoa existe mas não tem a vivência, a pessoa existe “em si” e não “para si”.14

A fragmentação da personalidade feminina faz dela um “caleidoscópio de personagens”, característica do ser ambíguo que Bleger descreve como já fizera Béranger, e é nesse caleidoscópio que se multifaceta e, ao mesmo tempo, se dissolve a existência feminina.

Sair da ambiguidade supõe uma discriminação dos termos da contradição e uma integração do eu capaz de suportar o conflito. As contradições, como não são discriminadas, trabalham, invisíveis, e não permitem às mulheres situarem-se ante elas.

A força subterrânea da ambiguidade é identificável em, pelo menos, três exemplos de conduta das mulheres no mundo dos homens: sua relação equívoca com o saber, sua fala sofrida, seu medo do sucesso.

Escolas, universidades e centros de pesquisas estão hoje repletos de mulheres que, neles, não só adquirem, como produzem saber. A considerável produção científica assinada por mulheres não constitui, no entanto, um argumento suficientemente forte para destruir nelas sentimentos equívocos de atração e repulsão que atuam simultaneamente, sem que uma firme sua primazia sobre a outra. A simultaneidade desses sentimentos marca com o selo da incerteza a atividade intelectual que se afirma para fora, mas ao preço de um esforço interno de vencer a impressão de apropriação indébita. A relação das mulheres com o saber se cerca assim de um clima de indefinição em que entram em jogo o desejo de conquistar novos horizontes e, ao mesmo tempo, e com força igual, a falta de autoconfiança, o sentimento de estranheza em face da intimidade com o conhecimento. Se a autoconfiança se ganha no sucesso da própria produção intelectual sancionada por títulos e publicações, ela se perde na suspeita difusa de estar investindo no que não vale a pena, como se um olho crítico e talvez irônico observasse o desempenho intelectual das mulheres como uma deformação.

Não é impunemente que as mulheres, pertencentes a uma cultura em que “modos de fazer e modos de dizer se revezam e se esclarecem mutuamente, desenhando uma esfera de representações e ações que lhes pertencem”,15 fazem sua incursão na esfera do saber, campo até então reservado ao Masculino. O universo feminino se organiza em torno de saberes que lhe são próprios – o saber feminino é um saber relacional, fundado na reciprocidade e que se realiza pelo diálogo entre dois sujeitos – e se acomoda com dificuldade ao saber instrumental, que supõe uma relação sujeito/objeto e que se realiza em função de um objetivo pretensamente independente do sujeito. Os saberes femininos se apoiam na experiência, desconfiam do teórico, que aparece às mulheres como sedutor e ao mesmo tempo pouco confiável. Essa desconfiança em si não é teorizada, mas vivida de maneira obscura, mais sentida que pensada, mais experimentada que afirmada.

Coexistem assim, na conduta das mulheres ante o saber, desejos contraditórios, contradição não explícita para aquelas que a vivem e que, sem propriamente formulá-la ou percebê-la, sofrem as suas consequências, não sob forma de paralisia – porque essa elas venceram e se inseriram em diferentes campos do saber–, mas sob forma de sentimento de inadequação, mal-estar difuso que as faz entreter com esse aspecto de seus destinos o que estou chamando de relação equívoca.

Problema do mesmo jaez é a fala sofrida, que é a fala feminina no espaço público. Sofrida porque deslocada ou vivida como tal, é a fala da estrangeira, da que não domina os códigos, da que titubeia, da que se sente mal, fora de lugar.

O fio do discurso pelo qual as mulheres justificam o silêncio ou, no melhor dos casos, o medo da palavra em situação pública, percorre um caminho de representações que parte da percepção do espaço público como rigoroso e exigente, regido pelo saber instrumental; leva à associação desse saber à linguagem conceitual, e finalmente à identificação desta com o masculino. Forma-se assim uma cadeia de associações que faz com que as mulheres, para se protegerem de um possível fracasso em relação às expectativas que elas mesmas construíram, abdiquem do direito de se exprimir.

A fala em situação pública parece significar para as mulheres uma mudança de registro linguístico em que a comunicação informal de sujeito a sujeito, de Ego a Alter, inerente ao espaço privado, cede lugar a um outro registro, conceitual, masculino, vivido não só como diferente mas como superior à linguagem feminina e mais adequado às exigências do espaço público.

A existência de dois discursos, dois estilos, dois modos de expressão, um feminino e outro masculino, tributário cada um do pertencimento a uma esfera de vida e a um espaço social, mereceu uma produção teórica importante, sobretudo de pesquisadores norte-americanos.

No leque de estudos empíricos realizados a partir da metade dos anos 1970 sobre a fala feminina e a fala masculina destacam-se os trabalhos de Robin Lakoff.

Numa obra que provocou controvérsias não só entre os sociolinguistas por sua abordagem inovadora como também entre as feministas pelas conclusões a que chega, Lakoff afirma que:

a linguagem nos usa tanto quanto nós usamos a linguagem e (...) nossa escolha de formas de expressão é guiada pelos pensamentos que queremos expressar, da mesma forma que a maneira como sentimos as coisas no mundo real governa a maneira como nos expressamos sobre essas coisas.¹6

A partir dessa premissa, Lakoff se dedica a analisar até que ponto a maneira de usar a língua que se ensina às mulheres, assim como o modo de que a linguagem corrente dispõe para se referir a elas, exprimem e reforçam uma situação de “discriminação linguística”. “Alguns itens lexicais significam uma coisa quando aplicados aos homens e outra quando aplicados às mulheres, e essa diferença refere-se aos diferentes papéis desempenhados pelos sexos na sociedade.”17

Através de numerosos exemplos tirados do inglês falado nos Estados Unidos, Lakoff conclui que existiria uma “língua de mulheres”, produzida pelo processo de socialização e caracterizada por diferenças de registro lexical, de estrutura sintático-estilística e fonêmica. Comparado com o discurso masculino, o falar das mulheres comporta um uso mais corrente de adjetivos, é mais polido e cortês, privilegia as construções modais que exprimem uma trivialidade de conteúdo assim como uma atitude incerta, hesitante e pouco segura de si. Há igualmente, na linguagem das mulheres, uma preocupação desmesurada com o purismo e com a hipercorreção gramatical, que pretende compensar um modo de expressão inseguro. Para Lakoff, por seu conteúdo fútil e frívolo, pela ênfase dada às reações emotivas, por seu tom mais nervoso e seu fluxo mais irregular, o falar das mulheres se desqualifica em face do discurso masculino, mais forte e afirmativo, construído de maneira a consolidar a posição de força dos homens no espaço público.

Julgando que esse discurso feminino superficial e confuso impede as mulheres de quebrar seu status de inferioridade social, Lakoff indica como caminho da igualdade a aquisição, pelas mulheres, de formas “mais fortes” de expressão que, até hoje, permaneceram domínio reservado dos homens. Essa última afirmação é vivamente contestada pela maioria das pesquisadoras desse tema que, embora concordando em correlacionar especificidade de linguagem e dominação sexual, recusam a noção de que o discurso masculino constitua a norma e o padrão a que as mulheres deveriam se curvar.

N. Henley explora uma pista de pesquisa paralela, debruçando-se sobre as relações entre “poder, sexo e comunicação não verbal”. Essa autora examina os pequenos acontecimentos e interações da vida cotidiana aparentemente desprovidos de significação maior – a maneira, por exemplo, como os homens e as mulheres ocupam o espaço, se olham nos olhos, se tocam, sorriem, tomam a iniciativa de entabular conversa, de mudar de assunto ou interromper o outro, atos “micropolíticos” que revelam e ao mesmo tempo reforçam as estruturas de poder e as relações interpessoais de dominação.18

As pesquisas conduzidas por Henley levam-na a afirmar que, em situações mistas, os homens têm tendência a falar mais que as mulheres e a interrompê-las com muito mais frequência. Eles se permitem, também, olhá-las direto nos olhos e tocá-las e, de um modo geral, adotam uma postura corporal mais descontraída. Como a recíproca não é verdadeira – as mulheres, muito pelo contrário, têm tendência a desviar o olhar ou a baixar os olhos, param de falar se lhes cortam a palavra e se submetem ao toque e ao sorriso masculinos–, cada um desses pequenos episódios da convivência cotidiana torna-se gesto significativo e simbólico de uma reafirmação do status dominante dos homens.

O código gestual, a mímica e a postura corporal conjugam-se ao código linguístico em uma interação em que estão em jogo não somente registros linguísticos próprios a cada sexo, como também a relação de cada sexo com a linguagem e com a atividade verbal enquanto modo de expressão.19

Homens e mulheres adotam registros linguísticos diferentes na medida em que se ligam a centros de interesse específicos e passam assim a dispor de competências linguísticas diferentes.

Essa interpenetração entre forma e conteúdo do discurso reflete, no plano linguístico, a interação social mais ampla entre linguagem, pensamento e esfera de vida. Os homens dominam os registros técnicos, políticos e intelectuais e têm o controle da palavra pública. As mulheres só dominam registros referentes a campos socialmente considerados como secundários ou insignificantes. A fala feminina, competente no espaço privado, torna-se titubeante e insegura em situações nas quais a conotação pública é predominante.

Os diversos estudos sociolinguísticos citados vinculam a demarcação dos papéis sociais segundo o sexo à especificidade de registros linguísticos. Todos eles tendem a concluir que uma mudança desses papéis sociais atenuaria a diferença de linguagem entre homens e mulheres. A uniformização de seus modos de vida, com as mulheres ascendendo às mesmas carreiras e à mesma formação que os homens, apagaria as diferenças linguísticas. Os modos de dizer femininos desapareceriam, um dos sexos se tornaria o outro, o universal absorveria o particular, o único sufocando o diferente.

Essa conclusão, entretanto, me parece equivocada na medida em que não leva em conta que o acesso das mulheres à educação e às carreiras masculinas está se dando concomitantemente a uma preservação dos papéis femininos tradicionais. Não se pode falar, portanto, em uniformização, e isso talvez explique por que as mulheres hesitam, tergiversam, queixam-se, angustiam-se.

Essa integração através da apropriação da palavra masculina coexiste com uma “tradição” de fala feminina; essa coexistência é vivida pelas mulheres como fonte de confusão e indefinição.

Na verdade, a pretensa uniformização progressiva dos modos de vida masculino e feminino é incompleta e desigual. As mulheres penetram no mundo dos homens, mas esse movimento se faz sem contrapartida nem reciprocidade. Embora a sociedade aceite e, às vezes, até exija que uma mulher saiba falar como um homem, a recíproca não é verdadeira.

Um homem que adote um modo de falar “feminino” é apontado como portador de um comportamento desviante. Esse duplo critério de julgamento reafirma a primazia do discurso masculino como única norma com validade geral e encerra as mulheres numa situação paradoxal.

As mulheres aprendem a falar de maneira adequada a seu sexo sob pena de receber uma sanção como “masculinizadas”. Mas, para se afirmarem como seres autônomos e independentes no espaço público, elas precisam introjetar a norma do discurso masculino. Reedita-se a dupla mensagem: falar bem a língua dos homens é pôr em risco seu reconhecimento enquanto mulher. Falá-la mal é expor-se ao ridículo profissional.

A fala sofrida assim como a relação equívoca com o saber são manifestações de um desejo mal formulado, impreciso, de não renunciar totalmente aos traços da cultura feminina – que continua viva e atuante na vida das mulheres –, ainda que essa presença represente um complicador para novas experiências, vivências e desafios que elas mesmas desejam e reivindicam.

Na verdade, o domínio da palavra e do saber são pré-requisitos fundamentais para uma travessia bem-sucedida do espaço público. Nas mulheres, esse êxito é tão desejado quanto temido; tão procurado quanto sabotado; é, ao mesmo tempo, imagem sedutora e fantasma obscuro.

O medo do sucesso, travestido em medo do fracasso, é o terceiro componente desse desempenho problemático das mulheres no mundo dos homens. Um jogo de sim e não se instala: desejos de mudança e ambições de vida pública interagem com o medo do fracasso, com a incapacidade de assumir o desafio de seus próprios desejos.

As mulheres querem mudar de vida mas temem as consequências da mudança. Têm medo de questionar sua autoimagem tradicional sem a certeza de encontrar outra mais satisfatória por meio de sua inserção no mundo do trabalho. Têm medo de não estar mais em condições de desempenhar seu papel de alicerce emotivo e afetivo da família sem a certeza de encontrar compensações em suas atividades profissionais.

Insatisfação, ambição, desejos de independência e de autonomia são sentimentos que, nas mulheres, muitas vezes são acompanhados pelo fantasma da culpa. É essa culpa que o fracasso vem sancionar. Sendo a culpa um sentimento que se nutre das provas de que se está errada, a melhor dessas provas é o fracasso. Lugar de transgressão, o espaço público torna-se também lugar de expiação.

Ter sucesso, para as mulheres, é bem mais arriscado que fracassar. Ter sucesso não está previsto e introduz ao desconhecido. Negociar o sucesso profissional com o equilíbrio familiar e afetivo parece a muitas mulheres configurar uma ameaça de desencontro que elas preferem evitar.

Já em 1949, Margaret Mead lançava seu grito de alarme: “quanto mais bem-sucedido é um homem em seu trabalho, mais certeza têm todos de que ele será um bom marido; quanto mais bem-sucedida for uma mulher, mais receia-se que ela talvez não seja uma esposa bem-sucedida.” Vinte anos mais tarde, Martina Horner, baseando-se em estudos referentes às representações e expectativas de cada sexo em relação aos papéis masculino e feminino, constata que uma das causas determinantes da falta de sucesso profissional das mulheres decorre do receio delas de que o êxito comprometa sua feminilidade e as ponha em perigo.20

Feminilidade e êxito aparecem como dois polos desejados mas mutuamente excludentes. É a constatação dos riscos do êxito que leva as mulheres seja a evitar os papéis nos quais o êxito é possível, seja a fazer o necessário para que o êxito não se materialize, seja a se concentrar em “carreiras femininas”, nas quais o sucesso não causa os mesmos problemas que quando é alcançado em “carreiras masculinas”.

O medo do sucesso faz-se traço permanente da personalidade feminina. Se a identidade feminina depende fundamentalmente da aprovação dos homens e se os homens se sentem ameaçados em sua masculinidade por mulheres competentes, uma mulher competente corre o risco de não ser escolhida e amada.

Judith Bardwick introduz uma outra dimensão explicativa: a angústia que as mulheres sentem vem do fato de que seu comportamento aparece, a seus próprios olhos, como desviante.

O desvio consiste na adoção de autoimagens, condutas e atitudes que destoam das prescrições de comportamento ditadas pelas normas de sexo e pelos estereótipos de gênero. (...) O medo que as mulheres têm do sucesso pode não ser um traço psicológico, mas sim um receio de que uma incorporação excessiva dos estereótipos masculinos as empurre para comportamentos desviantes, expondo-as a todo tipo de sanção social. 21

Redigida no fim dos anos 1970, a conclusão da autora reflete o otimismo da época: a entrada maciça e crescente das mulheres no espaço público seria suficiente para terminar com qualquer ideia de desvio e de culpa.

Quando deixamos de considerar o medo do sucesso como traço psicológico constitutivo da personalidade feminina para entendê-lo como reação defensiva ao que é percebido como comportamento desviante, deslocamos a explicação de uma variável interna, assumida como sendo permanente e difícil de mudar, para a realidade externa, que é sempre mais fácil de ser alterada. 22

No começo dos anos 1980, uma obra sem pretensões científicas obteve uma escuta impressionante do público leitor feminino dos países industrializados. Descrevendo em estilo jornalístico o que pesquisas acadêmicas haviam constatado em relação ao medo do sucesso, Colette Dowling confirma que a própria ideia de sucesso se reveste de significação diferente para cada um dos sexos.

As mulheres não parecem procurar o êxito como fazem os homens. Elas se protegem dele. Sentem tanta ansiedade quando as coisas vão bem quanto quando a rejeição ou o fracasso parecem iminentes. Tem-se a impressão de que sair-se bem — tornar-se eficiente num dado campo, ter êxito — assusta um número incrível de mulheres que possuem as qualidades requeridas para produzir algo de valor no decorrer da vida. 23

Segundo Dowling, quanto mais talentosas são as mulheres, mais elas se angustiam frente ao risco do sucesso. Para os homens, o êxito pode reforçar sua autoimagem enquanto indivíduo autônomo, independente, agressivo e empreendedor.

Já para as mulheres, o êxito é fonte de tensão e incerteza. As mulheres bem-sucedidas mergulham num mundo de regras desconhecidas, o que agrava as dificuldades de organização da vida cotidiana e, principalmente, traz o risco de comprometer aquilo que é, aos seus olhos, o bem mais precioso: suas relações afetivas.

A ambição pessoal, o impulso criador, o desejo de ter êxito no espaço público são percebidos como ameaça direta a uma definição de feminilidade baseada nas noções de sacrifício de si mesma, dedicação aos outros, dependência e vulnerabilidade.

As mulheres não cortejam o fracasso: elas evitam o sucesso (...). Para a mulher tomada enquanto indivíduo, evitar o êxito será menos visivelmente destruidor que procurar o fracasso, mas não podemos subestimar as consequências desse fenômeno sobre as mulheres em geral. A tendência que temos de nos autoimpor limites, de fazer coisas que ficam aquém de nossas capacidades reais de preferência, de correr o risco de não sermos mais amadas, decorre do que chamei “confusão dos gêneros” essa nova incerteza sobre nossa identidade de mulheres. Não fazer nada é a melhor garantia de não ter que experimentar a angústia ligada a nossas conquistas e realizações, com o risco que lhes é inerente, de nos sentirmos não femininas. 24

Para todas essas autoras, o medo do êxito é, portanto, um comportamento de fuga e defesa diante dos riscos de fragmentação da identidade feminina. E, no entanto, esse receio – ou seu avesso, a adesão ao fracasso como profecia que se auto-confirma – não fornece mais às mulheres um álibi perfeito.

As estratégias de evitamento e autodesqualificação coabitam no psiquismo feminino com sentimentos de força igual e contrária, como o desejo de mudança e a necessidade de afirmação de si mesma. Os polos dessa interação contraditória não se anulam um ao outro num equilíbrio fictício, mas coexistem, de maneira instável e cambiante, ao longo de toda a travessia dos territórios do masculino, provocando ora confiança e euforia, ora ansiedade e depressão.

A atitude das mulheres em relação ao êxito, como em relação à fala pública e ao saber, não é marcada nem pela afirmação nem pela negação pura e simples, mas pela ambiguidade.

O feminino não pode ser o lugar de uma síntese impossível. Sua reconstrução atravessa o reconhecimento e a elaboração de um impasse. Sair desse impasse implica, antes de mais nada, para as mulheres, admitir que estão jogando consigo mesmas um jogo de cartas marcadas. Quem ganha perde; quem perde ganha. Em face dos paradoxos, das escolhas impossíveis, a resposta das mulheres não poderia ter sido, em um primeiro momento, senão a ambiguidade. Transformar o estatuto social das mulheres não pode ser uma mudança que se opere só nelas e graças a elas, pela acumulação de funções sociais e, em consequência, de registros psíquicos. A angústia que habita as mulheres coincide, a meu ver, com o princípio de uma reação lúcida à situação de ambiguidade ante um projeto impossível porque mal formulado. Coincide com a entrada na ambivalência. Passar da ambiguidade à ambivalência significa, para as mulheres, ver mais claro, o que não significa ver mais simples ou mais alegre. 25

O movimento de mulheres é hoje o espelho onde se reflete a ambiguidade feminina, benfazejo espelho que, tendo o papel passivo de receber a imagem, tem o papel ativo de devolvê-la. Esse espelho deve permitir à mulher que nele se contempla reconhecer seu rosto fragmentado, que se faz e se refaz desses mesmos fragmentos, insolitamente reencontrados, e que tem, nesse reencontro, seu enigma e desafio. Só esse espelho poderá tornar a ambiguidade, inscrita nos fatos e transcrita no psiquismo feminino, visível àquela que a vive, abrindo assim caminho para sua transformação em ambivalência assumida, consciência da contradição, do sim e do não, das tensões que decorrem desse sim e desse não, da paralisia que se instala entre eles.

A imagem refletida é a de quem tenta fazer coexistirem em si desejos que se anulam e se superpõem sem integração possível – alguém que se desloca de um desejo a outro, de uma existência a outra, de uma personalidade a outra, em um esforço desesperado de ser tudo ao mesmo tempo.

Espelho da ambiguidade, o movimento feminista está atravessando a ambivalência, conditio sine qua non para repensar o conceito de igualdade. O que equivale, a meu ver, a exteriorizar a angústia que cada uma carrega como uma culpa coletiva, depositando-a fora de si, nos ombros da sociedade. O movimento feminista tem hoje um passado de um século, mas, longe de estar esgotado, entra na última década do milênio com um futuro assegurado. O futuro do movimento é angustiar a sociedade, deparando-a com os problemas que, até agora, as mulheres tentaram resolver sozinhas.

Transformar a neurose das mulheres em neurose social é o recurso terapêutico de que elas terão de lançar mão.

NOTAS
  1. Féminiser le monde”. Documents IDA C n° 10. Genebra: Institut d’ Action Culturelle, 1975.
  2. Idem.
  3. Idem.
  4. Idem.
  5. Idem.
  6. Serge Moscovici. Psychologie des minorités actives. Paris: PUF, 1979, p. 11.
  7. Idem, p. 192.
  8. Idem, p. 192-193.
  9. Foi Maria de Lourdes Pintasilgo quem primeiro utilizou, em conferência pronunciada no Recontres Intemationales de Genéve de 1985, a expressão “igualdade inédita e subversiva” para caracterizar o reconhecimento da diferença sem hierarquia como pedra de toque da identidade feminina.
  10. J. Laplanche e J.-B. Pontalis. Vocabulaire de la psychanalyse. Paris: PUí; 1981, p. 21.
  11. J. Bleger. Symbiose et ambiguité. Paris: PUF, 1981, p. 208.
  12. Idem, p. 211.
  13. Gregory Bateson. Vers une ecologie de 1’esprit. Paris: Seuil, 1980, tomo II, p. 9-14.
  14. J. Bleger. op. cit., p. 223.
  15. Yvonne Verdier. Façons de dire, façons de faire. Paris: Gallimard, 1979.
  16. Robin Lakoff. Language and Woman’s Place. Nova York: Harper and Row, 1975, p. 3.
  17. Idem, p. 4.
  18. N. Henley. “Power, Sex and Nonverbal Communication”. Berkeley Journal of Sociology, 1973-1974, 18, p. 1-26.
  19. Ver também Marina Yaguyello, Les mots et les femmes. Paris: Payot, 1978, e Carol Gilliyan, Uma voz diferente, Rio de Janeiro: Rosa dos Tempos, 1990.
  20. M. Horner. “Fail: Bright Women”, Psychology Today, nov. 1969, 3(6) e “Towards an understanding of achievement-related conflicts in women”, Journal of Social Issues, 1972, 28, p. 157-175.
  21. Judith Bardwick. Women in Transition, The Harvester Press: Brighton, 1980, p. 51-52.
  22. Idem, p. 52.
  23. C. Dowling. Le complexe de Cendrillon. Paris: Seuil, 1982, p. 202.
  24. Idem, p. 209.
  25. A temática da ambiguidade foi por mim mais largamente desenvolvida em Le féminin ambigu, Genebra: Editions du Concept Moderne, 1989.

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