domingo, 11 de agosto de 2013

Ciência do Espírito e Arte

Farias Brito

 O mundo interior (1914), §4.




A arte, em sua significação mais ampla, consiste nisto: no poder ou aptidão, que pertence ao homem, de servir-se de meios ou de empregar processos no sentido de melhorar e aperfeiçoar as condições da natureza, para seu uso e bem-estar, ou apenas para emocionar-se agradavelmente. Assim definido o conceito, ficam compreendidas, ao mesmo tempo as artes úteis, e as artes de efeito puramente estético ou belas artes. A estas últimas parece, segundo alguns, inteiramente estranho todo e qualquer pensamento de utilidade, e lembro-me de ter visto em certa parte, se me não engano, em Spencer, esta definição: o belo é o que agrada sem ser útil. Aos que assim se manifestam, escapa a percepção do interesse superior da arte. O belo não é o que agrada sem ser útil, mas o que satisfaz a uma exigência superior do espírito; exigência cuja significação real é talvez de ordem transcendente, mas que não se torna por isto secundária, e tem, pelo contrário, relação imediata com o sentido mais alto da vida.

A arte do belo, se bem que não tenha uma utilidade imediata, pessoal ou material, não deixa por isto de ter uma utilidade de outra ordem, impessoal ou espiritual, mais profunda e elevada, e sem dúvida mais eficaz, correspondendo a um instinto superior que impulsiona a vida, e é a expressão de uma necessidade, por assim dizer, subconsciente, que sentimos, se bem que dela não tenhamos a clara percepção, nem o sentido exato.

A arte, assim entendida, é tudo o que pode causar uma emoção estética, tudo o que é capaz de emocionar suavemente a nossa sensibilidade, dando a volúpia do sonho e da harmonia, fazendo pensar em coisas vagas e transparentes, mas iluminadas e amplas como o firmamento, dando-nos a visão de uma realidade mais alta e mais perfeita, transportando-nos a um mundo novo e estranho, onde se aclara todo o mistério e se desfaz toda a sombra, e onde a própria dor se justifica como revelação ou pressentimento de uma volúpia sagrada. É, em conclusão, a energia criadora do ideal.

E como o ideal é o sonho da perfeição, e este sonho envolve toda a verdade e toda a justiça e toda a virtude e todo o amor; numa palavra, tudo o que há de mais alto e mais puro na natureza humana, segue-se evidentemente daí que de todas as produções do espírito, a arte é a mais humana e a mais essencialmente espiritual. É assim que, ainda nas suas manifestações mais positivamente objetivas, como na arquitetura, nas artes decorativas, na estética hidráulica, etc., o que emociona e transporta, o que produz efeito estético, é o elemento humano que aí se introduz. É de onde vem também o seu mais extraordinário poder: como se o destino da arte fosse animar a natureza, dar sentimento e percepção ao inconsciente, amor e piedade, comoção e paixão, ao próprio elemento morto que se fixou e esterilizou na dureza e na imobilidade da rocha. É deste modo que a arte dá linguagem às ondas e ao rochedo, às folhas das árvores e ao sopro do vento, à montanha e à planta, à nuvem e às estrelas. E até do silêncio e da paz inviolável e morta dos sepulcros, faz com que se evolem palavras misteriosas, como para provar que ainda na rigidez gelada do cadáver, como na sombra e na mudez emocionante das catacumbas, palpita a vida.

De maneira que, antes de fazer qualquer outra observação, é para consignar esta nota curiosa e importantíssima: que a arte tem em comum com a psicologia este predicado essencial — é coisa puramente humana, ou melhor, puramente espiritual. Além disto deriva da mesma fonte e se funda sobre o mesmo princípio: a intuição. Isto deixa logo perceber que estas duas correntes da atividade do espírito têm também um destino comum, ou, pelo menos, que concorrem, por processos diversos, para a satisfação de uma só e mesma necessidade fundamental. E é o que será fácil verificar pela análise dos fatos. E com isto não só se dá uma noção mais segura do verdadeiro papel da arte na obra da vida e da civilização, como ao mesmo tempo se torna mais clara e mais precisa a compreensão da verdadeira significação teórica e do valor prático da psicologia.

A arte está para a psicologia como o instinto para a inteligência: a psicologia é a visão consciente, a arte uma como visão inconsciente, mas profética da nossa própria realidade. A primeira é ciência, porque é trabalho do espírito; a segunda é instinto, porque o artista obedece a uma inspiração, por assim dizer, subconsciente, como se o impulsionasse uma força irresistível e fatal, nascida das profundezas ignotas de seu ser mais íntimo e profundo.

Mas por que se torna necessária esta espécie de psicologia instintiva e profética, como uma segunda visão da vida, obra do sentimento e da paixão, ao lado da psicologia verdadeira e natural, a interpretação lógica de nossa realidade espiritual pelo trabalho do espírito, pela obra consciente da inteligência? O que dá a razão desse fato, o que dá a legítima explicação da necessidade da arte, dessa psicologia instintiva, é a imperfeição mesma da psicologia como ciência, da psicologia como obra da inteligência. O ser consciente, o ser que é o princípio dos fenômenos psíquicos, é, de si mesmo misterioso e estranho, imperceptível e vago; e os seus fenômenos não podem ser estudados nas mesmas condições que os fenômenos da realidade exterior. Esta é resistente, fixa, visível; e se bem que a todo o momento se transforme, objetiva-se em formas permanentes, que podem ser classificadas e coordenadas de modo preciso. E as representações correspondentes a estas formas podem ser, por sua vez, coordenadas em conceitos que são também fixos. Demais, as transformações a que estão sujeitas, obedecem a uma certa ordem e podem ser generalizadas em leis. É a significação do que se chama ordinariamente o determinismo da natureza, e é daí que deriva o caráter positivo e certo das ciências da matéria; de tal modo, que conhecidas as leis que regem uma certa ordem de fenômenos, é legitima a previsão de qualquer fato, na ordem física, uma vez conhecidos os seus antecedentes causais. E tal é, como ninguém ignora, um dos atributos mais importantes e um dos caracteres próprios da ciência, e é nisto precisamente que consiste o seu mais extraordinário poder. Tratando-se, porém, dos fenômenos do espírito, não: toda a previsão, com caráter verdadeiramente seguro, é impossível. É certo que, dado o conhecimento que temos de certo indivíduo, podemos prever que ele em condições determinadas agirá deste ou daquele modo, ou que sua vida, deverá ter tal ou tal desenlace, trágico ou cômico, próspero ou fatal. Mas o seu caráter poderá modificar-se; uma revolução interna, de significação ignorada, poderá transformá-lo por completo. Demais, um acontecimento qualquer, imprevisto, poderá influir no sentido de produzir efeitos que de modo algum poderíamos pressentir. Por onde se vê que de toda a forma, tratando-se dos atos do homem, toda a previsão é sempre incerta e apenas provável, e toda a previsão segura, certa, é sempre impossível. Dir-se-á, porém: mas podemos prever com toda a certeza, com toda a segurança, que o homem morrerá. Sim; mas essa precisão não é psíquica, e sim fisiológica, e por conseguinte de ordem física. Não se trata aí de uma previsão de fenômeno do espírito, mas rigorosamente, de fenômeno da matéria.

A morte não é fenômeno do espírito, mas da matéria. É por isto que a sua previsão é possível. A mesma coisa pode dizer-se de todos os outros fenômenos que constituem os diferentes momentos ou os graus sucessivos do desenvolvimento natural do organismo. A morte é o desenlace final desse drama sanguinolento em que se resolve a vida de cada organismo. Mas esse desenlace mesmo, se bem que possa ser previsto com certeza, todavia fica sempre envolvido no mistério quanto às condições em que terá de realizar-se, nem poderá ser determinado o momento preciso em que deverá chegar para cada um a crise terrível: o que prova que na própria morte, por isto mesmo que está em ligação imediata com a vida do espírito, existe um certo grau de liberdade.

A liberdade — eis realmente o fato decisivo que marca a separação absoluta entre o espírito e a matéria. Nos fenômenos da matéria dominam a mais absoluta necessidade e o mais inflexível determinismo; nos fenômenos do espírito o princípio que se deve reconhecer como lei primordial e tudo domina é a liberdade. É a razão por que aí toda a previsão é impossível. Bergson deu como símbolo de sua concepção da vida esta fórmula eloqüente — Evolução criadora. E isto significa que a vida é uma evolução; mas significa também que essa evolução é ao mesmo tempo uma criação. E realmente viver é criar. Mas é preciso, além disto, reconhecer que criar é ser livre: o que só por si faz patente que há alguma coisa na vida que escapa a toda a determinação. É a razão por que toda a vida começa envolvida no mistério, e termina, do mesmo modo, envolvendo-se de novo no mistério. É como uma luz que brilhando um momento na escuridão do infinito, apenas deixa perceber a profundeza do abismo. Mas sempre que brilha, essa luz faz nascer a esperança de que se transformará em clarão que fará ver mais fundo e mais longe. É que a vida é força criadora: e por isto o que a caracteriza na sua evolução é o imprevisto. Assim cada fase nova que nela se apresenta é uma coisa inteiramente nova e apresenta-se como se fosse uma criação do momento.

Vem daí que para cada um todo dia tem a sua surpresa. Mas também todo o ato tem a sua influência direta sobre a evolução do caráter. De maneira que cada um é a todo o momento criação de si mesmo. E tudo isto quer dizer que o homem é uma das modalidades do espírito, e como tal é força criadora.

É por isto que toda a criança, quando nasce, é sempre festejada como se fosse portadora de um mistério novo e como se estivesse destinada a fazer uma revolução no mundo. E a história dessa prodigiosa criança que nasceu em Belém da Judéia e cuja entrada na vida foi anunciada por uma estrela que devia guiar os reis magos na direção do lugar em que ficava o seu berço, é uma história que se repete toda a vez que é dada à luz uma criança. Cada nascimento é uma nova afirmação do desconhecido e uma nova promessa de revelação da verdade. O maior de todos os crimes é, pois, o da mãe que mata o próprio filho; isto por todos os princípios; mas principalmente por esta razão: porque ela não sabe avaliar de que natureza é o tesouro que cegamente destrói.

Ninguém sabe realmente o que deverá ser a criança que nasce; e cada evolução que faz ela na vida é como um nascimento novo, e cada ato que pratica, marca uma influência direta que exerce, e uma modificação real por que passa; mas nada se pode prever, nem determinar com segurança em seu futuro. De maneira que tudo é incerto na vida, e ainda nas coisas que nos parecem mais claras, a todo o momento zomba de nós o destino, entregando-nos inermes ao joguete de forças desconhecidas. Vagamos como sombras na noite do mistério, e em vão soltamos queixas e gemidos em face do impenetrável que nos aterra; incertos do nosso destino; perdidos na imensidade do espaço e no infinito do tempo; certos somente da fragilidade de nossa existência e da morte inflexível que nos aguarda.

Não é necessário insistir para tornar patente a verdade desta conclusão: a psicologia é essencialmente diferente de todas as outras ciências. Em outros termos: a ciência do espírito difere radicalmente das ciências da matéria e jamais poderá ser como estas, reduzida a sistematizações rigorosas e a fórmulas precisas. Além disto difere também essencialmente das mesmas, por sua significação prática. Com relação às ciências da matéria pode dizer-se que o conhecimento é generalizado em conceitos e sistematizado em leis, e ao mesmo tempo consolidado em livros. A ciência é assim uma espécie de arquivo do pensamento, e bem coordenados os documentos, compreende-se que não é difícil determinar a posição precisa de cada idéia, ou fazer a interpretação rigorosa e segura de cada fato.

Isto, tratando-se das ciências da matéria. Mas, tratando-se das ciências do espírito, o caso é inteiramente outro. Aqui o que se deve conhecer e interpretar é não o arquivo, mas o próprio arquivista. Por onde se vê que o livro em que se escreve a psicologia, é não qualquer trabalho de sábio, mas o homem mesmo. É a razão por que há homens de ciência, de reconhecido valor na sua especialidade, de saber incontestável e vasto, que são, entretanto, inteiramente estranhos a toda e qualquer espécie de psicologia; ao passo que há homens inteiramente estranhos à ciência que conhecem a fundo a alma humana e são psicólogos no verdadeiro sentido da palavra. É que a psicologia não se aprende nos livros, mas na luta mesma da vida: é uma ciência que, por assim dizer, não se aprende, mas vive-se; ciência que faz parte orgânica daquele que a possui, e em que o objeto do conhecimento é consubstancial com o sujeito.

Para que submeter o fato a novos desenvolvimentos? Pelo que fica exposto torna-se visível o caráter superior, incomparável, supremo da psicologia. Mas também vê-se que é daí que vem a sua imperfeição radical e irremediável, porque na psicologia, sendo toda a previsão impossível jamais poderemos chegar à certeza absoluta e não há cálculo que não seja falível. É por isto que em auxílio do trabalho da ciência, sempre imperfeita, sempre deficiente e incompleta, necessário é que venha a inspiração da arte, dando mais vigor e mais fé à orientação da inteligência, com a visão subconsciente, mas luminosa do instinto. É à arte, pois, que cabe fornecer o ideal que deve impulsionar o trabalho do espírito em sua jornada através do desconhecido. Vê-se assim que a arte é, por essência, a energia criadora do ideal, o que só por si é bastante para tornar manifesto o absurdo de certos sistemas estéticos, tão apregoados, ainda nos nossos dias, com diversos nomes, como realismo, naturalismo, etc., todos com idéia de descrever a realidade nua e crua. É uma espécie de reprodução, à maneira de caricatura, da obra mesma da ciência. Pois não há uma escola de poesia chamada científica, como uma espécie de romance chamado o romance experimental? É mais um dos modos por que se manifesta a anarquia a que se acha, no estado atual do mundo, reduzido o espírito humano.


A arte é a energia criadora do ideal e tem precisamente por fim auxiliar a ciência psíquica na interpretação da verdadeira significação da vida e fornecer ao espírito princípios de inspiração e fontes de energia, para que se possa orientar com segurança e eficácia na direção do governo humano. E no dia em que a luz se fizer definitiva e completa sobre o mistério interior, a arte tornar-se-á desnecessária e deixará de ser, por falta de destino. Mas chegará esse dia?...

FIM

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