terça-feira, 7 de outubro de 2014

Filosofia da cultura III

Disciplina: FCF 647 Filosofia da Cultura III
Período: 2018.2
Sala: 325 C
Horário: Segunda-Feira de 08:40 às 12:00
Prof.: L. A. Cerqueira

Ementa: O homem como sujeito cultural. Principais contribuições da filosofia moderna.

Programa: A ideia de cultura como antítese da natureza, ou variações contra o paradigma da oposição entre masculino e feminino

“É um resultado natural da luta pela vida que haja grandes e pequenos, fortes e fracos, ricos e pobres, em atitude hostil uns aos outros; o trabalho cultural consiste, porém, na harmonização dessas divergências, medindo a todos por uma só bitola.” (Tobias Barreto)

Partimos do pressuposto de que o histórico paradigma da oposição entre feminino e masculino é referido equivocadamente a Aristóteles, quando na verdade remonta à doutrina ético-moral do aristotelismo de perfil escolástico, no âmbito do qual se defende a ideia de que o que limita o nosso poder é o “corpo animal”. Na cultura de língua portuguesa, por exemplo, se verifica tal consideração na doutrina ético-moral do jesuíta Antônio Vieira, a qual não sofreu qualquer contestação no Brasil durante cerca de três séculos: “quem vê o corpo, vê um animal; que vê a alma, vê ao homem. Para formar o homem natural se há de unir a alma ao corpo; e para formar ou reformar o homem moral, há-se de separar a alma do corpo”. Mas contrariamente ao significado dessa separação entre corpo e alma no âmbito da cultura, sobretudo do ponto de vista ético-moral, o que vemos em Aristóteles é uma distinção estrita no âmbito da natureza, no sentido de que o feminino, enquanto matéria/corpo, e o masculino, enquanto forma/alma, são fatores que concorrem para o mesmo fim, e por isso mesmo não se confundem nem se opõem.

Bibliografia
ARISTÓTELES. “Natureza” (Física II, Trad., Introd. e Comentários, Lucas Angioni, 2009, p. 43 e 195).

Física, livro ii, capítulo 1 (p. 43).
[192b 8] Dentre os entes, uns são por natureza, outros são por outras causas; por natureza são os animais e suas partes, bem como as plantas e os corpos simples, isto é, terra, fogo, ar e água (de fato, dizemos que essas e tais coisas são por natureza), e todos eles se manifestam diferentes em comparação com os que não se constituem por natureza, pois cada um deles tem em si mesmo princípio de movimento e repouso — uns, de movimento local, outros, de crescimento e definhamento, outros, de alteração; por outro lado, cama e veste, bem como qualquer outro gênero desse tipo, na medida em que encon-tram suas respectivas designações, isto é, enquanto resultam da técnica, não têm nenhum impulso inato para a mudança, mas, enquanto lhes sucede ser de pedra, de terra ou misturados, eles o têm, por esses elementos, e nessa exata medida — pois a natureza é certo princípio ou causa pela qual aquilo em que primeiramente se encontra se move ou repousa em si mesmo e não por concomitância; digo “não por concomitância” porque alguém, sendo médico, poderia tornar-se causa de sua própria saúde, mas não é por ser curável que ele tem a arte medicinal, mas apenas sucede que o mesmo homem é concomitantemente médico e quem está sendo curado; por isso, às vezes eles estão separados um do outro. Semelhantemente para as coisas que são produzidas: nenhuma delas tem em si mesma o princípio da produção, mas algumas o têm em outras coisas e de fora (por exemplo, casa e todos os outros manufaturados), ao passo que outras (todas aquelas que poderiam vir a ser por concomitância causa para si mesmas) o têm, de fato, em si mesmas, mas não conforme àquilo que são por si mesmas.
[192b 32] Natureza é isso que foi dito; por sua vez, tem natureza tudo quanto tem tal princípio. Todas essas coisas são substância, pois são um subjacente, e a natureza sempre reside num subjacente. São “conforme à natureza” tais coisas e tudo que lhes pertence devido a elas mesmas — por exemplo, para o fogo, locomover-se para o alto: de fato, isso não é natureza, nem tem natureza, mas é por natureza e conforme à natureza. [193a 1] Está dito, portanto, o que é a natureza e o que é “por natureza” e “conforme à natureza”; por outro lado, seria ridículo tentar provar que a natureza existe, pois é manifesto que muitos entes são desse tipo.

ARISTÓTELES. Generation of animals. Tradução do grego, prefácio e notas por A. L. Peck. Harvard University Press, 1943.
Disponível em:

As far as animals are concerned, we must describe their generation just as we find the theme requires for each several kind as we go along, linking our account on to what has already been said. As we mentioned, we may safely set down as the chief principles of generation the male (factor) and the female (factor) ; the male as possessing the principle of movement and of generation, the female as possessing that of matter. One is most likely to be convinced of this by considering how the semen is formed and whence it comes; for although the things that are formed in the course of Nature no doubt take their rise out of semen, we must not fail to notice how the semen itself is formed from the male and the female, since it is because this part is secreted from the male and the female, and because its secretion takes place in them and out of them, that the male and the female are the principles of generation. By a "male" animal we mean one which generates in another, by "female" one which generates in itself. This is why in cosmology too they speak of the nature of the Earth as something female and call it “mother", while they give to the heaven and the sun and anything else of that kind the title of “generator", and “father”.

Tradução livre  No que diz respeito aos animais, devemos descrever sua geração da mesma maneira que temos feito, ligando nossa explicação ao que já foi dito em relação ao tema. Como mencionamos, podemos estabelecer seguramente como sendo princípios da geração o (fator) masculino e o (fator) feminino: o masculino como princípio do movimento e da geração, e o feminino como princípio da matéria. É mais provável que nos convençamos disso ao considerar como o sêmen se constitui e de onde procede, pois embora as coisas constituídas no curso da Natureza sem dúvida surjam do sêmen, não podemos deixar de notar como o próprio sêmen se constitui a partir do animal masculino e do feminino, pois é porque esta parte é secretada a partir do animal masculino (macho) e do animal feminino (fêmea), e porque a sua secreção ocorre neles e fora deles, que masculino e feminino são princípios de geração. Por "masculino" queremos dizer o que gera em outro; por "feminino" o que gera em si mesmo. É por isso que na cosmologia se fala da natureza da Terra como algo feminino, e a chamam de "mãe", enquanto que ao céu e ao sol, e a qualquer outra coisa desse tipo, se atribui o nome de "gerador" e "pai".

ARISTOTELES. Política. Edição bilingue. Tradução e notas de António Campelo Amaral e Carlos de Carvalho Gomes. Lisboa: Vega, 1998, p. 63 (1254b).

Tradução adaptada Dizemos que é no ser vivo que primeiro encontramos a autoridade de um senhor ou de um governante. A alma governa o corpo com a autoridade de senhor, enquanto a inteligência exerce uma autoridade política ou régia sobre o apetite. Nestes casos é evidente que é não só natural como também benéfico para o corpo ser governado pela alma, tal como a parte afetiva pela inteligência e pela parte que possui a razão (…) acontece o mesmo no que diz respeito ao animal humano e aos outros animais: os animais humanos são melhores do que os selvagens, e é melhor que estes sejam dominados pelos humanos (…) Por outro lado, a relação entre masculino e feminino [enquanto princípios] consiste no fato de que, por natureza aquele é superior a este; o superior é dominante, e o inferior subordinado.


Sancho I (autor)

Ay eu coitada, como vivo
en gran cuidado por meu amigo
que ei alongado! muito me tarda
o meu amigo na Guarda!

Ay eu coitada, como vivo
en gran desejo por meu amigo
que tarda e non vejo! muito me tarda
o meu amigo na Guarda!

(Balada, Cantiga de Amigo, 1199)

Por conseguinte aqueles homens que se diferenciam entre si, tanto quanto a alma se diferencia do corpo ou o homem do animal (e têm esta disposição aqueles cuja atividade consiste em fazer uso do corpo, e isto é a melhor coisa que podem dar), são escravos por natureza, e para eles é melhor estarem sujeitos a esse tipo de autoridade (…) Aquele que, sendo humano por natureza, não pertence a si próprio, mas a outrem, é escravo por natureza. Mais ainda: é um escravo por natureza aquele que pode pertencer a outro, e também aquele que participa da razão o suficiente para a apreender sem, contudo, a possuir; os animais distintivos do homem nem sequer são capazes de participar da forma sensitiva da razão; apenas obedecem passivamente às impressões (…) É óbvio então que uns são livres, e outros escravos por natureza, e para estes a escravidão é não só adequada, mas também justa.

Não é difícil ver que quem defende o contrário também tem alguma razão. Dizemos ‘escravatura’ e ‘escravo’ com duplo sentido: é que também existem escravos e escravatura em virtude da lei, e essa lei é de certo modo um acordo pelo qual se diz que os despojos da guerra pertencem aos vencedores. Contra a justeza disto muitos juristas (…) consideram nocivo que um homem, pela violência, faça da sua vítima um escravo e um subordinado.

BARRETO, Tobias. Natureza e cultura. Estudos de filosofia brasileira. Rio de Janeiro: Record/INL, 1990, p. 246-247.
Disponível em:
http://textosdefilosofiabrasileira.blogspot.com/2014/11/natureza-e-cultura.html>.
 O estado originário das coisas, o estado em que elas se acham depois do seu nascimento, enquanto uma força estranha, a força espiritual do homem, como a sua inteligência e a sua vontade, não influi sobre elas, e não as modifica — esse estado se designa pelo nome geral de natureza.

 a natureza se desenvolve segundo leis determinadas e forças que lhe são imanentes; não se afeiçoa de acordo com fins humanos. Quando isto porém acontece (…) todos experimentam um cultivo ou cultura refreadora da indisciplina e selvageria natural. A cultura é, pois, a antítese da natureza, no tanto quanto ela importa uma mudança do natural, no intuito de fazê-lo belo e bom.

BARRETO, Tobias. Provocação a pensar a partir da própria fonte I: sobre liberdade, moral e ética (excertos de “Glosas heterodoxas”). Estudos de filosofia brasileira. Rio de Janeiro: Record/INL, 1990, p. 292-332. Disponível emhttp://filosofiabrasileiracefib.blogspot.com.br/2016/03/provocacao-pensar-partir-da-propria.html.]
 A liberdade humana é um fato da ordem natural, que tem a sua lei, porém não se deixa explicar mecanicamente.
 Que o homem pode o que quer é uma verdade experimental (…) Se, porém, o que ele quer é sempre o resultado necessário da sua organização (…) nem destrói o fato da liberdade empírica (…) nem deixa esclarecido que a dependência, em que o homem se acha, da sua organização seja realmente de natureza mecânica.
 Como quer que seja, o certo é que a livre vontade não é incompatível com a existência de motivos; pelo contrário, eles são indispensáveis ao exercício normal da liberdade.
 O mundo não é só uma cadeia de porquês, como pretende o materialismo acanhado, mas ainda uma cadeia, uma série de para quês, de fins ou de alvos, que reciprocamente se apoiam, se limitam, que saem uns dos outros. A intuição mecânica porém não quer saber do que vai além da simples concatenação de causas e efeitos.
 O dualismo é realmente uma ilusão (…) E não somente quanto à forma dos organismos, mas ainda e sobretudo quanto às sua funções, crescendo assim a inexplicabilidade mecânica, à proporção que os organismos são mais desenvolvidos, e as funções mais complicadas. O mecanismo ainda não é suficiente para dar conta, entre outros, por exemplo, do fenômeno da beleza [a propósito da sensibilidade, 06 observações extraídas de Notas a Lápis, do mesmo Tobias Barreto - Disponível em:
http://textosdefilosofiabrasileira.blogspot.com/2013/02/notas-lapis-sobre-evolucao-emocional-e.html.


NL 1 Um espírito pouco afeito ao estudo não achará grande embaraço em compreender que um sentimento — o amor da pátria, por exemplo — tenha sido alterado pela ação do tempo; mas esse mesmo espírito dificilmente compreenderá que uma sensação ou grupo de sensações não haja mostrado sempre um caráter idêntico em todas as épocas da história.

NL 2 Dois terços dos raios enviados pelo sol não despertam em nossos olhos nenhuma sensação visual. Os raios aí estão, mas falta o órgão próprio para transformá-los em luz. Terá sido sempre assim? Parece que não. Há três mil anos, nem esse mesmo terço era percebido.

NL 3 O progresso da humanidade tem tido lugar de um modo quase paralelo à diferenciação das cores. Os gregos do tempo de Homero não conheciam o azul. Só sabiam de quatro cores: branca, preta, vermelha e amarela. O azul foi, portanto, uma das últimas, senão a última, adicionada pela retina do homem ao espectro solar.

NL 4 A evolução das sensações auditivas é evidente. A história da música é em grande parte a história dessa mesma evolução. Desde a lira do grego Timóteo até o piano de Liszt há um progresso estupendo, mas também, afinal, o que há progredido — é somente o ouvido do homem. É de crer que os antigos, usando de menor número de notas, não iam, ainda assim, além do diatonismo [tons e semitons]; o cromatismo [que procede por meio de semitons] lhes era desconhecido. Quando se presta séria atenção à estrutura musical das canções populares, produtos de espíritos inteiramente estranhos à cultura hodierna, observa-se que os componistas anônimos de tais canções fazem toda a sua despesa com quatro ou cinco notas; as subidas e descidas da voz são sempre diatônicas. Não há razão de supor alguma coisa de semelhante na música da antiguidade?

NL 5 Ainda é questão indecisa saber se os antigos, principalmente os romanos, tiveram aquilo que hoje chamamos o senso da natureza, o gosto e compreensão das belezas naturais. A alma da poesia antiga era o senso mítico, pelo qual a natureza se povoava de seres imaginários; o que repousa no pressuposto de que, sem esses seres, a natureza não tinha encantos, não podia, por si só, nutrir e engrandecer o espírito poético.


NL 6 A propósito da evolução emocional e mental, importa ainda não esquecer que os dois desenvolvimentos não se dão separadamente. Qualquer que seja o grau de inferioridade em que o homem se ache na esfera evolutiva, ele não pode emocionar-se, sem que esta emoção seja acompanhada, consciente ou inconscientemente, de uma qualquer atividade mental. Vai decerto uma imensa distância entre a mão que trabalhava pedras, como armas, como utensílios, e a mão que hoje cinzela o mármore, para fazer objetos de luxo — mais do que isso, para fazer objetos de contemplação estética.

 Com efeito, se a liberdade é alguma coisa, ela consiste na capacidade que tem o homem de realizar um plano por ele mesmo traçado, de atingir um alvo, que ele mesmo se propõe (…) esse conceito [de finalidade], que nada significa no mundo físico, tem toda significação no mundo psicológico. A causalidade da natureza e a causalidade da vontade não têm o mesmo caráter (…) A ideia do fim [visado] aparece como motivo, e os motivos, já nós vimos, não excluem a liberdade.
 Na verdade, ainda hoje há quem apele para a natureza como uma autoridade suprema. O argumento da naturalidade de uma coisa, ou de um fato, tem honras de irrefutável. Nada, porém, mais desponderado. Ser natural não livra de ser ilógico, falso e inconveniente. As coisas que são naturalmente regulares, isto é, que estão de acordo com as leis da natureza, tornam-se pela mor parte outras tantas irregularidades sociais; e como o processo geral da cultura, inclusive o processo do direito, consiste na eliminação destas últimas, daí o antagonismo entre a seleção artística da sociedade e as leis da seleção natural.
 Assim, e por exemplo, se alguém hoje ainda ousa repetir com Aristóteles que há homens nascidos para escravos, não vejo motivo de estranheza. Sim, é natural a existência da escravidão; há até espécies de formigas, como a polyerga rubescens, que são escravocratas; porém é cultural que a escravidão não exista.
 Do mesmo modo, é um resultado natural da luta pela vida que haja grandes e pequenos, fortes e fracos, ricos e pobres, em atitude hostil uns aos outros; o trabalho cultural consiste, porém, na harmonização dessas divergências, medindo a todos por uma só bitola.
 Por isso é que ainda vemos no pequeno círculo da família, que é mais produto da natureza do que da cultura, a mulher representar um papel subordinado e bem diverso do que ela representa nos grandes círculos da vida. A falta de compreensão desta luta pela existência social contra a mesma luta pela existência natural torna explicável um sem-número de despropósitos, que é comum cometer-se.

 A moral, como o direito, é um sistema de regras. Toda regra é uma limitação; o que fica fora, ou sai desses limites, é o irregular, o imoral por conseguinte. Mas os limites da moral, ou sejam traçados pelo indivíduo mesmo, ou pela sociedade a que ele pertence, são sempre posteriores a um estado de ilimitação e irregularidade, que no todo, ou em parte, é o primitivo estado natural. Logo o seguir a natureza, em vez de ser o fundamento da moral, pelo contrário, é a fonte última de toda imoralidade.

CERQUEIRA, Luiz Alberto (2013). Liberdade e modernização no Brasil. Educação e Filosofia, vol. 27, n. 54. Uberlândia: EDUFU, p. 597-630.
Disponível em:
http://www.seer.ufu.br/index.php/EducacaoFilosofia/article/view/17826/12705.


“Segundo Kant, como ‘o conceito de uma causalidade traz consigo o de leis segundo as quais, por meio de uma coisa a que chamamos causa, tem de ser posta outra coisa que se chama efeito, assim a liberdade, se bem que não seja uma propriedade da vontade segundo leis naturais, não é por isso desprovida de lei, mas tem antes de ser uma causalidade segundo leis imutáveis, ainda que de uma espécie particular; pois de outro modo uma vontade livre seria um absurdo’ " (KANT, Fundamentação da metafísica dos costumes, Cap. 3, 4:446). Disponível em: https://pmrb.net/books/kantfund/fund_metaf_costumbres_vD.pdf.


“Segundo Kant, se ‘o princípio da causalidade se referir tão somente às coisas tomadas (…) enquanto objeto da experiência, e se as mesmas coisas (…) lhe não estiverem sujeitas, então a vontade pode, por um lado, na ordem dos fenômenos (…) pensar-se necessariamente sujeita às leis da natureza, ou seja, como não livre; por outro lado, enquanto pertencente a uma coisa em si, não sujeita a essa lei e, portanto, livre’ ” (KANT, Crítica da razão pura, B xxviii). Disponível em: https://joaocamillopenna.files.wordpress.com/2013/09/kant-critica-da-razao-pura.pdf


KANT. “Natureza” (Prolegômenos, II, §14; p. 65). Acesso: neste site do CEFIB - Textos de Filosofia Brasileira - encontre a coluna "Edições e traduções recomendadas" e clique em "KANT - Prolegômenos a toda metafísica futura".


“A natureza é a existência das coisas enquanto esta é determinada segundo leis universais. Se a natureza houvesse de designar a existência das coisas em si, nunca poderíamos conhecê-la nem a priori nem a posteriori. A priori não, pois, como podemos desejar saber o que se deve atribuir às coisas em si? Isso nunca pode acontecer mediante o desmembramento dos nossos conceitos (proposições analíticas), porque eu não quero saber o que se contém no meu conceito de uma coisa (isso faz parte do seu ser lógico), mas o que na realidade da coisa se acrescenta a este conceito e por cujo intermédio a própria coisa é determinada na sua existência fora do meu conceito. O meu entendimento, e as condições sob as quais ele unicamente consegue conectar as determinações das coisas na sua existência, não prescreve nenhuma lei às próprias coisas; estas não se regem segundo o meu entendimento, mas o meu entendimento é que deveria regular-se por elas; por conseguinte, seria preciso que elas me fossem dadas previamente para delas tirar estas determinações; mas, então, não seriam conhecidas a priori. Um tal conhecimento da natureza das coisas em si mesmas seria também a posteriori impossível. Com efeito, se a experiência houvesse de ensinar-me as leis que regem a existência das coisas, elas, enquanto concernem às próprias coisas em si, deveriam também regê-las necessariamente fora da minha experiência. Ora, a experiência ensina-me, certamente, o que existe e como existe, mas nunca que isso deve existir necessariamente assim e não de outro modo. Por conseguinte, ela jamais pode fazer conhecer a natureza das coisas em si mesmas.”


SCHMIDT, Rita Terezinha (2012). Para além do dualismo natureza/cultura: ficções do corpo feminino. In: RODRIGUES, Carla; BORGES, Luciana; RAMOS, Oliveira Regina Tania (Org.). Problemas de gênero. 1ed. São Paulo: Funarte 2016. p. 343-368. Disponível em: http://seer.ufrgs.br/index.php/organon/issue/view/1816/showToc.

As categorias conceituais da natureza e da cultura constituem um dualismo fundador, muito caro à cultura humanista e o mais duradouro e persistente ao longo da história do mundo ocidental. Dos mitos clássicos à era moderna, na filosofia, na teologia, na antropologia e na literatura, para mencionar alguns campos do saber, esse dualismo operou como um modelo coerente para dar sustentação a distinções universalizantes entre concepções de humano e de não humano, e entre distinções entre seres homem e mulher. Impulsionado pelo desejo de explicar filosoficamente a natureza das coisas a partir de como elas são, Aristóteles foi um dos primeiros pensadores a explorar noções sobre a natureza do ser humano a partir da diferença sexual. Suas reflexões sobre o estatuto das mulheres na polis o levaram a deduzir a sua inferioridade como algo dado pela natureza, ou seja, a inferioridade deriva de um defeito constitutivo que é o seu corpo frio, incapaz, portanto, de transformar o sangue menstrual em sêmen, substância que carrega a latência do ser humano completo. Segundo seus argumentos, o homem doa a substância do ser (a alma, a forma) na cópula, enquanto que a mulher, embora não destituída de elementos da alma, supre o ser de forma passiva, apenas com a matéria, inferior à forma. Isso significa dizer que a latência da substância não se concretiza na concepção do ser feminino, um ser incompleto por natureza.

É importante observar que a oposição essencial entre substância e matéria está vinculada, particularmente em Generation of animals, ao campo da reprodução, e é nesse contexto que o corpo humano, declinado no feminino, sofre um rebaixamento conceitual em razão de sua inscrição na esfera de processos da natureza, suas leis e seus ciclos. Destituída de substância, a mulher é definida como um ser com alma de menos, o que vai agregar à conotação de inferioridade um juízo valorativo sobre faculdades cognitivas (no caso, a incapacidade da mulher de exercer a razão em sua plenitude, o que significa ser barrada do acesso à transcendência). Por isso, Aristóteles argumenta que, sendo a inteligência dos homens superior por natureza, é natural que eles sejam destinados a mandar nas mulheres, pois essas são “como uma metade dos seres livres”. No contexto de seu argumento, os termos que definem o que se qualifica e pode ser reconhecido como humano ficam muito claros, uma vez que, para efeitos práticos, em questões que dizem respeito à organização social e ao funcionamento do Estado, a própria definição do humano implica em construções diferenciadas e hierarquizadas. Dessa forma, as mulheres, os escravos e os bárbaros (os estrangeiros) correspondem a gradações nessa hierarquia, mas é significativo que somente o ser da mulher é concebido como uma forma inferior de vida humana pela matéria corpórea associada à animalidade, o que veio a constituir uma premissa não questionada no âmbito da cultura ocidental e, particularmente, nas disciplinas humanistas, ao longo de séculos.



Tradução adaptada Convém, pois, saber que o nome natureza provém de nascer (nascor, nātus, nasci γεννάω = be born; nascer). Daí esse nome ter sido usado primeiramente para significar a geração dos seres vivos, que se chama nascimento ou propagação; de modo que natureza se diz do que vai nascer. Depois, o nome natureza foi transposto para significar o princípio da geração. E como o princípio da geração nos seres vivos é intrínseco, o nome natureza foi ulteriormente estendido para significar todo princípio intrínseco de movimento, assim como diz o Filósofo: “a natureza é o princípio do movimento naquilo em que o movimento está presente por si, e não acidentalmente” (ARISTOTELES, Física II, 1). Esse princípio ou é a forma ou a matéria. Donde, a natureza às vezes é chamada forma, outras vezes matéria. E como o fim da geração natural naquele que é gerado é a essência da espécie significada pela definição, assim essa essência da espécie se chama também natureza. Desse modo Boécio define a natureza: “A natureza é a diferença específica que enforma cada coisa” (BOECIO, Das duas naturezas), ou seja, que completa definição da espécie. Desse modo, falamos agora da natureza como sendo a essência, ou o que é a coisa — a quididade (quidditatem) da espécie.

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